Caso e Relações Gramaticais em Trumai Raquel GUIRARDELLO-DAMIAN Universidade de Brasília 1. INTRODUÇÃO O Trumai é falado no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Trata-se de uma língua geneticamente isolada. Embora a população seja estimada em mais de 120 indivíduos, somente poucos falam a língua - cerca de 50 pessoas, as quais vivem dispersas em localidades variadas (há três aldeias Trumai no Xingu, mas várias famílias vivem em outros lugares no parque ou nas cidades da região). Infelizmente conflitos internos existentes no grupo levaram à dispersão observada atualmente, e se o quadro atual não for revertido, há possibilidades de que a cultura e a língua Trumai venham a se perder. O Trumai é uma língua com pouca morfologia. Há um número relativamente pequeno de morfemas nominais, e uma morfologia verbal ainda menor. Os verbos em Trumai não carregam marcas de tempo ou aspecto. Para indicar informações temporais, partículas oracionais ou advérbios de tempo são empregados; nuances de aspecto são expressas por meio de auxiliares. Já a sintaxe é rica, com muitas mudanças de ordem e surgimento de morfologia extra decorrente de tais mudanças. Nas seções a seguir, veremos alguns destes fatos. 1 Os dados deste exemplário (handout) estão representados usando-se a ortografia prática da língua. A maioria dos caracteres correspondem às letras do alfabeto do Português, com exceção de alguns casos especiais: t (IPA: t 5); ţ (IPA: t); ' (IPA: /); ch (IPA: S); tl (IPA: t¬); r (IPA: R); y (IPA: j); ï (IPA: ˆ). 2. SIGLAS PARA DESCREVER O SISTEMA DE CASO Na descrição do sistema de caso, algumas siglas serão usadas. O uso de siglas tem certas vantagens, como diz Comrie (1989: 111): "...the advantage of having arbitrary labels A and P rather than actually using agent and patient is that we can continue to use the arbitrary symbols even when we pass beyond the prototypical transitive situation (i.e. actions) to other constructions in the language that have similar morphology and syntax... A and P are thus syntactic terms, whose prototypes are defined in semantic terms." Para descrever o sistema de caso do Trumai, serão adotadas siglas que Comrie propõe: S para o argumento nuclear único (single) de orações intransitivas prototípicas. A para o argumento nuclear do tipo "agente" de orações transitivas prototípicas. P para o argumento nuclear do tipo "paciente" de orações transitivas prototípicas. Será adicionada também uma outra sigla: R para o argumento nuclear do tipo "recipiente" de bitransitivas prototípicas. orações Teremos primeiramente os alinhamentos encontrados na morfologia (seção 3) e depois os observados na sintaxe (seção 4). 3. MORFOLOGIA 3.1. Marcação dos argumentos nucleares e alinhamentos Há quatro tipos oracionais em Trumai (predicado verbais), apresentados a seguir. 2 Tipo 1 (oração intransitiva): Este tipo de oração é requerido para verbos como 'morrer', 'respirar', 'tossir', 'arrotar', 'pular', 'correr', 'chorar', etc. O marcador de S é -ø. Quando S não está lexicalmente presente na oração por causa de continuidade discursiva, o último elemento do sintagma verbal (geralmente o verbo) recebe o enclítico de 3a pessoa -n/-e. (1) S pet’ew-ø V achïkida. perereca pular 'A perereca pula.' S (2)a. ha-ø 1 V achïkida. pular 'Eu pulo.' S V b. ine-ø achïkida. 3 pular 'Ele pula.' S c. Ø V-s achïkida-n pular-3 'Ele pula.' Um argumento S lexical vem imediatamente antes do verbo. Se ele não estiver nesta posição, há morfologia extra depois do verbo (o morfema ke). (3) S dinoxo yi-ø ka_in V achïkida ke. moça pular YI Foc/Temp KE 'A moça pulou.' Tipo 2 (oração transitiva): Este tipo de oração é requerido para verbos de ação como 'quebrar', 'enterrar', etc. O argumento A é marcado por -(V)k (a primeira pessoa é marcada por -ts), enquanto o marcado de P é -ø. Quando P não está lexicamente presente na oração por causa da continuidade discursiva, o enclítico de 3a pessoa -n/-e ocorre ao final do sintagma verbal. Quando A está ausente, não há marca adicional no verbo. 3 A (4)a. Kumaru-k Kumaru P V atlat-ø mapa. panela quebrar 'Kumaru quebrou a panela.' A b. Kumaru-k P Ø Kumaru V-p mapa-n quebrar-3 'Kumaru a quebrou.' A P V (5)a. ine-k hi-ø hotaka. 3 2 enganar 'Ele enganou você.' A b. Ø P tsi-tle-ø V hotaka de. 3Poss-mãe enganar já '(Ele) já enganou a mãe dele.' Se presente, P precede diretamente o verbo; se ele não estiver nesta posição, o morfema ke aparece depois do verbo. A precede o sintagma verbal, e pode ter posições diferentes na oração, não havendo nenhuma morfologia extra depois do verbo. (6) P kodechïch-ø cobra ka_in A hai-ts V disi Foc/Temp 1 matar KE ke. 'Eu matei a cobra.' A (7) P V hai-ts ka_in atlat-ø mapa. 1 Foc/Temp panela quebrar 'Eu quebrei a panela.' Tipo 3 (oração bitransitiva): Requerido para verbos como 'dar', 'mostrar', 'pagar', etc. A é marcado por -(V)k (a primeira pessoa é marcada por -ts) e P é marcado por -ø. Se P está lexicalmente ausente por causa de continuidade discursiva, o enclítico de 3a pessoa -n/-e aparece no último elemento do sintagma verbal. A pode estar ausente sem nenhum marcador especial no verbo. 