OS LIVROS DIDÁTICOS DA ESCOLA PRIMÁRIA NOS ANOS 1930 – 40 E A IMAGEM FEMININA NICARETA, Samara Elisana [email protected] NASCIMENTO, Elisabet Ristow Eixo Temático: História da Educação Resumo O período 1930-40 é considerado um momento de transformações sociais no Brasil. O país começava a se industrializar, a se modernizar e era necessária uma educação voltada à profissionalização. Apregoava-se uma educação popular: a educação como base da organização social. Considerando este contexto, esta pesquisa analisa as contribuições trazidas pelos livros didáticos quanto a representação da imagem feminina na escola primária brasileira, presentes no currículo e veiculados ideologicamente por meio de ilustrações, textos e fotografias. Como fontes de pesquisa foram utilizados 20 livros didáticos das várias áreas do conhecimento utilizados em escolas primárias nos anos 1930-40. Partimos do pressuposto de que os papéis que a sociedade estabelece para a mulher são construídos e cultivados no ambiente cultural, com a colaboração da escola. Ao livro didático assim como a outros elementos da cultura escolar podem ser atribuídas funções de reprodução de condições sociais, aliadas a uma perspectiva de base ideológica, que serviriam para caracterizar o funcionamento da escola - este é um argumento encontrado na teoria de Althusser sobre ideologia. O conteúdo dos livros didáticos analisados mostra que, na medida em que era escolarizada, a menina deveria se aproximar daquele modelo de mulher adulta tradicionalmente apresentado. Na educação formal das meninas, havia uma preocupação em fortalecer a sensibilidade, o medo, a obediência, a afetividade. Não há uma alteração da imagem social feminina ao longo do tempo, embora, em função da modernização associada àquele período histórico, se nutrisse alguma perspectiva de formação e assimilação de um novo perfil: a mulher trabalhadora. Palavras-chave: Educação. Gênero. Livro didático. Introdução Escolhemos este período da história por se tratar de um marco com relação as transformações que se faziam necessárias na educação do Brasil. Para alguns autores, desde o 211 final do Império já existia uma intenção de se melhorar o sistema escolar, visto que as condições apresentadas até então não contribuíam para a elaboração de uma política nacional de educação. As bases para essa reformulação vieram de ideologias ainda orientadas no ensino com fundamento religioso, que marcou o período imperial. (WEREBE, 1995). A República proclamada recebeu assim um acervo rico para pensar e repensar uma doutrina e um programa de educação. Muitos movimentos surgiram em prol da “republicanização da República”, que não tinham apenas um vínculo com a educação; alguns combatiam a abstenção eleitoral outros um esforço no sentido de melhorar as condições econômicas e sociais, com um caráter nacionalista. De acordo com Jorge Nagle, que busca caracterizar a educação na chamada República Velha: Neste ponto, o “soerguimento moral da nacionalidade” torna-se possível pela disseminação da educação popular [...] entendendo que, a ignorância reinante é a causa de todas as crises, a educação do povo é a base da organização social, portanto, o primeiro problema nacional é a difusão da instrução (2004, p. 263). Os empecilhos a formação de uma sociedade aberta encontram-se na grande massa analfabeta e na pouca disseminação da escola secundária e superior. As discussões saem do âmbito restrito do Congresso Nacional e passam a ser foco de grupos de profissionais interessados no problema da educação. (IBID., p.263). Para Nagle, o período evidencia duas perspectivas sobre o campo educacional: o entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico. Enquanto o entusiasmo pela educação se manifesta pela alteração de um ou outro aspecto do processo e, especialmente, pelo esforço em difundir a escola existente, no otimismo pedagógico pretende-se a substituição de um modelo por outro. Por essa razão, o entusiasmo pela educação se realiza com os movimentos reformistas, enquanto o otimismo pedagógico realiza-se com os de remodelação. A forma mais acabada do otimismo pedagógico só vai aparecer a partir de 1927 com as idéias da Escola Nova. Com o entusiasmo pela educação há pressões no sentido de ampliar as responsabilidades do Estado em matéria educacional, luta-se abertamente contra o descaso dos poderes públicos nesta área. A partir daí, as discussões se orientam para uma posição intervencionista, com a criação da imagem de um novo papel do Estado que atinge os dispositivos constitucionais. 