O código florestal e o uso da propriedade rural na

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O código florestal e o uso da propriedade rural
na perspectiva da (in)constitucionalidade da
reserva legal
The forest code and the use of rural property in the perspective
of the legal reserve’s (un) constitutionality of the
Daniela Gomes
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Docente da Escola de Direito da Faculdade Meridional - IMED e Advogada.
[email protected]
Danúbia Maria Cazarotto Martinelli
Graduada em Direito pela Faculdade Meridional – IMED.
[email protected]
A proposta do presente estudo é verificar, sob o enfoque jurídico, levando-se
em consideração os debates atuais entre ruralistas e ambientalistas, a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da instituição e implementação da reserva legal
diante das alterações trazidas pelo novo Código Florestal brasileiro, ante o direito
constitucional à propriedade privada rural. Para a consecução do estudo, inicialmente se analisa o surgimento do direito à propriedade privada e do princípio da função
socioambiental, passando-se a explorar o instituto da reserva legal nos dois Códigos
Florestais anteriores e no novo Código Florestal brasileiro. Por conseguinte, aborda-se o embate existente entre ruralistas e ambientalistas acerca das alterações da legislação florestal e dos impactos advindos da aplicação da reserva legal. Por fim,
destaca-se a possível inconstitucionalidade da limitação do direito de propriedade
privada rural diante da instituição da reserva legal. Ressalta-se que, mesmo diante
da alteração da legislação, não se pode desconsiderar a urgência na sensibilização da
sociedade para a necessidade de se preservar o meio ambiente, sob pena de tornar
uma lei inócua, sem aplicabilidade e carente de credibilidade social, acarretando
grave retrocesso social e ambiental.
Palavras-chave código florestal; função social; propriedade privada rural; reserva legal.
resumo
Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 12(23): 215-233, jul.-dez. 2012 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 215
Daniela Gomes; Danúbia Maria Cazarotto Martinelli
Considering the current debates between landowners and environmentalists, it is this study’s purpose to analyze, under a legal approach, the constitutionality
or unconstitutionality of the institution and implementation of the legal reserve in
face of the changes brought by the new Brazilian Forest Code, as to the constitutional right to private rural property. To achieve the study, we first analyze the emergence
of the right to private property and the principle of socio-environmental function;
then we explore the legal reserve institute in the two previous Forest Codes and the
new Brazilian Forest Code. Therefore, we address the clash between landowners and
environmentalists about the changes in the forest law and the impacts resulting from
the application of the legal reserve. Finally, we highlight the possible unconstitutionality of the limitation of the right to private rural property in face of the institution
of legal reserve. It is noteworthy that despite the changes in legislation, one cannot
ignore the urgency to sensitize society to the need to preserve the environment at
the risk of making the law innocuous, unenforceable, and lacking social credibility,
causing a serious social and environmental step back.
Keywords forest code; social function; private rural property; legal reserve.
abstract
Notas introdutórias
O Código Florestal brasileiro de 1965 (Lei n. 4.771) há muito tempo vem sendo
alvo de críticas acerca de sua (in)eficácia no que tange à regulamentação e fiscalização da supressão e exploração de florestas e demais formas de vegetação. Em virtude
de tais críticas, o instituto da reserva legal (RL), previsto no primeiro Código Florestal brasileiro de 1934 (Decreto n. 23.793), é mantido no Código de 1965 e alterado
substancialmente no novo Código Florestal brasileiro (Lei n. 12.651/2012).
Com os intensos debates entre os ruralistas e os ambientalistas acerca das alterações no Código Florestal e, posteriormente, de sua aprovação, passando a integrar
o ordenamento jurídico brasileiro com nova redação, torna-se relevante analisar a
(in)constitucionalidade da instituição e implementação da reserva legal, levando-se
em consideração o direito à propriedade privada, constitucionalmente assegurado.