4 O terceiro argumento, R, é marcado por -(V)tl, -ki, ou -(V)s, dependendo das características do núcleo do SN. Se R estiver ausente por causa da continuidade discursiva, não há marca adicional no verbo. (8) A kiki-k P V R atlat-ø kïţï hai-tl. homem panela dar 1 'O homem deu a panela para mim.' (9) A P hai-ts aros-ø V kïţï R kasoro-s. 1 dar cachorro arroz 'Eu dei arroz para os cachorros.' A (10) kiki-k P Ø homem V-p kïţï-n ha R wan-ki. dar 1 Pl 'O homem o deu para nós.' A (11) hai-ts 1 P oke chï_in V yi-ø kïţï Foc/Temp remédio YI R Ø. dar 'Eu dei remédio (para ela).' P precede diretamente o verbo; caso ele esteja em outra posição, ke aparece depois do verbo. A precede o sintagma verbal, mas pode ocorrer em outras posições sem morfologia extra depois do verbo. R vem depois do sintagma verbal e pode igualmente mudar de posição sem a ocorrência de morfologia extra. P (12) oke A V hai-ts kïţï yi-ø chï_in remédio YI Foc/Temp 1 dar ke R atsiwe-tl. KE mamãe 'Eu dei remédio para a mamãe.' A (13) Yakuta-k Yakuta chï_in P oke Foc/Temp remédio V yi-ø kïţï R inatl-e-tl. YI 3-VE- dar 'Yakuta deu remédio para ela.' R (14) ha 1 ayen-a-tl chï_in avô-VE A P hai-ts oke Foc/Temp 1 V yi-ø kïţï. remédio YI 'Eu dei remédio para meu avô. 5 dar Tipo 4: Este tipo de oração é requerido para verbos de percepção (ver, ouvir, sentir cheiro, etc), verbos de atividade mental (pensar, acreditar, gostar, esquecer, lembrar, etc), verbos de contato (encostar, pegar em, pisar, etc), verbos que expressam eventos habituais (comer, beber, cozinhar, assar, fazer beiju, etc). Este tipo de oração apresenta dois argumentos: • O argumento do tipo "agente/executor" alinha com o argumento S de orações intransitivas: ele é marcado por -ø. Se ele estiver lexicalmente ausente da oração por causa da continuidade discursiva, o último elemento do sintagma verbal recebe o enclítico de 3a pessoa -n/-e. • O segundo argumento alinha com o argumento R de orações bitransitivas: ele é marcado por -(V)tl, -ki, ou -(V)s. Se ele estiver ausente por causa da continuidade discursiva, não há marca adicional no verbo. S (15) ha-ø 1 V hu'tsa R ine-tl. ver 3 'Eu o vi.' S (16) ha-ø 1 V hu'tsa R karuaru-ki. ver paca 'Eu vi uma paca.' S (17) ha-ø 1 V hu'tsa R karuaru-s. ver paca 'Eu vi pacas.' S (18) Ø V-s sone-n R kafe-s. beber-3 café 'Ele bebeu café (uma porção não definida).' S (19) ha-ø 1 V sone de beber já R Ø 'Eu já bebi (café).' O argumento do tipo "agente/executor" vem imediatamente antes do verbo. Se ele não estiver nesta posição, o morfema ke ocorre depois do verbo. 6 O segundo argumento segue o sintagma verbal e pode mudar de posição sem morfologia extra depois do verbo. S (20) di-ø ka_in mulher Foc/Temp V hu'tsa ke R kodechïch-ki. ver cobra KE 'A mulher viu uma cobra.' R (21) misu-s ka_in água S V ha-ø sone. Foc/Temp 1 beber 'Eu bebi água.' Ao verem este tipo oracional do Trumai (especialmente os exemplos com 'comer' e 'beber'), a primeira reação de alguns lingüistas é indagar se isso seria uma antipassiva e se haveria uma contraparte ativa para os verbos de atividades habituais. O tipo oracional 4 não é uma antipassiva. Essa é a marcação típica, e única, dos verbos mencionados anteriormente. Para produzir efeitos de antipassiva, há outra estratégia (veja seção 6.2). No caso de verbos de percepção, não é algo estranho que em Trumai o segundo argumento de verbos de percepção seja marcado da mesma forma que o argumento R do verbo 'dar'. Em outras línguas também se pode ter isso: Inglês: Give the book to me. - Listen to me. Português: Dá o livro para mim. - Olha para mim. Olha para cima. O princípio seria: a audição/o olhar está voltado para certo alvo (ela olhou para mim = eu sou o alvo do ato de olhar dela). Também não é surpreendente que o segundo argumento de verbos de atividade mental ou contato em Trumai não sejam tratados como paciente. Em outra língua também se vê isso. Em Português: Eu pensei em você. Eu não acredito em promessa de político. Eu encostei na parede. Seu carro encostou no meu. No caso de verbos de contato, o segundo argumento não é propriamente um paciente sendo afetado pela ação, mas antes um local onde a 7 ação ou contato é feito (cf. Fillmore 1970, DeLancey 1991). Veja que em Português usamos a preposição em para o verbo 'encostar'. O que talvez pareça meio estranho no Trumai é que o segundo argumento deste tipo de verbo é marcado não como Locativo, mas como Dativo. Porém, isso tem a ver com características da língua: há em Trumai um marcador de locativo, usado para localização estática (estar em um local). Quando um local é o alvo de um movimento (ex: ele foi para o rio), o localalvo recebe os mesmos marcadores do Dativo. Assim sendo, o que se passa com os verbos de contato é algo congruente com o sistema da língua (eu encostei na parede = a parede é o alvo do meu ato de encostar). O que é peculiar sobre o Trumai são os verbos como 'comer', 'beber', 'cozinhar', etc, que sempre marcam o segundo argumento como Dativo. Mas ao que parece, nesta língua atividades habituais pedem este tipo de marcação. 