Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 REFLEXÕES SOBRE A DIMENSÃO MÍTICA DO BOI-DE-MAMÃO PARANAENSE Beatriz Helena Furlanetto1 Resumo: Os elementos míticos, místicos e mágicos se mantêm presentes no imaginário popular por meio da oralidade e constituem uma fonte de inspiração para as manifestações folclóricas, como o boi-de-mamão, revitalizando o fazer poético. O mito, a crença no sobrenatural e a busca pela transcendência fazem parte de todos os tempos e lugares habitados pelo homem, encantando seu mundo. Partindo da análise documental, bibliográfica e da pesquisa de campo, este texto traz alguns resultados parciais das investigações sobre a dimensão mítica do boi-demamão paranaense. O folguedo do boi representa o ciclo da continuidade: nesse ritual, o personagem morre para ressuscitar, um enredo que parece transfigurar a morte em alívio e esperança, uma circularidade na qual vida e morte se encontram no milagre da ressurreição. Palavras-chave: Arte Brasileira; Mito; Boi-de-mamão. Abstract: The mythical, mystical and magical elements are still present in the popular imagination by orality, and constitute a source of inspiration for the folkloric manifestations, such as boi-demamão, revitalizing the poetic making. The myth, the belief in the supernatural and the quest for transcendence are part of all times and places inhabited by humans, enchanting their world. Starting from documentary and bibliographic analysis, as well as from ethnography, this text brings some partial investigation results about the mythic dimension of the boi-de-mamão. The myth represents the cycle of continuity: in this ritual, the character dies to revive, transforming death in hope – a circularity in which life and death are bound in the miracle of the resurrection. Keywords: Brazilian Art; Myth; Boi-de-mamão. MAGIA E RELIGIÃO A religião e a magia são práticas presentes em diferentes sociedades humanas, ao longo do tempo histórico, e se tornaram temas de estudos complexos e polêmicos em várias áreas do conhecimento científico. 1 Pianista e professora assistente da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Paraná, com o projeto de pesquisa Paisagem sonora do boi-de-mamão no litoral paranaense: a face oculta do riso. A magia é considerada por muitos como uma ciência que pretende controlar as forças naturais; estudiosos acreditam que ela tem origem oriental e difundiu-se no Ocidente no período greco-romano. Na Idade Média, foi lhe atribuído um caráter diabólico, mas, no Renascimento, a magia era vista como complemento da filosofia natural, como a parte desta que possibilita agir sobre a natureza e dominá-la. No mundo moderno, a magia desapareceu dos horizontes da filosofia e da ciência, mas permaneceu como uma das categorias interpretativas da sociologia e da psicologia, de acordo com Abbagnano (2007). Religião deriva do termo latino religare, que significa religação com o divino. Segundo Abbagnano (2007, p. 997), é a “crença na garantia sobrenatural de salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia. [...] Por técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de cultos: oração, sacrifício, ritual, cerimônia, serviço divino ou serviço social”, enquanto a garantia religiosa é sobrenatural por situar-se além dos limites abarcados pelos poderes do homem. Para Durkheim2, os fenômenos religiosos classificam-se em duas categorias, as crenças (que consistem em representações) e os ritos (modos de ação determinados). “A vida coletiva, como a vida mental do indivíduo, é feita de representações” (DURKHEIM, 1970, p. 13) e a sociologia religiosa é um estudo das representações coletivas: “as representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior de grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns estados mentais desses grupos” (DURKHEIM, 1996, p. XVI). “Uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral” (DURKHEIM, 1996, p. 32). Portanto, a religião é um produto da sociedade, um fato eminentemente social, portadora de uma função integradora, capaz de manter a solidariedade social. A religião, segundo Durkheim, é vista como exemplo de representações coletivas 2 Émile Durkheim (1858-1917), fundador da Escola Francesa de Sociologia, postulou a preeminência da sociedade em detrimento do indivíduo e a necessidade de estudar o "fato social como coisa". “Fato social é toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2002, p. 40). Os fatos sociais são reais, objetivos, não se reduzem a realidades biológicas ou psicológicas. Segundo Durkheim, o social é o pilar, a base de tudo, e as categorias do pensamento humano são coletivas: o indivíduo pensa o mundo pelo social. Portanto, os fatos sociais influenciam e condicionam as atitudes e os comportamentos dos indivíduos na sociedade. Assim, a sociedade é que explica o indivíduo, e as formas de agir apresentam um tríplice caráter: são exteriores, provêm da sociedade e não do indivíduo; são coercitivas, impostas pela sociedade ao indivíduo; e são objetivas, têm uma existência independente do indivíduo. Esses três aspectos (coercitividade, exterioridade e generalidade) do fato social são indispensáveis para o entendimento da religiosidade humana. Os fenômenos religiosos, por serem sociais, devem necessariamente apresentar tais propriedades. compartilhadas, não como prova da existência de Deus. Os rituais, as cerimônias e a fé são elementos comuns que estão presentes em todas as religiões. O totemismo, considerado pelo autor como a forma mais elementar da vida religiosa por ser a “mais simples”, é um sistema classificatório de ideias reproduzido com base na matriz social, ou seja, totemismo e organização clânica são definidos como elementos inseparáveis. O totem3 é a representação material, física, tangível de uma força externa e superior ao homem, que o faz distinguir duas dimensões: a sagrada e a profana. “A divisão do mundo em dois domínios que compreendem, um, tudo que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso” (DURKHEIM, 1996, p. 19). O fenômeno religioso estabelece, assim, uma visão dualista de mundo, em que o sagrado e o profano se opõem um ao outro, sendo concebidos como de natureza diferenciada, como mundos separados e rivais. O sagrado é tudo aquilo que está ligado à religião, magia, mitos, crenças, portanto, a concepção do sagrado se manifesta como uma realidade diferente das naturais, remetendo ao extraordinário, ao transcendental, ao metafísico. O profano refere-se ao fato natural, biológico, normal. Para Eliade (2008), o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo e no cosmos, dois modos de existência assumidos pelo homem em sua história. A hierofania4 revela um espaço sagrado, o único que é real e significativo para o homem religioso, estabelece o “Centro do Mundo”, ou seja, a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. A referência do sagrado posiciona o homem diante de sua própria existência, contribuindo para um universo de relações ressignificado: “os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos” (ELIADE, 2008, p. 20). O homem religioso, das sociedades arcaicas e tradicionais, assume uma existência sagrada e “acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real” (ELIADE, 2008, p. 164). O homem a-religioso, das 3 Para Durkheim (1996), o que faz a santidade de uma coisa é o sentimento coletivo de que ela é objeto: as imagens do ser totêmico, portanto, são mais sagradas que o próprio ser totêmico, pois o representam e estão impregnadas de força social. Sendo o totem a expressão do princípio da força imaterial, do próprio deus totêmico e ao mesmo tempo símbolo da sociedade, ele representa não duas coisas, mas uma única coisa. Os objetos que servem de totens pertencem, em sua maioria, ao reino animal ou vegetal. 4 Hierofania, para Eliade (2008), corresponde à revelação de algo sagrado, indica a sacralização de todo e qualquer objeto, a manifestação do transcendente pessoal. A manifestação do sagrado transforma qualquer coisa em outra coisa, qualquer ser em outro ser, estabelecendo uma ordem distinta em toda relação com o mundo – as coisas ditas sagradas são outras, embora permaneçam as mesmas. sociedades ocidentais modernas, dessacralizou a existência humana e dessacralizou o mundo, pois o sagrado é um obstáculo à sua liberdade. Entretanto, o homem profano descende do homo religiosus e conserva os vestígios do seu comportamento, mas esvaziado dos significados religiosos. A religião é a base social sobre a qual o homem construiu suas primeiras representações acerca de sua existência e sobre os cosmos em que vive, de acordo com Durkheim (1996). Apreendendo a religião como inseparável da ideia de igreja e atribuindo a esta uma função moral, o autor estabelece a diferença essencial entre religião