BIOLOGIA E CULTURA: SIGNIFICAÇÕES PARTILHADAS NA LITERATURA DE MONTEIRO LOBATO1 BIOLOGY AND CULTURE: MEANINGS SHAREDS IN MONTEIRO LOBATO'S LITERATURE Profª. Ms. Fabiana Aparecida de Carvalho2 Resumo A tessitura deste trabalho abarca a biologia como produção cultural e discute seus significados em passagens pela literatura de Monteiro Lobato, particularmente na obra “A Chave do Tamanho”. Traços biológicos (situados segundo Derrida) como tamanho, evolução, mundo biológico se hidridizam e se mesclam a outros significados e apontam relações e significações que se dão entre espaços – diferenças – dos múltiplos conhecimentos. Discutem-se as relações de diferenças que se estabelecem entre a Literatura e Biologia - hibridizando-as - e a intensidade de narrativas que trazem traços de crenças, valores, interesses políticos no discurso científico e que são arrastados para a Literatura. Palavras-chave: Biologia, Produção Cultural, Literatura e Monteiro Lobato Abstract The texture of this work accumulates of stocks biology as cultural production and argues its in tickets for the Lobato’s literature, particularly in the work “The key of size”. Biological traces (situated according Derrida) as size, evolution, and biological world flow and mix with other meanings and relationships and senses that occur among spaces - differences - of the multiple knowledge. One argues the relations of the differentiations that are established between Literature and Biology and the intensity of the narratives that bring traces of beliefs, values and political interests in the scientific speech and that are brought into the literature in hybrid direction. Key-words: Biology, Cultural Production, Monteiro Lobato’s Literature and Literature. 1 Trabalho apresentado na forma de comunicação oral no V Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, realizado no período de 28/11/05 a 03/12/05, Bauru/SP. 2 Doutoranda da UNESP(SP) Programa de Pós-Graduação para a Ciência / Faculdade de Ciências – Campus Bauru (SP). E-mail: [email protected] BIOLOGIA E CULTURA... BIOLOGIA E CULTURA: SIGNIFICAÇÕES PARTILHADAS EM MONTEIRO LOBATO As falas apresentadas neste artigo são fragmentações da pesquisa - que culminou em Dissertação de Mestrado - "Outros... Com textos e Passagens - Traços Biológicos em obras de Monteiro Lobato"3, intencionam discutir Biologia e Literatura como espaços fronteiriços: lugares de formação e passagens em que se diferenciam representações, saberes e poderes, verdade e ficção que as marcam, não como conhecimento essencial, exclusivo a cada um dos campos do conhecimento aos quais pertencem, mas como produções culturais imersas em significados e valores. A análise de um texto literário é apresentada, aqui, como perspectiva de discutir a circulação do conhecimento científico, trazendo-nos, embora não diretamente por uma via escolar, um alerta para as instâncias culturais responsáveis pela socialização do conhecimento, e que essas podem, ao mesmo tempo, não somente reproduzi-lo, mas reconstruí-lo e (re) significá-lo. Primeiramente, inspirada por autores e escritos pós-modernos e pósestruturalistas, a discussão pretende desterritorializar a Biologia institucionalizada, marcando-a como artefato discursivo que ganha e traz diversos significados sociais e culturais nas instâncias que a veiculam. A Biologia é uma produção cultural4! Em continuidade, apresento uma apropriação da Literatura para dialogar com sua narrativa: subjetividade, criatividade, filosofia, ciência, significados culturais, outras aberturas possíveis, pressupondo-a como lugar de formação, um outro modo para compreender traços e marcas de crenças, valores, interesses políticos do discurso científico, como também diferentes significações de categorias que migram do campo biológico e ganham novas significações na produção literária. 3 Dissertação produzida na Faculdade de Educação (FE) - UNICAMP / Programa de Pós-Graduação em Educação, sob orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos R. de Amorim. 4 O termo Produção Cultural, emprestado do campo dos Estudos Culturais, designa qualquer instituição / produto onde se construa e se divulgue, através de mecanismos de relações de poder, verdades e representações culturais que nos trasmitem atitudes, valores, crenças e significados, ou seja, diz-nos uma forma particular de entender e representar o mundo. 