212 Duas tendências se delineiam a respeito da escola primária e da escola normal: a da nacionalização compensava o conteúdo patriótico, sentimental e idealista do nacionalismo com um conteúdo fundado mais no conhecimento da terra e da gente brasileira, e a da regionalização e ruralização, expressão de um esforço para ajustar os padrões de ensino e de cultura da escola primária e normal às peculiaridades da vida social em que se encontram (IBID. , p. 271). A partir da década de 1930, no entanto, os componentes ideológicos passam a ter uma presença cada vez mais forte na vida política e a educação seria a arena principal em que o combate ideológico se daria. É criado em 1930 um Ministério de Educação e Saúde, ponto de partida para mudanças substanciais na educação, entre outras, a estruturação de uma universidade. Estabeleceu-se a nova Constituição de 1934, inferindo sobre a necessidade da elaboração de um Plano Nacional da Educação para coordenar e supervisionar as atividades de ensino em todos os níveis. Outra meta elaborada era o ensino primário (crianças de 7 a 12 anos), integral, gratuito e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos. Medidas são regularizadas como: As formas de financiamento da rede oficial de ensino em quotas fixas para a Federação, os Estados e Municípios, fixando-se ainda competências dos respectivos níveis administrativos para os respectivos níveis de ensino. Implanta-se a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário. O ensino religioso torna-se facultativo. (FREITAG, 1984, p. 51). Boa parte dessas mudanças permaneceu na Constituição de 1937, mas surgiram novidades de importância para o bom funcionamento da nação com vistas nas mudanças estruturais políticas e econômicas. Essas mudanças são percebidas pelo número de matrículas realizadas no ensino fundamental no período de 1935 – 1946 que passam de 2.413.594 para 3.238.940. Verifica-se que no início do Governo Vargas, 2/3 da população em idade escolar estava excluída da escola e o analfabetismo atingia 65% da população maior de 15 anos. Em 1940, o analfabetismo caiu para 56%. Apesar disso, continuou a existir a seletividade da educação brasileira, bem como não foi rompida a contradição entre trabalho manual e intelectual. 213 É introduzido o ensino profissionalizante, previsto antes de mais nada para as classes “menos privilegiadas. [...] obrigação das indústrias e dos sindicatos criarem escolas de aprendizagem na área de sua especialização para os filhos de seus empregados e membros. Declaram-se obrigatórias as disciplinas de educação moral e política.(FREITAG, 1984, p. 51). Com essas medidas adotadas constatamos uma tomada de consciência por parte da sociedade política, da importância estratégica do sistema educacional para assegurar e consolidar as mudanças estruturais necessárias à sociedade brasileira. O objetivo dessa política educacional tinha uma intencionalidade clara, “transformar o sistema educacional em um instrumento mais eficaz de manipulação das classes subalternas” (IBID., p. 52). Era necessário formar o trabalhador para as indústrias que exigiam maior qualificação e diversificação da força de trabalho. Esta pesquisa tem como ponto de partida a pesquisa bibliográfica que focaliza a produção sobre a questão do gênero na pesquisa educacional brasileira. Ao lado disso, se apóia em pesquisa documental, com base na análise de 20 livros didáticos com imagens e textos tratando de personagens femininos, utilizados em escolas primárias nos estados sulinos no período de 1930 e 40. As imagens ou ilustrações presentes nos livros didáticos podem ser vistas como portadoras diretas ou indiretas de mensagens ideológicas, na medida em que apresentam retratados sujeitos e situações que podem ser interpretadas de acordo com pontos de vista hegemônicos, preconceituosos ou discriminatórios (CHOPPIN, 1997). Contexto histórico da educação feminina Até o início do período imperial, em 1822, não havia preocupação com a educação formal feminina na colônia. A família era conduzida pelo homem, sendo, portanto patriarcal, seguindo o modelo português. O pai tinha autoridade absoluta sobre todos, sua palavra era a lei. Como prova de seu poder destaca-se: ”Escolhia as profissões e os casamentos para os filhos, segundo as conveniências. Aliás, em geral, esses casamentos eram combinados entre famílias poderosas, para melhor conservarem-se ou serem aumentadas as fortunas e, com isso, o