3.2. Visão Geral dos alinhamentos Comparando os tipos oracionais descritos anteriormente, podemos ver que o Trumai exibe um alinhamento Ergativo-Absolutivo: S e P recebem o mesmo tratamento, enquanto A é tratado de um modo diferente. O padrão Ergativo-Absolutivo se manifesta através da marcação de caso, marcação no verbo, e ordem de palavras, sumarizadas se seguir: a. Marcação de caso nos argumentos: INTRANSITIVA S-ø TRANSITIVA A-(V)k P-ø BI-TRANSITIVA A-(V)k P-ø TIPO 4 S-ø V V V R-(V)tl / -ki / -(V)s V R-(V)tl /-ki / -(V)s b. Marcação de pessoa no verbo/último elemento do sintagma verbal: INTRANSITIVA [[Ø] V]-n/e TRANSITIVA A [[Ø] V]-n/e BI-TRANSITIVA A [[Ø] V]-n/e R TIPO 4 [[Ø] V]-n/e R c. Ordem básica: INTRANSITIVA TRANSITIVA BI-TRANSITIVA TIPO 4 A A [[S] [[P] [[P] [[P] V] V] V] R V] R 8 d. Mudanças de ordem e morfologia extra: INTRANSITIVA S Foc/Temp TRANSITIVA P Foc/Temp A Foc/Temp BI-TRANSITIVA P Foc/Temp A Foc/Temp R Foc/Temp TIPO 4 S Foc/Temp A P A A P P V V V V V V V ke ke ke R R ke R 3.3. Tipos verbais da língua Com relação aos tipos verbais da língua, encontramos em Trumai cinco tipos verbais. Os quatro primeiro tipos já foram exemplificados anteriormente. O quinto tipo será ilustrado abaixo. • Tipo 1: tem apenas um argumento, marcado como Absolutivo. Ex: pular, morrer. Abs V • Tipo 2: tem dois argumentos, um Ergativo, outro Absolutivo. Ex: quebrar. Erg Abs V • Tipo 3: possui três argumentos: um Ergativo, um Absolutivo, um Dativo. Ex: dar. Erg Abs V Dat • Tipo 4: apresenta dois argumentos, um Absolutivo, um Dativo. Ex: ver. Abs V Dat • Tipo 5: possui dois argumentos, cuja marcação pode variar. Em geral, os argumentos são marcados como Ergativo e Absolutivo. Porém, se o segundo participante for inanimado e predizível pela ação (por causa de seu caráter rotineiro), a marcação fica sendo Absolutivo-Dativo. Um exemplo deste tipo é o verbo kïtïw 'esfregar', que apresenta a marcação ErgativoAbsolutivo quando o segundo participante é animado (por exemplo, uma criança) ou um determinado objeto físico (por exemplo, uma mesa), mas que pede a marcação Absolutivo-Dativo se a ação refere-se ao ato de esfregar e ralar mandioca (a qual é uma atividade muito rotineira para as mulheres Trumai. Quando elas dizem que vão passar o dia ralando, fica implícito que elas estão falando de ralar mandioca, porque é isso que elas esfregam/ralam habitualmente). Alguns exemplos: (22)a. hai-ts ka_in Tawalu 1-Erg Foc/Temp Tawalu hud-ø kïtïw. coxa-Abs esfregar 'Eu esfreguei a coxa da Tawalu.' 9 b. ole-s mandioca-Dat ha wan kïtïw. 1 Pl esfregar/ralar 'Nós ralamos mandioca.' (dado de um texto explicando como as mulheres trabalham a mandioca) Os tipos verbais do Trumai mostram certas similaridades entre si quando examinamos as partículas de Imperativo que ocorrem com cada um deles. Podemos ver que há um alinhamento entre o tipo 1 e o tipo 4, e outro alinhamento entre os tipos 2 e 3. O tipo 5 é o único que apresenta as três partículas, como se vê no exemplo (23). Tipo 1 (morrer, pular): Tipo 4 (ver, comer): wana V wana V Tipo 2 (quebrar): Tipo 3 (dar): waki/wa V waki/wa V Tipo 5 (esfregar/ralar): waki/wa V wana V (23)a. waki kïtïw Imp esfregar 'Esfrega (algo)' b. wa Imp kïtïw esfregar 'Esfrega (alguém)' c. wana kïtïw Imp esfregar 'Rala mandioca' Em trabalhos anteriores (Guirardello 1992, Guirardello 1999), eu denominava as classes verbais do Trumai da seguinte maneira: Tipo 1: Intransitivo Tipo 4: Intransitivo extendido Tipo 2: Transitivo Tipo 3: Bi-transitivo ou Transitivo extendido (Abs V) (Abs V Dat) (Erg Abs V) (Erg Abs V Dat) Porém não estou mais satisfeita com isso. Parece-me que o termo "intransitivo extendido" – que foi na verdade cunhado por Dixon (cf. Dixon 1994) – não é muito adequado. Quando sou contactada por tipologistas que leram meus trabalhos anteriores e que desejam saber mais sobre os verbos 10 "intransitivos extendidos" do Trumai, percebo que eles estão com uma impressão um tanto quanto errada a respeito da língua: eles geralmente imaginam que o segundo argumento é uma mera adição ao verbo. É certo que os verbos da classe 4 alinham com os da classe 1 (que são intransitivos), porém o segundo argumento de um verbo da classe 4 não é só uma mera extensão. Ele é requerido pelo verbo. Existem diferenças entre este argumento e elementos opcionais, como o 'comitativo' (veremos isso na seção 3.3.4). O termo "intransitivo extendido" infelizmente sugere uma idéia equivocada a respeito destes verbos. Assim sendo, parece-me que se deve buscar um termo mais apropriado para denominar esta classe verbal do Trumai. 3.4. Marcação dos "oblíquos" 3.4.1. Com posposição lots’ ita tam letsi nik xuik t'atske 'Origem (ou: Ablativo)' 'Em direção a X (ou: Alativo)' 'Com o acompanhante X (ou: Comitativo)' 'Com o instrumento X (ou: Instrumental)' 'Sem X' 'Perto de X' 'Depois de X' 3.4.2. Com marcadores presos Locativo (estático): -(V)n Para especificar melhor o local (dentro de, em cima de, atrás de, etc), usa-se : Termo para parte do corpo + -(V)n Ex: itak natu-n 'em cima da pedra' (lit: nas costas da pedra) Local alvo de um movimento: -ki -(V)tl Benefactivo: (local: animado) -(V)tl / -ki / -(V)s 3.4.3. Alguns exemplos (24) ha 1 wa-pata de VM-chegar já Kanarana lots'. Canarana Ablat 'Eu já cheguei de Canarana.' 11 (25) yuduţ-a-n banco-VE-Loc ka_in kutsiwae chï. Foc/Temp esquilo Cop 'O esquilo está no banco.' (26) Maka wakde chï_in Maka subir mesa natu-ki. Foc/Temp mesa costas-Dat 'O Maka subiu na mesa.' (27) tar.taï wakde chï_in for miga subir Pedru-tl. Foc/Temp Pedru-Dat 'A formiga subiu no Pedro.' 