Foi pedido que se evitasse as siglas S e O \(ao se usar

Propaganda
Caso e Relações Gramaticais em Trumai
Raquel GUIRARDELLO-DAMIAN
Universidade de Brasília
1. INTRODUÇÃO
O Trumai é falado no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso.
Trata-se de uma língua geneticamente isolada. Embora a população seja
estimada em mais de 120 indivíduos, somente poucos falam a língua - cerca
de 50 pessoas, as quais vivem dispersas em localidades variadas (há três
aldeias Trumai no Xingu, mas várias famílias vivem em outros lugares no
parque ou nas cidades da região). Infelizmente conflitos internos existentes no
grupo levaram à dispersão observada atualmente, e se o quadro atual não for
revertido, há possibilidades de que a cultura e a língua Trumai venham a se
perder.
O Trumai é uma língua com pouca morfologia. Há um número
relativamente pequeno de morfemas nominais, e uma morfologia verbal ainda
menor. Os verbos em Trumai não carregam marcas de tempo ou aspecto. Para
indicar informações temporais, partículas oracionais ou advérbios de tempo
são empregados; nuances de aspecto são expressas por meio de auxiliares. Já
a sintaxe é rica, com muitas mudanças de ordem e surgimento de morfologia
extra decorrente de tais mudanças. Nas seções a seguir, veremos alguns destes
fatos.
1
Os dados deste exemplário (handout) estão representados usando-se a
ortografia prática da língua. A maioria dos caracteres correspondem às letras
do alfabeto do Português, com exceção de alguns casos especiais: t (IPA: t 5);
ţ (IPA: t); ' (IPA: /); ch (IPA: S); tl (IPA: t¬); r (IPA: R); y (IPA: j); ï
(IPA: ˆ).
2. SIGLAS PARA DESCREVER O SISTEMA DE CASO
Na descrição do sistema de caso, algumas siglas serão usadas. O uso
de siglas tem certas vantagens, como diz Comrie (1989: 111):
"...the advantage of having arbitrary labels A and P rather than actually using agent
and patient is that we can continue to use the arbitrary symbols even when we pass
beyond the prototypical transitive situation (i.e. actions) to other constructions in the
language that have similar morphology and syntax... A and P are thus syntactic
terms, whose prototypes are defined in semantic terms."
Para descrever o sistema de caso do Trumai, serão adotadas siglas que Comrie
propõe:
S
para o argumento nuclear único (single) de orações intransitivas
prototípicas.
A
para o argumento nuclear do tipo "agente" de orações transitivas
prototípicas.
P
para o argumento nuclear do tipo "paciente" de orações
transitivas prototípicas.
Será adicionada também uma outra sigla:
R
para o argumento nuclear do tipo "recipiente" de
bitransitivas prototípicas.
orações
Teremos primeiramente os alinhamentos encontrados na morfologia (seção 3)
e depois os observados na sintaxe (seção 4).
3. MORFOLOGIA
3.1. Marcação dos argumentos nucleares e alinhamentos
Há quatro tipos oracionais em Trumai (predicado verbais),
apresentados a seguir.
2
Tipo 1 (oração intransitiva): Este tipo de oração é requerido para verbos
como 'morrer', 'respirar', 'tossir', 'arrotar', 'pular', 'correr', 'chorar', etc. O
marcador de S é -ø. Quando S não está lexicalmente presente na oração por
causa de continuidade discursiva, o último elemento do sintagma verbal
(geralmente o verbo) recebe o enclítico de 3a pessoa -n/-e.
(1)
S
pet’ew-ø
V
achïkida.
perereca
pular
'A perereca pula.'
S
(2)a. ha-ø
1
V
achïkida.
pular
'Eu pulo.'
S
V
b. ine-ø achïkida.
3
pular
'Ele pula.'
S
c. Ø
V-s
achïkida-n
pular-3
'Ele pula.'
Um argumento S lexical vem imediatamente antes do verbo. Se ele não
estiver nesta posição, há morfologia extra depois do verbo (o morfema ke).
(3)
S
dinoxo yi-ø ka_in
V
achïkida ke.
moça
pular
YI
Foc/Temp
KE
'A moça pulou.'
Tipo 2 (oração transitiva): Este tipo de oração é requerido para verbos de
ação como 'quebrar', 'enterrar', etc. O argumento A é marcado por -(V)k (a
primeira pessoa é marcada por -ts), enquanto o marcado de P é -ø. Quando P
não está lexicamente presente na oração por causa da continuidade discursiva,
o enclítico de 3a pessoa -n/-e ocorre ao final do sintagma verbal. Quando A
está ausente, não há marca adicional no verbo.
3
A
(4)a. Kumaru-k
Kumaru
P
V
atlat-ø mapa.
panela
quebrar
'Kumaru quebrou a panela.'
A
b. Kumaru-k
P
Ø
Kumaru
V-p
mapa-n
quebrar-3
'Kumaru a quebrou.'
A
P
V
(5)a. ine-k hi-ø hotaka.
3
2
enganar
'Ele enganou você.'
A
b. Ø
P
tsi-tle-ø
V
hotaka de.
3Poss-mãe
enganar já
'(Ele) já enganou a mãe dele.'
Se presente, P precede diretamente o verbo; se ele não estiver nesta posição, o
morfema ke aparece depois do verbo. A precede o sintagma verbal, e pode ter
posições diferentes na oração, não havendo nenhuma morfologia extra depois
do verbo.
(6)
P
kodechïch-ø
cobra
ka_in
A
hai-ts
V
disi
Foc/Temp
1
matar KE
ke.
'Eu matei a cobra.'
A
(7)
P
V
hai-ts
ka_in
atlat-ø
mapa.
1
Foc/Temp
panela
quebrar
'Eu quebrei a panela.'
Tipo 3 (oração bitransitiva): Requerido para verbos como 'dar', 'mostrar',
'pagar', etc. A é marcado por -(V)k (a primeira pessoa é marcada por -ts) e P é
marcado por -ø. Se P está lexicalmente ausente por causa de continuidade
discursiva, o enclítico de 3a pessoa -n/-e aparece no último elemento do
sintagma verbal. A pode estar ausente sem nenhum marcador especial no
verbo.
4
O terceiro argumento, R, é marcado por -(V)tl, -ki, ou -(V)s,
dependendo das características do núcleo do SN. Se R estiver ausente por
causa da continuidade discursiva, não há marca adicional no verbo.
(8)
A
kiki-k
P
V
R
atlat-ø kïţï hai-tl.
homem panela
dar 1
'O homem deu a panela para mim.'
(9)
A
P
hai-ts aros-ø
V
kïţï
R
kasoro-s.
1
dar
cachorro
arroz
'Eu dei arroz para os cachorros.'