prestígio”. (BORGES, 1980, p 19). Se o patriarca era quem determinava como seria a vida e as funções de todos que eram próximos a ele, a mulher, branca rica desempenhava, via de regra: 214 Papel de importância na organização e supervisão das atividades que se desenvolviam no lar. Atividades estas não restritas apenas àquilo que hoje designamos de domésticas. Não diria tão-somente o trabalho da cozinha, mas também a fiação, tecelagem e costura, bem como as confecções de rendas e bordados, a alimentação dos escravos, o serviço dos arredores da casa como jardim, pomar, criação de animais domésticos e, sobretudo, o cuidado das crianças. (Ibid., p. 21). Como vimos, a mulher inicialmente, mesmo sendo de famílias de posses, era totalmente empenhada nos afazeres ligados a família e a casa, sua vida se restringia ao lar, a fazenda. Sua educação basicamente era voltada a fazer trabalhos manuais, mandar e organizar a casa, rudimentos da escrita e leitura de livros morais e religiosos. No livro “História das Mulheres no Brasil” organizado por Mary Del Priore, no capítulo intitulado “Mulheres na sala de aula”, essa idéia é reforçada: As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas, as habilidades culinárias, bem como as habilidades de mando das criadas e serviçais, também faziam parte da educação das moças; acrescida de elementos que pudessem torná-las não apenas uma companhia mais agradável ao marido, mas também uma mulher capaz de bem representá-lo socialmente. [...] Sua circulação pelos espaços públicos só deveria se fazer em situações especiais, notadamente ligadas às atividades da Igreja que, com suas missas, novenas e procissões, representava uma das poucas formas de lazer para essas jovens. (LOURO, 2008, p. 446). À medida que se intensificou o processo de urbanização, o ambiente da cidade lhe propiciava alguns contatos, nas festas sociais e religiosas. Algumas filhas de famílias mais abastadas podiam estudar fora do Brasil, em Portugal, mas a grande maioria era educada em casa. Ainda no século XIX, entre os grupos mais favorecidos economicamente se admitia que era necessária a oferta de uma educação mais consistente culturalmente as mulheres. No decreto imperial de 15 de outubro de 1827, o governo estabeleceu um currículo não profissionalizante para a educação feminina, “voltado para a formação de donas-de-casa, composto das seguintes disciplinas: leitura, escrita, quatro operações, gramática, moral cristã, doutrina católica e prendas domésticas”.(MANOEL, 1996, p. 23 citado por ALMEIDA, 2007, p.3). Apesar de ser um decreto o projeto não se concretizou, não houve condições práticas para execução de nenhum dos programas de estudo, uma vez que escolas não foram criadas para esse fim. 215 Em geral, no Brasil, pouco se cuida da educação das mulheres, o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado; mesmo nos pensionatos freqüentados pelas filhas das classes menos abastadas, todos os professores se queixam de lhes retirarem as alunas justamente na idade em que a inteligência começa a se desenvolver. A maioria das meninas enviadas à escola aí entram com a idade de sete ou oito anos; aos treze ou quatorze anos são consideradas como tendo terminado os estudos. (LEITE, 1984, p. 74 citado por ALMEIDA, 2007, p.3). Se o foco inicial das leituras femininas era de cunho moral e religioso, na segunda metade do século XIX houve um acréscimo de leituras mais mundanas, falando da vida nas cidades, das relações sociais e culturais. As mulheres puderam, por exemplo, circular pelos salões, um dos novos espaços de convivência em sociedade, falar sobre livros de sua preferência. Tornaram-se leitoras exigentes conquistando um lugar no mercado editorial. Aos pouco foi sendo criada uma nova função social para a mulher, a função de educadora, favorecida pela valorização da instrução feminina. O discurso positivista de forte influência na época fez com que se agregasse as funções de mãe, dona-de-casa e esposa a função de educadora dos filhos da pátria. Dessa forma, nos primeiros momentos do século XX, a forma idealizada de mulher na sociedade brasileira tinha como características: a pureza, doçura, moralidade cristã, maternidade, generosidade e patriotismo. A ela já era permitido o trabalho desde que este fosse uma extensão de seu papel no lar, tais como as de professora e enfermeira. Seu universo de leituras se expandiu e proporcionou uma mudança de vida. A partir da consideração das práticas de leitura recomendadas/permitidas