1 BIOLOGIA E CULTURA... BIOLOGIA E CULTURA O conhecimento biológico circula em espaços de tensões e resistências cotidianas, menos por imitação, mas por constantes disputas e diálogos que acrescentam ao seu discurso valores e comentários implícitos, segmentos, estratificações, ramificações; linhas que engendram conexões e representações múltiplas. O conhecimento biológico movimenta-se por deslocamentos que projetam (re)contextualizações, criações e “(...) transformações em várias instâncias culturais produtoras de conhecimentos, tais como a imprensa escrita, o mass media, a televisão, as editoras de livros, o campo artístico, as indústrias e outros campos de produção econômica, as propostas curriculares, as salas de aula etc.” (AMORIM, 2000, p. 71). Nas instâncias culturais, a biologia muda seu desenho num movimento de desterritorialização/territorialização, se renomeia e se espacializa: o que é classificado como biológico e o que é classificado como cultural não são fronteiras tão rígidas, demarcáveis e intangíveis quanto imaginamos. Considerando que a Biologia não está isolada na produção social do mundo, mas que seus discursos são fios que fornecem indícios para compor outros discursos que incorporam, reforçam e/ou negam e recriam seus elementos, podemos dizer que as categorias tidas como biológicas, como classificação e sistemática, evolução dos seres vivos, sexualidade - gênero - corpo, conhecimento anatômico e fisiológico se entrelaçam naquilo que chamamos e vivemos como cultura. Na criação de enunciados e discursos biológicos há passagens de política, de interesses sociais, de crenças e valores; como há passagens da Biologia em outros discursos, falas e práticas presentes nas sociedades humanas. Tal pressuposto nos remete a um conhecimento biológico que passa ser hidridizado, como aponta Bruno Latour (1994), não para ser a obliteração do velho pelo novo, mas para criação de algumas alternativas que sintetizam os elementos de ambas, mas não são redutíveis a nenhuma delas. A Biologia vem arrastando – ao longo de sua constituição como ciência e produção humana – traços de diferentes linguagens, múltiplas representações, porque é ela e ao mesmo tempo várias, mistura-se a múltiplas tramas sem que por vezes nos demos conta, e neste modo de se hibridizar com outros elementos e significações presentes nas instâncias culturais remarca – pela diferença – seus significados. 2 BIOLOGIA E CULTURA... Algumas premissas desconstrucionistas, principalmente aquelas que questionam as construções sócio-culturais, os processos de naturalização e universalização do conhecimento, as análises textuais que desmantelam oposições binárias, enunciam que essa diferença só vai se constituir na relação com outras diferenças, antecipando os sentidos sempre em relação ao sentido subseqüente. Bennington & Derrida (1996) chamam a diferença de traço. Todo traço supõe uma remarcação na qual todo significante remete para outros significantes; nenhum significado remete apenas para si mesmo, ou ainda, um significado não é mais que um significante posto numa certa posição por outros significantes, que gera não sentidos, mas efeitos, que, segundo os autores, expandem-se em diferenças e diferenciações. A característica marcante do traço é, portanto, sua alteridade, nomear a inscrição do outro nele mesmo e gerar efeitos; gerar um jogo lingüístico que pode amalgamar outros discursos e enunciações. Essas análises nos apontam para os efeitos que o conhecimento biológico ao migrar de um campo a outro - pode gerar; diferenças baseadas nas passagens de significantes que se relacionam com diversos significantes e significados (conceitos, palavras, explicações, analogias, etc.), permitindo que traços dos mais diferentes campos do conhecimento sejam capturados e significados novamente dentro de um contexto, como exemplo, nas obras literárias. TRAÇOS DA BIOLOGIA EM OBRAS LITERÁRIAS - MUNDO BIOLÓGICO, TAMANHO, EVOLUÇÃO Que traços biológicos são arrastados de seu campo de produção e expandidos na literatura? Aqui são apresentadas hibridizações e considerações entre Biologia e Literatura, apontando fragmentações da obra infanto-juvenil “A Chave do Tamanho” (LOBATO, 1964) e falas de outros campos culturais, como exemplo, mídia, divulgação científica, filosofia e a própria literatura. Em “A Chave do Tamanho”, a aventura da personagem Emília pelo chamado “mundo biológico” inicia-se com os desdobramentos do traço tamanho, traço que se expande por sua relatividade: aumento – diminuição, como também espacializa razões e significados da nomeação, do centramento e da norma dentro da sociedade e da cultura, relações de saber e poder. A personagem põe em xeque a lógica de dominação ao contestar os sistemas reinantes e articular suas aventuras. 