3.4.4. Comentários sobre o Benefactivo Há diferenças entre um Dativo requerido pelo verbo (como o complemento do verbo 'ver') e um Benefactivo: • O benefactivo tem uma construção alternativa, que é exclusivamente benefactiva: (28)a. ha 1 api chï_in tsinon-e-s Tata-tl. pegar Foc/Temp pequi-VE-Dat Tata-Dat 'Eu peguei pequi para a Tatá.' b. ha 1 api chï_in tsinon-e-s Tata xolon letsi. pegar Foc/Tempo pequi-VE-Dat Tata favor Instrum 'Eu peguei pequi para a Tatá (peguei pequi fazendo favor para Tatá).' • Em coordenação, um argumento Dativo nuclear pode ser omitido devido a continuidade discursiva, mas ele é recuperável pelo contexto. Já o benefactivo não é recuperável (simplesmente porque não está previsto na estrutura argumental do verbo). (29) kiki yi homem YI wa-pata-s hai-ts VM-chegar-Temp 1-Erg t'ak kïţï Ø. beiju dar 'Quando o homem chegou, eu dei beiju para ele.' [se este exemplo é apresentado ao informante Trumai, ele interpreta que o Dat é recuperável: o homem chegou, dei o beiju para o homem] (30) kiki yi homem YI wa-pata-s, ha VM-chegar-Temp 1 'Quando o homem chegou, eu o vi.' [o homem chegou, eu vi o homem] 12 hu'tsa ver Ø. (31) kiki yi homem YI wa-pata-s, ha VM-chegar-Temp 1 katnon. trabalhar 'Quando o homem chegou, eu trabalhei.' Segundo o informante, a interpretação aqui é apenas: eu trabalhei. Não significa que eu trabalhei para o homem. Só vai significar isso se um benefactivo for explicitamente adicionado a oração: (32) kiki yi homem YI wa-pata-s, ha VM-chegar-Temp 1 katnon inetl. trabalhar 3-Dat 'Quando o homem chegou, eu trabalhei para ele.' Isto também se observa com outros "oblíquos", como o comitativo: (33)a. kiki yi homem YI wa-pata-s, ha VM-chegar-Temp 1 sa. dançar 'Quando o homem chegou, eu dancei.' [interpretação: o homem chegou, eu dancei. Não tem sentido comitativo] b. kiki yi homem YI wa-pata-s, ha VM-chegar-Temp 1 sa ine tam. dançar 3 Com 'Quando o homem chegou, eu dancei com ele.' 4. SINTAXE 4.1. Ordem básica e constituência ORAÇÃO INTRANSITIVA ORAÇÃO TRANSITIVA ORAÇÃO BI-TRANSITIVA ORAÇÃO TIPO 4 [S V] ou A [P V] A [P V] R [S V] R [Abs V] Erg [Abs V] Erg [Abs V] Dat [Abs V] Dat Indicadores de constituintes: - O Absolutivo predece diretamente o verbo. Se a ordem for quebrada, morfologia extra aparece depois do verbo (ke). - As partículas de Foco/Tempo ocorrem em segunda posição, depois de um constituinte. Elas são um bom critério para identificar constituintes. A sequência [Abs V] freqüentemente é seguida por estas partículas. Padrões observados relevantes: [S V] Foco/Tempo [S V] Foco/Tempo Loc [A] Foco/Tempo [ P V] [P V] Foco/Tempo A ex: Eu urinei (foco). ex: Eu urinei (foco) no mato. ex: Eu (foco) quebrei o rádio ex: Quebrei o rádio (foco) eu. 13 [A] Foco/Tempo [ P V] [R] [R] Foco/Tempo [A] [P V] [S V] Foco/Tempo [R] [R] Foco/Tempo [S V] ex: Eu (foco) dei um pente para ela. ex: Para ela (foco) eu dei um pente. ex: Eu vi (foco) uma onça. ex: Uma onça (foco) eu vi. 4.2. Comportamento e alinhamentos em processos sintáticos Na maioria dos processos sintáticos, há alinhamento entre S e P. Porém, há também um alinhamento entre S e A. Auxiliares de Postura: apresenta alinhamento entre S e A. O auxiliar sempre se refere à postura de S ou A. Para se referir à postura de P ou R, usase outro tipo de construção (a temporal): S V Aux (34) ha waţkan tsula. 1 chorar estar.deitada 'Eu chorei deitada.' A P V Aux (35) hai-ts Tata midoxos tsula. 1-Erg Tata chamar estar.deitado 'Eu, deitada, chamei a Tatá.' A P V Temp (36) hai-ts Tata midoxos, tsula-n-es. 1-Erg Tata chamar estar.deitado-3Abs-Temp 'Eu chamei a Tatá, quando ela estava deitada.' S V Aux (37) ha hu'tsa tsula 1 ver R Amati-tl. estar.deitado Amati-Dat 'Eu, deitada, vi o Amati.' S V R (38) ha hu'tsa Amati-tl, 1 ver Temp tsula-n-es. Amati-Dat estar.deitado-3Abs-Temp 'Eu vi o Amati quando ele estava deitado.' Ordem: como já mencionado, há alinhamento entre S e P: S ocorre imediatamente antes do verbo P ocorre imediatamente antes do verbo A ocorre preverbalmente, mas não imediatamente antes do verbo. 14 Reflexivização: a língua Trumai não possui uma construção reflexiva onde há um morfema especial (tipo 'self' do Inglês) controlado pelo Sujeito da oração. O que há são certas estratégias de reflexivização: • Supressão do argumento não-Absolutivo: o argumento não-Absolutivo é omitido e não é recuperável pelo contexto. Esta estratégia, porém pode gerar mais de um sentido semântico (reflexivo ou passivo/antipassivo). Veja (39a), (40a) e (41a). • Uso de falapetsi 'fazer sozinho' em conjunção com a supressão do argumento não-Absolutivo. Esta estratégia só gera o sentido reflexivo. Veja (39b), (40b) e (41b). Estas estratégias de reflexivização indicam um alinhamento entre S e P, pois são eles os argumentos sempre preservados na oração. Exemplos: S (39)a. ha hu'tsa 1 R Ø. ver 'Eu me vi' ou 'Eu vi (algo, não definido).' b. ha 1 falapetsi letsi ka_in ha hu'tsa Ø. fazer.sozinho Instrum Foc/Temp 1 ver 'Eu me vi.' (lit: eu fiz sozinho, eu vi). A P V (40)a. Ø ha tïchï. 1 arranhar.fazendo.sangria 'Eu me arranhei' ou 'Eu fui arranhado (por alguém).' b. ha 1 falapetsi letsi ka_in Ø ha fazer.sozinho Instrum Foc/Temp 1 tïchï. arranhar.fazendo.sangria 'Eu me arranhei.' A (41)a. Ø P ha V k'ad naha. 1 mão cortar 'Eu me cortei' ou 'Eu fui cortada (por alguém).' b. ha falapetsi 1 letsi ka_in fazer.sozinho Instrum Foc/Temp 'Eu me cortei.' 