à mulher, voltamos à extensão da função formativa da escola e da família e à antinomia constitutiva da Modernidade: à mulher foi sendo dada a liberdade de ler mais escritos, por outro lado, o acesso a esses escritos era controlado pela família, pela escola e pela Igreja. (ALMEIDA, 2007, p. 04). Não podemos desconsiderar as conquistas alcançadas pelas mulheres, mas fica evidente a liberdade controlada através da educação, que idealizava o perfil de mulher a ser aceito como convencional, que impedia uma transformação social almejada por muitas. A partir de 1930, mesmo a sociedade brasileira sendo machista e patriarcal, as mulheres conquistaram o direito a participação no Ensino Superior e na atividade política nacional. Ao olharmos para a história do Brasil e da humanidade percebemos que ações 216 isoladas ou coletivas contra as mulheres podem ser observadas em diversos momentos. Como forma de analisar essas ações contra a mulher surge o movimento feminista: Na virada do século XIX, as manifestações contra a discriminação feminina adquiriram uma visibilidade e uma expressividade maior no chamado “sufragismo”, ou seja, no movimento voltado para estender o direito do voto às mulheres. (...) Seus objetivos mais imediatos (eventualmente acrescidos de reivindicações ligadas à organização da família, oportunidade de estudo ou acesso a determinadas profissões) estavam, sem dúvida, ligados ao interesse das mulheres brancas de classe média, e ao alcance dessas metas (embora circunscrito a alguns países) foi seguido de uma certa acomodação no movimento. (LOURO, 1997, p. 15). Neste mesmo período, década de 30, os componentes ideológicos passam a ter uma presença cada vez mais forte na vida política e a educação seria a arena principal em que o combate ideológico se daria. No livro intitulado “Tempos de Capanema” podemos localizar alguns elementos sobre o papel da mulher na sociedade da época. Era prevista uma diferença de educação para homens e mulheres, tendo por finalidade preparar o indivíduo para a vida moral, política e econômica da nação. Cumpre reconhecer que no mundo moderno um e outro são chamados a mesma quantidade de esforço pela obra comum, pois a mulher mostrou-se capaz de tarefas as mais difíceis e penosas outrora retiradas de sua participação. Assim, se o homem deve ser preparado para a militância, para os negócios e as lutas, a educação feminina terá outra finalidade que é o preparo para a vida do lar. A família constituída pelo casamento indissolúvel é a base da organização social e por isto colocada sob a proteção especial do Estado. O tratamento especial que se reservava às mulheres se desdobraria em dois planos: Por um lado, haveria que proteger a família; por outro, haveria que dar a mulher uma educação adequada ao seu papel familiar. Os diversos projetos e propostas elaboradas com este objetivo mostram certa evolução, que vai desde uma divisão extrema de papéis entre os sexos até uma atitude mais conciliatória, que chega até mesmo, a aceitar, em 1942, a co-educação, ainda que de forma excepcional. (SCHWARTZMAN et. al., 2000, p. 107-108). 217 O projeto elaborado por Gustavo Capanema, Plano Nacional de Educação de 1937, previa a existência de um ensino dito “doméstico”, reservado para as meninas entre 12 e 18 anos, e que equivaleria a uma forma de ensino médio feminino. Seu conteúdo era predominantemente prático e profissionalizante, e fazia parte, no plano, do capítulo destinado ao ensino da “cultura de aplicação imediata à vida prática ou ao preparo das profissões técnicas de artífices”.(Ibid., p.108). Era, pois, destinado principalmente a mulheres de origem social mais elevada, que dessa forma poderiam manter-se em um regime escolar estritamente segregado. Instituição escolar, organização curricular e gênero A abordagem das questões de gênero focaliza as diferenças que são culturalmente construídas entre os sexos, explicitando como se edificam as relações sociais entre homens e mulheres. O próprio conceito de gênero tem uma história relativamente recente (SILVA, 2000, p.91). Mesmo que as relações sociais impliquem numa definição de papéis a serem desempenhados por homens ou mulheres, embora o fato das mulheres gerarem e alimentarem os filhos aparentemente não acarretava vínculos predeterminados, é oportuno lembrarmos que esta distinção de papéis está ligada ao trabalho que cada gênero assumiria na sociedade (LOURO, 1997, p.24). Historicamente verifica-se que as mulheres eram absorvidas principalmente em ações domésticas devido ao seu papel de mãe. Suas atividades econômicas e políticas são restringidas pelas responsabilidades nos cuidados com a prole, o enfoque de suas emoções e atenções é particularmente voltado para os filhos e para a preservação de um ambiente harmonioso no seu lar, em qualquer circunstância. Como conseqüência disso temos que: As escolas femininas dedicavam intensas e repetidas horas ao treino das habilidades manuais de suas alunas produzindo ”jovens prendadas”, capazes dos mais delicados e complexos trabalhos de agulha ou de pintura. As marcas da escolarização se inscreviam, assim, nos corpos dos sujeitos. (IBID., p. 62). 