ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM GEOGRAFIA NA UNIVERSIDADE

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ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM GEOGRAFIA NA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DA PARAÍBA: DINÂMICAS, COTIDIANOS E PERSPECTIVAS
Maria da Penha Caetano de Figueiredo Gill/Universidade Federal Fluminense
[email protected]
Luiz Arthur Pereira Saraiva/Universidade Estadual da Paraíba
[email protected]
INTRODUÇÃO
A educação de crianças, adolescentes, jovens e adultos, vem despertando o
interesse de muitos profissionais no âmbito da pedagogia, da sociologia, da filosofia e
de outras disciplinas que atuam na educação, incluindo a geografia escolar e
universitária. É proposto começarmos por algumas reflexões: qual o papel do professor
na vida e no cotidiano dos alunos? A escola está preparando cidadão críticos e
conscientes de seu papel na sociedade? Quais os desafios que enfrentamos hoje na
escola do século XXI?
Sabemos que apesar de seu atraso e deficiência o ensino de geografia está se
renovando, seja na interação de diferentes saberes, conhecimentos e abordagens
transdisciplinar, interdisciplinar e multidisciplinar, seja pela substituição do
reprodutivismo arbitrário, cego e acrítico frente a uma tendência mais humanista de
construção de conhecimentos, de correlação com o cotidiano do aluno visando uma
reflexão crítica de sua realidade.
O presente trabalho é um esforço de síntese e reflexão acerca do Estágio
Supervisionado, realizado durante o segundo semestre de 2008, na Universidade
Estadual da Paraíba. O estágio envolveu várias escolas estaduais de Campina Grande
conveniadas com a Universidade. Nesse trabalho trataremos apenas de uma experiência
vivenciada na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Dr. Hortêncio de Sousa
Ribeiro (PREMEN), situada no bairro do Catolé, Campina Grande/PB.
Essa discussão partiu de uma reflexão teórico-metodológica, iniciada durante as
aulas na universidade e na formulação de um projeto a ser desenvolvido durante a
realização do estágio. O projeto intitulado: “Por uma geografia do cotidiano discente”,
teve como objetivo utilizar músicas e cartas enquanto instrumentos metodológicos para
entender a história de vida dos alunos e provocar discussões acerca das questões
cotidianas vivenciadas por eles no âmbito da escola e da sociedade.
Este texto está organizado da seguinte forma: inicialmente apresentam-se
algumas considerações sobre as aulas na universidade e o estágio supervisionado,
seguido dos processos realizados durante o estágio, incluindo a caracterização da escola,
do corpo discente e do professor responsável pela turma na disciplina de geografia; em
seguida, posteriores análises do ensino geográfico numa perspectiva crítica-social
enfocando o cotidiano dos alunos e a importância de se estudar o lugar, não só como
categoria geográfica, mas como forma de apreender a realidade. Por fim, algumas
reflexões são colocadas com relação ao estágio supervisionado, mediante a experiência
vivenciada e as questões sempre levantadas a respeito do ensino e de sua importância.
1 AS AULAS NA UNIVERSIDADE E O ESTÁGIO SUPERVISIONADO
O compromisso com o ensino de Geografia na Universidade nos coloca diante
de vários desafios. A responsabilidade aumenta porque estamos preparando
profissionais, educadores e professores para atuarem na sociedade, sobretudo, nas
escolas de ensino fundamental e médio. Podemos observar que muitos estagiários ao
irem para as escolas criam muitas expectativas com relação ao próprio estágio.
A própria concepção de estágio vem mudando na Universidade Estadual de
Campina Grande/PB, não somente pelo aumento da carga horária, mas, principalmente,
na discussão teoria-prática que tenta romper com um modelo de estágio tradicional.
Concordamos com Oliveira e Pontuschka (2007, p. 119), quando dizem: “Que
aprendizagem prática tem um estagiário tradicional, além da confirmação do mito da
desnecessidade do estágio?”
O que temos visto, em termos de estágio nas escolas é algo rotineiro, com pouca
inovação. Nesse sentido, a nossa preocupação era que nosso aluno não chegasse no
estágio já envelhecido como é a realidade de muitos professores.