15 Ø ha 1 k'ad naha. mão cortar Relativização: apresenta alinhamento entre S e P. No processo de relativização, o SN-pivot da oração relativa fica sendo Ø e o verbo é modificado por um morfema especial. Quando o pivot na oração relativa é S ou P, o verbo é modificado pelo relativizador ke. Quando o pivot é A ou R, o verbo é modificado por chïk (Cop + nominalizador). (42) ha 1 hu’tsa chï_in ver S V [ øi esa-t' [di]i-tl Foc/Temp mulher-Dat ke] dançar-nzr.pass 'Eu vi a mulher [que dançou].' (43) ha 1 hu’tsa chï_in ver A P V [axos]i-atl [hai-ts øi midoxos-t’a Foc/Temp criança-Dat 1-Erg ke] chamar-nzr.pass 'Eu vi o menino [que eu chamei].' (44) ha hu’tsa ka_in 1 ver A P [axos]i-atl [ øi ha aton mud Foc/Temp criança-Dat 1 V husa-t’ chï-k] bicho pescoço amarrar-nzr.pass 'Eu vi o menino [que amarrou meu bicho de criação].' (45) ha hu’tsa ka_in 1 ver S V [axos]i-atl [ha fa fa-t’ Foc/Temp criança-Dat 1 chï-k R øi ]. bater bater-nzr.pass 'Eu vi o menino [que eu bati].' Controle de morfemas anafóricos: este tipo de controle não indica alinhamento S-P ou S-A simplesmente porque ele não é sintático, mas sim pragmático. Ou seja, o antecedente de um morfema anafórico não é necessariamente o argumento A ou P da oração anterior. O antecedente será aquele que for considerado o melhor "candidato" por questões lógicas ou discursivas. Morfema anafórico possessivo tsiA (46) Yakairu -k P V Atawaka etsi tsi -tle-tl. Yakairu-Erg Atawaka trazer 3Poss-mãe-Dat 'Yakairu levou Atawaka para a mãe dela.' [Mãe de quem? Se a conversa é sobre a Yakairu > mãe da Yakairu. Se a conversa é sobre a Atawaka > mãe da Atawaka.] 16 Enclítico de 3a pessoa -n/-e A (47) kiki-k P di V tïchï -kma-s V-enclítico pita-n homem-Erg mulher arranhar-Perf-Temp sair-3Abs 'Quando o homem acabou de arranhar a mulher, Ø saiu.' [Quem saiu? Depende da interpretação do ouvinte] A (48) Kumaru-k P V Hakew husa husa-s V-enclítico ora-n . Kumaru-Erg Raquel amarrar amarrar-Temp chorar-3Abs 'Quando a Kumaru amarrou a Raquel, Ø chorou.' [Quem chorou? A Raquel, por questões lógicas (ela tem motivos para chorar)] A (49) Kumaru-k P V Hakew husa husa-s V-enclítico pita-n . Kumaru-Erg Raquel amarrar amarrar-Temp sair-3Abs 'Quando a Kumaru amarrou a Raquel, Ø saiu.' [Quem saiu? A Kumaru, por questões lógicas (Raquel não pode sair)] Alçamento de argumento em oração subordinada completiva: também indica alinhamento entre S e P. Em uma oração subordinada que é o complemento de um verbo transitivo, o argumento Absolutivo do verbo subordinado pode ser marcado no verbo principal (50b, 51b), fenômeno conhecimento como 'alçamento'. S V (50)a. hai-ts [Sula huma] padi. 1-Erg Sula banhar esperar 'Eu esperei a Sula banhar.' S V b. hai-ts [ Ø huma] padi-n. 1-Erg banhar esperar-3Abs 'Eu esperei ela banhar.' (51)a. hai-ts chï _in A [Kumaru-k P Sula tïchï] 1-Erg Foc/Temp Kumaru-Erg Sula arranhar 'Eu esperei a Kumaru arranhar a Sula.' 17 padi. esperar b. hai-ts chï_in 1-Erg Foc/Temp A [Kumaru-k P V Ø tïchï] Kumaru-Erg padi-n. arranhar esperar-3Abs 'Eu esperei a Kumarui arranhar elaj.' Porém, devo dizer que o exemplo (51) vem de elicitação. Em textos, não encontro este tipo de dado. Os falantes de Trumai parecem preferir usar coordenação (a Kumaru estava arranhando a Sula e eu esperei) ou oração subordinada temporal (quando a Kumaru estava arranhando a Sula, eu esperei). 5. RELAÇÕES GRAMATICAIS (ou: FUNÇÕES SINTÁTICAS) Vejamos agora a questão de relações gramaticais em Trumai, isto é, Sujeito, Objeto, etc. Como definição de Sujeito, uso a proposta de Givón (1984:138): Sujeito seria a gramaticalização do papel discursivo-pragmático de tópico. Isto é, Sujeito seria a codificação do tópico primário da oração, enquanto Objeto seria a codificação do tópico secundário da oração. Segundo a literatura lingüística, a codificação do Sujeito se manifesta através de vários modos, como concordância no verbo; processos sintáticos, etc. Examinando estes pontos, pode-se identificar a categoria de Sujeito de uma língua. Givón (1997: 29) dá destaque às propriedades de controle-ecomportamento; elas refleteriam as relações gramaticais mais fielmente do que a morfologia, porque são mais diretamente motivadas por fatores pragmáticos e discursivos. Como fica a discussão de relações gramaticais para o Trumai? Resumindo os alinhamentos observados na morfologia e sintaxe: S-A - auxiliares de postura - destinatário da construção imperativa. Porém este alinhamento em Trumai é somente parcial, porque a construção imperativa que tem S como destinatário (wana V) é diferente da que tem A como destinatário (waki V) S-P - caso não-marcado (ø) - exibe marcação de pessoa no verbo (o enclítico -n/-e) - ordem (precede o verbo) 18 - reflexivização - relativização - alçamento de argumento em oração subordinada completiva Com relação a controle de morfemas anafóricos: não há um alinhamento claro. Temos, então, a questão: tendo uma oração transitiva [A P V], quem seria o Sujeito? O argumento A ou o argumento P? Se dissermos que é A: é problemático. Há muito pouco alinhamento para justificar essa decisão. Se dissermos que é P: também é problemático, por várias razões: a. Semanticamente, S e P são diferentes Este é um ponto que o Dixon (1994:124-125) ressalta. Haver alinhamento entre S e A é compreensível, uma vez que eles referem a participantes iniciadores/controladores de eventos (agentes). Agentes são salientes e discursivamente importantes, portanto são fortes candidatos a serem codificados como o tópico primário da oração. P, por outro lado, refere-se a participantes que são pacientes (é um papel diferente). 