A
(10) kiki-k
P
Ø
homem
V-p
kïţï-n
ha
R
wan-ki.
dar
1
Pl
'O homem o deu para nós.'
A
(11) hai-ts
1
P
oke
chï_in
V
yi-ø kïţï
Foc/Temp remédio
YI
R
Ø.
dar
'Eu dei remédio (para ela).'
P precede diretamente o verbo; caso ele esteja em outra posição, ke aparece depois
do verbo. A precede o sintagma verbal, mas pode ocorrer em outras posições sem
morfologia extra depois do verbo. R vem depois do sintagma verbal e pode
igualmente mudar de posição sem a ocorrência de morfologia extra.
P
(12) oke
A
V
hai-ts kïţï
yi-ø chï_in
remédio
YI
Foc/Temp 1
dar
ke
R
atsiwe-tl.
KE
mamãe
'Eu dei remédio para a mamãe.'
A
(13) Yakuta-k
Yakuta
chï_in
P
oke
Foc/Temp remédio
V
yi-ø kïţï
R
inatl-e-tl.
YI
3-VE-
dar
'Yakuta deu remédio para ela.'
R
(14) ha
1
ayen-a-tl chï_in
avô-VE
A
P
hai-ts oke
Foc/Temp 1
V
yi-ø kïţï.
remédio YI
'Eu dei remédio para meu avô.
5
dar
Tipo 4: Este tipo de oração é requerido para verbos de percepção (ver, ouvir,
sentir cheiro, etc), verbos de atividade mental (pensar, acreditar, gostar,
esquecer, lembrar, etc), verbos de contato (encostar, pegar em, pisar, etc),
verbos que expressam eventos habituais (comer, beber, cozinhar, assar, fazer
beiju, etc). Este tipo de oração apresenta dois argumentos:
• O argumento do tipo "agente/executor" alinha com o argumento S de
orações intransitivas: ele é marcado por -ø. Se ele estiver lexicalmente
ausente da oração por causa da continuidade discursiva, o último elemento
do sintagma verbal recebe o enclítico de 3a pessoa -n/-e.
• O segundo argumento alinha com o argumento R de orações bitransitivas:
ele é marcado por -(V)tl, -ki, ou -(V)s. Se ele estiver ausente por causa da
continuidade discursiva, não há marca adicional no verbo.
S
(15) ha-ø
1
V
hu'tsa
R
ine-tl.
ver
3
'Eu o vi.'
S
(16) ha-ø
1
V
hu'tsa
R
karuaru-ki.
ver
paca
'Eu vi uma paca.'
S
(17) ha-ø
1
V
hu'tsa
R
karuaru-s.
ver
paca
'Eu vi pacas.'
S
(18) Ø
V-s
sone-n
R
kafe-s.
beber-3
café
'Ele bebeu café (uma porção não definida).'
S
(19) ha-ø
1
V
sone
de
beber
já
R
Ø
'Eu já bebi (café).'
O argumento do tipo "agente/executor" vem imediatamente antes do
verbo. Se ele não estiver nesta posição, o morfema ke ocorre depois do verbo.
6
O segundo argumento segue o sintagma verbal e pode mudar de posição sem
morfologia extra depois do verbo.
S
(20) di-ø
ka_in
mulher Foc/Temp
V
hu'tsa ke
R
kodechïch-ki.
ver
cobra
KE
'A mulher viu uma cobra.'
R
(21) misu-s ka_in
água
S
V
ha-ø sone.
Foc/Temp 1
beber
'Eu bebi água.'
Ao verem este tipo oracional do Trumai (especialmente os exemplos
com 'comer' e 'beber'), a primeira reação de alguns lingüistas é indagar se isso
seria uma antipassiva e se haveria uma contraparte ativa para os verbos de
atividades habituais.
O tipo oracional 4 não é uma antipassiva. Essa é a marcação típica, e
única, dos verbos mencionados anteriormente. Para produzir efeitos de
antipassiva, há outra estratégia (veja seção 6.2).
No caso de verbos de percepção, não é algo estranho que em Trumai o
segundo argumento de verbos de percepção seja marcado da mesma forma
que o argumento R do verbo 'dar'. Em outras línguas também se pode ter isso:
Inglês:
Give the book to me. - Listen to me.
Português: Dá o livro para mim. - Olha para mim.
Olha para cima.
O princípio seria: a audição/o olhar está voltado para certo alvo (ela
olhou para mim = eu sou o alvo do ato de olhar dela).
Também não é surpreendente que o segundo argumento de verbos de
atividade mental ou contato em Trumai não sejam tratados como paciente. Em
outra língua também se vê isso. Em Português:
Eu pensei em você.
Eu não acredito em promessa de político.
Eu encostei na parede.
Seu carro encostou no meu.
No caso de verbos de contato, o segundo argumento não é
propriamente um paciente sendo afetado pela ação, mas antes um local onde a
7
ação ou contato é feito (cf. Fillmore 1970, DeLancey 1991). Veja que em
Português usamos a preposição em para o verbo 'encostar'.
O que talvez pareça meio estranho no Trumai é que o segundo
argumento deste tipo de verbo é marcado não como Locativo, mas como
Dativo. Porém, isso tem a ver com características da língua: há em Trumai
um marcador de locativo, usado para localização estática (estar em um local).
Quando um local é o alvo de um movimento (ex: ele foi para o rio), o localalvo recebe os mesmos marcadores do Dativo. Assim sendo, o que se passa
com os verbos de contato é algo congruente com o sistema da língua (eu
encostei na parede = a parede é o alvo do meu ato de encostar).
O que é peculiar sobre o Trumai são os verbos como 'comer', 'beber',
'cozinhar', etc, que sempre marcam o segundo argumento como Dativo. Mas
ao que parece, nesta língua atividades habituais pedem este tipo de marcação.
3.2. Visão Geral dos alinhamentos
Comparando os tipos oracionais descritos anteriormente, podemos ver
que o Trumai exibe um alinhamento Ergativo-Absolutivo: S e P recebem o
mesmo tratamento, enquanto A é tratado de um modo diferente. O padrão
Ergativo-Absolutivo se manifesta através da marcação de caso, marcação no
verbo, e ordem de palavras, sumarizadas se seguir:
a. Marcação de caso nos argumentos:
INTRANSITIVA
S-ø
TRANSITIVA
A-(V)k P-ø
BI-TRANSITIVA
A-(V)k P-ø
TIPO 4
S-ø
V
V
V R-(V)tl / -ki / -(V)s
V R-(V)tl /-ki / -(V)s
b. Marcação de pessoa no verbo/último elemento do sintagma verbal:
INTRANSITIVA
[[Ø] V]-n/e
TRANSITIVA
A [[Ø] V]-n/e
BI-TRANSITIVA
A [[Ø] V]-n/e R
TIPO 4
[[Ø] V]-n/e R
c. Ordem básica:
INTRANSITIVA
TRANSITIVA
BI-TRANSITIVA
TIPO 4
A
A
[[S]
[[P]
[[P]
[[P]
V]
V]
V] R
V] R
8
d. Mudanças de ordem e morfologia extra:
INTRANSITIVA
S
Foc/Temp
TRANSITIVA
P
Foc/Temp
A
Foc/Temp
BI-TRANSITIVA
P
Foc/Temp
A
Foc/Temp
R
Foc/Temp
TIPO 4
S
Foc/Temp
A
P
A
A
P
P
V
V
V
V
V
V
V
ke
ke
ke
R
R
ke
R
3.3. Tipos verbais da língua
Com relação aos tipos verbais da língua, encontramos em Trumai
cinco tipos verbais. Os quatro primeiro tipos já foram exemplificados
anteriormente. O quinto tipo será ilustrado abaixo.