Nesta perspectiva, busca-se verificar o surgimento do direito à propriedade
privada e do princípio da função socioambiental e destacar o instituto da reserva
legal, previsto nos três códigos florestais brasileiros. Por conseguinte, avaliam-se os
principais argumentos utilizados pelos ruralistas na defesa do direito de propriedade
e pelos ambientalistas na busca pela sustentabilidade. Por fim, afere-se o possível
vício de constitucionalidade que a intervenção no direito de propriedade privada,
realizada pelo Estado, por intermédio da reserva legal, acarreta.
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
O direito de propriedade privada e sua função socioambiental
O direito de propriedade teve função bastante significativa na história da humanidade, pois foi por meio dele que os homens se organizaram, instituíram a sociedade e formaram cidades. No contexto histórico, o surgimento e a organização da
propriedade, como bem privado, foi adaptando-se ao lugar e à época vivida.
Nos primórdios de sua existência, especificamente no período pré-histórico,
o homem era nômade e de comportamento similar às outras espécies de animais,
ou seja, vivia em um estado selvagem, coletando frutos e exercendo a caça. Com a
domesticação de animais, o cultivo de plantas e a utilização da cerâmica, o homem
atinge o estado de barbárie. Posteriormente, com a fundição do minério e a invenção
da escrita, há a passagem do estado de barbárie para o estado de civilização. Mesmo
no período selvagem, o homem já tem noção de propriedade, seja de sua canoa ou
de seu instrumento de caça. Entretanto, é com a domesticação de animais e o cultivo
de plantas, no ano 10.000 a.C., que o homem passa a fixar bases geográficas. Ocorre que, nesses períodos, a noção de propriedade não assume as feições atualmente
dadas pela sociedade (de um direito criado em razão de um “contrato social”), de
tal forma que “a relação de domínio exercida pelo homem sobre o objeto era condicionada e legitimada por uma ordem jurídica natural, com vistas a assegurar-lhe a
satisfação das necessidades mais prementes” (ORRUTEA, 1998, p. 35).
A evolução histórica do direito de propriedade
Com a invenção da escrita e a passagem do homem ao estado de civilização, inicia-se o período denominado Antiguidade ou Idade Antiga. Há que se considerar nesse
período uma importante divisão: os povos do Antigo Oriente (egípcios, sumérios, acádios, babilônios, assírios, caldeus, fenícios, hititas, hebreus, persas, cretenses, além da
Índia e da China) e os povos da Antiguidade clássica, como os romanos e os gregos.
Os povos do Antigo Oriente foram as primeiras sociedades divididas em classes (nobreza, elementos livres, servos e escravos) que inspiraram os povos gregos
e romanos na cultura material e espiritual. No Egito e na Mesopotâmia, a terra era
controlada, juntamente com seu produto agrícola, pelos governantes. Diferentemente, dava-se essa relação na Pérsia, onde o regime de propriedade era o particular, no
qual o proprietário pagava impostos elevados para cultivá-la. Contudo, é entre os
babilônios, com o Código de Hamurabi, por volta de 2.300 a.C., que a propriedade
é regulamentada sob normas de estrutura codificada (seja a propriedade do escravo
ou a propriedade de qualquer objeto material ou imaterial) (cf. ORRUTEA, 1998, p.
40-41). Também entre os povos hebreus há a instituição da propriedade particular, de
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forma expressa no segundo livro do Pentateuco, denominado Êxodo. A preocupação
com os bens particulares foi exaltada por Moisés nos Dez Mandamentos. Ressalta-se
ainda que, na Índia, também houve o reconhecimento expresso do direito de propriedade, no Código de Manu.
De outro giro, nas sociedades grega e romana, a propriedade privada começa a
existir a partir de uma modificação na organização gentílica. É com os gregos e os
romanos que a propriedade passa a incorporar o caráter individualista.