Ao longo das aulas na Universidade, observamos que alguns estudantes de
Geografia apresentavam pouca ou nenhuma experiência de prática de ensino e tinham
dificuldades na transposição didática dos
conhecimentos
científicos quando
apresentavam seminários. Portanto, durante o primeiro semestre, as aulas transcorreram
aliadas a uma discussão teórico-metodológica, visando a preparação do estágio nas
escolas e, paralelamente, foram realizados atividades práticas que envolviam o
planejamento e a execução de micro-aulas e a formulação de projetos didáticos.
Mesmo assim, apesar da preparação prévia dos alunos na universidade, os
estagiários enfrentaram alguns problemas tais como: o tempo para planejamento,
pesquisa e discussão foi insuficiente, além disso, alguns estagiários, na maioria das
vezes, acabaram reproduzindo no estágio o modelo de aula expositiva, com a utilização
do livro didático e a exigência da disciplina rigorosa utilizada no método tradicional.
Com exceção de alguns estagiários que fizeram a diferença, ou seja, apresentaram aulas
dinâmicas e projetos interessantes durante a realização do estágio.
Saiki & Godoi (2007, p. 26-27) a importância correlacionada entre prática de
ensino e estágio supervisionado. Segundo os autores
A Prática de Ensino e o Estágio Supervisionado são significativos nos cursos
de licenciatura, e não deveriam ser realizados apenas como um cumprimento
da grade curricular, mas sim contextualizados e comprometidos coma
transformação social, unindo formação profissional e pessoal,
responsabilidade individual e social. [...] são segmentos importantes na
relação entre trabalho acadêmico e a aplicação de teorias, representando a
articulação dos futuros professores com o espaço de trabalho, a escola, a sala
de aula e as relações a serem construídas.
Para Pontuschka (1991), alguns licenciandos têm dificuldades em analisar o
espaço de sala de aula e da escola e olham apenas os defeitos, pouco contribuindo com
o professor da classe na compreensão do ensino da disciplina. Isso constitui um
problema sobretudo para aqueles professores que já vem desanimado pelo descaso com
que a escola pública. Para contribuir com a realidade escolar desses professores temos
que propor projetos de formação continuada como contrapartida da Universidade.
2 O ESTÁGIO NA REALIDADE ESCOLAR
No segundo semestre, iniciou-se as atividades do estágio supervisionado. O
primeiro passo foi fazer contato com os gestores escolares para que os/as estagiários/as
visitassem as escolas e decidissem onde iriam estagiar. O segundo passo foi à formação
de duplas para estagiar nas escolas, em seguida deu-se início as observações que durou
basicamente dois meses, após esse período, os/as estagiários/as começaram a dar aulas e
a executarem os projetos propostos. Paralelamente ao estágio, tínhamos encontros
semanais
na
Universidade,
para
socializar
as
experiências
e
discutir
metodologias/alternativas à prática docente.
Dentre as escolas visitadas, estivemos na Escola de Aplicação, no Colégio
Polivalente e na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Dr. Hortêncio de
Sousa Ribeiro (PREMEN), sendo esta última escolhida para a análise a seguir. Salientase que, apesar da boa receptividade em todas as visitas, os cotidianos de cada contexto
apresentavam diferenças e semelhanças em vários aspectos (infra-estrutura, tamanho da
escola, quantidade de docentes, turnos e aulas de geografia, por exemplo).
2.1 Caracterização da escola e dinâmica das turmas
A Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Dr. Hortêncio de Sousa
Ribeiro (PREMEN), dispõe de uma estrutura considerável. O colégio foi alvo recente de
reformas realizadas pelo governo estadual. O espaço das salas de aula é fisicamente bem
estruturado, amplo, ventilado, contrastando com a manutenção de quadro-negro e giz.