e magia, revelando uma conotação negativa e anti-religiosa na sua análise dos ritos mágicos. Assim como a religião, a magia tem seus ritos e crenças, mas “a magia tem uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas sagradas; em seus ritos realiza em sentido diametralmente oposto as cerimônias religiosas” (DURKHEIM, 1996, p. 27). Tentando delimitar o campo da magia e da religião na sociedade ocidental, Durkheim aponta a igreja como lócus privilegiado das crenças religiosas, como uma congregação de fiéis que reforça os laços solidários entre os membros da coletividade, e a magia como uma atividade antisocial, pois o mágico pratica a magia isoladamente, longe da sociedade. Na congregação religiosa, os crentes e sacerdotes professam uma mesma fé, mas nas crenças mágicas apenas o mágico compreende os ritos celebrados. Ampliando o conceito durkheimiano de fato social5, Mauss (1974) traz uma nova perspectiva para o entendimento da religião e da magia, relacionando-os ao contexto social. No estudo da magia, o autor trabalha com elementos antagônicos, construindo oposições entre religião e magia, prece e encantamento, sacrifício e oferenda, mito e lenda, Deus e espírito. O autor defende que a prática da magia e da religião só tem sentido enquanto relacionada à vida social: ambas ocorrem mediante rituais, e o sentido do rito está na prática social, e não individual. Magia e religião são fatos sociais que acontecem no âmbito do sagrado, ou seja, tanto a magia quanto a religião dão a noção de sagrado, a qual é uma noção social. Para Mauss (1974), o rito é o meio de compreensão da magia, pois todo rito é algo que se dá no social, acontece dentro de um espaço determinado, no tempo e na história. Assim, o autor busca compreender a magia através do estudo do rito, como um fato social dentro da história. Seu 5 Partindo da concepção durkheimiana de fato social como “coisa”, Marcel Mauss (1872-1950) introduz o aspecto simbólico ao conceito: nos fatos sociais totais exprimem-se as instituições religiosas, jurídicas, morais, econômicas, bem como os fenômenos estéticos e morfológicos, ou seja, toda a vida social se mistura. método propõe o estudo da magia em sociedades primitivas6, como algumas tribos australianas e melanésias, sociedades do antigo México e da Índia. Segundo o autor, só é possível discutir sobre magia a partir da religião, em confronto com a religião, pois ambas têm o mesmo caráter coletivo: “a magia, como a religião, é um bloco: nela se crê ou não se crê” (MAUSS, 1974, p. 122) e a crença na magia é “quase obrigatória, a priori e perfeitamente análoga à que se liga à religião” (MAUSS, 1974, p. 123). Entretanto, a magia é um fenômeno que não se confunde com a religião, apesar de possuírem elementos comuns. A magia tem características próprias, pertence a uma classe distinta de fenômenos sociais, compreende agentes, atos, representações, um conjunto de mitos e ritos que definem seus contornos. O agente da magia, o mágico, é o indivíduo que efetua atos mágicos. As representações mágicas são ideias e crenças que correspondem aos atos mágicos, e o que caracteriza o ato mágico é a sua repetição e a crença coletiva. Para ser um ato mágico, ele deve produzir resultados, ou seja, o ato mágico é eficaz em si mesmo. Assim, a magia é reconhecida pela coletividade, distinta da proposta de Durkheim, na qual a magia era vista como um fenômeno individual. A religião e a magia, de acordo com Mauss (1974), pertencem ao universo do sagrado, mas a religião parece ligada à dimensão da moral e a magia à necessidade: o rito mágico não faz parte de um culto organizado, é privado, secreto e misterioso, enquanto o rito religioso possui uma organização pré-estabelecida. Os ritos religiosos são solenes, obrigatórios e regulares, enquanto os ritos mágicos são irregulares e indevidamente vistos como maléficos. Os atos religiosos são praticados nos espaços públicos e os atos mágicos em espaços secretos, sendo o agente da religião um profissional do sagrado (sacerdote), enquanto o mágico7 não precisa ser um profissional. 6 Primitivo, para Mauss, não significa uma cultura atrasada, pois o autor não faz distinção entre “civilizados” e “primitivos”. O que lhe interessa são as experiências dos diferentes grupos. 