3 BIOLOGIA E CULTURA... “- Se todas as criaturas ficaram pequeninas como eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com cabeças tão transtornadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros"... (LOBATO, 1964, pp. 12-13) Esse movimento instaura a nova ordem que foge da totalidade da guerra, antigos entendimentos e soluções para o mundo passam a ser idéias inúteis e perigosas. As novas experiências, que surgem com a diferença do tamanho, vão puxando traços como a relação “ataque/defesa” para compor diferentes significados de perigo e sobrevivência e gerar atitudes ilustradas pelos desdobramentos do raciocínio e informações: “Ora, a mudança do tamanho da humanidade vinha tornar as idéias tão inúteis como um tostão furado... A "idéia-de-leão” era dum terrível perigosíssimo animal, comedor de gente; e a “idéia-de-pinto” era a dum bichinho inofensivo. Agora é o contrário. O perigoso é o pinto” (LOBATO, 1964, p.14). Dobras que fogem de uma observação simplista baseada na apresentação de leis e fenômenos naturais expandem a aventura, criam possibilidade para a dúvida e a perplexidade da personagem, dobram-se ou desdobram-se em discursos inicialmente fundamentados pelo traço da Biologia “seleção natural” que empurra o “aperfeiçoamento do sistema” – garantia de sobrevivência no mundo biológico regido pela “lei do quem pode mais”: -“Que mundo este, santo Deus! – murmurou, muito atenta a tudo quanto se passava ao redor. É o tal ‘mundo biológico’ de quem tanto o Visconde falava, bem diferente do ‘mundo humano’. Diz ele que aqui quem governa não é de nenhum governo como soldados, juízes e cadeias. Quem governa é uma invisível Lei Natural. E que lei natural é essa? Simplesmente a Lei do Quem Pode Mais. Ninguém neste mundinho procura saber se o outro tem ou não razão. Não existe a palavra justiça. A natureza só quer saber de uma coisa: quem pode mais. O que pode mais tem o que quer, até o momento em que apareça outro que possa ainda mais e lhe come tudo. E por que essa maldade? O Visconde diz que é por causa duma tal Seleção Natural, a coisa mais sem coração do mundo mas que sempre acerta, pois obriga todas as criaturas a irem se aperfeiçoando. ‘Ah, você está parado, não se aperfeiçoa, não é?’ Diz a Seleção para um bichinho bobo. ‘Pois então leve a breca’. E para não levar a breca, o bichinho trata de inventar toda sorte de defesas e astúcias” (LOBATO, 1964, pp. 28-29). 4 BIOLOGIA E CULTURA... Parece-me importante atentar para a forte questão discursiva do traço “Lei do quem pode mais – Seleção Natural”. O mundo biológico não é institucionalizado, no entanto, leis naturais, como a seleção, não são antes tomadas como fenômenos da natureza, mas tornam-se princípios reguladores que equiparam à seleção natural os papéis de juiz e carrasco. O traço da Biologia é trazido à fala da personagem, porém o traço, posto na relação que o difere e que o transforma em efeito, (re) significa as definições biológicas de seleção; o traço mescla-se e seu efeito fala sobre cultura ou sobre a esfera pela qual a cultura é governada. Traço sobre traço, significados da Biologia para colocar em tensão – ou criar – os significados para a sociedade, como se nas entrelinhas do discurso também pudéssemos dizer da normatividade “que oferece uma direção e propósito à conduta e à prática humana, guiando nossas ações conforme certos propósitos, fins e intenções a fim de que eles sejam previsíveis e ordenados” (HALL, 1997, p. 42). Nas ações de Emília, enquanto descobre e se aventura pelo mundo biológico, o traço adaptação diferencia-se em esperteza, inteligência dedutiva, possibilidade de vitória e conquista, ajeitar-se às situações. - “Adaptar-se quer dizer ajeitar-se às situações. Ou fazemos isso, ou levamos a breca. Estamos em pleno mundo biológico, onde o que vale é a força ou a esperteza” (LOBATO, 1964, p. 45). Traços explicativos, que não poderiam ser saltados da trama, lembram-me das “inserções” nos manuais e livros didáticos escolares, com contraponto de caráter didático, porém a diversão – com traços puxados da Biologia – impulsiona a resolução das situações problemas. Nessa passagem, híbridos de informação, formação e diversão orientam as estratégias de defesa explicadas por Emília, que as descobre, em princípio, por suas próprias experiências e deduções no “mundo biológico” e, depois, por meio de sua voz (que traduz toda a nova situação às crianças que estão na aventura), subverte-as, quebrando a lógica centrada na “relação” de sobrevivência dos mais fortes – significados que percorrem discursivamente e justificam hierarquias sociais. É curioso dizer do conjunto de significados que se agregam à passagem do traço mimetismo – fingimento, armamento, estratégias de defesa