- Cátedra de Português Língua Segunda e Estrangeira

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In: Palavras, n.º 26, Outubro 2004, Lisboa: Associação de Professores de Português, 39-44.
PREDICADOS COMPLEXOS E ENSINO
DO PORTUGUES EUROPEU COMO LÍNGUA NÃO-MATERNA*
Inês Duarte (FLUL, DLGR) e Hanna Batoréo (Univ. Aberta)
Resumo
A possibilidade de verbos se combinarem com palavras e
sintagmas de várias categorias para formarem predicados complexos
esta disponível em muitas línguas particulares. Em função da categoria
da palavra ou sintagma que entra na formação do predicado complexo,
do seu estatuto de predicado secundário ou de argumento, e das
propriedades do verbo que encabeça o predicado complexo, estas
construções organizam-se em vários subtipos caracterizados por
diferentes propriedades (cf., entre outros, Cattell 1984 para predicados
complexos V+SN em Inglês, Grimshaw & Mester 1988 para
predicados complexos N-V com suru em Japonês, Rosen 1989 para
predicados de reestruturação e de união de orações nas línguas
românicas e Alsina 1997 para o mesmo tipo de predicados em Catalão
e nas línguas bantu ).
É nosso objectivo explorar, no presente artigo, alguns subtipos
de predicados complexos disponíveis no Português Europeu
especialmente interessantes do ponto de vista do ensino da língua
estrangeira.
O presente estudo tem por objectivo uma reflexão linguística explícita e uma
reflexão sobre o ensino implícito da gramática do Português, tendo por público os
alunos que aprendem esta língua como não-materna. Se tomarmos como objecto
específico do nosso estudo, por exemplo, a expressão das emoções em Português
Europeu - e, muito especialmente, a expressão do sentimento de alegria -, assim como
as possíveis estratégias do seu ensino ao falante não-nativo, deparamos com uma
grande variedade linguística. Vejam-se os exemplos reunidos em (I):
I.
(A)
(a) A tua presença trouxe alegria à festa.
(b) A tua presença alegrou a festa.
(B)
(a) Os pais sentiram grande alegria com o triunfo do filho.
(b) Os pais alegraram-se com o triunfo do filho.
(C)
(a) Os filhos enchem a casa de alegria.
(b) Os filhos alegram a casa.
Observe-se que a variedade dos exemplos reunidos em (I) demonstra certo tipo de
regularidades. Ao nível sistémico da língua, o verbo que corresponde ao nome alegria
e adjectivo alegre é alegrar(-se) (vejam-se os exemplos (b) nos casos (A), (B) e (C)
acima apresentados) e é precisamente este o vocábulo que o aluno encontra quando
*
Texto de comunicação apresentado no 1º Congresso de Português Língua Não-Materna, Lisboa,
procura um verbo da família do nome e do adjectivo num dicionário da Língua
Portuguesa. Acontece, no entanto, que o verbo encontrado apresenta certas restrições
do ponto de vista do uso: de facto, ele é utilizado em contextos formais para exprimir
apreciações avaliativas, ocorrendo com pouca frequência em contextos informais.
Se o aluno pretender aprender a exprimir as suas emoções num registo oral do
Português coloquial, a estratégia acima exemplificada resultará pragmaticamente
ineficaz. De facto, na oralidade, não nos alegramos mas sentimos alegria (cf. (Ba)),
trazemos alegria a sítios ou pessoas (cf. (Aa)), ou então enchemos os outros de alegria
(cf. (Ca)). O Português coloquial exige a utilização de uma expressão perifrástica
construída à volta do lexema alegria, compondo uma construção referida
sintacticamente como um predicado complexo.