• Tipo 1: tem apenas um argumento, marcado como Absolutivo. Ex: pular, morrer.
Abs
V
• Tipo 2: tem dois argumentos, um Ergativo, outro Absolutivo. Ex: quebrar.
Erg Abs V
• Tipo 3: possui três argumentos: um Ergativo, um Absolutivo, um Dativo.
Ex: dar.
Erg Abs V Dat
• Tipo 4: apresenta dois argumentos, um Absolutivo, um Dativo. Ex: ver.
Abs
V Dat
• Tipo 5: possui dois argumentos, cuja marcação pode variar. Em geral, os
argumentos são marcados como Ergativo e Absolutivo. Porém, se o
segundo participante for inanimado e predizível pela ação (por causa de seu
caráter rotineiro), a marcação fica sendo Absolutivo-Dativo. Um exemplo
deste tipo é o verbo kïtïw 'esfregar', que apresenta a marcação ErgativoAbsolutivo quando o segundo participante é animado (por exemplo, uma
criança) ou um determinado objeto físico (por exemplo, uma mesa), mas
que pede a marcação Absolutivo-Dativo se a ação refere-se ao ato de
esfregar e ralar mandioca (a qual é uma atividade muito rotineira para as
mulheres Trumai. Quando elas dizem que vão passar o dia ralando, fica
implícito que elas estão falando de ralar mandioca, porque é isso que elas
esfregam/ralam habitualmente). Alguns exemplos:
(22)a. hai-ts ka_in
Tawalu
1-Erg Foc/Temp Tawalu
hud-ø
kïtïw.
coxa-Abs esfregar
'Eu esfreguei a coxa da Tawalu.'
9
b. ole-s
mandioca-Dat
ha
wan kïtïw.
1
Pl
esfregar/ralar
'Nós ralamos mandioca.'
(dado de um texto explicando como as mulheres trabalham a mandioca)
Os tipos verbais do Trumai mostram certas similaridades entre si
quando examinamos as partículas de Imperativo que ocorrem com cada um
deles. Podemos ver que há um alinhamento entre o tipo 1 e o tipo 4, e outro
alinhamento entre os tipos 2 e 3. O tipo 5 é o único que apresenta as três
partículas, como se vê no exemplo (23).
Tipo 1 (morrer, pular):
Tipo 4 (ver, comer):
wana V
wana V
Tipo 2 (quebrar):
Tipo 3 (dar):
waki/wa V
waki/wa V
Tipo 5 (esfregar/ralar):
waki/wa V
wana V
(23)a. waki kïtïw
Imp
esfregar
'Esfrega (algo)'
b. wa
Imp
kïtïw
esfregar
'Esfrega (alguém)'
c. wana kïtïw
Imp
esfregar
'Rala mandioca'
Em trabalhos anteriores (Guirardello 1992, Guirardello 1999), eu
denominava as classes verbais do Trumai da seguinte maneira:
Tipo 1: Intransitivo
Tipo 4: Intransitivo extendido
Tipo 2: Transitivo
Tipo 3: Bi-transitivo ou Transitivo extendido
(Abs V)
(Abs V Dat)
(Erg Abs V)
(Erg Abs V Dat)
Porém não estou mais satisfeita com isso. Parece-me que o termo
"intransitivo extendido" – que foi na verdade cunhado por Dixon (cf. Dixon
1994) – não é muito adequado. Quando sou contactada por tipologistas que
leram meus trabalhos anteriores e que desejam saber mais sobre os verbos
10
"intransitivos extendidos" do Trumai, percebo que eles estão com uma
impressão um tanto quanto errada a respeito da língua: eles geralmente
imaginam que o segundo argumento é uma mera adição ao verbo.
É certo que os verbos da classe 4 alinham com os da classe 1 (que são
intransitivos), porém o segundo argumento de um verbo da classe 4 não é só
uma mera extensão. Ele é requerido pelo verbo. Existem diferenças entre este
argumento e elementos opcionais, como o 'comitativo' (veremos isso na seção
3.3.4). O termo "intransitivo extendido" infelizmente sugere uma idéia
equivocada a respeito destes verbos. Assim sendo, parece-me que se deve
buscar um termo mais apropriado para denominar esta classe verbal do
Trumai.
3.4. Marcação dos "oblíquos"
3.4.1. Com posposição
lots’
ita
tam
letsi
nik
xuik
t'atske
'Origem (ou: Ablativo)'
'Em direção a X (ou: Alativo)'
'Com o acompanhante X (ou: Comitativo)'
'Com o instrumento X (ou: Instrumental)'
'Sem X'
'Perto de X'
'Depois de X'
3.4.2. Com marcadores presos
Locativo (estático):
-(V)n
Para especificar melhor o local (dentro de, em cima de, atrás de, etc), usa-se :
Termo para parte do corpo + -(V)n
Ex: itak natu-n 'em cima da pedra' (lit: nas costas da pedra)
Local alvo de um movimento:
-ki
-(V)tl
Benefactivo:
(local: animado)
-(V)tl / -ki / -(V)s
3.4.3. Alguns exemplos
(24) ha
1
wa-pata
de
VM-chegar já
Kanarana lots'.
Canarana
Ablat
'Eu já cheguei de Canarana.'
11
(25) yuduţ-a-n
banco-VE-Loc
ka_in
kutsiwae chï.
Foc/Temp
esquilo
Cop
'O esquilo está no banco.'
(26) Maka wakde chï_in
Maka subir
mesa natu-ki.
Foc/Temp
mesa
costas-Dat
'O Maka subiu na mesa.'
(27) tar.taï
wakde chï_in
for miga subir
Pedru-tl.
Foc/Temp Pedru-Dat
'A formiga subiu no Pedro.'