Entre os gregos, na gens, em sua forma primitiva, fundamentada na concepção
de grupos consanguíneos e com certo grau de parentesco, a propriedade, de início,
tinha a característica de ser comum a todos. Com a introdução do direito paterno em
substituição ao direito materno, houve a acumulação de riquezas pela família em virtude, principalmente, da instituição da herança. A partir daí, verifica-se que foi entre
os gregos que apareceram os primeiros impulsos à propriedade privada. “A propriedade privada entre os gregos é resultado de um processo que gera o fortalecimento
concomitante da família. A partir daí, família e propriedade privada são instituições
que caminham juntas e no mesmo passo” (ORRUTEA, 1998, p. 49).
Para Fustel de Coulanges, os gregos sempre reconheceram a propriedade privada, entretanto, seguiram caminho inverso do natural, uma vez que a propriedade
aplicou-se primeiro ao solo e depois à colheita. Em sua concepção, a religião doméstica, a família e o direito de propriedade guardam relação inseparável em suas origens. “A idéia de propriedade estava implícita na própria religião. Cada família tinha
o seu lar e os seus antepassados. Esses deuses podiam ser adorados pela família e só
a ela protegiam; eram sua propriedade” (COULANGES, 2005, p. 65-77). Assim, o
lugar onde a família fixa seu altar é sua propriedade, é domínio sagrado e protegido
por divindades domésticas.
Em Roma, o processo é similar. A primeira forma de propriedade foi implementada pelas tribos, que deram origem à formação da cidade. Em um primeiro
momento, toda a terra cultivada era da tribo, e a propriedade era coletiva. Em um
segundo momento, a propriedade passa a ser familiar e somente os filhos homens
eram herdeiros. Em um terceiro momento, a propriedade passou a ser individual, ou
seja, “essa concentração de poderes no grupo familiar perdeu o vigor e passou a se
focalizar no indivíduo” (MATTOS, 2003, p. 25-26). Assim, cada integrante do grupo
familiar foi adquirindo direito individual, o que acarretou a mudança do traço familiar da propriedade para caracterizá-la pela individualidade.
Com a passagem do traço familiar para uma propriedade individualista e absoluta, ao proprietário assiste o direito livre e irrestrito de utilizá-la como bem entender. A
concepção romana inicial de propriedade é a de um direito absoluto e protegido, que,
com as complexas relações sociais, foi cedendo vez aos direitos do indivíduo, e não
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
aos da coletividade. Cabe salientar que a Lei das XII Tábuas trouxe consigo algumas
limitações à propriedade, como as limitações em favor do interesse dos vizinhos (cf.
MATTOS, 2003, p. 27). É também por essa lei que a propriedade passa a ser alienável.
O período da Idade Média foi caracterizado pelo surgimento do feudalismo
como uma nova organização econômica, política e social no Ocidente. A sociedade
medieval tem sua origem com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476
d.C., em função da articulação de valores romanos, católicos e germânicos. Em linhas gerais, entre os fundamentos para o surgimento do feudalismo encontram-se a
preocupação com a segurança, com as desigualdades sociais e o interesse de defesa
das propriedades privadas, que estavam sendo invadidas e saqueadas constantemente, acarretando todos os tipos de danos aos proprietários. Assim, os donos de terras
submeteram-nas ao soberano em troca de proteção. O soberano passa a ter o domínio
eminente, e sua utilização – domínio útil – é garantida aos proprietários, agora denominados feudatários (cf. MATTOS, 2003, p. 28).
Durante a vigência do feudalismo, em 1245, ainda na Idade Média, surge a Magna Carta na Inglaterra. A Magna Carta constituiu documento que procurava assegurar
liberdades individuais em relação ao rei, mas não tinha o propósito de se estender a todos os membros da sociedade. Ressalta-se que, apesar do propósito nuclear de atender
aos interesses dos nobres, a Magna Carta não foi apenas uma conquista, mas também
o marco inicial do surgimento das Declarações de Direitos. Entre as liberdades que
procurava assegurar, destaca-se o direito à propriedade privada (cf. ORRUTEA, 1998,
p. 58-59). Isso se deu em função do declínio do feudalismo, uma vez que seus pressupostos não atendiam às novas questões sociais que estavam surgindo.