7 O mágico é um especialista, um indivíduo ao qual se conferem qualidades míticas e poderes especiais, um ser diferenciado, envolto em uma aura de mistério, que tem o poder de acrescentar algo à realidade observada: o olhar do mágico tem uma grande importância nesse universo de encantamento. Cabe ao mágico manipular a mana das coisas, pois é ela que garante a eficácia dos seus ritos e gestos. A palavra mana é comum à maioria das línguas polinésias, e “subentende uma massa de ideias que designaríamos pelas expressões: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica, ser mágico, posse do poder mágico, ser encantado, agir magicamente” (MAUSS, 1974, p. 138). Mana é uma força mística e fluída que abarca misteriosamente todas as coisas e os seres do universo. Essa dimensão do oculto, do escondido, é essencial à magia, pois ela está associada ao aspecto extraordinário da vida: a magia só existe porque existe a crença na magia, e esta crença é socialmente gerada, portanto, o poder da magia emana do social e não de um indivíduo, sendo a coletividade que legitima o poder do mágico. Portanto, Mauss apreende a magia pelas condições em que os ritos são realizados e o lugar por eles ocupado no conjunto dos hábitos sociais, mas a magia é definida como compreensão equivocada do mundo. Evans-Pritchard8 (2005) procura mostrar que, para os Azande, a bruxaria é uma forma de explicar mortes, doenças e infortúnios. Porém, “causas reais” e “causas místicas” se complementam, em uma relação de superposição, para gerar uma explicação do infortúnio pela bruxaria. A bruxaria é onipresente e desempenha um papel em todas as atividades da vida zande: o conceito de bruxaria fornece a eles uma filosofia natural por meio da qual explicam para si mesmos as relações entre os homens e o infortúnio, e um meio rápido e estereotipado de reações aos eventos funestos. As crenças sobre bruxaria compreendem, além disso, um sistema de valores que regula a conduta humana (EVANS-PRITCHARD, 2005, p. 49). Segundo o autor, a noção de bruxaria está atrelada, também, a noções de juízos morais: a feitiçaria ou magia9 negra é uma magia ilícita, considerada imoral, na qual o feiticeiro10 utiliza drogas11 maléficas. A bruxaria e a feitiçaria são o contrário da boa magia. A magia branca (ou boa) é aprovada socialmente e utiliza drogas benéficas em seus ritos, permitindo a cura de uma pessoa vítima de feitiçaria. Os oráculos, divindades que consultadas expressam uma verdade irrefutável, permitem que a vítima encontre o responsável pela bruxaria, indicando como desfazê-la e restabelecendo o equilíbrio das relações. Assim, os oráculos funcionam como uma espécie de regulador moral, indicando posturas e comportamentos para manter a ordem e a coesão social. Para Evans-Pritchard (2005, p.186), “bruxaria, oráculos e magia são como os três lados de um triângulo. Os oráculos e a magia são dois modos distintos de combater a bruxaria”, demonstrando como as relações entre essas práticas e crenças formam um sistema racional que se manifesta no comportamento social. Percebe-se que os conceitos sobre religião e magia elaborados por Durkheim, Mauss e Evans-Pritchard têm um tratamento sociológico, mas o último autor, seguindo a escola de 8 Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973), antropólogo inglês, defensor da prática etnográfica, realizou pesquisas de campo no continente africano, principalmente entre os Azande e os Nuer. Seguindo a lógica funcionalista da sua época, buscou, entre os Azande, uma racionalidade própria para traduzir a perspectiva de um sistema não-ocidental como forma de compreensão do mundo e do comportamento do “outro”, portanto, um sistema com princípios e valores diferentes da sociedade europeia. 9 Magia é uma técnica que busca atingir seus objetivos pelo uso de drogas, empregadas em um rito mágico. 10 Feiticeiro é uma pessoa que possui drogas maléficas e as utiliza em ritos de feitiçaria. 