Além disso, a escola dispõe de sala de informática (com uma sala climatizada, bem
estruturada com móveis resistentes, cadeiras confortáveis e computadores de última
geração), laboratório de ciência (contando com uma sala projetada e dispondo de fetos
humanos, retroprojetores, animais captados e vários outros equipamentos que auxiliam
o trabalho dos professores e dos alunos), ginásio (recentemente construído), sala de
vídeo (cadeiras e equipamentos recentes, mas pouco utilizados pelos docentes), sala de
dança e auditório. No entanto, a questão da acessibilidade foi negligenciada, a exemplo
da ausência de rampas e estrutura de apoio aos portadores de necessidades especiais.
Para o presente estudo, a turma observada e trabalhada durante o estágio foi o 9º
ano, turma A (antiga 8ªA do ensino fundamental II). O docente responsável pela turma
foi Evaldo Minervano de Moura1. Formado em Serviço Social e Sociologia (Ciências
Sociais), é um professor em contrato temporário com o Estado. Em sua formação,
possui uma especialização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) e pretende seguir no
magistério realizando posteriores mestrado e doutorado. Em seu perfil didático
pedagógico, se utiliza de métodos classificados como “tradicionais”: chamada dos
alunos, exercícios de fixação e indagações “que ele mesmo responde”. Além de
demonstrar cansaço psicológico visível, o docente realiza leituras do livro didático (sem
1
Nome fictício dado ao professor observado.
o uso de nenhum outro recurso didático além do livro e do quadro com giz) e expulsa
alunos da sala de aulas por variados motivos.
Numa caracterização do processo pedagógico, os objetivos de aula não são
propostos aos alunos pelo professor, bem como a ausência de conceitos (a exemplo de
espaço, território, paisagem, região e lugar) e vocabulário próprio de cada conteúdo são
traços observados durante as aulas. A forma de tentar relacionar os conteúdos iniciais
com a demonstração de imagens se torna ineficaz, na medida em que os alunos não
associam
tais
recursos
a
um
conhecimento
prévio
e
suas
conseguintes
sistematizações/construção de modelos. Também não se realiza qualquer modificação
na estrutura de distribuição dos alunos nas suas salas influenciando no rendimento ou
aproveitamento dos mesmos durante as atividades (ver figura a seguir).
Quanto à turma, havia uma tendência à formação de grupos em sala de aula que
se identificam por comportamentos similares, acarretando em dificuldades no ensino e
no aprendizado em relação ao conteúdo exposto.
Figura 01: Organização do nono ano segundo grupos de dispersão e/ou identidade.
O comportamento dos alunos do nono ano apresentava-se um pouco irregular.
Segundo
relato
de
alguns
discentes,
o
comportamento
da
turma
muda
consideravelmente para melhor quando a aula é de outra disciplina, a exemplo de
matemática e/ou português.
Em relação à disciplina Geografia, é notável um interesse relativo por parte dos
alunos. Mas é necessário versar que este interesse fica retido a informações soltas,
pouco relacionadas com o cotidiano de cada individuo. É visível que nos alunos a
capacidade de abstração com relação a certas idéias e contextos ainda não foi bem
trabalhada, exigindo um esforço hercúleo em questões simples, a exemplo de
correlacionar mapas e texto.
Durante as observações na turma do 9º A, alguns pontos já foram retomados no
relatório preliminar entregue a quase um mês: a disposição das carteiras, favorecendo a
formação de grupos de dispersão; a falta de interesse pelo assunto do livro didático
(além da falta de acesso ao mesmo por alguns alunos); a conversa e as brincadeiras em
sala de aula. Todas essas questões foram obtidas durante a fase de observação das aulas.
Dentro desse aspecto tem-se que os livros didáticos (mesmo levando em
consideração que são pouco distribuídos) desta série não contemplam os interesses nem
a motivação por parte dos alunos. Sabendo desta condição foram elaborados resumos e
esquemas no sentido de aumentar a participação assim como o entendimento coletivo
dos conteúdos.
Uma salutar questão se colocava diante da atividade do estagiário: além de ter
domínio das turmas, como implantar um projeto que demonstrasse uma geografia do
cotidiano discente e obter não só interesse, mas atenção e participação dos alunos da
turma?