218 Percebemos que a tradição sobre a condição feminina passada pela família, cuja encarregada seria na maioria das vezes as mães das futuras moças, consistia em impor regras de comportamentos, atividades que uma dama poderia realizar, limitando-se a afazeres ligados ao lar. Mas esse processo teria uma continuidade, o mesmo cuidado passando a ser atribuído à escola elementar. As duas instituições, responsáveis tanto pela formação do indivíduo como também pela manutenção da cultura social atuam em consonância, agindo em parceria na consolidação de certas marcas da formação humana que se faziam presentes na sociedade. Esta preocupação em transmitir valores e habilidades as futuras donas de casa pode ser encontrada no livro: Leituras Infantis - Segundo Livro, de 1922, mas cujas edições posteriores foram utilizadas nas décadas seguintes, no texto intitulado “O Crochê”. Margarida obtinha excellentes notas em todas as matérias ensinadas na escola, com exceção apenas dos trabalhos de agulha. Pelo crochê, especialmente, ella sentia uma aversão invencível. Fazia-o sempre muito mal feito, com os pontos desigualmente apertados e errados. A mestra freqüentemente a reprehendia por isso. [...] (VIANNA, 1922, p. 81). A incorporação curricular de conteúdos específicos para as meninas na escola primária é evidenciada em documentos da legislação educacional que vigorou nos anos 1930, como localizamos no Programa de ensino das escolas isoladas das zonas coloniaes editado em Santa Catarina. Nos conteúdos previstos para o 3o. ano constavam: “Trabalhos domesticos (Secção feminina): Pontos, alinhavos, pospontos fechados e abertos. Pontos de remate. Pregas. Bainhas. Caseados. Remendos. Pontos de ornamento. Crochet e bordados simples.” (SANTA CATARINA, 1926, p.25). Com isso observa-se que desde a infância as meninas recebiam, através dos materiais didáticos escolares, mensagens próprias a algumas esferas da vida, e, portanto, eram levadas a aprender e a reproduzir as marcas da tradicional formação social e cultural prevista para a formação do feminino. Essa conformação a um papel específico pode ser interpretada do seguinte modo, percebendo-se aí as influências formativas institucionais: 219 É a identidade de gênero que possibilita à criança reconhecer-se como pertencente ao gênero masculino ou feminino, com base nas relações sociais e culturais que se estabelecem a partir do seu nascimento. A identidade de gênero ultrapassa a concepção do aprendizado de papéis, que pode tornar-se muito simples, uma vez que caberia a cada sexo conhecer o que lhe convém ou não, adequando-se a essas expectativas. [...] Além disso, a maneira como a família, a escola, agem em relação às meninas e aos meninos são fundamentais no processo de constituição da identidade de gênero. (SOUZA, 2005, p. 2). Esta identidade de gênero, portanto, está relacionada intimamente com a forma como a escola trabalha esta questão. Em muitos casos, se apóia na maneira com que o professor produz ou reproduz certos papéis na sala de aula, que estão socialmente consolidados. Tais prerrogativas estão materializadas e cristalizadas, sendo esses papéis impressos no currículo, enquanto elemento constitutivo e transformador de uma sociedade. Outro ponto conflitante é a intervenção do professor com relação aos estereótipos formados quanto ao gênero. Clássicos exemplos: menina brinca de boneca e menino brinca de carrinho; a cor da menina é rosa e do menino é azul; as meninas são mais calmas e dedicadas enquanto que os meninos são mais agitados e desleixados. Na escola estes estereótipos também podem se referir à aprendizagem: os meninos gostam mais de matemática, já as meninas preferem Língua Portuguesa. Isso nos leva a perguntar sobre até que ponto existe uma consciência dessa modelagem ou desse determinismo social. Portanto, na organização curricular, o