11 Drogas são objetos, em geral de origem vegetal, com poderes mágicos, utilizados em ritos mágicos. antropologia inglesa, adota a etnografia para sistematizar o conhecimento acerca de uma cultura, tentando apreendê-la na sua totalidade. Nesse sentido, é o trabalho de campo que legitima o discurso de Evans-Pritchard, confirmando a racionalidade das práticas e crenças dos povos de tradição não-ocidentais que ele pesquisou. Talvez seja possível afirmar que, para os três autores, a magia é uma tentativa de intervenção prática no mundo. Portanto, essa é a definição de magia adotada neste trabalho. MITOS E RITOS As diversas definições de mito podem ser sintetizadas em duas categorias principais: “o mito se define como representações fantásticas do mundo, como sistema de imagens fantásticas de deuses e espíritos que regem o mundo” ou “como narração, como relato dos feitos dos deuses e heróis” (MIELIETINSKI apud PIRES, 2011, p. 213). Fundamentado nos estudos de Mielietinsky, Pires (2011) esclarece que no século XX houve uma revalorização do mito pela literatura como reação à crise burguesa de valores, à falência da civilização mecanizada e ao pensamento positivista-racionalista, e como uma busca pelo reencantamento do mundo. J. Frazer, B. Malinowski, Lévy-Bruhl, Lévi-Strauss, M. Eliade, E. Cassirer, entre outros, passaram a considerar a mitologia como uma “Escritura Sagrada” intimamente vinculada à vida ritual de determinada tribo, “cuja função pragmática consiste em regular e apoiar certa ordem natural e social, [...] como um sistema simbólico pré-lógico, cognato de outras formas de imaginação humana e fantasia criativa” (MIELIETINSKY apud PIRES, 2011, p. 208). Para Eliade (2006, p. 11), “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio”. Portanto, os mitos são narrativas que, a partir da ação de entes supremos, revela como uma realidade, uma ação social ou cultural passou a existir. Para os homens das sociedades arcaicas, a “história” do Cosmo e da sociedade humana é uma “história sagrada”, preservada e transmitida por intermédio de mitos. Os mitos revelam o mistério das origens, os modos de ação e relação dos antepassados, por tal característica, eles têm o papel de orientar os comportamentos humanos. Assim, a principal função dos mitos consiste em revelar esses modelos exemplares que fundamentam rituais, atividades e interações humanas. Quando os homens realizam seus rituais, de acordo com Eliade (2006), eles repetem atos exemplares das origens, e com a repetição desses atos primordiais, os homens revivem eventos míticos e garantem sentido às suas práticas ritualísticas. O sentido de um ritual é garantido pelos mitos, são eles que garantem a eficácia dos gestos rituais, o mito garante o rito, o rito reafirma o mito. Nota-se que existe uma relação entre os mitos e os ritos, pois na medida em que os mitos fundamentam os ritos, os ritos mantêm vivas as experiências míticas. Além disso, os mitos também têm uma função cultural, eles são guardiões das nossas tradições, memórias e identidade, pois, na medida em que possibilitam aos homens reviverem momentos passados e experiências ancestrais, os mitos favorecem a recuperação dos antigos valores e costumes de um grupo, satisfazendo assim, suas necessidades culturais, sociais e religiosas. Na visão mítico-simbólica de mundo, os objetos simbólicos e a magia se identificavam. Muitas vezes o símbolo era visto como realidade imediata: o sol, por exemplo, poderia ser não apenas a representação da luz divina, mas a própria divindade. No campo religioso é difícil precisar o limite exato entre as concepções místicas e mágicas e o pensamento simbólico. Para Mitford (2001), a significação dos símbolos se desenvolve ao longo do tempo e sofre influências do contexto cultural, tornando-se gradativamente mais complexa. Porém, desde os primórdios da humanidade, a temática que origina os símbolos permanece a mesma: a fertilidade da mulher e do solo, o nascimento, a vida e a morte. Entre as antinomias da experiência humana, vida e morte é o dilema mais doloroso e fundamental para os homens. De acordo com Tuan (1980, p. 19): “os mitos, lendas e contos folclóricos das mais diferentes partes do mundo têm sido interpretados como tentativas diversas para tornar a morte inteligível e aceitável”. No mito, é possível imaginar um estado no qual uma pessoa morta continua a viver ou pode retornar à vida. “A ideia cíclica pertence a uma compreensão do tempo que nos vem desde os antigos. Envolve esperança do recomeço, da ressurreição, do renascimento da vida, da natureza, da manutenção da espécie. Erige um símbolo representante de um continuum”, de acordo com Sperber (2011, p. 15). Para a autora, as formas de conto de fadas e de mito podem exprimir tanto as forças quanto os limites do ser humano, e o “para sempre” que conclui muitos contos de fadas simboliza a esperança de continuidade do ciclo vital. O mito continua fornecendo modelos para a conduta humana até os dias atuais pode