O período moderno teve seu ponto de partida com as grandes expedições marítimas realizadas pelos europeus. Concomitantemente a esse acontecimento, constatou-se uma Revolução Comercial, que se traduziu na transformação da economia
europeia e trouxe como consequência a ascensão do capitalismo. O Renascimento
também marcou presença no período moderno, fazendo ressurgir valores da Antiguidade clássica, como o individualismo (cf. ORRUTEA, 1998, p. 63-64). Foram
esses três fatores (as grandes navegações, a Revolução Comercial e o Renascimento)
que modelaram e influenciaram as instituições na Idade Moderna. Sob a influência
desses fatores, surgiu o iluminismo, que procurou contestar as instituições políticas,
econômicas e sociais da época. Seus ideais chegaram a influenciar a independência
dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e, até mesmo, os movimentos de independência do Brasil (cf. ORRUTEA, 1998, p. 64). Politicamente, foi uma ampla crítica à forma de poder vigente (absolutismo) e a proposta de um novo entendimento
da vida social, mas, acima de tudo, foi uma revolução cultural, além de ser a matriz
do pensamento liberal.
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Da combinação do declínio do feudalismo e da intensificação do absolutismo
originou-se o movimento que culminou na Revolução Francesa de 1789. Os detentores da riqueza (burguesia) estavam insatisfeitos em ter posses e não ter poder. Esse
contexto de centralização do poder nas mãos do clero e da nobreza foi, sem dúvida,
fator desencadeante da Revolução. Os ideais iluministas de “liberdade, fraternidade
e igualdade” foram a manifestação do repúdio e do inconformismo com esse cenário.
A propriedade tornou-se questão pontual entre os anseios da Revolução Francesa (cf.
MATTOS, 2003, p. 30-31).
Em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a propriedade foi consagrada como direito inviolável e sagrado, inserindo-se no rol dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem. Com o Código Napoleônico de 1804, a
definição romana de propriedade absoluta foi resgatada. Ressalta-se que a noção de
propriedade adotada pelo Código Civil brasileiro de 1916 é idêntica à do Código de
Napoleão, o que causou, e ainda gera, graves distorções em sua aplicação, uma vez
que os contextos nos quais estavam inseridos não guardam nenhuma semelhança.
Diante disso, em contraponto à doutrina liberal sustentada pela burguesia, em
um momento no qual os países europeus encontravam-se marcados por profundas
desigualdades sociais, que pioraram em razão da Revolução Industrial desenfreada,
surge o pensamento socialista. A possibilidade de pensar uma nova forma de organização social foi herança do iluminismo.
No pensamento limitado pela religião, em que as coisas são da forma
que são pela vontade divina, não era possível questionar a estrutura
social. Quando o Iluminismo propôs que a sociedade fosse examinada
pela razão, foi aberta a possibilidade de elaborar uma outra estruturação
da sociedade. (PETTA, 1999, p. 181-183).
A partir daí, surgiram teorias que defendiam uma estrutura social em que o poder
fosse exercido pelas classes trabalhadoras. Em linhas gerais, os socialistas acreditavam
ser possível transformar a sociedade acabando com os desequilíbrios econômicos.
O cenário de injustiças e de miséria da época inspirou o socialismo científico ou
socialismo marxista, contribuindo para a difusão dos ideais de igualdade e de justiça
social que se realizariam por meio da distribuição de riquezas, da crítica das relações
de trabalho e da tutela estatal dos bens de produção. A partir do pensamento marxista, a propriedade passou a ser vista como um bem de produção ligado à divisão do
trabalho. Dessa forma, a propriedade deveria pertencer à sociedade, e não apenas a
alguns homens.