3.4.4. Comentários sobre o Benefactivo
Há diferenças entre um Dativo requerido pelo verbo (como o
complemento do verbo 'ver') e um Benefactivo:
• O benefactivo tem uma construção alternativa, que é exclusivamente
benefactiva:
(28)a. ha
1
api
chï_in
tsinon-e-s
Tata-tl.
pegar Foc/Temp pequi-VE-Dat Tata-Dat
'Eu peguei pequi para a Tatá.'
b. ha
1
api
chï_in
tsinon-e-s
Tata xolon letsi.
pegar
Foc/Tempo pequi-VE-Dat Tata favor
Instrum
'Eu peguei pequi para a Tatá (peguei pequi fazendo favor para Tatá).'
• Em coordenação, um argumento Dativo nuclear pode ser omitido devido a
continuidade discursiva, mas ele é recuperável pelo contexto. Já o
benefactivo não é recuperável (simplesmente porque não está previsto na
estrutura argumental do verbo).
(29) kiki
yi
homem YI
wa-pata-s
hai-ts
VM-chegar-Temp 1-Erg
t'ak
kïţï Ø.
beiju dar
'Quando o homem chegou, eu dei beiju para ele.'
[se este exemplo é apresentado ao informante Trumai, ele interpreta que
o Dat é recuperável: o homem chegou, dei o beiju para o homem]
(30) kiki
yi
homem YI
wa-pata-s,
ha
VM-chegar-Temp 1
'Quando o homem chegou, eu o vi.'
[o homem chegou, eu vi o homem]
12
hu'tsa
ver
Ø.
(31) kiki
yi
homem YI
wa-pata-s,
ha
VM-chegar-Temp 1
katnon.
trabalhar
'Quando o homem chegou, eu trabalhei.'
Segundo o informante, a interpretação aqui é apenas: eu trabalhei. Não
significa que eu trabalhei para o homem. Só vai significar isso se um
benefactivo for explicitamente adicionado a oração:
(32) kiki
yi
homem YI
wa-pata-s,
ha
VM-chegar-Temp 1
katnon
inetl.
trabalhar 3-Dat
'Quando o homem chegou, eu trabalhei para ele.'
Isto também se observa com outros "oblíquos", como o comitativo:
(33)a. kiki
yi
homem YI
wa-pata-s,
ha
VM-chegar-Temp 1
sa.
dançar
'Quando o homem chegou, eu dancei.'
[interpretação: o homem chegou, eu dancei. Não tem sentido comitativo]
b. kiki
yi
homem YI
wa-pata-s,
ha
VM-chegar-Temp 1
sa
ine tam.
dançar 3
Com
'Quando o homem chegou, eu dancei com ele.'
4. SINTAXE
4.1. Ordem básica e constituência
ORAÇÃO INTRANSITIVA
ORAÇÃO TRANSITIVA
ORAÇÃO BI-TRANSITIVA
ORAÇÃO TIPO 4
[S V]
ou
A [P V]
A [P V] R
[S V] R
[Abs V]
Erg [Abs V]
Erg [Abs V] Dat
[Abs V] Dat
Indicadores de constituintes:
- O Absolutivo predece diretamente o verbo. Se a ordem for quebrada,
morfologia extra aparece depois do verbo (ke).
- As partículas de Foco/Tempo ocorrem em segunda posição, depois de um
constituinte. Elas são um bom critério para identificar constituintes. A
sequência [Abs V] freqüentemente é seguida por estas partículas. Padrões
observados relevantes:
[S V] Foco/Tempo
[S V] Foco/Tempo Loc
[A] Foco/Tempo [ P V]
[P V] Foco/Tempo A
ex: Eu urinei (foco).
ex: Eu urinei (foco) no mato.
ex: Eu (foco) quebrei o rádio
ex: Quebrei o rádio (foco) eu.
13
[A] Foco/Tempo [ P V] [R]
[R] Foco/Tempo [A] [P V]
[S V] Foco/Tempo [R]
[R] Foco/Tempo [S V]
ex: Eu (foco) dei um pente para ela.
ex: Para ela (foco) eu dei um pente.
ex: Eu vi (foco) uma onça.
ex: Uma onça (foco) eu vi.
4.2. Comportamento e alinhamentos em processos sintáticos
Na maioria dos processos sintáticos, há alinhamento entre S e P.
Porém, há também um alinhamento entre S e A.
Auxiliares de Postura: apresenta alinhamento entre S e A. O auxiliar
sempre se refere à postura de S ou A. Para se referir à postura de P ou R, usase outro tipo de construção (a temporal):
S
V
Aux
(34) ha waţkan tsula.
1
chorar
estar.deitada
'Eu chorei deitada.'
A
P
V
Aux
(35) hai-ts Tata midoxos tsula.
1-Erg Tata chamar
estar.deitado
'Eu, deitada, chamei a Tatá.'
A
P
V
Temp
(36) hai-ts Tata midoxos, tsula-n-es.
1-Erg Tata chamar
estar.deitado-3Abs-Temp
'Eu chamei a Tatá, quando ela estava deitada.'
S
V Aux
(37) ha hu'tsa tsula
1
ver
R
Amati-tl.
estar.deitado Amati-Dat
'Eu, deitada, vi o Amati.'
S
V
R
(38) ha hu'tsa Amati-tl,
1
ver
Temp
tsula-n-es.
Amati-Dat estar.deitado-3Abs-Temp
'Eu vi o Amati quando ele estava deitado.'
Ordem: como já mencionado, há alinhamento entre S e P:
S ocorre imediatamente antes do verbo
P ocorre imediatamente antes do verbo
A ocorre preverbalmente, mas não imediatamente antes do verbo.
14
Reflexivização: a língua Trumai não possui uma construção reflexiva
onde há um morfema especial (tipo 'self' do Inglês) controlado pelo Sujeito da
oração. O que há são certas estratégias de reflexivização:
• Supressão do argumento não-Absolutivo: o argumento não-Absolutivo
é omitido e não é recuperável pelo contexto. Esta estratégia, porém
pode gerar mais de um sentido semântico (reflexivo ou
passivo/antipassivo). Veja (39a), (40a) e (41a).
• Uso de falapetsi 'fazer sozinho' em conjunção com a supressão do
argumento não-Absolutivo. Esta estratégia só gera o sentido reflexivo.
Veja (39b), (40b) e (41b).
Estas estratégias de reflexivização indicam um alinhamento entre S e
P, pois são eles os argumentos sempre preservados na oração. Exemplos:
S
(39)a. ha
hu'tsa
1
R
Ø.
ver
'Eu me vi' ou 'Eu vi (algo, não definido).'
b. ha
1
falapetsi
letsi
ka_in
ha
hu'tsa Ø.
fazer.sozinho Instrum Foc/Temp 1
ver
'Eu me vi.' (lit: eu fiz sozinho, eu vi).
