a poética do deslimite

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Elton Luiz Leite de Souza
m a no e l d e b a r ro s
a poética do deslimite
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Introdução
Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com os seus deslimites.
Retrato do artista quando coisa, p. 77
I
Este livro teve por tema a poética de Manoel de Barros e as implicações
filosóficas que seus poemas e entrevistas suscitam. Procuramos mostrar que
essa poética está inserida em uma estética enquanto construção sensível que visa
elaborar uma compreensão singular da linguagem, do homem e da natureza.
Guiados pela leitura das poesias de Manoel de Barros, fomos surpreendidos por uma positividade muitas vezes desconcertante, inaugural, que flagra a “verdez das coisas”, como o poeta mesmo diz, e as retrata em palavras
que nos deixam ver o deslimite enquanto matéria de sua poesia.
Conforme veremos ao longo do trabalho, a ideia de deslimite se expressa
a partir da inclusão, na essência ou compreensão de algo (de seu limite), de
uma virtualidade que se lhe torna imanente ao mesmo tempo em que o abre
a processos semioperceptivos que lhe reinventam o sentido – tornando-se,
o fazer poético, um laboratório privilegiado que nos permite vislumbrar a
gênese da própria linguagem.
A investigação desse tema nos conduziu, em um momento inicial, ao
estudo da ideia de limite na filosofia. Nesse sentido, aproximamos a ideia de
limite à de forma, e vimos algumas implicações dessas duas últimas ideias
na Lógica Clássica, na Ontologia e na Estética. Em um segundo momento,
completamos o estudo precedente com a investigação de alguns conceitos
que inscrevem o deslimite na filosofia. Procurou-se mostrar que essa inscrição opera-se de duas maneiras: negativa ou positivamente. Como exemplo
da primeira inscrição, examinamos sobretudo onde se inicia o problema:
em Platão; para a segunda inscrição (a que valora positivamente o deslimite),
as principais referências foram Nietzsche, Espinosa, os Estoicos, Lucrécio,
Bergson, Simondon, Guattari e Deleuze, especialmente este último.
Importou-nos diferenciar uma experiência estética calcada na noção de
limite de uma experimentação estética que se abre ao deslimite. Como com15
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plemento a essa investigação, procuramos traçar as principais linhas de uma
Teoria da Expressão (nas artes e na filosofia) por oposição a uma Teoria da
Representação, o que nos levou a estabelecer um diálogo com algumas disciplinas que tratam desse tema (principalmente a Linguística e a Semiótica).
Apoiando-nos em Deleuze, efetivamos uma gênese do conceito de deslimite à luz da ideia de devir. Nesse caso, objetivamos mostrar como a ideia
de devir se apresenta, na obra de Manoel de Barros, como o elemento genético que confere à matéria de sua poesia um caráter de processo: processo de
perda dos limites do humano, processo de perda dos limites da linguagem
representativa, processo de perda dos limites utilitaristas que as ações interessadas sobre as coisas transformam em hábito.
É igualmente em Deleuze que encontramos esboçado um dos problemas que tencionamos desenvolver, pois nos parece que ele toca de perto
aquilo que em Manoel de Barros constitui a experiência do deslimite. Afirma
Deleuze que:
Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida.
A literatura está antes do lado do informe ou do inacabamento. (...) Escrever é um
caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer
matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.1
A Vida é renascer constantemente, a todo tempo e instante. Por conseguinte, a Vida é metamorfose, arte. A Vida nunca nasce, quem nasce são
os indivíduos. A Vida sempre renasce nos indivíduos que nascem. A Vida,
portanto, é puro renascer: por nunca nascer, a Vida também jamais morre
(quem morre são os indivíduos). A Vida não é uma, mas muitas: são todas
as que tivermos a potência de inventar e criar, conjugando nosso viver com
a Vida que em si mesma é criação, Arte.