O ideal marxista foi aplicado com a Revolução Russa de 1917, quando se chegou a implantar a propriedade coletiva sob o domínio administrativo do Estado, abo220
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
lindo-se as propriedades privadas. Em outros países, o pensamento marxista também
inspirou mudanças, fazendo com que houvesse uma maior intervenção do Estado no
domínio privado. De certa forma, o pensamento marxista foi decisivo para o rompimento do paradigma de propriedade absoluta.
A análise da propriedade privada na contemporaneidade é marcada pela revisão
da postura não intervencionista do Estado e pela contestação do caráter individualista da propriedade. A releitura da noção de propriedade, atribuindo-lhe caráter social,
emerge a partir da Revolução Industrial e do surgimento dos movimentos sindicais,
que exigiam a proteção dos direitos sociais por parte do Estado.
Novos paradigmas constitucionais
O processo de socialização dos direitos e de limitação das liberdades individuais teve como influência o ideário socialista, o anarquista e também o cristianismo
de cunho social. Nesse sentido, o estado contemporâneo de postura intervencionista
passa a ser conhecido como welfare state ou estado do bem-estar social. Para César
Luiz Pasold, o marco do surgimento do Estado contemporâneo deu-se com a constituição mexicana de 1917, e com a constituição de Weimar, de 1919, que impôs
limites aos direitos privados e incluiu a ideia do direito de propriedade vinculado
a obrigações sociais (1988, p. 43). Assim, tem-se que, no Estado contemporâneo, a
propriedade passa a estar vinculada ao cumprimento da função social.
No estado democrático de direito, a propriedade deve adequar-se à busca da
realização da justiça social e da igualdade pela passagem de uma propriedade-direito
(absoluta e individualista) para uma propriedade-função. A propriedade contemporânea deve orientar-se para os valores sociais e ambientais. De fato, as transformações
do direito de propriedade fazem-no um direito renovado por adquirir contornos socioambientais conforme dispõe a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de
2002. Com isso, a noção de função social evoluiu gradativamente até se incorporar
ao conceito de propriedade, acarretando o rompimento definitivo do paradigma civilista da propriedade, vinculando-a ao cumprimento de uma função social e ambiental
no interesse da coletividade.
O constituinte reconhece na propriedade uma tríplice finalidade: individual, social e ambiental. Há uma função pessoal, na qual a propriedade é um direito com o
fim de servir à pessoa. Há uma função social, em que a propriedade é bem comum da
sociedade. Há também uma função ambiental, pela qual todos os cidadãos têm o dever de contribuir com a preservação do ambiente para as presentes e futuras gerações.
Ao se referir à função social e ambiental da propriedade (rural ou urbana), não
se pode deixar de mencionar que a função social e ambiental não impõe ao proprieCadernos de Direito, Piracicaba, v. 12(23): 215-233, jul.-dez. 2012 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 221
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tário somente condutas negativas, ou seja, de abstenção, mas impõe, igualmente,
condutas positivas, verdadeiras obrigações de fazer (diferentes das obrigações do
Direito Civil). Antônio Herman Benjamin esclarece que, inicialmente, por influência
da concepção individualista da propriedade, entendia-se que a função social da propriedade operava somente por meio de imposições negativas. Entretanto, percebeu-se que o instituto da função social demanda prestações positivas por parte do proprietário. De tal forma, a função social requer regras impositivas que estabeleçam
obrigações e comportamentos ativos em prol da sociedade (1997, p. 14).
Nesse sentido, tem-se que o cumprimento da função socioambiental é que garante legitimidade ao direito individual de propriedade, não merecendo tutela jurídica, ou, tampouco, tendo direito legítimo aquele que não a utilizar de acordo com
os preceitos legais, uma vez que o proprietário não possui apenas um direito, mas
também um dever fundamental.