A P V
(40)a. Ø ha tïchï.
1
arranhar.fazendo.sangria
'Eu me arranhei' ou 'Eu fui arranhado (por alguém).'
b. ha
1
falapetsi
letsi
ka_in
Ø ha
fazer.sozinho Instrum Foc/Temp
1
tïchï.
arranhar.fazendo.sangria
'Eu me arranhei.'
A
(41)a. Ø
P
ha
V
k'ad naha.
1
mão
cortar
'Eu me cortei' ou 'Eu fui cortada (por alguém).'
b. ha falapetsi
1
letsi
ka_in
fazer.sozinho Instrum Foc/Temp
'Eu me cortei.'
15
Ø ha
1
k'ad naha.
mão
cortar
Relativização: apresenta alinhamento entre S e P. No processo de
relativização, o SN-pivot da oração relativa fica sendo Ø e o verbo é
modificado por um morfema especial. Quando o pivot na oração relativa é S
ou P, o verbo é modificado pelo relativizador ke. Quando o pivot é A ou R, o
verbo é modificado por chïk (Cop + nominalizador).
(42) ha
1
hu’tsa chï_in
ver
S V
[ øi esa-t'
[di]i-tl
Foc/Temp mulher-Dat
ke]
dançar-nzr.pass
'Eu vi a mulher [que dançou].'
(43) ha
1
hu’tsa chï_in
ver
A
P
V
[axos]i-atl [hai-ts øi midoxos-t’a
Foc/Temp criança-Dat 1-Erg
ke]
chamar-nzr.pass
'Eu vi o menino [que eu chamei].'
(44) ha hu’tsa ka_in
1
ver
A P
[axos]i-atl [ øi ha aton mud
Foc/Temp criança-Dat
1
V
husa-t’
chï-k]
bicho pescoço amarrar-nzr.pass
'Eu vi o menino [que amarrou meu bicho de criação].'
(45) ha hu’tsa ka_in
1
ver
S V
[axos]i-atl [ha fa fa-t’
Foc/Temp criança-Dat 1
chï-k
R
øi ].
bater bater-nzr.pass
'Eu vi o menino [que eu bati].'
Controle de morfemas anafóricos: este tipo de controle não indica
alinhamento S-P ou S-A simplesmente porque ele não é sintático, mas sim
pragmático. Ou seja, o antecedente de um morfema anafórico não é
necessariamente o argumento A ou P da oração anterior. O antecedente será
aquele que for considerado o melhor "candidato" por questões lógicas ou
discursivas.
Morfema anafórico possessivo tsiA
(46) Yakairu -k
P
V
Atawaka etsi
tsi -tle-tl.
Yakairu-Erg Atawaka trazer 3Poss-mãe-Dat
'Yakairu levou Atawaka para a mãe dela.'
[Mãe de quem? Se a conversa é sobre a Yakairu > mãe da Yakairu.
Se a conversa é sobre a Atawaka > mãe da Atawaka.]
16
Enclítico de 3a pessoa -n/-e
A
(47) kiki-k
P
di
V
tïchï -kma-s
V-enclítico
pita-n
homem-Erg mulher arranhar-Perf-Temp sair-3Abs
'Quando o homem acabou de arranhar a mulher, Ø saiu.'
[Quem saiu? Depende da interpretação do ouvinte]
A
(48) Kumaru-k
P
V
Hakew husa
husa-s
V-enclítico
ora-n .
Kumaru-Erg Raquel amarrar amarrar-Temp chorar-3Abs
'Quando a Kumaru amarrou a Raquel, Ø chorou.'
[Quem chorou? A Raquel, por questões lógicas (ela tem motivos para chorar)]
A
(49) Kumaru-k
P
V
Hakew husa
husa-s
V-enclítico
pita-n .
Kumaru-Erg Raquel amarrar amarrar-Temp sair-3Abs
'Quando a Kumaru amarrou a Raquel, Ø saiu.'
[Quem saiu? A Kumaru, por questões lógicas (Raquel não pode sair)]
Alçamento de argumento em oração subordinada completiva:
também indica alinhamento entre S e P. Em uma oração subordinada que é o
complemento de um verbo transitivo, o argumento Absolutivo do verbo
subordinado pode ser marcado no verbo principal (50b, 51b), fenômeno
conhecimento como 'alçamento'.
S
V
(50)a. hai-ts [Sula huma] padi.
1-Erg Sula
banhar
esperar
'Eu esperei a Sula banhar.'
S
V
b. hai-ts [ Ø huma] padi-n.
1-Erg
banhar esperar-3Abs
'Eu esperei ela banhar.'
(51)a. hai-ts chï _in
A
[Kumaru-k
P
Sula tïchï]
1-Erg Foc/Temp Kumaru-Erg Sula arranhar
'Eu esperei a Kumaru arranhar a Sula.'
17
padi.
esperar
b. hai-ts chï_in
1-Erg Foc/Temp
A
[Kumaru-k
P V
Ø tïchï]
Kumaru-Erg
padi-n.
arranhar esperar-3Abs
'Eu esperei a Kumarui arranhar elaj.'
Porém, devo dizer que o exemplo (51) vem de elicitação. Em textos,
não encontro este tipo de dado. Os falantes de Trumai parecem preferir usar
coordenação (a Kumaru estava arranhando a Sula e eu esperei) ou oração
subordinada temporal (quando a Kumaru estava arranhando a Sula, eu
esperei).
5. RELAÇÕES GRAMATICAIS (ou: FUNÇÕES SINTÁTICAS)
Vejamos agora a questão de relações gramaticais em Trumai, isto é,
Sujeito, Objeto, etc.
Como definição de Sujeito, uso a proposta de Givón (1984:138):
Sujeito seria a gramaticalização do papel discursivo-pragmático de tópico.
Isto é, Sujeito seria a codificação do tópico primário da oração, enquanto
Objeto seria a codificação do tópico secundário da oração.
Segundo a literatura lingüística, a codificação do Sujeito se manifesta
através de vários modos, como concordância no verbo; processos sintáticos,
etc. Examinando estes pontos, pode-se identificar a categoria de Sujeito de
uma língua. Givón (1997: 29) dá destaque às propriedades de controle-ecomportamento; elas refleteriam as relações gramaticais mais fielmente do
que a morfologia, porque são mais diretamente motivadas por fatores
pragmáticos e discursivos.
Como fica a discussão de relações gramaticais para o Trumai?
Resumindo os alinhamentos observados na morfologia e sintaxe:
S-A
- auxiliares de postura
- destinatário da construção imperativa. Porém este alinhamento em Trumai
é somente parcial, porque a construção imperativa que tem S como
destinatário (wana V) é diferente da que tem A como destinatário (waki V)
S-P
- caso não-marcado (ø)
- exibe marcação de pessoa no verbo (o enclítico -n/-e)
- ordem (precede o verbo)
18
- reflexivização
- relativização
- alçamento de argumento em oração subordinada completiva
Com relação a controle de morfemas anafóricos: não há um
alinhamento claro.