2.2 Perspectivas e categorias conceituais: a importância do cotidiano e do lugar na
apreensão da realidade escolar a partir do estágio
A Geografia há muito deixou de ser aquela disciplina “chata” e “enfadonha” em
que não se precisava pensar muito, em que “era preciso ter memória”. Durante muito
tempo as únicas realidades existentes no cotidiano do aluno de Geografia eram as do
livro didático, abordando muitas vezes aspectos alheios ao seu cotidiano e ao seu
pensamento; e algumas poucas colocações de problemas atuais que “podem cair em
determinada prova” ou, o que se convencionou chamar de atualidades.
Muitas linhas já foram escritas visando uma geografia voltada à realidade de
seus estudantes, desde o seu contexto enquanto pessoa inserida na sociedade capitalista
até as múltiplas percepções e construções mentais acerca do espaço, do lugar e da
paisagem ao seu redor. A Geografia não vem a ser “um conjunto de várias ciências
numa só”, mas sim uma ciência de múltiplas dimensões, faces e enfoques. A Geografia
está presente em tudo, desde os conflitos e desigualdades sociais enfrentadas no dia-adia de um país subdesenvolvido como o brasileiro até composição de espaços urbanos e
paisagens presentes e vivenciadas pela sociedade (ou mesmo a negação dessa vivência)
A idéia de se trabalhar o cotidiano discente nasceu de leituras pretéritas sobre a
questão do ensino (geral e geográfico), além de temáticas como didática, psicologia do
processo de aprendizagem, sociologia e filosofia educacionais. Nesse par dialético entre
a teoria e a prática, as sugestões, observações e discussões ocorridas na academia
também contribuíram substancialmente para a proposta adotada no projeto dos
estagiários, que pretendia estudar o cotidiano discente como forma dos mesmos
repensarem suas espacialidades.
O passo seguinte foi procurar enunciar uma noção do papel da escola. Daí se tem
a contribuição de Cavalcanti (2007, p. 124) ao abordar a escola
Como realidade dialética, a escola tem a possibilidade de contribuir para
emancipar o homem, torná-lo cidadão autônomo, consciente, participativo,
capaz de conduzir sua própria vida no cotidiano. A escola não é agência
homogênea, ao contrário, nela convivem valores, conhecimentos, modos de
pensar, linguagem, que trazem a marca da diversidade social. É nessa
mesclagem que está a possibilidade de confronto, da transformação, da
reação.
Nessa perspectiva, imagina-se não só uma escola mais humana e “preparadora
para a vida”, mas também um aluno cidadão em sua plenitude e sentido holístico. A
dialética se faz presente na confrontação de idéias, linguagens e realidades, na
construção uma forma de se apreender o mundo. Dessa apreensão do mundo, surgiu a
idéia de se trabalhar cartas escritas pelos alunos. Essas cartas deveriam abordar aspectos
que os alunos julgassem importantes a respeito de seu cotidiano e de si mesmos,
visando entender a realidade do aluno, como ele se vê e vê o mundo a partir de seus
traços cotidianos e socioespacial
considerando-se a apreensão da realidade, do
bairro/rua onde vive, de problemas sociais rotineiros.
Se por um lado a Geografia nessa proposta valoriza e incentiva a participação do
aluno, do outro lado o professor não perde seu papel ou importância2. Ao contrário, o
professor tem papel de desenvolver habilidades e procurar novas formas de trabalhar o
conhecimento na ocorrência de algum problema ou déficit de aprendizagem. O
professor apresenta-se como agente interventor do processo de conhecimento do aluno,
correlacionado os conhecimentos prévios e novos sobre dada temática.
As representações sociais variam de pessoa para pessoa, de alunos para
professores. Segundo Cavalcanti (2002, p. 19),
Um dos modos de captar a geografia do cotidiano pode ser o trabalho com as
representações sociais dos alunos, e buscar essas representações tem se
revelado um caminho com bons resultados para permitir o diálogo entre o
2
A não ser que o mesmo se apresente como “senhor supremo e inquestionável do saber do livro didático”.
racional e o emocional, o verbalizado e o não-verbalizado, entre a ciência e o
senso comum, entre o concebido e o vivido.