conferir sentido e valor à existência, assim como pode servir à ideologização. Segundo Sperber (2011), o mito revela uma ordem, a lei cósmica, e pela metamorfose, transforma o que era vida em outra vida. No mundo mítico, “por uma súbita metamorfose, tudo pode ser transformado em tudo”, afirma Cassirer (1994, p. 136). Para o autor, o mito é um produto da emoção e o que caracteriza a mentalidade primitiva é a profunda convicção de uma fundamental solidariedade da vida, ou seja, a vida é sentida como um todo contínuo, como uma unidade ininterrupta, na qual os homens, os animais e as plantas estão no mesmo nível. A DIMENSÃO MÍTICA DO BOI-DE-MAMÃO PARANAENSE O espetáculo do boi, para Meyer (1993), é um folguedo12 popular, e Mário de Andrade (1959) classifica-o como dança dramática brasileira, relacionando-o ao Reisado13. Também no Dicionário Grove (1994, p. 145), o bumba-meu-boi é definido como uma “dança dramática difundida por todo o Brasil. Parece ter surgido no Nordeste no final do século XVIII, ocupando lugar de destaque entre as outras formas de Reisado”. Ao longo do território nacional, o folguedo do boi apresenta diferentes denominações, ritmos, formas de apresentação, indumentárias, adereços, personagens, instrumentos, temas e narrativas. Nos estados do Paraná e Santa Catarina, é chamado boi-de-mamão; no Maranhão, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí é bumba-meu-boi; no Pará e Amazonas é boi-bumbá; no Ceará e Espírito Santo é boi-de-reis, boi-surubim ou boi-zumbi; em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Cabo Frio e Macaé é bumba ou folguedo-do-boi; no Espírito Santo é boi-de-reis, entre outras denominações. O folguedo narra o mito da morte e da ressurreição do boi, e constitui uma espécie de ópera popular, resultante da união de elementos das culturas europeia, africana e indígena. 12 Folguedos são festas populares de espírito lúdico que se realizam anualmente, em datas determinadas, em diversas regiões do Brasil. 13 Reisado é uma “encenação com canto e dança para comemorar o dia de Reis, em quase todas as regiões do Brasil”, de acordo com o Dicionário Grove (1994, p. 775). No Paraná, nas primeiras aproximações com o trabalho de campo, foram identificados quatro grupos de boi. Cada grupo apresenta determinados personagens e conta uma narrativa diferente, por meio de diálogos geralmente improvisados durante as apresentações. Os personagens, os instrumentos, as toadas ou cantorias refletem os atributos culturais de cada comunidade, revelando os valores compartilhados socialmente em cada lugar. Foi possível perceber que, ressalvando algumas diferenças, o “Grupo Folclórico do Boi-demamão de Guaratuba” e o “Grupo Folclórico Boi Barroso”, de Antonina, apresentam uma narrativa que se desenvolve, basicamente, em torno de um rico fazendeiro (elemento branco) cujo boi de estimação é roubado por Pai Francisco, negro escravo da fazenda (elemento africano) que mata o animal para satisfazer o desejo de sua esposa grávida, Mãe Catirina, de comer a língua do boi. Pajés e curandeiros (elemento ameríndio) são convocados para reanimar o animal que, ao voltar à vida, é motivo para que todos cantem e dancem em uma enorme festa para comemorar o milagre. Nas apresentações do “Grupo Mandicuera”, da ilha de Valadares (Paranaguá), o personagem que morre e ressuscita é o vaqueiro (e não o boi), e no “Grupo Folclórico Boi do Norte”, de Antonina, o boi ressuscita não pelo poder de um médico (personagem que substitui o pajé), mas pelo poder da música. Em todos os grupos, portanto, o folguedo do boi representa o ciclo da continuidade: no ritual, o boi (ou o vaqueiro) morre para ressuscitar, um enredo que parece transfigurar a morte em alívio e esperança, criando uma circularidade na qual vida e morte se encontram no milagre da ressurreição. Apesar das apresentações ritualísticas reafirmarem o mito, e da presença de alguns elementos referentes à religiosidade14 no boi-de-mamão, percebeu-se a ênfase dos aspectos cômicos em detrimento da dimensão sagrada. Pode-se afirmar que a dualidade sagrado e profano, concebida por Durkheim (1996) e Eliade (2008), parece diluída nas apresentações do folguedo, pois tudo faz parte de um mesmo universo de trocas. No encontro do sagrado com o profano, o destaque dado à comicidade no boi-de-mamão paranaense parece ocultar o ritual mítico da morte e ressurreição, o qual perde a força e a visibilidade no espetáculo. Assim, o mito talvez seja presenciado, mas não vivido como experiência íntima. 