Temos, então, a questão: tendo uma oração transitiva [A P V], quem seria o
Sujeito? O argumento A ou o argumento P?
Se dissermos que é A: é problemático. Há muito pouco alinhamento
para justificar essa decisão.
Se dissermos que é P: também é problemático, por várias razões:
a. Semanticamente, S e P são diferentes
Este é um ponto que o Dixon (1994:124-125) ressalta. Haver
alinhamento entre S e A é compreensível, uma vez que eles referem a
participantes iniciadores/controladores de eventos (agentes). Agentes são
salientes e discursivamente importantes, portanto são fortes candidatos a
serem codificados como o tópico primário da oração. P, por outro lado,
refere-se a participantes que são pacientes (é um papel diferente). 1
Se agruparmos S e P como a categoria de Sujeito em Trumai,
estaremos dando enfâse a critérios formais (alinhamentos), mas podemos estar
deixando de lado questões semânticas que também são importantes.
b. A supressão de um argumento S em uma oração produz efeitos
semânticos que são diferentes da supressão de um argumento P
• Se S não está presente nem lexicalmente nem na forma do enclítico -n/e, a oração tem sentido genérico (um evento está ocorrendo, mas não
sabemos quem o está fazendo)
(52)a. iyi
hukana lako-ktsi-n.
IYI clarear
Direc-Direc-3Abs
'Ele veio clareando (com uma lanterna).'
1 Na verdade, S nem sempre é agente, mas freqüentemente pode ser, ao passo que P não.
19
b. iyi
hukana lakoktsi
IYI clarear
le
Direc-Direc
de.
diz.que já
'Dizem que algo veio clareando.'
• Se P não está presente nem lexicalmente nem na forma do enclítico -n/e, a oração tem sentido de antipassiva (o paciente é desconhecido ou
pouco relevante)
(53)a. kasoro-k
tako
tako-n.
cachorro-Erg morder morder-3Abs
'O cachorro está mordendo ele.'
b. kasoro-k
tako
tako.
cachorro-Erg morder morder
'O cachorro está mordendo (algo).'
c. Se dissermos que P é o Sujeito (tópico primário) da oração, o que então
seria A?
Seria ele o Objeto (tópico secundário)? O problema de dizer isto é que
teríamos então uma língua onde P é sempre codificado como sendo mais
topical que A, apesar de A ser agente, isto é, um participante do evento que é
muito saliente e um forte candidato a ser o tópico primário de uma oração
transitiva.
d. Poderia-se dizer que a oração tem um configuração "passiva" e que A
é um Oblíquo (um agente da passiva)?
Agente
NP-k
Paciente
NP-ø V
>
Agente
Paciente
"Oblíquo" Sujeito
V
O problema é que esta construção "passiva" não tem uma contraparte
ativa, onde o SN-agente seria codificado como Sujeito (tópico primário) e o
SN-paciente como Objeto (tópico secundário):
Os verbos da classe 2 só têm um tipo codificação (Erg Abs V). Não há
outra contraparte.
Os verbos da classe 5 têm dois tipos de codificação, porém a
codificação alternativa (Abs V Dat) é limitada, ou seja, só ocorre com
certos tipos de pacientes (inanimados predizíveis). A codificação
alternativa não parece com uma oração ativa, mas sim com uma
antipassiva.
20
Se dissermos então que a construção [Erg Abs V] é "passiva", vamos
ter uma língua onde há orações passivas sem haver ativas. Isso é estranho,
considerando que em um grande número de línguas do mundo a voz passiva é
restrita em discurso (ela é empregada para motivos especiais, enquanto que a
voz passiva é mais comumente usada, por ser discursivamente não marcada).
Outro problema: se o Ergativo é um mero oblíquo, isso significaria
que ele tem pouca importância discursiva. Porém, há exemplos que sugerem o
contrário: como já vimos nos exemplos (47-49), quando há duas orações
ligadas e a primeira oração é transitiva (ex: o homem chamou a mulher e Ø
saiu), tanto o argumento Ergativo como o argumento Absolutivo da primeira
oração podem ser o possível antecendente do morfema anafórico da segunda
oração.
Porém, em alguns exemplos, quando o informante quer deixar claro
que o antecedente do morfema anafórico é o Absolutivo e não o Ergativo da
primeira oração, ele tende a suprimir o Ergativo.
Erg
(54) di-k
Abs
V
dinoxo tete-kma-s
mulher-Erg moça
pintar-Perf-Temp
V-enclítico
pita-n.
sair-3Abs
'Quando a mulher acabou de pintar a moça, Ø saiu.'
Segundo o informante, quem saiu foi a mulher. Pergunto se seria
possível dizer que a moça saiu. O informante diz que também seria
possível, mas para não deixar dúvida, fala-se assim:
Abs
V
(55) dinoxo tete-kma-s
moça
V-enclítico
pita-n .
pintar-Perf-Temp sair-3Abs
'Quando a moça acabou de ser pintada, saiu.'
[segundo o informante, aqui não dúvida: foi a moça que saiu]
Temos que nos perguntar: por que o informante suprime o Ergativo
neste tipo de exemplo? Porque muito provavelmente ele é um bom
"candidato" a ser o antecedente do enclítico do segundo verbo; então, para
evitar confusão, ele é retirado de cena, ficando somente o Absolutivo (nesse
caso, como diz o informante, não há mais dúvida sobre quem é o
antecedente).
Mas se o Ergativo é um bom "candidato", isso indica que ele tem
importância discursiva. Se não tivesse, não seria preciso suprimí-lo, pois ele
21
não representaria risco nenhum para o Absolutivo. Portanto, este tipo de
exemplo indica que o Ergativo tem importância discursiva, tanto que às vezes
ele é considerado como sendo o antecedente. Se ele fosse um mero oblíquo,
ele não poderia controlar um morfema anafórico.
e. É realmente necessário falar de Sujeito e Objeto para descrever a
gramática do Trumai?
Não. É possível descrever o sistema usando as siglas (S, A, P, R) ou
os tipos de argumento (Absolutivo, Ergativo, Dativo)
Há outras línguas no mundo em que se pode descrever a gramática
sem ter que usar os termos Sujeito e Objeto. Por exemplo: Acehnese, uma
língua da ilha de Sumatra (Van Valin & LaPolla 1997).
Conclusão:
O agrupamento S-A tem motivações semânticas e pragmáticas, porém
os alinhamentos encontrados na sintaxe são muito fracos.