Destacando o lugar como espaço de vivência e seu papel no processo de
construção de conhecimentos geográficos, Callai (2006, p. 104) argumenta que
No processo de construção do conhecimento, o aluno, ao formular seus
conceitos, vai fazê-lo operando com os conceitos do cotidiano e os conceitos
científicos. Em geral, todos temos conceitos formulados a respeito das coisas,
e a tarefa da escola é favorecer a reformulação dos conceitos originários do
senso comum em conceitos científicos. [...] O processo de construção do
conhecimento que acontece na interação dos sujeitos com o meio social,
mediado pelos conceitos (sistema simbólico), é um processo de mudança de
qualidade na compreensão das coisas, do mundo. Não é um processo linear,
nem de treinos, mas de construção pelos alunos de conhecimentos novos, na
busca do entendimento das suas próprias vivências, considerando os saberes
que trazem consigo e desvendando as explicações sobre o lugar.
Além da importância de se conhecer o cotidiano do aluno “escolar”, é
importante lembrar de que o aluno “acadêmico” sempre necessitará de um contato com
sua área de atuação, afinal os anos de academia “passam logo” e um futuro profissional
sem vínculo ou conhecimento de seu espaço de trabalho (no caso, a escola) pode levar a
toda uma série de problemas causados por um despreparo que poderia ser evitado
preteritamente. Levando a questão para as licenciaturas e, sobretudo, aos cursos de
geografia, tal importância se manifesta exatamente no estágio.
3 POR UMA GEOGRAFIA DO COTIDIANO DISCENTE
Uma aula é sempre um conjunto de questões, e não propriamente de
respostas. A aula que quer ser uma resposta é algo quase desnecessário. A
aula tem que ser um conjunto de perguntas as quais incompletamente o
professor formula, e as quais os ouvintes tomam como um guia tanto para
aceitar, como para, depois de aceitar, discutir e, mesmo, recusar.
Milton Santos
Na aula inicial do estágio, o estagiário utilizou-se de algumas estratégias
didáticas. Num primeiro momento, se apresentou à turma e questionou à mesma sobre a
portabilidade do livro didático3. Na medida em que nem todos dispunham do livro (e a
sua presença nessa e nas outras aulas não seria tão necessária) a primeira atividade teve
início. Os alunos desenvolveram cartas sobre si mesmos. A pergunta base era “QUEM
3
O livro utilizado no 9º A era do Projeto Araribá, da Editora Moderna, referente à 8ª séries do ensino
fundamental.
SOU EU?” e a partir dela, os alunos deveriam relatar sobre seu cotidiano, problemas
que enfrentavam, com quem moravam, o que faziam, gostos e preferências, a rua e o
espaço em que moravam. Como resultados, as cartas apresentavam pontos em comum:
cotidiano4, família, trabalhos, amigos, namoros, práticas esportivas, caracterização do
bairro enquanto lugar e conjunto de paisagens e perspectivas quanto ao futuro.
Num primeiro momento, alguns alunos encararam com certa resistência a
atividade visto que nem todos se sentiram a vontade ou mesmo entenderam o propósito
da atividade. As explicações e o esclarecimento de dúvidas foram realizados
individualmente, carteira por carteira, caso por caso. É notório observar que todos os
alunos presentes participaram da atividade, contando inclusive com aqueles que
apresentaram inicial resistência. As cartas seriam posteriormente colocadas como as
questões norteadoras do projeto dos estagiários, deveriam ter a escrita mínima de uma
lauda e contar com o anonimato, de forma a facilitar a escrita de relatos e
acontecimentos pessoais do cotidiano. O principal objetivo dessas cartas seria perceber
as espacialidades cotidianas de cada aluno no seu dia-a-dia. Nas palavras de Cavalcanti
(2002, p. 33)
Em suas atividades diárias, alunos e professores constroem geografia, pois,
ao circularem, brincarem, trabalharem pela cidade, pelos bairros, constroem
lugares, produzem espaço, delimitam seus territórios; vão formando, assim,
espacialidades cotidianas em seu mundo vivido e vão contribuindo para a
produção de espaços geográficos mais amplos. Ao construírem geografia,
eles também constroem conhecimentos sobre o que produzem, que são
conhecimentos geográficos. Então, ao lidar com as coisas, fatos, processos,
na prática social cotidiana, os indivíduos vão construindo e reconstruindo
uma geografia e um conhecimento dessa geografia.