O novo código florestal brasileiro e a reserva legal
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2011, na ocasião da tramitação do novo Código Florestal brasileiro no
Congresso Nacional, o Código Florestal é o instrumento legal que deverá definir a
ocupação de 329,9 milhões de hectares de terra, o equivalente a 38,7% do território
nacional, destinado, principalmente, à agricultura e à pecuária, enaltecendo a grande
responsabilidade que existe na reformulação da legislação ambiental.
Aspectos relevantes do conceito de reserva legal
Cumpre destacar que o Código Florestal brasileiro de 1965 (Lei n. 4.771) há
muito vinha sendo alvo de críticas acerca de sua (in)eficácia no que tange à regulamentação e fiscalização da supressão e exploração de florestas e demais formas de
vegetação. Em função de tais críticas, entre outras alterações, complementando os
dispositivos legais do Código Florestal, foi editada a Medida Provisória n. 2.16667, de 2001, que introduziu o conceito de área de preservação permanente (APP) e
remodelou o instituto da reserva legal (RL), previsto no primeiro Código Florestal
brasileiro de 1934 (Decreto n. 23.793), trazendo proibição aos proprietários de terras
de suprimir parte da vegetação existente, devendo ser averbada a reserva legal junto
à inscrição da matrícula do imóvel, sendo a partir deste momento vedada sua alteração ou destinação.
Com a instituição da reserva legal, os ruralistas passaram a manifestar sua inconformidade com o fato de terem de assumir a obrigação de arcar com custos da
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
preservação ambiental, tendo reduzida a possibilidade de exploração econômica da
terra, sem contrapartida significativa.
A partir de então, os debates existentes em torno dos instrumentos do Código
Florestal por parte de ambientalistas e ruralistas desencadearam a propositura de
um novo Código Florestal que, por meio do Projeto de Lei n. 1.876 de 1999, passou a dividir opiniões dos mais diversos setores da sociedade e tem gerado debates
bastante significativos.
Em análise ao mencionado projeto de lei, agora “novo Código Florestal Brasileiro”, Lei n. 12.651 de 25 de maio de 2012, a presidenta Dilma Rousseff manifestou-se pelo veto de 12 (doze) dispositivos legais do novo Código Florestal e 32
(trinta e duas) modificações no texto aprovado pela Câmara dos Deputados, dos
quais 14 (quatorze) recuperam o texto elaborado pelo Senado Federal, 5 (cinco) são
novos dispositivos e 13 (treze) são adequações ou pequenos ajustes de conteúdo. Os
pontos que sofreram intervenção presidencial foram editados por meio da Medida
Provisória n. 517 de 2012, que até o início do mês de junho de 2012 já havia recebido
cerca de 343 emendas e suscitado acirradas discussões acerca de sua desconformidade com os preceitos constitucionais.
Assim sendo, é importante mencionar que o novo Código Florestal brasileiro
tem como fundamento central a proteção e o uso sustentável de florestas e demais
formas de vegetação, em consonância com o desenvolvimento econômico e social,
conforme destaca o artigo primeiro, salientando uma série de princípios a serem
atendidos, entre os quais figura a responsabilidade partilhada entre entes federativos
e a sociedade na gestão das florestas brasileiras, reiterando o direito-dever ao meio
ecologicamente equilibrado, reconhecido constitucionalmente desde 1988.
Ademais, o novo diploma legal reforça a distinção existente entre área de preservação permanente (APP) e reserva legal (RL), ao destacar que a APP é uma área
protegida, coberta ou não por vegetação nativa com a função ambiental primordial
de preservar bens ambientais e assegurar o bem-estar e a saúde do gênero humano,
ao passo que reconhece a RL como área localizada no interior de uma propriedade
ou posse rural, que deve ser reservada e destinada a assegurar o desenvolvimento
sustentável de modo a conservar e a reabilitar os processos ecológicos.