professor e os livros didáticos podem se somar na conformação da identidade das crianças. Os manuais, livros didáticos, livros de classe ou ainda livros-texto, como são chamados, podem representar uma fonte privilegiada para compreender o fazer educacional de uma época, seja quanto ao interesse por questões relativas a educação, a cultura ou as mentalidades, a linguagem ou as ciências. Sendo assim, para Choppin (2002, p. 14) o livro didático pode estar inscrito na realidade material, participando do universo cultural, sendo um depositário de um conteúdo educativo e ideológico. Pode ainda, assumir o papel de transmitir às jovens gerações os saberes, as habilidades, relações de poder - tudo isso possuindo valor e utilidade em um dado contexto formativo. Sob tal ótica, os livros são julgados indispensáveis à sociedade para sua perpetuação. Althusser aborda essa questão da perpetuação da sociedade através da reprodução das relações de produção e questiona de que maneira ela é assegurada com base na ideologia. 220 Indica que para a reprodução das condições de existência são necessárias não somente a reprodução pela materialidade dos processos, mas especialmente por meio de relações políticas e ideológicas que se relacionam entre si, o que “provoca” a necessidade de impor e manter estas conexões por meio da força material (Estado) e da força moral (ideologias). (MCLENNAN, MOLINA & PETERS, 1980, p. 121 ). Consideramos com isso, que as instituições escolares podem ser caracterizadas como meios de produção (representam a materialidade), enquanto que, os professores, equipe pedagógica e administradores são os responsáveis pela manutenção de uma formação social representada por uma ideologia dominante. Althusser destaca que essa representação de Poder só é conseguida por meio dos Aparelhos Ideológicos do Estado que atuam em consonância com os Aparelhos Repressivos do Estado. Ao focarmos o interior da escola nos debruçamos sobre a problemática de analisar os materiais curriculares, tais como os livros didáticos, uma vez que transmitem os estereótipos de gênero, fruto de um currículo educacional que reflete e reproduz a sociedade mais ampla. Um livro didático que sistematicamente apresentasse as mulheres como enfermeiras e os homens como médicos, por exemplo, estava claramente contribuindo para reforçar esse estereótipo e, conseqüentemente, dificultando que as mulheres chegassem à faculdade de Medicina. De forma similar, os estereótipos e os preconceitos de gênero eram internalizados pelos próprios professores e professoras que inconscientemente esperavam coisas diferentes de meninos e meninas. (SILVA, 2000, p.92). Disso decorre que, quando o professor se utiliza do livro didático como instrumento de trabalho, configura uma fonte de inculcação política, cultural e ideológica na sociedade. E é a partir de sua prática diária que auxilia para consolidar ou modificar as regras sociais preestabelecidas. Este argumento nos permite verificar que identidades são atribuídas a homens e mulheres no processo formativo do qual a educação escolar se imbui. Os caminhos na conformação do feminino 221 Se uma determinada cultura está representada nos livros didáticos, uma análise dos mesmos permite destacar vários fatores: a aparição e as transformações de uma noção científica, as manifestações de um comportamento social, a evolução do próprio material utilizado na sua confecção. Homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos de repressão ou censura, eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações que instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir, condutas e posturas apropriadas (e, usualmente, diversas). Os gêneros se produzem, portanto, nas e pelas relações de poder. (LOURO, 1997, p. 41) Portanto, todo papel assumido por homens e mulheres irá determinar condutas e posturas que são apropriadas, convenientes para uma dada posição na hierarquia social. Mesmo supondo que haja tensões, conflitos entre os sujeitos envolvidos, o poder final estará nas mãos de quem ocupa a posição superior, a que está em primeiro plano. O fato de que a instituição escolar tenha que responder a uma série de apelos da sociedade, de ordem social e cultural fazem da prática pedagógica um trabalho complexo. De acordo com Louro (1997, p.70) a construção de identidades ultrapassa a necessidade de estabelecer papéis diferenciados para meninos e meninas. Mas essa identidade se concretiza no livro didático, através de textos, exercícios, imagens, conteúdos que veiculam um certo conteúdo e valores associados. Nas figuras reproduzidas a seguir, uma ilustração do O bom Colegial, de 1946 (Figura 1) e na capa de Leituras Infantis, de 1922, constatamos que a representação da menina não sofreu alterações profundas com o passar dos anos, mesmo no cenário de preconizada modernização os anos 1930-40, onde esperávamos que as imagens e textos já anunciassem um outro perfil: a mulher trabalhadora. 