Repare-se no paralelismo das construções reunidas em (I): em todos os casos (A),
(B) e (C) dispomos de pares semanticamente equivalentes (a) e (b). No caso (a), temos
predicados complexos do tipo sintacticamente analítico V-SN ((Aa) e (Ba)) ou V-SP
((Ca)), enquanto no paradigma (b) surge um lexema a eles correspondente que pode
ser considerado lexicalização do paradigma complexo, existindo entre os dois tipos
claras diferenças pragmáticas já referidas acima. Trata-se de um fenómeno comum em
Português (cf. Batoréo, 1996/ 2000), cuja variação e riqueza podemos observar em
exemplos aleatoriamente reunidos (II):
II. (a) PREDICADO COMPLEXO
(b) LEXICALIZAÇÃO
(1)
cortar o pão às fatias
fatiar
(2)
partir a cadeira em pedaços
despedaçar
(3)
partir o vidro em estilhaços
estilhaçar
(4)
dar em doido
endoidecer
(5)
dar à costa
(6)
tornar a empresa rentável
(7)
fazer uma pessoa feliz
(8)
fazer um discurso
(9)
fazer uma cena
(10) fazer uma fita
=/=
encostar
=/=
acostar
rentabilizar
=/=
felicitar
discursar
=/=
encenar
=/=
fitar
(11) fazer um bicho de sete cabeças
[-]
(12) fazer uma queixa
queixar-se
(13) dar uma sova
sovar
(14) dar uma contribuição
contribuir
(15) dar os parabéns
Forum Picoas, Novembro de 1999.
P.E.
[-]
P.B.
(16) apanhar uma sova
(17) apanhar um murro
parabenizar
[-]
=/=
esmurrar-se
(18) apanhar uma bebedeira
embebedar-se
(19) apanhar uma constipação
constipar-se
(20) apanhar uma boleia
[-]
Note-se que em (II) nem sempre se observa o paralelismo das duas colunas (a)
e (b). Quando isto não ocorre, a lexicalização correspondente pode ser (i)
simplesmente inexistente (como em (11), (16), (20)), (ii) pode existir apenas ao nível
de uma das variedades do Português (cf. (15)) ou (iii) pode surgir numa forma lexical
pertencente à mesma área lexical, mas que não tem o mesmo significado (como em
(5), (7), (9), (10), (17)). Assim, por exemplo, felicitar não é semanticamente
equivalente à expressão fazer uma pessoa feliz (cf . (7)), nem encenar quer dizer
fazer uma cena (cf. (9)), nem fitar pode ser considerado uma paráfrase de fazer uma
fita (cf. (10)) ou encostar/acostar uma paráfrase de dar à costa (cf. (5)).
Repare-se, igualmente, que os predicados complexos da coluna da esquerda
podem apresentar vários níveis de fixidez (ou idiomaticidade). De facto, em casos
como (3), a relação entre o predicado complexo partir o vidro em estilhaços e o
verbo estilhaçar é transparente. Noutros casos, como (17), a relação é menos
transparente, uma vez que o predicado complexo apanhar um murro e o verbo
esmurrar-se não são semanticamente equivalentes: de facto, apanhamos uma sova
de alguém, não nos esmurrarmos por/ contra alguém, enquanto nos esmurramos
contra um muro, em vez de apanharmos um murro do muro.
Note-se que esta falta de paralelismo entre as colunas (a) e (b), isto é, entre os
predicados complexos e as lexicalizações a eles equivalentes, constitui um dos
pontos difíceis do ponto do vista do ensino do Português como língua segunda ou
estrangeira. O grau de transparência (ou opacidade) das expressões nem sempre é
regularmente previsível e, pelo menos em parte, é preciso recorrer à memorização
das construções.
Do ponto de vista estrutural, os exemplos reunidos em (II) são predicados
complexos do tipo V-SN (exemplos (8)-(20)), V-SP (exemplos (1)-(5)) e V-Adj
(exemplos (6)-(7)). Nos exemplos (1)-(3), o verbo que integra o predicado
complexo é um verbo principal pleno: cortar ou partir (= quebrar). Nos restantes
exemplos, ocorre um verbo parcialmente deslexicalizado: dar, tornar, fazer,
apanhar.
Em (1)-(3), encontramos exemplos de predicados complexos resultativos,
uma vez que faz parte do seu significado o estado resultante em que fica a entidade
afectada como consequência do evento descrito: o pão fica às fatias, a cadeira fica
em pedaços, o vidro fica em estilhaços. Nos três casos, o predicado complexo é
formado por um verbo principal causativo (cortar, partir) e um predicado
secundário de natureza preposicional (às fatias, em pedaços, em estilhaços), como o
mostra o facto de V e SP poderem ocorrer adjacentes: cortar às fatias SN, partir em
pedaços SN, partir em estilhaço SN.