1 Se agruparmos S e P como a categoria de Sujeito em Trumai, estaremos dando enfâse a critérios formais (alinhamentos), mas podemos estar deixando de lado questões semânticas que também são importantes. b. A supressão de um argumento S em uma oração produz efeitos semânticos que são diferentes da supressão de um argumento P • Se S não está presente nem lexicalmente nem na forma do enclítico -n/e, a oração tem sentido genérico (um evento está ocorrendo, mas não sabemos quem o está fazendo) (52)a. iyi hukana lako-ktsi-n. IYI clarear Direc-Direc-3Abs 'Ele veio clareando (com uma lanterna).' 1 Na verdade, S nem sempre é agente, mas freqüentemente pode ser, ao passo que P não. 19 b. iyi hukana lakoktsi IYI clarear le Direc-Direc de. diz.que já 'Dizem que algo veio clareando.' • Se P não está presente nem lexicalmente nem na forma do enclítico -n/e, a oração tem sentido de antipassiva (o paciente é desconhecido ou pouco relevante) (53)a. kasoro-k tako tako-n. cachorro-Erg morder morder-3Abs 'O cachorro está mordendo ele.' b. kasoro-k tako tako. cachorro-Erg morder morder 'O cachorro está mordendo (algo).' c. Se dissermos que P é o Sujeito (tópico primário) da oração, o que então seria A? Seria ele o Objeto (tópico secundário)? O problema de dizer isto é que teríamos então uma língua onde P é sempre codificado como sendo mais topical que A, apesar de A ser agente, isto é, um participante do evento que é muito saliente e um forte candidato a ser o tópico primário de uma oração transitiva. d. Poderia-se dizer que a oração tem um configuração "passiva" e que A é um Oblíquo (um agente da passiva)? Agente NP-k Paciente NP-ø V > Agente Paciente "Oblíquo" Sujeito V O problema é que esta construção "passiva" não tem uma contraparte ativa, onde o SN-agente seria codificado como Sujeito (tópico primário) e o SN-paciente como Objeto (tópico secundário): Os verbos da classe 2 só têm um tipo codificação (Erg Abs V). Não há outra contraparte. Os verbos da classe 5 têm dois tipos de codificação, porém a codificação alternativa (Abs V Dat) é limitada, ou seja, só ocorre com certos tipos de pacientes (inanimados predizíveis). A codificação alternativa não parece com uma oração ativa, mas sim com uma antipassiva. 20 Se dissermos então que a construção [Erg Abs V] é "passiva", vamos ter uma língua onde há orações passivas sem haver ativas. Isso é estranho, considerando que em um grande número de línguas do mundo a voz passiva é restrita em discurso (ela é empregada para motivos especiais, enquanto que a voz passiva é mais comumente usada, por ser discursivamente não marcada). Outro problema: se o Ergativo é um mero oblíquo, isso significaria que ele tem pouca importância discursiva. Porém, há exemplos que sugerem o contrário: como já vimos nos exemplos (47-49), quando há duas orações ligadas e a primeira oração é transitiva (ex: o homem chamou a mulher e Ø saiu), tanto o argumento Ergativo como o argumento Absolutivo da primeira oração podem ser o possível antecendente do morfema anafórico da segunda oração. Porém, em alguns exemplos, quando o informante quer deixar claro que o antecedente do morfema anafórico é o Absolutivo e não o Ergativo da primeira oração, ele tende a suprimir o Ergativo. Erg (54) di-k Abs V dinoxo tete-kma-s mulher-Erg moça pintar-Perf-Temp V-enclítico pita-n. sair-3Abs 'Quando a mulher acabou de pintar a moça, Ø saiu.' Segundo o informante, quem saiu foi a mulher. Pergunto se seria possível dizer que a moça saiu. O informante diz que também seria possível, mas para não deixar dúvida, fala-se assim: Abs V (55) dinoxo tete-kma-s moça V-enclítico pita-n . pintar-Perf-Temp sair-3Abs 'Quando a moça acabou de ser pintada, saiu.' [segundo o informante, aqui não dúvida: foi a moça que saiu] Temos que nos perguntar: por que o informante suprime o Ergativo neste tipo de exemplo? Porque muito provavelmente ele é um bom "candidato" a ser o antecedente do enclítico do segundo verbo; então, para evitar confusão, ele é retirado de cena, ficando somente o Absolutivo (nesse caso, como diz o informante, não há mais dúvida sobre quem é o antecedente). Mas se o Ergativo é um bom "candidato", isso indica que ele tem importância discursiva. Se não tivesse, não seria preciso suprimí-lo, pois ele 21 não representaria risco nenhum para o Absolutivo. Portanto, este tipo de exemplo indica que o Ergativo tem importância discursiva, tanto que às vezes ele é considerado como sendo o antecedente. Se ele fosse um mero oblíquo, ele não poderia controlar um morfema anafórico. e. É realmente necessário falar de Sujeito e Objeto para descrever a gramática do Trumai? Não. É possível descrever o sistema usando as siglas (S, A, P, R) ou os tipos de argumento (Absolutivo, Ergativo, Dativo) Há outras línguas no mundo em que se pode descrever a gramática sem ter que usar os termos Sujeito e Objeto. Por exemplo: Acehnese, uma língua da ilha de Sumatra (Van Valin & LaPolla 1997). Conclusão: O agrupamento S-A tem motivações semânticas e pragmáticas, porém os alinhamentos encontrados na sintaxe são muito fracos. O alinhamento S-P tem presença na sintaxe, mas considerá-lo como sendo o Sujeito do Trumai não ajuda a entender melhor o sistema da língua (ao contrário, apenas a caracteriza de um modo estranho). Para descrever o sistema da língua, não é preciso invocar as noções de Sujeito e Objeto. Só seria interessante falar de Sujeito e Objeto se quiséssemos fazer estudos tipológicos, comparando Trumai com