em efeitos contrários – traços que falam de “quebra”, rompimento e instauram um novo efeito: 5 BIOLOGIA E CULTURA... “a defesa do fraco contra o forte – mas do fraco esperto” (LOBATO, 1964, pp. 7677), daquele que manifesta vontade de potência e luta, mas que luta pela sobrevivência, pela vida. - “Com a inteligência ou a astúcia, como fazem tantos insetos deste mundo. O Visconde já me explicou isso muito bem. Uma da melhores defesas, por exemplo, se chama mimetismo. - Mime o quê? - Tismo. Mi-me-tis-mo. Quer dizer imitação. Uns imitam a cor dos lugares onde moram. Se moram em pedra, imitam a cor da pedra. Se moram em grama, como os gafanhotos, imitam a cor da grama. Por quê? Porque desse modos os inimigos os confundem com a grama. E há os que imitam a forma das folhas das árvores ou dos galhinhos secos” (LOBATO, 1964, pp. 76-77). Essa idéia de vontade de potência conecta-me ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Emília é, em alguns momentos da obra, a expressão da vontade de potência de Nietzsche caracterizada pela expansão, pela quebra de dominância. O significado luta está em passagem no feixe de traços “seleção natural”. Se olharmos para as representações de origem darwinistas, veremos que a seleção natural é o mecanismo da evolução das espécies, e a luta o motor da seleção. Na filosofia de Nietzsche, a luta teve posições nos espaços de tensão entre o biológico (enquanto constituição do ser humano), o racional e a arte, significando prazer e efetividade, não uma constante conservação da vida, mas “o livre curso que o ser vivo encontra para a sua força – ele quer e precisa manifestar sua vida” (FREZZATTI, 2001, p.62). Emília luta por sua efetividade, “o superar de si” em sua vontade de potência; luta por domínio que envolve mais potência, mais comando, ou seja, envolve o expandir-se, e essa expansão é sua auto-superação, superação também do domínio biológico e natural, subverte-os e transforma-os para irromper-se como forte, o que lhe confere, inclusive, direitos para mudar essa ordem. Num rasgo nietzscheano Emília age propulsionando sua potência criativa – mesmo frente à lógica racional do Visconde de Sabugosa. Usa de seu senso crítico e intuitivo para quebrar uma imagem de mundo baseada na guerra e nos conflitos sociais gerados pelas intrigas econômicas e políticas. - (...) “O mundo já andava muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso – gente demais, como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza. Aliviei o mundo. A vida agora 6 BIOLOGIA E CULTURA... vai começar de novo – e muito mais interessante. Acabaram-se os canhões, e tanques, e pólvora, e bombas incendiárias. Vamos Ter coisas muito superiores – besouros para voar, formigas para transporte de cargas, o problema de alimentação resolvido, porque com uma isca de qualquer coisa um estômago se enche, et coetera e tal. (...) Pense bem, Visconde. A tal “civilização clássica” estava chegando ao fim. Os homens não viam outra solução além da guerra – isto é, matar, matar, matar, destruir todas as coisas criadas pela própria civilização – as cidades, as fábricas, os navios, tudo. Pense bem, Visconde. Essa tal civilização havia falhado” (LOBATO, 1964, pp. 97100). Para Stephen Jay Gould (1996) intrigas políticas e a idéia de guerra estão intimamente arraigadas às nossas representações míticas das sagas culturais, que direcionam mesmo nossas descrições mais simples para o uso de uma linguagem apoiada na metáfora das batalhas e das conquistas. Esse conjunto de significados é transportado de um espaço-tempo a outro(s), como uma novela que combina a conquista e a fascinação e uma grande força moralizante. Esse é o exemplo mais claro de como os significados culturais (em passagem pela escrita de Monteiro Lobato) são postos em relação com os elementos da história. Os traços presentes na obra (re) significam o raciocínio mais complexo, movimentam uma ordem, mas permitem que sistemas de traços a atravessem, conferindo-lhe harmonia e leveza. Mesmo quando a aventura é conduzida pela explicação dos fatos mais lógicos suas descrições nem por isso deixam de ser maravilhosas e abertas. Fatos ordenados por Emília expandem-se em questionamentos e valores, ao esboçar traçados não esperados, como os presentes nas descrições meramente conteudistas. Esse ponto de vista aproxima-se daquilo que Simone Vierne (1994) denomina de “efeito Júlio Verne”, mostrando que os recursos literários utilizados na “inclusão, nítida e confessa, da Ciência no discurso literário”, atribuirão novos significados culturais à Ciência e à própria Literatura. Com ela posso entender que nas ligações