222 Figura 1 – Ilustração do Livro: O Bom Colegial - 1946 Fonte: Acervo particular Figura 2 – Capa do Livro – Leituras Infantis - 1922 Fonte: Acervo particular Nos livros didáticos escolares isso ainda não está presente, de acordo com o estágio atual de nossa pesquisa. Ainda encontramos a menina muito bem apresentável, com vestido rodado ou com vestido longo e meias calças. Sua aparência sugere alguém de pele branca, olhos claros, cabelos loiros ou castanhos, sempre bem arrumados com laço-de-fita. A posição corporal indica um certo recato, posição de humildade, muito carinhosa, caridosa, boa menina, sempre pronta a ajudar e a cuidar de seus irmãos mais novos (a exemplo da mãe, perpetuando uma imagem feminina tradicional). Representa-se, portanto, que a formação da menina começava muito cedo em casa. Os afazeres domésticos eram função predestinada às mulheres, pertencente à esfera privada da atividade social. Com base nessas ilustrações, considera-se que os livros didáticos dão uma idéia de posicionamento social e cultural, de localização de atividades mais comuns a homens e outras mais comuns a mulheres. A mensagem que está por trás de determinados conteúdos imagéticos e textuais reflete uma certa organização social, o saber e a cultura que estão à disposição da escola. Em conseqüência, uma série de valores, relações sociais, e por que não, relações de poder estarão inseridas, ora enaltecendo uma dada ideologia, ora criticando-a. 223 Alain Choppin (2002, p. 19) ressalta que a análise dos conteúdos dos livros didáticos oportunizam a percepção direta ou indireta de uma evolução ideológica e cultural. Para esse autor, de certa forma a organização da sociedade pode ser representada no livro didático por um sistema de valores morais, religiosos, políticos; ou ainda considerando o livro didático como instrumento pedagógico, capaz de apontar métodos e técnicas de aprendizagem. Em nosso caminho de investigação, os resultados preliminares indicam que os livros didáticos da escola elementar utilizados nos anos 1930-40 atendem a uma certa conformação de gênero. REFERÊNCIAS ALMEIDA, N. M. A. Revistas femininas e educação da mulher: o Jornal das Moças. In: 16° CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL (COLE) – CADERNO DE ATIVIDADES, Campinas, 2007. BARRETO, A. O.; SANTOS, L. M. O Bom Colegial – 1º Livro. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1946. BORGES, W. R. A Profissionalização feminina: Uma Experiência no Ensino Público. São Paulo: Loyola, 1980. BRASIL. Decreto-Lei n. 8.529, de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino Primário.Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/republica> CHOPPIN, A. O historiador e o livro escolar. História da Educação / ASPHE. Pelotas, UFPel – Semestral. V.06, n.11, p. 5-24, abril, 2002. FREITAG, B. Escola, Estado & Sociedade. São Paulo: Moraes, 1984. LOURO, G. L. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, D. M. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. MCLENNAN, G; MOLINA, V; PETERS, R. A teoria de Althusser sobre ideologia. In: Centre for Contemporany Cultural Studies, da Ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. NAGLE, J. A educação na primeira república. In: HOLLANDA, S. B. História geral da civilização brasileira. 4 ed. Tomo III, v. 2, livro 3º., p. 261-291, 2004. SANTA CATARINA. Programa de ensino das escolas isoladas das zonas coloniaes aprovado pelo Decreto no. 1944, de 27 de fevereiro de 1926. Florianópolis: Imprensa Official, 1926. 224 SCHWARTZMAN, S; BOMENY, H. M.;COSTA, V. M. R. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SOUZA, Fabiana Cristina de. Diferenças de Gênero na Escola: interiorização do masculino e do feminino. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO – ANPED, 28, 2005, Caxambu / MG. VIANNA, F. F. M. Leituras Infantis – Segundo Livro. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1922. WEREBE, M. J. G. A educação. In: HOLANDA, S. B. História geral da civilização brasileira. 5 ed. Tomo II, v. 4. p. 366-383, 1995.