A Vida é um processo que atravessa nosso vivido e rompe os limites utilitários deste; do mesmo modo que o Sentido, quando trabalhado pelo poeta,
emerge na linguagem extravasando as significações dominantes que prescrevem à palavra um limite. O deslimite é o processo que faz do inacabamento
o estado sempre renovado que não deixa com que as coisas acabem, sendo
então reinventadas pelo processo criativo – tanto na poesia como na vida.
Em uma primeira aproximação, o deslimite pode ser compreendido
como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e
Deleuze, Clínica e crítica. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 11.
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poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se
pode impor uma forma ou limite. Esta Vida somente se deixa apreender em
uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado,
mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo).
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário,
é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite, portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte (nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa
que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que,
rompendo seus limites, deixam ver a Vida.
Como orientação geral ao trabalho, empreendemos uma leitura da obra
de Manoel de Barros a partir de dois eixos temáticos:
1) A Poesia ou o Deslimite da Linguagem;
2) A Natureza ou o Deslimite do Mundo.
Tivemos como objetivo principal mostrar que cada um desses eixos elabora uma visão original acerca das relações entre:
a) a poesia, enquanto linguagem expressiva, e a linguagem como instrumento da representação;
b) o pensamento problematizador e os clichês do senso comum;
c) a natureza (compreendida enquanto processo criativo e vital) e o
mundo (entendido como o território dos objetos, valores e afazeres
que estão organizados em torno do conceito de utilidade).
Desdobramos ainda a nossa leitura da obra de Manoel de Barros em
torno dos seguintes núcleos temáticos:
– o ser da linguagem ou a matéria da poesia;
– a imagem do pensamento ou a impessoalidade do processo criativo;
– os devires do mundo ou a arte de ser com as coisas.
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II
Admite-se que a filosofia é uma atividade que se caracteriza fundamentalmente pela sua relação com os Conceitos. A esse respeito, afirmam Gilles
Deleuze e Félix Guattari, “a filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que
consiste em criar conceitos”.2 A filosofia é um exercício estritamente conceitual.
Mesmo que precária, mesmo que insuficiente, a definição da filosofia como atividade em estreita relação com os conceitos nos fornece, contudo, critérios
seguros para exatamente separá-la da não-filosofia. E mais: podemos também,
se quisermos, desenvolver as relações entre a filosofia e a não-filosofia, descobrindo entre ambas comunicações nem sempre explicitadas ou manifestas.
Podemos descobrir, dessa forma, que as relações entre a filosofia e a não-filosofia não são necessariamente de exclusão ou oposição. Ao contrário,
podemos até mesmo dizer, nas palavras de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
que “o não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria
filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual”.3
Assim, a principal tese que sustenta e justifica a nossa intenção de propor uma leitura filosófica da obra de Manoel de Barros apóia-se na ideia de
que pode existir um plano comum à filosofia e à não-filosofia, à filosofia e
à arte. Esse “plano” chama-se pensamento. Se a filosofia expressa esse plano
através dos conceitos, a arte, por sua vez, possui seus meios próprios para
expressá-lo – meios estes que variam de arte para arte.
A diferença entre conhecer e pensar é cara a Kant4 e representou a grande
contribuição do filósofo alemão às questões fundamentais com as quais a filosofia, desde então, não parou de se confrontar, cujos ecos ainda ressoam em filósofos contemporâneos que recolocam, de maneira renovada, a questão do pensamento (sobretudo Heidegger e Deleuze, embora de perspectivas distintas).
Com sua teoria das ideias estéticas, apresentada em sua Crítica da faculdade do juízo, Kant mostrou o quanto o pensamento também se expressa na
arte, conquanto as consequências que ele tira disso difiram muito da perspectiva que vamos adotar aqui, uma vez que Kant pensa a arte do ponto de
vista da Forma, do Limite (consoante será mostrado).
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992, p. 13.
2
Ibid., p. 57.
3
Cf. Kant, Crítica da razão pura, bxxvii, nota.
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Desse modo, não menos que na filosofia, o pensamento também pode
encontrar sua expressão na arte. Quando isso acontece, o pensamento faz
do corpo e da sensibilidade um instrumento privilegiado para o seu exercício diferencial e singular.