O alinhamento S-P tem presença na sintaxe, mas considerá-lo como
sendo o Sujeito do Trumai não ajuda a entender melhor o sistema da língua
(ao contrário, apenas a caracteriza de um modo estranho).
Para descrever o sistema da língua, não é preciso invocar as noções de
Sujeito e Objeto.
Só seria interessante falar de Sujeito e Objeto se quiséssemos fazer
estudos tipológicos, comparando Trumai com outras línguas. Neste caso, a
solução seria usar a idéia de Givón (1997: 29) de que as línguas do mundo
podem apresentar graus diferentes de gramaticalização:
"...languages with fewer subject properties have a less prototypical - less
grammaticalized - subject."
Poderia-se então dizer que o Sujeito do Trumai é o agrupamento S-A
(por questões semânticas e de importância pragmático-discursiva), porém é
um Sujeito pouco gramaticalizado, manifestando pouco suas propriedades. É
um sujeito ainda fraco.
Como dar conta do alinhamento S-P? A hipótese é de que este
alinhamento deve ser fruto de desenvolvimentos históricos (como aconteceu
em outras línguas que mudaram de sistema). Estas mudanças históricas
22
devem ser ainda relativamente recentes no Trumai, sendo por isso que o
alinhamento S-P é forte, sendo observado na morfologia e na sintaxe. O
alinhamento S-A ainda não teve tempo de se desenvolver propriamente.
6. ANTIPASSIVA
Há construções em Trumai que produzem o efeito semântico que uma
construção antipassiva tipicamente produz. Vejamos:
6.1. Verbos da classe 5
Como já mencionado, estes verbos apresentam alternância da marcação:
Erg Abs V
Abs V Dat
Essa alternância funciona basicamente como uma antipassiva:
• quando o segundo argumento do verbo é animado, só a construção [Erg
Abs V] é possível
• quando o segundo argumento é inanimado e é também predizível pela
ação porque ela é rotineira (ou seja, o argumento é pouco importante), a
construção [Abs V Dat] é empregada.
Verbos atestados até o momento, em uso natural ou em dados espontâneos:
naha
cortar alguém, cortar algo com golpes de facão > Erg-Abs
quebrar rama de mandioca ou galho de árvore para lenha (atividades
rotineiras) > Abs-Dat
tïami espremer algo > Erg-Abs
espremer massa de mandioca (quando está preparando a mandioca,
outra atividade rotineira) > Abs-Dat
kïtïw esfregar alguém > Erg-Abs
ralar mandioca (atividade rotineira) > Abs-Dat
wen
arrancar dente, cabelo de alguém, arrancar prego da parede > Erg-Abs
arrancar pena de ave (é uma atividade ligada à preparação de comida,
quando se limpa aves caçadas) > Abs-Dat
Há alguns casos que são um pouco mais complicados:
pïţke
tirar a pele de alguém, de uma cobra > Erg-Abs
descascar mandioca (atividade rotineira) > Erg-Abs ou Abs-Dat
23
xoxan lavar alguém > Erg-Abs
lavar roupas (atividade rotineira) > Erg-Abs ou Abs-Dat
ochen esmigalhar, socando (produzindo farinha) > Erg-Abs ou Abs-Dat
Poderíamos chamar a construção [Abs V Dat] de Antipassiva?
Tenho evitado chamá-la de antipassiva, porque os verbos da classe 4 exigem
esse mesmo tipo de construção, e para eles esse é o único tipo de marcação
possível (mesmo quando o segundo argumento é animado).
Outros testes: Os exemplos acima foram atestados em textos (dados naturais)
ou em elicitação com o dado oferecido espontaneamente pelo falante.
Depois que comecei a compreender melhor a classe 5, resolvi testar a
alternância com outros vebos. Selecionei verbos cujos argumentos são
marcados como Erg-Abs, troquei a marcação para Abs-Dat e li o dado para o
informante, para testar a reação dele. Na maiora das vezes, o informante
rejeitou os dados.
Para alguns verbos, o informante disse que a marcação Abs-Dat seria
possível (são os verbos listados abaixo). Porém quando eu pedia para ele
repetir o dado, ele sistematicamente mudava a marcação para Erg-Abs.
Portanto, não posso afirmar que esses verbos pertencem a classe 5; é preciso
maiores investigações:
fatla
'furar' (furar coquinho para fazer colar)
tararaw
'rasgar' (folhas de plantas para fazer remédio)
karain
'riscar' (desenhando em madeira/bancos)
hutla
'sacudir' (rede, para limpá-la)
ma' main
'mexer comida (quando se está cozinhando)'
tsima
'enterrar' (restos de coisas, lixo)
6.2. Verbo da classe 4
A marcação destes verbos é sempre Abs-Dat. Como então se faz para
produzir um efeito "antipassivo"?
Quando o segundo participante é genérico, não-definido ou
discursivamente pouco importante, ele simplesmente é suprimido e não é
recuperável por contexto.
24
(56) ha
1
ma
la
ka_in
Ø.
comer estar.em.pé Foc/Temp
'Eu estou comendo em pé.'
[não importa o que estou comendo. O que importa é o ato de comer e a
posição]
(57) kasoro
hu'tsa ka_in
cachorro
ver
Ø.
Foc/Temp
'O cachorro está vendo algo (mas não sabemos o quê).'
6.3. Verbos das classes 2 e 3
Para os verbos destas classes, quando o argumento do tipo "paciente"
é generico, não-definido ou discursivamente pouco importante, ele
simplesmente é suprimido e não é recuperável por contexto. Exemplos:
(58) ine-k
ka_in
Ø husa
3-Erg Foc/Temp
husa.
amarrar amarrar
'Ele está amarrando (algo).'
(59) ha
1
adif-a-tl
chï_in
irmão-VE-Dat Foc/Temp
hai-ts
1-Erg
Ø
kïţï.
dar
'Eu dei algo (um presente) para meu irmão.'
[não importa a coisa; importa o meu ato de dar]
6.4. "Antipassiva" lexical
Alguns eventos em Trumai podem ser expressos por meio de dois
possíveis verbos. Um deles é do tipo 2 (transitivo: Erg Abs V), o outro é do
tipo 4 (Abs V Dat). Talvez em fases anteriores da língua estes verbos
tivessem sentidos um pouco diferentes. Hoje em dia o sentido parece ser o
mesmo; assim sendo, o falante em princípio pode escolher um dos verbos
para expressar o evento em questão.