tempestivas entre Ciência e Literatura está se assegurando, na remarcação dos traços biológicos e de suas técnicas, a passagem de grandes mitos e temas sociais importantes, a expansão do imaginário que se serve da Ciência “para tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (CALVINO, 1990, p.127). É próprio desse efeito inserir e atribuir significado à Ciência, procurando compor um certo hibridismo entre aquilo que nos é dado como Biologia e aquilo que nos é dado 7 BIOLOGIA E CULTURA... como significado cultural. O híbrido precisa sempre dos dois – o outro no mesmo. Biologia e Cultura seguem a tecer os elementos explicativos em comparações e analogias: “A certa distância estava uma “vaquinha” pastando. Era o nome que no sítio Pedrinho dava a certo besouro de pintas amarelas e que o Visconde dizia ser um “coleóptero”. O Visconde vivia estudando a vida daqueles animaizinhos. Explicou que se chamavam coleópteros por causa do sistema das asas dobráveis e guardáveis dentro dum estojo. Essas asas são membranosas, fininhas como papel de seda, mas não andam à mostra, como as das borboletas, aves e outros bichos menos aperfeiçoados. Só aparecem quando o coleóptero vai voar. (...) O Visconde achava muita graça no sistema, que era o mais aperfeiçoado de todos, dizia ele; e vivia fazendo experiências com besouros de todos os tamanhos. Era um sistema tão bom que o mundo já andava um besoural imenso. Cento e cinqüenta mil espécies de besouros já haviam sido estudadas pelos sábios, imaginem! Se o sistema não fosse tão bom, a ordem dos coleópteros não se multiplicaria em tantas espécies. Quando um sistema não é aperfeiçoado, os bichos que o usam leva a breca, como aconteceu com aqueles grandes saúrios que o Walt Disney mostrou na Fantasia. Por que desapareceram tais monstros? Justamente porque o “sistema saúrio” não prestava. E por que os besouros aumentaram? Porque o “sistema besouro” é aqui da pontinha – e Emília, que estava conversando consigo mesma, pegou na pontinha da orelha. O Visconde também achava que o futuro Rei da Criação ia ser o besouro, depois que o rei atual, o Homem, totalmente se destruísse na horrenda guerra que andava guerreando” (LOBATO, 1964, pp. 2829). Passagens dos traços sobre “classificação do seres vivos” relacionam-se aos traços “Seleção” e “Adaptação”, embalam o fantástico e ilustram a diversidade natural, elegem aquilo que será considerado “aperfeiçoado/perfeito” e modelo para a nova situação frente ao tamanho. As proporções dos seres ganham novos direcionamentos ao vincularam-se com valores e discursos sociais nos quais a hierarquia de dominância está associada ao crescimento vertical dos seres vivos. No mundo humano/cultural os critérios que definem o poder do homem sobre demais povos e seres são os tamanhos: “Cheguei até cá para dizer uma coisa só – que o tamanho morreu. E quem acabou com ele é a única pessoa que pode novamente restituir aos homens o antigo e querido tamanho – aquele tamanho malvado, porque se não fosse ele os homens não teriam sido maus como foram, fazedores de guerras, incendiadores de cidades, afundadores de navios, judiadores de judeus” (LOBATO, 1964, p.42). 8 BIOLOGIA E CULTURA... Pensando no efeito de tamanho associado ao poder, fui buscar argumentos que pudessem explicar a passagem dessa categoria biológica na justificativa de práticas sociais e culturais. Não é a primeira vez que observo os efeitos desse sistema de traços. A significação de um mundo ordenado, com organismos desde as formas “mais baixas” até as “mais altas” está profundamente enraizada em nossa cultura. Discursos efetivos sobre tamanho e proporção referem-se às metáforas de dominância e supremacia. Essa afirmação é uma criação social que se sobressai nos discursos incorporados pelas instâncias culturais, mas que também podem ser arrastados de alguns entendimentos biológicos, como “acreditar que as classes de vertebrados podem ser dispostas numa escala perfeccionista que vai dos peixes aos mamíferos, passando pelos níveis intermediários de anfíbios, répteis e pássaros” (GOULD, 1987, p. 209). Um exemplo é trazido pelo artigo de Paul Semonin (1997) que verifica o impacto da imagem de dinossauros como “gigantes carnívoros” numa pré-história definida pela selvageria, alertando-nos para as representações enraizadas desses animais pré-históricos como donos de um império, cujo reinado é caracterizado pelos domínios e força diante das demais espécies. Não é difícil encontrarmos essas representações em nosso cotidiano. Filmes como “O parque dos Dinossauros”, de Steven Spielberg, difundem, em grandes estratégias de marketing e produções, a