Em (4) e (5), ocorrem predicados complexos incoativos constituídos
igualmente por V-SP, em que a expressão preposicional funciona como predicado
secundário. Contudo, o verbo que integra o predicado complexo, por apresentar um
certo grau de deslexicalização, tem sido denominado na literatura verbo leve (light
verb)1.
Os exemplos (6) e (7) ilustram predicados complexos resultativos, formados
por verbo e adjectivo (rentável, feliz), em que o adjectivo funciona, como nos casos
anteriores, como predicado secundário. Os verbos que se combinam com os
adjectivos para formar o predicado complexo são verbos leves causativos.
Nos exemplos (8)-(20) encontramos predicados complexos V-SN, cujo verbo
(fazer, dar, apanhar) é igualmente um verbo leve. Antes de passarmos à
caracterização dos predicados que ocorrem nestas frases, explicitaremos as
propriedades características dos verbos leves.
Os verbos leves2, que podem ter contrapartidas como verbos principais ( como
acontece com fazer, dar ou apanhar, em exemplos como O cozinheiro fez sopa de
espargos, O João deu flores à namorada, O jardineiro apanhou as laranjas que já
estavam maduras), caracterizam-se por:
(i)
Serem menos lexicais do que os verbos principais mas mais lexicais
do que os auxiliares;
(ii)
Ocorrerem obrigatoriamente integrados em predicados complexos;
(iii)
Contribuírem para a estrutura argumental do predicado complexo;
(iv)
O seu contributo para a interpretação do predicado complexo ser o
significado prototípico da classe aspectual a que pertencem.
Ao manterem a sua classe aspectual e a sua grelha argumental, os verbos
tornar, fazer, dar, apanhar dos exemplos (II) definem o tipo de situação que a frase
em que ocorrem descreve. Assim, o predicado complexo dar-SP, dada a classe
aspectual e a estrutura argumental tema do verbo leve que o encabeça, descreve
uma situação de mudança de lugar ou de estado, consoante o predicado secundário
que o integra designa um lugar ou um estado (cf. (4), (5)). Por sua vez, o predicado
complexo tornar/ fazer-A, dada a classe aspectual e a estrutura temática causador-
1
Harris (1964) denomina-os verbos operadores; Gross (1981) chama-lhes verbos suporte. Para uma
analise no quadro do modelo Léxico-Gramática de alguns predicados complexos V -SN do
Português encabeçados por verbos leves, veja-se Ranchhod ( 1989).
2
Sobre as propriedades dos verbos leves vejam-se, entre outros, Grimshaw & Mester (1988) e
Butt& Geuder (1999).
causado do verbo leve que o encabeça, descreve uma situação causativa de
mudança de estado (cf. (6), (7)).
Estamos, agora, em condições de caracterizar os predicados complexos V-SN
que ocorrem nos exemplos (8)-(20). Todos eles são encabeçados por verbos leves,
que têm verbos principais plenos como contrapartidas. Contudo, o SN que com eles
se combina para formar o predicado complexo não tem o estatuto de predicado
secundário, como acontecia nos casos anteriores, mas sim o estatuto de argumento
do verbo leve. Entre os vários argumentos que é possível aduzir a favor desta
caracterização dos predicados complexos V-SN que aqui nos ocupam, considere-se
o seguinte: contrariamente ao que acontece com predicados complexos formados
por um verbo e um predicado secundário (mesmo quando este é de natureza
nominal), o SN argumental de um predicado complexo pode ocorrer como sujeito
de uma frase passiva, como se pode ver pelo contraste entre Um discurso foi feito
pela secretária do deputado (passiva bem formada correspondente à frase activa A
secretária do deputado fez um discurso) e * Um bom médico é considerado o João
pelo Pedro (uma passiva mal formada correspondente à frase activa O Pedro
considera o João um bom médico).
A comparação entre predicados complexos V-SN encabeçados pelos verbos
leves dar e apanhar (13)-(20) mostra que estes contribuem com a sua estrutura
argumental para a estrutura argumental do predicado complexo. Assim, a diferença
de significado entre dar uma sova e apanhar uma sova releva crucialmente do facto
de o verbo leve dar seleccionar como argumento externo um causador, enquanto o
verbo leve apanhar seleccciona como argumento externo um alvo.