25
Tipo 2 (Erg-Abs)
disi
tako
tuxa’tsi
kapan
Tipo 4 (Abs-Dat)
fa
make
dama
chuda
'matar ou bater'2
'morder'
'puxar'
'fazer/produzir (um objeto)'
O interessante é que apesar do falante poder escolher um verbo ou o
outro, ele tem a tendência de escolher o verbo do tipo 2 (transitivo) quando no
evento há 3a pessoa agindo sobre 1a, e tendência a escolher o verbo do tipo 4
quando no evento há 1a pessoa agindo sobre 3a. Ou seja:
Se agente=3 paciente=1:
Se agente=1 paciente=3:
(60) P
ha
1
verbo do tipo 2
verbo do tipo 4
V
disi-tke
ka_in
A
inak wan-ek.
matar-Des
Foc/Temp
3
(3>Erg
(1>Abs
1>Abs)
3>Dat)
pl-Erg
'Eles querem me matar.'
(61) S
ha
1
V
fa-tke
ka_in
R
ine-tl.
matar-Des Foc/Temp 3-Dat
'Eu quero matá-lo.'
Esta seleção é parecida com o uso de construção antipassiva:
Se o paciente é importante:
verbo transitivo é selecionado (Pac = Abs)
Se o paciente é menos importante: verbo do tipo 4 é selecionado (Pac = Dat)
Porém, o processo "antipassivo" aqui apresentado não é
morfossintático, mas sim uma questão de escolha lexical, sendo limitado aos
pares disponíveis na língua. Além disso, é somente uma tendência.
7. CISÕES NO SISTEMA
O sistema de caso do Trumai não apresenta cisões como as observadas
em línguas de ergatividade cindida. Porém, há em Trumai uma certa hieraquia
2 Muitas vezes, para diferenciar o sentido de 'matar' de 'bater', os informantes duplicam o verbo: fa 'matar', fa
fa 'bater' - disi 'matar', disi disi 'bater'.
É provável que fa originalmente significasse apenas 'bater' e disi apenas 'matar'. Assim sendo, a
morfossintaxe de cada verbo seria congruente com seu conteúdo semântico. Mais tarde, os outros sentidos
teriam se desenvolvido (bater pode levar a matar; pode-se matar batendo. Assim, fa desenvolveu também
o sentido de 'matar' e disi desenvolveu também o sentido de 'bater'). Porém, a morfossintaxe de cada verbo
permaneceu.
26
entre nomes e pronomes que de alguma forma lembra a hierarquia encontrada
em línguas cindidas.
Como visto anteriomente, há três marcadores de Dativo em Trumai. O
marcador é selecionado dependendo das características do núcleo do sintagma
nominal. Em alguns casos, só um marcador é possível. Por exemplo, os
pronomes de 1a. e 2a pessoa só aceitam o marcador -(V)tl.
Em outros casos, dois marcadores são possíveis. O marcador é
escolhido dependendo de alguns fatores pragmáticos (importância discursiva,
identificabilidade, individualização, etc). Por exemplo:
(62)a. ha
1
hu’tsa chï_in
ver
kasoro-tl.
Foc/Temp cachorro-Dat
'Eu vi o cachorro.'
b. ha
1
hu’tsa
chï_in
kasoro
yi-ki.
ver
Foc/Temp cachorro YI-Dat
'Eu vi um cachorro.'
A tabela abaixo apresenta os marcadores de Dativo que podem ocorrer
com cada tipo de pronome ou nome. Ela não está totalmente completa, pois
alguns elementos ainda precisam ser verificados (por exemplo: nome
possuído animado não-humano, sg/du/pl; nome possuído humano dual; nome
possuído inanimado dual, com possuidor anafórico).
+ Topical ----------------------------------------------------------------------------- - Topical
-(V)tl
-(V)tl/-ki
-ki
Pronomes:
1Sg
2Sg
3
Dem
1Dl 1Pl
2Dl 2Pl
3Dl 3Pl
Dem-Dl
Dem-Pl
Ø
Ø
Nomes com
Possuidor
Anafórico:
Hum.Sg
Inan.Sg
Ø
Hum.Pl
Ø
Inan.Pl
Ø
Inan.Pl
Nomes com
Ø
Possuidor
não-anafórico:
Hum.Sg
Inan.Sg
Inan.Dl
Hum.Pl
Nomes
Ø
não-possuídos:
Proper Nouns
Hum.Sg
Anim.Sg
Inan.Sg
Hum.Dl
27
-ki/-(V)s
Anim.Dl
Inan.Dl
Hum.Pl
-(V)s
Anim.Pl
Inan.Pl
A escolha do marcador de Dativo pode ser resumida deste modo:
-(V)tl
*individualizado
*identificável
*saliente
>
-ki
*individualizado, mas
não identificável
*individualizado, mas
não saliente
*identificável,
não individualizado
>
-(V)s
*não individualizado, não
identificável
*não individualizado, não
saliente
A hierarquia envolvida na escolha de marcadores de Dativo do Trumai
é semelhante àquela que se observa em línguas que possuem ergatividada
cindida (Silverstein 1976, Dixon 1994). Nestas línguas, a cisão é
condicionada pela natureza do SNs nucleares, que podem ser organizados em
uma hierarquia nominal (Dixon, 1994: 85):
Nomes Comuns
Pronome
a
Pronome
Demonstrativos
a
1 pessoa > 2 pessoa > Pronomes 3a > Nomes > Humanos > Animados > Inanimados
Próprios
Porém, embora semelhante, a hierarquia do Trumai tem suas próprias
características, pois involve também número e individualização (SG > Dual >
Plural). Outra diferença é que a hierarquia do Trumai só se aplica à escolha
dos marcadores de Dativo e não ao sistema como um todo.
8. REFERÊNCIAS
COMRIE, Bernard. 1989. Language Universals and Linguistic Typology.
Chicago: The University of Chicago Press.
DELANCEY, Scott. 1991. Event construal and case role assignment.
Berkeley Linguistic Society 17, 338-353.
DIXON, R. M. W. 1994. Ergativity. Cambridge, New York: Cambridge
University Press.
FILLMORE, Charles J. 1970. The grammar of hitting and breaking. Readings
in English transformational grammar, ed. by R. Jacobs and P.
Rosenbaun, 120-133. Waltham, MA: Ginn.
28
GIVÓN, Talmy. 1984. Syntax: A functional-typological introduction. Vol. 1.
Amsterdam, Philadelphia: John Benjamins.
1997, ed. Grammatical Relations. A Functionalist Perspective.
GUIRARDELLO, Raquel. 1999. A Reference Grammar of Trumai. Ph.D.
Thesis. Linguistics Department, Rice University. Houston, Texas,
U.S.A.
SILVERSTEIN, Michael. 1976. Hierarchy of features and ergativity.
Grammatical Categories in Australian Languages, ed. by R. M. W.
Dixon, 112-171. Canberra: Australian Institute for Aboriginal Studies.
Van VALIN, Robert e Randy LaPOLLA. 1997. Syntax: structure, meaning
and function. Cambridge: Cambridge University Press.
29
Download