Certamente, filosofia e arte não expressam o pensamento com os mesmos meios. Porém, ambas podem participar de um mesmo plano de pensamento, expressando-o, cada uma, com os meios que lhes são próprios, imanentes. E é por esse motivo que um poema é capaz de nos fazer sentir, por
sensação, um conceito. E uma filosofia, por sua vez, pode nos fornecer o
conceito que uma construção poética quis nos fazer sentir.
Partimos da hipótese de que nem toda poesia se presta a que dela extraiamos um conceito filosófico, isso simplesmente porque nada pode haver nela
de filosófico. Ela não deixa de ser poesia por isso. Do mesmo modo, há conceitos filosóficos que parecem impossíveis de serem trazidos à sensação, isto
é, a esse lugar no qual, como diz Manoel de Barros, toda apreensão de sentido se faz por incorporação:
Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade
que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é
o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender, mas para
incorporar
Entender é parede; procure ser uma árvore.5
Para a poesia, não existe corpo vivo que não seja incorporação da Vida.
Esta somente pode ser apreendida enquanto incorporada em um corpo cujo
entendimento é a sensibilidade – sensibilidade à Vida. O conceito só incorpora quando se torna ele próprio sensível à Vida, ao passo que a inteligência
só entende o corpo como coisa limitada, como coisa morta, como “parede”,
enfim. Um conceito filosófico só incorpora quando se torna a expressão de
um pensamento que, em seu deslimite, une-o à poesia.
Todavia, queremos também deixar claro que não achamos apropriada a
expressão poesia-filosófica (ou então filosofia-poética) para definir essas ressonâncias entre a poesia de Manoel de Barros e a filosofia. Pois o que Manoel
de Barros faz é poesia, e não-filosofia (entendida esta última conforme a
definição que demos ao iniciar esse item). No entanto, enquanto poesia, a
Manoel de Barros, Gramática expositiva do chão (gec), p. 212.
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obra de Manoel de Barros expressa, e cria, verdadeiros conceitos filosóficos,
porém fora dos meios que são próprios à filosofia, isto é, a linguagem conceitual.
E raramente se pode encontrar, como em Manoel de Barros, uma relação
tão estreita, quase que indiscernível, entre a filosofia e a não-filosofia, entre
o conceito e a poesia, entre, enfim, o pensar e o sentir.
III
Gilles Deleuze criou uma expressão para nomear essas relações entre
a arte e a filosofia. Seu nome: Pop’ Filosofia. Trata-se de uma concepção da
filosofia pensada a partir de suas fronteiras com as artes, principalmente a
literatura e a poesia. Através de uma pop’filosofia, a filosofia encontra seu
deslimite e, ao afirmá-lo, devém também uma prática inventiva, problematizadora, questionante.
Uma pop’filosofia se constitui apoiada na seguinte ideia: a filosofia pode
ser compreendida de maneira não conceitual ou acadêmica, sem que isto
signifique um prejuízo à essência problematizadora do dizer filosófico.
A compreensão exclusiva através de conceitos é apenas uma das formas possíveis para se compreender a filosofia, mas não é a única – dado que a compreensão de qualquer coisa em geral, e da filosofia em particular, mobiliza camadas
de nosso pensamento e de nossa sensibilidade que igualmente são mobilizadas
quando ouvimos uma música, lemos uma poesia ou vemos um quadro.
E é nesse território, onde o Pensar e o Sentir embaralham suas fronteiras, perdem seus respectivos limites e fazem do inacabamento o processo
que os afirma, é nesse território que vemos surgir a possibilidade de construção, com Deleuze, de uma pop’filosofia.
A esse respeito, nosso trabalho foi duplo:
1) procuramos desenvolver as ressonâncias entre algumas ideias que
a poética de Manoel de Barros expressa (como diferença, repetição,
agramaticalidade, pré-coisas, corpo, vida, e outras) e conceitos que
pudemos encontrar em alguns filósofos;
2) analisamos, enfim, algumas ideias originais de Manoel de Barros
(tal como aquela que dá título ao estudo: o deslimite).