outras línguas. Neste caso, a solução seria usar a idéia de Givón (1997: 29) de que as línguas do mundo podem apresentar graus diferentes de gramaticalização: "...languages with fewer subject properties have a less prototypical - less grammaticalized - subject." Poderia-se então dizer que o Sujeito do Trumai é o agrupamento S-A (por questões semânticas e de importância pragmático-discursiva), porém é um Sujeito pouco gramaticalizado, manifestando pouco suas propriedades. É um sujeito ainda fraco. Como dar conta do alinhamento S-P? A hipótese é de que este alinhamento deve ser fruto de desenvolvimentos históricos (como aconteceu em outras línguas que mudaram de sistema). Estas mudanças históricas 22 devem ser ainda relativamente recentes no Trumai, sendo por isso que o alinhamento S-P é forte, sendo observado na morfologia e na sintaxe. O alinhamento S-A ainda não teve tempo de se desenvolver propriamente. 6. ANTIPASSIVA Há construções em Trumai que produzem o efeito semântico que uma construção antipassiva tipicamente produz. Vejamos: 6.1. Verbos da classe 5 Como já mencionado, estes verbos apresentam alternância da marcação: Erg Abs V Abs V Dat Essa alternância funciona basicamente como uma antipassiva: • quando o segundo argumento do verbo é animado, só a construção [Erg Abs V] é possível • quando o segundo argumento é inanimado e é também predizível pela ação porque ela é rotineira (ou seja, o argumento é pouco importante), a construção [Abs V Dat] é empregada. Verbos atestados até o momento, em uso natural ou em dados espontâneos: naha cortar alguém, cortar algo com golpes de facão > Erg-Abs quebrar rama de mandioca ou galho de árvore para lenha (atividades rotineiras) > Abs-Dat tïami espremer algo > Erg-Abs espremer massa de mandioca (quando está preparando a mandioca, outra atividade rotineira) > Abs-Dat kïtïw esfregar alguém > Erg-Abs ralar mandioca (atividade rotineira) > Abs-Dat wen arrancar dente, cabelo de alguém, arrancar prego da parede > Erg-Abs arrancar pena de ave (é uma atividade ligada à preparação de comida, quando se limpa aves caçadas) > Abs-Dat Há alguns casos que são um pouco mais complicados: pïţke tirar a pele de alguém, de uma cobra > Erg-Abs descascar mandioca (atividade rotineira) > Erg-Abs ou Abs-Dat 23 xoxan lavar alguém > Erg-Abs lavar roupas (atividade rotineira) > Erg-Abs ou Abs-Dat ochen esmigalhar, socando (produzindo farinha) > Erg-Abs ou Abs-Dat Poderíamos chamar a construção [Abs V Dat] de Antipassiva? Tenho evitado chamá-la de antipassiva, porque os verbos da classe 4 exigem esse mesmo tipo de construção, e para eles esse é o único tipo de marcação possível (mesmo quando o segundo argumento é animado). Outros testes: Os exemplos acima foram atestados em textos (dados naturais) ou em elicitação com o dado oferecido espontaneamente pelo falante. Depois que comecei a compreender melhor a classe 5, resolvi testar a alternância com outros vebos. Selecionei verbos cujos argumentos são marcados como Erg-Abs, troquei a marcação para Abs-Dat e li o dado para o informante, para testar a reação dele. Na maiora das vezes, o informante rejeitou os dados. Para alguns verbos, o informante disse que a marcação Abs-Dat seria possível (são os verbos listados abaixo). Porém quando eu pedia para ele repetir o dado, ele sistematicamente mudava a marcação para Erg-Abs. Portanto, não posso afirmar que esses verbos pertencem a classe 5; é preciso maiores investigações: fatla 'furar' (furar coquinho para fazer colar) tararaw 'rasgar' (folhas de plantas para fazer remédio) karain 'riscar' (desenhando em madeira/bancos) hutla 'sacudir' (rede, para limpá-la) ma' main 'mexer comida (quando se está cozinhando)' tsima 'enterrar' (restos de coisas, lixo) 6.2. Verbo da classe 4 A marcação destes verbos é sempre Abs-Dat. Como então se faz para produzir um efeito "antipassivo"? Quando o segundo participante é genérico, não-definido ou discursivamente pouco importante, ele simplesmente é suprimido e não é recuperável por contexto. 24 (56) ha 1 ma la ka_in Ø. comer estar.em.pé Foc/Temp 'Eu estou comendo em pé.' [não importa o que estou comendo. O que importa é o ato de comer e a posição] (57) kasoro hu'tsa ka_in cachorro ver Ø. Foc/Temp 'O cachorro está vendo algo (mas não sabemos o quê).' 6.3. Verbos das classes 2 e 3 Para os verbos destas classes, quando o argumento do tipo "paciente" é generico, não-definido ou discursivamente pouco importante, ele simplesmente é suprimido e não é recuperável por contexto. Exemplos: (58) ine-k ka_in Ø husa 3-Erg Foc/Temp husa. amarrar amarrar 'Ele está amarrando (algo).' (59) ha 1 adif-a-tl chï_in irmão-VE-Dat Foc/Temp hai-ts 1-Erg Ø kïţï. dar 'Eu dei algo (um presente) para meu irmão.' [não importa a coisa; importa o meu ato de dar] 6.4. "Antipassiva" lexical Alguns eventos em Trumai podem ser expressos por meio de dois possíveis verbos. Um deles é do tipo 2 (transitivo: Erg Abs V), o outro é do tipo 4 (Abs V Dat). Talvez em fases anteriores da língua estes verbos tivessem sentidos um pouco diferentes. Hoje em dia o sentido parece ser o mesmo; assim sendo, o falante em princípio pode escolher um dos verbos para expressar o evento em questão. 