imagem voraz do Tiranossauro rex como o poderoso senhor da Terra; mais recentemente, a série produzida pela BBC de Londres – “No tempo dos Dinossauros” – foi transmitida, em “cadeia nacional”, pelo programa de TV Fantástico (exibido pela Rede Globo). Já no início das apresentações a dublagem narra a “maravilhosa saga” das “mais monstruosas, espetaculares e terríveis formas de vida que existiram na terra”. Esse recurso, utilizado para atrair a atenção dos espectadores, frisa insistentemente a noção de que os maiores são os melhores e mais dominantes. O traço tamanho cria um efeito para além da configuração espacial altura e largura; é atravessado pelas relações de poder presentes em razões econômicas e políticas que fabricam e instituem seus significados, normas de conquista e violência, em suma, tamanho é poder! Fazendo uma correlação do tamanho como forma de definir uma legitimidade social, Stephen Jay Gould (1987) nos lembra, por meio de seus questionamentos e de suas contextualizações sobre a história da Biologia, que essa 9 BIOLOGIA E CULTURA... relação não é uma decorrência apenas do conhecimento biológico, e traz os significados sociais que estão por detrás da categoria tamanho. Primeiramente, ele aborda a nossa percepção de tamanho relacionada à nossa dificuldade de transportar nossos sentidos às dimensões de pequenos animais. É justamente dentro dessa inversão dimensional que a Biologia tem passagem pela Chave do Tamanho. Nos diálogos de Emília e do Visconde que desmontam o previsível, desterritorializando-o a partir de seus conhecimentos e observações das personagens, as representações são invertidas no contexto da história, pois diminuto o tamanho, proporcionalmente menores serão as forças, as relações de poder, os aparatos bélicos, o totalitarismo, traços de governos e regulação social. “Veja! - Exclamou o Visconde filosoficamente. Esta gente, que era a mais terrível e belicosa para o mundo e estava empenhada numa guerra para a conquista do planeta, ainda é mentalmente a mesma – quero dizer, ainda sente e pensa da mesma maneira. E ainda sabe tudo quanto aprendeu. Os químicos sabem fazer prodígios com a combinação dos átomos. Os físicos e mecânicos sabem todos os segredos da matéria. Os militares sabem todos os segredos da arte de matar. Mas como perderam o tamanho, já não podem coisa nenhuma. Sabem, mas não podem. Que coisa terrível para eles! – Estou vendo que a grande força dos homens estava no tamanho – disse Emília. O tamanho era como o cabelo de Sansão. Quando Dalila cortou o cabelo de Sansão, o coitado perdeu toda força. – Exatamente - concordou o Visconde. O tamanho era tudo, isto é, todo o aparelhamento mecânico da humanidade fora feito para os homens daquele tamanho. (...) – Aqui morava o ditador que levou o mundo inteiro a maior das guerras, e destruía cidades e mais cidades com os seus aviões, e afundava os navios com seus submarinos, e matava milhares e milhares de homens com seus canhões e suas metralhadoras - o homem mais poderoso que jamais existiu. Tudo isso por que? Porque tinha oito palmos e meio de altura. Assim que foi reduzido a quatro centímetros, todo o seu poder evaporou-se” (LOBATO, 1964, pp. 157158). Ainda para Stephen Jay Gould, o tamanho exerce um fascínio especial. O enfoque sobre as criaturas maiores distorceu a visão que temos acerca de nossos próprios tamanhos, de uma maneira tal que ficamos prisioneiros da percepção que temos de nosso tamanho e dificilmente reconhecemos quão diferente deve ser o mundo aos olhos dos pequenos animais, uma vez que nossa área de superfície é relativamente pequena em relação ao nosso grande tamanho. Ao desarrumar essa lógica, o faz-de-conta da personagem Emília nos transporta para o mundo de outras imensidades, a imaginação é o trilho pelo qual 10 BIOLOGIA E CULTURA... rola a informação – hibridizada pelo real, pelo raciocínio e imaginário. As diversões de alteração de tamanho servem para introduzir outros tempos e espaços, significam mudar de perspectiva, deslocar o olhar da realidade que vivemos e gerar efeitos que nos conduzam por meio das experiências e diferenciações das dimensões de escala e da diversidade de criaturas. “Emília pôs-se a filosofar, a pensar nos estranhos bichos que andavam em redor dela, uns de asas, outros sem asas, uns pretos, outros verdes, outros moles – mas todos cheios de pernas. - Como há pernas neste mundo que antigamente eu chamava “mundo dos bichinhos” e que para mim agora virou o meu mundo! Pois também virei bichinho. - Como há pedras no mundo! – exclamou, tropicando e machucando os delicados pezinhos. Isso que nós chamávamos terra ou chão, não