Em que consiste então a diferença entre uma construção transitiva definida por
um verbo pleno e um predicado complexo V-SN encabeçado por um verbo leve?
Enquanto, no primeiro caso, é o verbo o único elemento a definir a estrutura
argumental da predicação, no segundo, a estrutura argumental do verbo e do seu
argumento nominal combinam-se para definir a estrutura argumental do predicado
complexo, i.e., para formar uma estrutura argumental única a partir das duas
estruturas argumentais de partida. Por esta razão, se tanto o verbo leve como o SN
seu argumento seleccionarem, por exemplo, um argumento alvo, uma vez formado
o predicado complexo, apenas um argumento alvo poderá ocorrer na frase
(compare-se O João deu milhares de contos a causas humanitárias e A sua
contribuição para a Cruz Vermelha foi notável com O João deu uma grande
contribuição à Cruz Vermelha e *O João deu a causas humanitárias uma
contribuição à Cruz Vermelha).
Em síntese, nos exemplos considerados encontramos os seguintes tipos de
predicados complexos:
(i) Predicados complexos do tipo V-SN-predicado secundário (preposicional
ou adjectival); trata-se de predicados causativos resultativos, encabeçados por
verbos plenos ou por verbos leves;
(ii) Predicados complexos do tipo V-predicado secundário (preposicional ou
adjectival); trata-se de predicados incoativos, de mudança de lugar ou de estado,
encabeçados por verbos leves;
(iii) Predicados complexos do tipo V-SN, em que a expressão nominal é
argumento do verbo leve; em função das estruturas argumentais de partida, trata-se
de predicados de actividade (cf.
(8)-(12)),
de predicados eventivos
transferenciais (cf. (13)-(17)) ou de predicados eventivos de mudança de estado
(cf. (18)-(20)).
Retomemos agora o problema da aprendizagem das séries predicado
complexo – respectiva lexicalização por falantes não-nativos.
Consideremos
o
problema
dos
predicados
complexos
resultativos
exemplificados em (1)-(3). Se, do ponto de vista da gramática do Português
Europeu, partir SN em pedaços é semanticamente equivalente a despedaçar SN,
nenhum falante nativo produz frases como #Ele despedaçou a cadeira. Em outros
casos, o conhecimento de processos morfológicos derivacionais produtivos pode
levar erradamente a supor que riscar a parede é o mesmo que pintar a parede às
riscas ou que pôr o ferro em brasa tem uma lexicalização correspondente em
* brasar o ferro.
Quando consideramos predicados complexos fazer-SN, para além das
observações já referidas atrás a propósito da não-equivalência ou mesmo
inexistência de lexicalizações correspondentes, importa notar que a estrutura do
predicado complexo em (12), fazer uma queixa, não faz supor que a sua
lexicalização correspondente seja um verbo pronominal reflexo queixar-se,
contrariamente ao que acontece com fazer um discurso /uma observação/ um
elogio/ um pedido/ uma súplica, a que correspondem verbos sem pronome.
No caso dos predicados complexos V-SN encabeçados pelo verbo leve dar e
pelo seu oposto relacional apanhar, existe simetria: compare-se dar uma sova, dar
pontapés, dar um murro com apanhar uma sova, apanhar pontapés, apanhar um
murro. Contudo, essa simetria é inexistente nas lexicalizações correspondentes:
sovar, pontapear, esmurrar apenas existem para os predicados complexos com dar.
Inversamente, a apanhar uma bebedeira, apanhar um susto, apanhar uma
constipação correspondem as lexicalizações incoativas embebedar-se, assustar-se,
constipar-se. Mas, neste caso, os opostos relacionais só estão sistematicamente
representados nas lexicalizações causativas embebedar, assustar, constipar, sendo
os predicados complexos equivalentes ou inexistentes ou construídos com verbos
leves diferentes de dar: *dar uma bebedeira, *dar um susto, pegar uma
constipação a alguém.
A frequência com que construções de predicados complexos como as que
analisámos são utilizadas coloquialmente e a não-predizibilidade de uma
lexicalização equivalente do ponto de vista gramatical e pragmático fazem deste
tópico uma área a explorar no ensino do Português Europeu a falantes não-nativos.
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