25 Tipo 2 (Erg-Abs) disi tako tuxa’tsi kapan Tipo 4 (Abs-Dat) fa make dama chuda 'matar ou bater'2 'morder' 'puxar' 'fazer/produzir (um objeto)' O interessante é que apesar do falante poder escolher um verbo ou o outro, ele tem a tendência de escolher o verbo do tipo 2 (transitivo) quando no evento há 3a pessoa agindo sobre 1a, e tendência a escolher o verbo do tipo 4 quando no evento há 1a pessoa agindo sobre 3a. Ou seja: Se agente=3 paciente=1: Se agente=1 paciente=3: (60) P ha 1 verbo do tipo 2 verbo do tipo 4 V disi-tke ka_in A inak wan-ek. matar-Des Foc/Temp 3 (3>Erg (1>Abs 1>Abs) 3>Dat) pl-Erg 'Eles querem me matar.' (61) S ha 1 V fa-tke ka_in R ine-tl. matar-Des Foc/Temp 3-Dat 'Eu quero matá-lo.' Esta seleção é parecida com o uso de construção antipassiva: Se o paciente é importante: verbo transitivo é selecionado (Pac = Abs) Se o paciente é menos importante: verbo do tipo 4 é selecionado (Pac = Dat) Porém, o processo "antipassivo" aqui apresentado não é morfossintático, mas sim uma questão de escolha lexical, sendo limitado aos pares disponíveis na língua. Além disso, é somente uma tendência. 7. CISÕES NO SISTEMA O sistema de caso do Trumai não apresenta cisões como as observadas em línguas de ergatividade cindida. Porém, há em Trumai uma certa hieraquia 2 Muitas vezes, para diferenciar o sentido de 'matar' de 'bater', os informantes duplicam o verbo: fa 'matar', fa fa 'bater' - disi 'matar', disi disi 'bater'. É provável que fa originalmente significasse apenas 'bater' e disi apenas 'matar'. Assim sendo, a morfossintaxe de cada verbo seria congruente com seu conteúdo semântico. Mais tarde, os outros sentidos teriam se desenvolvido (bater pode levar a matar; pode-se matar batendo. Assim, fa desenvolveu também o sentido de 'matar' e disi desenvolveu também o sentido de 'bater'). Porém, a morfossintaxe de cada verbo permaneceu. 26 entre nomes e pronomes que de alguma forma lembra a hierarquia encontrada em línguas cindidas. Como visto anteriomente, há três marcadores de Dativo em Trumai. O marcador é selecionado dependendo das características do núcleo do sintagma nominal. Em alguns casos, só um marcador é possível. Por exemplo, os pronomes de 1a. e 2a pessoa só aceitam o marcador -(V)tl. Em outros casos, dois marcadores são possíveis. O marcador é escolhido dependendo de alguns fatores pragmáticos (importância discursiva, identificabilidade, individualização, etc). Por exemplo: (62)a. ha 1 hu’tsa chï_in ver kasoro-tl. Foc/Temp cachorro-Dat 'Eu vi o cachorro.' b. ha 1 hu’tsa chï_in kasoro yi-ki. ver Foc/Temp cachorro YI-Dat 'Eu vi um cachorro.' A tabela abaixo apresenta os marcadores de Dativo que podem ocorrer com cada tipo de pronome ou nome. Ela não está totalmente completa, pois alguns elementos ainda precisam ser verificados (por exemplo: nome possuído animado não-humano, sg/du/pl; nome possuído humano dual; nome possuído inanimado dual, com possuidor anafórico). + Topical ----------------------------------------------------------------------------- - Topical -(V)tl -(V)tl/-ki -ki Pronomes: 1Sg 2Sg 3 Dem 1Dl 1Pl 2Dl 2Pl 3Dl 3Pl Dem-Dl Dem-Pl Ø Ø Nomes com Possuidor Anafórico: Hum.Sg Inan.Sg Ø Hum.Pl Ø Inan.Pl Ø Inan.Pl Nomes com Ø Possuidor não-anafórico: Hum.Sg Inan.Sg Inan.Dl Hum.Pl Nomes Ø não-possuídos: Proper Nouns Hum.Sg Anim.Sg Inan.Sg Hum.Dl 27 -ki/-(V)s Anim.Dl Inan.Dl Hum.Pl -(V)s Anim.Pl Inan.Pl A escolha do marcador de Dativo pode ser resumida deste modo: -(V)tl *individualizado *identificável *saliente > -ki *individualizado, mas não identificável *individualizado, mas não saliente *identificável, não individualizado > -(V)s *não individualizado, não identificável *não individualizado, não saliente A hierarquia envolvida na escolha de marcadores de Dativo do Trumai é semelhante àquela que se observa em línguas que possuem ergatividada cindida (Silverstein 1976, Dixon 1994). Nestas línguas, a cisão é condicionada pela natureza do SNs nucleares, que podem ser organizados em uma hierarquia nominal (Dixon, 1994: 85): Nomes Comuns Pronome a Pronome Demonstrativos a 1 pessoa > 2 pessoa > Pronomes 3a > Nomes > Humanos > Animados > Inanimados Próprios Porém, embora semelhante, a hierarquia do Trumai tem suas próprias características, pois involve também número e individualização (SG > Dual > Plural). Outra diferença é que a hierarquia do Trumai só se aplica à escolha dos marcadores de Dativo e não ao sistema como um todo. 8. REFERÊNCIAS COMRIE, Bernard. 1989. Language Universals and Linguistic Typology. Chicago: The University of Chicago Press. DELANCEY, Scott. 1991. Event construal and case role assignment. Berkeley Linguistic Society 17, 338-353. DIXON, R. M. W. 1994. Ergativity. Cambridge, New York: Cambridge University Press. FILLMORE, Charles J. 1970. The grammar of hitting and breaking. Readings in English transformational grammar, ed. by R. Jacobs and P. Rosenbaun, 120-133. Waltham, MA: Ginn. 28 GIVÓN, Talmy. 1984. Syntax: A functional-typological introduction. Vol. 1. Amsterdam, Philadelphia: John Benjamins. 1997, ed. Grammatical Relations. A Functionalist Perspective. GUIRARDELLO, Raquel. 1999. A Reference Grammar of Trumai. Ph.D. Thesis. Linguistics Department, Rice University. Houston, Texas, U.S.A. SILVERSTEIN, Michael. 1976. Hierarchy of features and ergativity. Grammatical Categories in Australian Languages, ed. by R. M. W. Dixon, 112-171. Canberra: Australian Institute for Aboriginal Studies. Van VALIN, Robert e Randy LaPOLLA. 1997. Syntax: structure, meaning and function. Cambridge: Cambridge University Press. 29