Num segundo momento, a estratégia metodológica utilizada pelo estagiário
relacionava recursos musicais e os conhecidos contrastes do continente africano.
Destacou-se na atividade a forma como determinadas temáticas (miséria, fome,
exclusão e questões sociais) não são únicas do “outro lado do oceano”. No segundo
encontro, a aula ministrada visava as desigualdades e problemas presentes (mas não
exclusivos, vale salientar) do continente africano. Para trabalhar a temática, foram
utilizadas quatro músicas: Miséria S.A., do grupo O Rappa; Comida, do grupo Titãs;
Abandonados pelo sistema (Babylon System), do grupo Tribo de Jah; e O pulso;
também do grupo Titãs.
4
Como traço marcante do cotidiano de quase todos os alunos, o tempo destinado à lan houses e vidas
virtuais (bate-papos e redes de relacionamentos). Melo (2007) faz uma abordagem sobre a contraposição
entre os tempos e espaços da escola “tradicional” e o tempo rápido das lan houses e redes virtuais.
Sobre o uso de recursos didático-metodológicos na sala de aula, Callai (2006, p.
88) destaca que “filmes, vídeos, clips musicais, músicas, artigos de revistas, jornais,
podem nos levar aos conteúdos da disciplina, exigindo-se do professor apenas que tenha
os referenciais teóricos e metodológicos da sua ciência”. A opção pela música consistiu
numa forma de praticidade, mediante o uso do aparelho de som eficientemente e como
forma de se testar a nova formação da sala, dispondo as carteiras em círculo, na
atividade geográfica/musical. Castner apud Vieira & Sá (2007, p. 107) aponta que “o
espaço musical precisa ser explorado de forma que os sentidos da audição, da visão e do
corpo sejam integrados para ver e sentir o espaço”.
Durante a atividade, os alunos deveriam responder questões referentes à
temáticas das músicas envolvendo temáticas sociais e problemas do cotidiano presentes
nas cartas anteriormente recebidas. Essas questões eram elaboradas após a execução de
cada música, contando com um tempo de resposta variante entre 3 e 7 minutos. Fica
registrada a completa ordem, participação e entrosamento da turma com os
procedimentos metodológicos adotados, contrastando com as observações obtidas pelos
estagiários durante a fase de observação do estágio. Como havia menos alunos se
comparado ao primeiro encontro, a quantidade de letras e respostas recebidas foi um
pouco menor. A primeira experiência com o recurso didático da música forneceu bons
questionamentos, compreensões e participação dos alunos, comprovados pelas respostas
colocadas.
No terceiro encontro, as músicas eram mais centradas nos relatos das cartas,
enfatizando os gostos musicais com uma tendência que variava do ecletismo ao rap e à
música gospel, o trabalho dos pais e num geral a exploração do homem pelo homem, o
consumismo (no cotidiano e nos meios virtuais, vista a visita cotidiana à lan houses
relatadas nas cartas e as saídas) e a violência urbana apontada por alguns como o
principal problema do bairro / rua / lugar onde moram.
As músicas escolhidas foram Homem na estrada, dos Racionais Mc’s; Fábrica,
do grupo Legião Urbana; Admirável chip novo, da cantora Pitty; e Muros e grades; da
banda Engenheiros do Hawaii.