Devemos ainda assinalar, como ponto favorável ao nosso livro, o grande
interesse que existe hoje acerca da linguagem da ciência e das suas relações
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com imagens e figuras poéticas que lhe são incorporadas, cumprindo até
mesmo função gnosiológica considerável. A antiga oposição entre, de um
lado, as ciências duras e, de outro, as ciências humanas, cedeu espaço para
um diferente modo de conceber a ciência, no qual novas formas de expressão dão nascimento a maneiras originais de compreender o mundo. Por
exemplo, conceitos como o de “buraco negro”, “atrator estranho”, “precursor sombrio”, “espaço flou”, e outros (para ficarmos apenas com a Física
atual), parecem trazer a marca de uma linguagem eminentemente expressiva. Por outro lado, já não vivemos mais sob a norma, muitas vezes redutora, de um certo formalismo estrutural que, em nome de um rigor de análise, via como usurpação metafísica todo e qualquer esforço de ultrapassar os
limites da especificidade da letra (ou significante) do poema.
É preciso também salientar o pouco conhecimento que ainda se tem da
obra de Manoel de Barros, embora o panorama tenha mudado sensivelmente
nos últimos anos. Acrescente-se a isso o número quase inexpressivo (em quantidade, não em qualidade) dos estudos dedicados ao poeta (sendo que nenhum
desses estudos, até onde sei, foi realizado da perspectiva que desenvolvemos).
Acreditamos que isso se deve, em parte, ao caráter extremamente singular do
estilo de Manoel de Barros, fato este que sempre o deixou à margem de qualquer escola ou grupo; além disso, devem ser mencionadas as referências, nem
sempre explícitas, que o poeta faz a filósofos e correntes filosóficas – eventos
que, somados aos motivos supracitados, justificam, a nosso ver, a realização
desse estudo a partir de uma abordagem que tangencie a filosofia.
O livro está dividido em quatro partes. A primeira delas, intitulada A
Experiência Estética do Deslimite, fornece os principais balizamentos teóricos que orientaram a nossa leitura da obra de Manoel de Barros. Entre essas
referências, a presença frequente de Deleuze indica a perspectiva que orienta
boa parte de nossa leitura. E vale ressaltar que esta é, antes de tudo, uma pesquisa de filosofia.
A Segunda Parte tem como título Uma Didática da Invenção. Fizemos
aqui o que se poderia chamar de uma “Biografia Filosófico-Poética de
Manoel de Barros”. Em outras palavras, uma “Bio-phylo-poética”.
As duas partes restantes tratam dos dois principais eixos que priorizamos para empreender nossa leitura de Manoel de Barros: a Natureza e
a Palavra. Como elemento comum a ambas, o Pensamento atravessa cada
uma dessas partes como essência do que o poeta chama de Deslimite. Dessa
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maneira, O Deslimite da Natureza e O Deslimite da Palavra nomeiam, respectivamente, a terceira e a quarta e última parte do estudo.
Mais do que um poeta, Manoel de Barros é um pensador, um pensador
brasileiro. Certamente, um dos mais originais. Ele faz com as palavras o que
Glauber Rocha fizera com as imagens, pondo-as em “Transe”. O Transe é o
deslimite transposto ao mundo das imagens.
Empregamos aqui “brasileiro” no sentido mais genuíno e rico que esta
palavra pode ter, pois ser brasileiro é ser, em essência, “mestiço”. Não nos
referimos, claro, a uma mestiçagem baseada em cores de pele, mas na mistura singular de almas heterogêneas que fazem nascer em uma única alma a
capacidade de falar e sentir por muitas.6 Só a mestiçagem de almas pode dar
nascimento a um estilo ao mesmo tempo singular e plural, poético e filosófico, autóctone e estrangeiro.
Cf. Michel Serres, Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
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