é terra nada é pedra, pedra e mais pedra. A crosta do planeta é uma pedreira sem fim. Hum! Por isso é que os bichinhos do meu tamanho usam tantos pés. Cada inseto tem seis. Os mede-palmos têm muito mais. De dois pés não há nenhum. Agora compreendo o motivo – é que só com dois pés não poderiam caminhar pelas infinitas pedreiras destes chãos. A gente dá um passo e cai, porque se um pé escorrega, o outro é pouco para manter o equilíbrio. Mas com seis pés o andar é fácil, porque se um escorrega, sobram cinco para a escora. Além disso – estou vendo – todas as patas dos meus colegas possuem garrinhas, com as quais eles vão se agarrando às asperezas do chão ou da casca das árvores. Emília compreendeu porque os insetos sobem tão bem pelas paredes. Para uma formiga uma parede é uma verdadeira escada com degraus irregulares a que as garras das patinhas vão se agarrando” (LOBATO, 1964, p. 25). Com os olhos no chão, Emília desterritorializa/territorializa uma relação (que pode ser também a nossa) com o pequeno – o outro, outros – no mundo considerado biológico. Esse movimento agencia, encadeia, entre outras coisas, olhares, com um certo estranhamento, para a “representação normatizadora” do tamanho – naturalizada em nossas sociedades e cotidianos – que continuamente modelam e constituem nossos significados de maior-melhor, maior-poder, maiorbeleza, maior-domínio etc. Se por um lado lemos a regulação moral pela “seleção”, por outro temos efeitos do traço “tamanho” que trazem encadeamentos mais abertos; quebra, ruptura e transgressão das “regulações normativas que constituem os sujeitos e guiam as ações físicas para criar uma ordem no mundo” (HALL, 1996, p. 42). A perda do tamanho posta em relação com a perda da vergonha ou diferenciando-se vergonha como norma permite o aparecimento do “devir” criança, inocência. 11 BIOLOGIA E CULTURA... - “Que coisa curiosa! – Exclamou enquanto se esfregava. – Estou nua e não sinto a menor vergonha. Será que isso de vergonha depende do tamanho das criaturas? Deve ser, porque entre os homens a vergonha era só para os adultos. As criancinhas novas não se mostravam vergonha nenhuma nem ninguém se ofendia de vê-las nuas. Aprendi mais essa: vergonha é coisa que depende do tamanho” (LOBATO, 1964, p. 42). O traço “evolução” mais uma vez se faz presente para explicar as relações e criações do homem por meio da cultura. Buscando adequar-se à nova ordem, Emília partilha de suas compreensões não somente com o Visconde, mas com outros cientistas que elaboram explicações e justificativas para que a nova civilização permaneça. A história da humanidade, nos feixes de traços que se estabelecem a partir da descoberta e do uso do fogo, é significada, no fragmento abaixo, como uma interessante e distinta reflexão a respeito de suas conseqüências para a evolução do Homo sapiens, tendo como efeito marcar, por meio da fala de um “homem da ciência”, as potencialidades da invenção da diferença nos tamanhos dos seres vivos. “Enquanto o homem não descobriu o fogo, viveu muito bem dentro da lei biológica, a civilizar-se lentamente. Veio o fogo e tudo mudou – começou o galope sem fim. Que eram aqueles monstruosos arranhacéus deste país, que era a blitzkrieg dos alemães, que era nossa pressa de transporte e comunicação por meio de trens, aviões, navios, telégrafos, telefone e rádio, se não uma conseqüência do fogo? Apague-se o fogo e tudo desaparece. (Disse o doutor Barnes). - Foi o fogo que permitiu aos homens viverem em todos os climas e não apenas nos que lhes convinham naturalmente. Sem o fogo o homem só viveria nas zonas temperadas, as boas, e nunca nas zonas frias. E portanto haveria menos gente na terra – outra enorme vantagem tanto para o próprio homem como para os animas. E há ainda outro aspecto muito importante do fogo: os seus efeitos na alimentação humana. Graças ao fogo o homem pode tornar comestíveis muitas coisas que não eram, e isso ainda aumentou a população humana no planeta, porque aumentou enormemente as possibilidades de alimentação. De modo que do fogo veio o calamitoso aumento da população humana, não só permitindo a invasão das regiões frias, como também transformando em comestíveis coisas que não eram naturalmente comestíveis. Quanto mais espaço vital e mais comida, mais gente. (...) Estou convencido de que a desgraça da velha civilização veio das conseqüências sociais do fogo. Sempre pensei assim, porque sempre vivi na terra mais atormentada pelas reinações do fogo e do ferro: essa infinidade de máquinas que aqui na América nos fazia tropicar num galope sem fim – para que, meu Deus, para chegar ao que? Imaginem, pois, o meu gosto quando sobreveio este súbito fenômeno da redução do tamanho – o maravilhoso remédio para o caminho errado em que o Homo sapiens se havia metido desde a descoberta do fogo” (Lobato, 1964, pp. 178-181). 