14 Os aspectos da religiosidade do boi-de-mamão são discutidos em Furlanetto e Filizola (2011). O mito é uma narrativa, relato que orienta comportamentos, conferindo sentido à existência e possibilidade de transcendência da realidade, conforme Eliade (2006). Nesse sentido, é pertinente pensar que o ritual do boi paranaense nos remete ao extraordinário e metafísico? Estaria o boi revestido de um caráter sobrenatural? Nas narrativas do folguedo do boi-de-mamão, com exceção do “Grupo Mandicuera”, o boi que morre é um animal de estimação cujo dono, inconformado, busca ressuscitá-lo. Para isso, espera-se: uma intervenção prática na realidade, a magia; um fato excepcional considerado como manifestação de uma vontade divina, o milagre; uma transformação, a metamorfose. Portanto, como classificar a ressurreição do boi: magia, milagre ou mito? Sperber (2011) afirma que, na ideia de ciclo, magia e milagre estão interligados por meio de um denominador comum, religioso ou místico. Pires (2011) esclarece que, nas várias transformações narradas pelas mitologias, a metamorfose pode estar ligada ao ciclo da morte e do renascimento ou ressurreição. Na amplidão de seus usos e recursos, a metamorfose aparece ligada estruturalmente a toda mitologia e não se dissocia de categorias como o maravilhoso e o fantástico, na literatura e nas artes. Assim, como tema e motivo, a metamorfose possui uma vasta tradição na cultura ocidental, seja propriamente nos relatos mitológicos, seja nos contos populares infantis, seja nos textos literários que tocam o maravilhoso e o fantástico (PIRES, 2011, p. 232). Portanto, retomando a questão da ressurreição do boi, talvez seja possível afirmar que o mito abrange a dimensão mágica e religiosa do boi-de-mamão paranaense, na qual o fantástico e o maravilhoso se abraçam. Refletindo sobre o dilema entre a razão ocidental e a experiência do sagrado, Segato (1992) afirma que, ao tentar atribuir uma maior inteligibilidade ao mundo, a ciência retira-lhe a vitalidade. Assim, o modo da intelecção, ao instaurar a supremacia da compreensão, dessacraliza a experiência da vida cotidiana, e a crença, como um modo mítico que dramatiza o vínculo do cotidiano com o universo, deixa de ser multiplicadora da experiência do vivido. Para a autora, a antinomia entre ciência e mito deve ser superada por uma antropologia que aceite a existência do exótico, do irredutível, em que o diálogo não seja somente inteligível, mas também sensível, e o antropólogo possa “mitologizar”, ou seja, garantir ao mito seu lugar insubstituível, reencantar o mundo. Iluminar a variedade do mundo, despertar a sensibilidade e não apenas a intelectualidade humana, como defende Segato (1992), revela o caminho para que a pesquisa do boi-de-mamão, referenciada pela área científica da geografia, possa descortinar o olhar artístico e a escuta poética de novas paisagens sonoras, retratando a riqueza do espaço vivido e a imaginação criadora dos atores sociais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os elementos míticos, místicos e mágicos se mantêm presentes no imaginário popular através da oralidade, e constituem uma fonte de inspiração para as manifestações folclóricas, como o boi-de-mamão, revitalizando o fazer poético. O mito, a busca pela transcendência e a crença no sobrenatural fazem parte de todos os tempos e lugares habitados pelo homem, encantando seu mundo. Em todo curso da história, a religião permanece impregnada de elementos míticos e de tal modo a eles associada, que o sentimento de solidariedade que anima a vida parece ser uma fonte comum para a magia e a religião. “O homem não pensaria em estabelecer um contato mágico com a natureza se não tivesse a convicção de que existe um vínculo comum que une todas as coisas” (CASSIRER, 1994, p. 156). Considerando o mito como uma metáfora que simboliza as possibilidades da experiência humana, pode-se afirmar que o folguedo do boi, ao ritualizar o mito da morte e ressureição, mostra (ou deveria mostrar) aos homens o caminho do desenvolvimento espiritual, no qual se morre e se renasce diariamente. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad.: Alfredo Bosi (1. ed.) / Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 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