Diferentemente do primeiro encontro musical, as perguntas referentes às letras
estavam já impressas e formuladas nas letras entregadas aos alunos. A participação, o
entrosamento e a tranqüilidade da aula também foram excelentes, garantindo um clima
de descontração que em nenhum momento representou uma “desordem” ou um
problema de indisciplina. Durante as letras, questões e reflexões eram colocadas aos
alunos de forma a trabalharem não só as letras, mas as mensagens implícitas e presentes
no seu dia-a-dia. A aceitação das atividades foi garantida pelas palavras do professor e
pela participação dos alunos, que inclusive sugeriram artistas para a aula seguinte.
Fica registrada em todos os encontros a formação de uma consciência espacial
mediante o aprender a pensar. Nas palavras de Callai (op. cit, p. 93)
Aprender a pensar significa elaborar, a partir do senso comum, do
conhecimento produzido pela humanidade e do confronto com os outros
saberes (do professor, de outros interlocutores), o seu conhecimento. Este
conhecimento, partindo dos conteúdos da Geografia, significa “uma
consciência espacial” das coisas, dos fenômenos, das relações sociais que se
travam no mundo.
No último encontro do estágio, a aula se deu em dois momentos. Num primeiro,
foi trabalhado o assunto do livro referente à Oceania. Utilizou-se uma metodologia que
dividia a Turma em grupos e a cada grupo foi entregue um Atlas Geográfico do IBGE,
visando uma interação entre o assunto e sua representação espacial em escala global.
Num segundo momento, os recursos musicais retomaram a dinâmica anteriormente
trabalhada e bem-sucedida. As músicas escolhidas abordavam a censura e a liberdade de
expressão, os vícios e problemas cotidianos, a violência policial e o setor informal da
economia, além de uma mensagem filosófica sobre o mundo contemporâneo. As letras
escolhidas foram Cálice, nas vozes de Chico Buarque e Milton Nascimento; Muita
Treta, cantada por Apocalipse 16 e MV Bill; Camelô, do cantor Edson Gomes; e
Astronauta, composta por Gabriel o Pensador e Lulu Santos.
Registrou-se na aula alguns questionamentos referentes a temática das letras. A
aceitação das mesmas e temáticas também foi positiva e, de uma forma crítica, incitou a
reflexão e a compreensão de várias realidades e questões geográficas sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA NOVA VISÃO DE ESTÁGIO
Ao término desse trabalho, algumas questões podem ser colocadas não como
respostas, mas como indagações, provocações ou reflexões sobre o ensino de geografia.
A Geografia é tão multifacetada ou multidimensional, quanto seu objeto de estudo o
espaço. A formação de profissionais para trabalharem tal dinâmica e temática na sala de
aula necessita muitas vezes de uma formação complementar trazida pelo mundo da
prática e nisso o estágio cumpre o seu papel.
A academia apresenta-se ao mundo como centro produtor de conhecimento e
saber, mas o que muitos não querem enxergar é que tal produção deve acontecer ainda
na formação básica do indivíduo, tomando o devido cuidado de não cair num
pragmatismo produtor que não respeite opiniões e percepções dos alunos ou dos
professores, afinal, assim como teoria e prática, aluno e professor também se constituem
enquanto par dialético frente ao novo, ao mutável.
A geografia se apresenta como uma visão de mundo ou seria várias visões,
mediante o enfoque, a metodologia, a categoria escolhida? e como tal, tem uma
atribuição por excelência a ser cumprida na formação de cidadãos reflexivos e críticos
de seu contexto socioespacial: desenvolver os horizontes e olhares geográficos, na
medida em que é percebido todo um conjunto de mudanças e transformações nas
relações entre o indivíduo, a sociedade, o espaço e a natureza.
Um dos papéis do geógrafo, seja em que contexto for, deve visar uma reflexão
constante sobre tudo ao nosso redor. O olhar do geógrafo é ilimitado e é essa atenção,
essa percepção que deve se perpetuar pelos alunos, para que os mesmos também
enfrentem aquilo que está posto aos seus olhares e busquem uma verdade mais
profunda, mais crítica e mais humana sobre o que acontece com o mundo e o universo.
Afinal, o homem progride mais e mais em conhecer as fronteiras do conhecimento.
Felizmente, essas fronteiras ainda são desconhecidas.
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