12 BIOLOGIA E CULTURA... A “evolução cultural”, se apagada, ou melhor, se apagado tudo que é originado do fogo – artefato anti-biológico – poderíamos voltar a um estado mais próximo do natural. Puxando um fio para entrelaçar a essa questão, é importante registrar a passagem do discurso de antagonismo entre “homem/natureza” ou “natureza/cultura”. A presença do traço “tamanho” marca, por um lado as significações de um desenvolvimento cultural pautado na tecnologia desencadeada pela descoberta do fogo, por outro, a necessidade de retorno ou aproximação de regras de utilização da natureza mais primitivas que nos harmonizassem com animais e demais seres e condições do mundo natural. O conhecimento – “conseqüência social do fogo” – passou a ser uma forma de poder constantemente usada como justificativa para a superioridade do homem sobre a natureza e do homem sobre o homem. As fragmentações apresentadas foram entendidas em um contexto do qual participam conceitos, explicações, interpretações e formas de ordenar a natureza que podem ser associadas à Biologia. Encontrar esses elementos da Biologia na produção literária nos leva à consideração de que eles participam dos processos (realizados pelo autor da obra, autora da pesquisa, dos leitores do texto) de significação da obra, que podem ser, por exemplo, associados à fabulação, à regulação moral, à imaginação, ao faz de conta, às relações de saber e poder. Ao reconhecer que a Biologia participa dessa produção cultural – a literatura – digo que os significados têm que ser, dentro da obra, criados; eles não são simplesmente decalcados de um campo suposto como original. Nessa criação – ou significação – produzem-se representações culturais, que também considero como híbridas e múltiplas: elas geram efeitos na organização da leitura e escritura da obra. A Biologia, entendida como produção cultural, é artefato para o desdobramento da escritura, para paradas, para os intervalos que incidem sobre o espaço e sobre o tempo da leitura. Expande o campo por uma interrupção, um espaçamento, pois quando aparece no texto, carrega com ela traços de significados culturais, uma vez que, quando se aproxima da evolução, do tamanho, das relações do mundo biológico, Monteiro Lobato dá formas à Biologia, especialmente como explicações, compreensões de como transformar a natureza; discursos que tencionam com o prático, com o mais adequado etc. Nesse aspecto, embora se considerem tênues as fronteiras, é pelo que há de mais específico na sua produção 13 BIOLOGIA E CULTURA... literária que Lobato realiza essas passagens, esses deslocamentos da Biologia. Discursivamente, quando atravessa corpos e ações das personagens, a Biologia ganha valores diferenciados tanto da instância de produção científica quanto no enredo da obra. A Biologia é, nesse ponto, traço, efeitos, significações! Referências AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. territórios do ensino de Biologia. Os olhares do caminhante nos Campinas (SP): Faculdade de Educação/UNICAMP, 2000. (Tese, Doutorado em Educação). BENNINGTON, Geoffrey & DERRIDA, Jacques. Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CAMENIETZKI, Carlos Ziller. O saber impotente: estudo da noção de ciência na obra infantil de Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. (Dissertação, Mestrado em Educação) CARVALHO. Fabiana Aparecida de. Outros... Com textos e passagens – Traços biológicos em obras de Monteiro Lobato. Campinas: Unicamp, 2002 (Dissertação, Mestrado em Educação) DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, vol. I, 1995. FREZZATTI JUNIOR, Wilson Antonio. Nietzshe contra Darwin. São Paulo: Discurso Editorial / Editora UNIJUÍ, 2001. GOULD, Stephen Jay. Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1987. GOULD, Stephen Jay. Os dentes da galinha. São Paulo: Paz e Terra, 1996. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. São Paulo: Brasiliense, 2ª Ed., 1964. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. 14 BIOLOGIA E CULTURA... SEMONIN, Paul. Empire and extinction: the dinosaur as metaphor for dominance in prehistoric nature. In: LEONARDO. New York: George Gessert ed., vol. 30, nº. 03, 1997. pp. 171 – 182. VIERNE, Simone. Ligações tempestuosas: a ciência e a Literatura. In: A ciência e o imaginário. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. pp. 79 – 96. DATA RECEBIMENTO: 07/05/2007 DATA APROVAÇÃO: 30/05/2007 15