Segundo o disposto no novo Código Florestal, “todo imóvel rural deve manter
área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo
da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente” (art. 12). Em
imóveis localizados na Amazônia Legal deve ser observado o percentual de 80%
(oitenta por cento) em áreas situadas em florestas; observado o percentual de 35%
(trinta e cinco por cento) em áreas de cerrado; e, em áreas de campos deve-se observar o percentual de 20% (vinte por cento). Para as demais áreas localizadas no País,
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o percentual a ser observado é de 20% (vinte por cento) de extensão destinada à
reserva legal.
Cumpre ressaltar que, no Código Florestal anterior, o cálculo da reserva legal
excetuava, em seu cômputo, as APPs, devendo ser estas averbadas em cartório. No
novo Código Florestal, por meio do artigo 15, admite-se o cômputo das áreas de
preservação permanente no cálculo do percentual da reserva legal do imóvel com algumas ressalvas, admitindo-se a instituição da RL em regime de condomínio, ou de
forma coletiva entre propriedades rurais, desde que respeitado o percentual previsto
no artigo 12 em relação a cada imóvel, mediante aprovação do órgão competente do
Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) (art. 16).
Ainda em relação à RL, o novo código também permite a exploração econômica mediante manejo sustentável, previamente aprovado por órgão competente do
Sisnama (art. 17, § 1º), bem como prevê a obrigatoriedade de suspensão imediata
de atividades em área de RL desmatada irregularmente após 22 de julho de 2008
(art. 17, § 3º), isentando os proprietários rurais das multas e sanções anteriormente
previstas para as circunstâncias de utilização irregular de áreas protegidas até esta
data. Tal anistia foi bastante criticada e entendida como um retrocesso injustificado,
tendo em vista que a legislação anterior previa pena de três meses a um ano de prisão
simples e multa de um a cem vezes o salário mínimo. Atualmente, o artigo 59, § 4º,
prevê que, após a adesão do proprietário de terras ao Programa de Regularização
Ambiental (PRA) e, enquanto cumprir o termo de compromisso constituído enquanto título executivo extrajudicial, não poderá ser autuado por infrações cometidas
antes de 22 de julho de 2008 relativas à supressão irregular de vegetação em áreas de
APP, de RL e de uso restrito.
Também cabe destacar que o novo diploma legal indica prazo de até 2 (dois)
anos, a partir da data da publicação da lei, para que se inicie o processo de recomposição da RL, sem prejuízo da aplicação das sanções administrativas, civis e criminais
cabíveis (art. 17, § 4º). Ademais, também há previsão do dever legal de se proceder
ao registro da área de RL perante o órgão ambiental competente por meio de inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo vedada alteração de sua destinação,
com algumas exceções previstas em lei (art. 18). A novidade é que o registro da RL
no CAR desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis (art. 18, § 4º).
No que tange às áreas consolidadas em RL, é relevante frisar que o Código
Florestal anterior não contemplava o conceito de área consolidada, uma vez que a
recomposição e a compensação eram obrigatórias. No novo Código Florestal, o proprietário ou possuidor de imóvel rural que detinha, em 22 de julho de 2008, área de
RL em extensão inferior aos percentuais mínimos previstos em lei (art. 12) poderá
regularizar sua situação mesmo sem a adesão ao Programa de Regularização Am224
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
biental (PRA), adotando, isolada ou conjuntamente, algumas medidas como: recompor a RL, permitir a regeneração natural da vegetação na área de RL e/ou compensar
a RL (art. 66).
A compensação ambiental, precedida pela inscrição da propriedade no Cadastro Ambiental Rural (CAR), poderá ser feita mediante aquisição de cota de reserva
ambiental (CRA) de arrendamento de área sob regime de servidão ambiental, de
doação ao poder público de área localizada em unidade de conservação pendente
de regularização fundiária ou cadastramento de outra área equivalente em imóvel
de mesma titularidade ou adquirida em imóvel de terceiro, desde que localizada no
mesmo bioma (art. 66, § 5º).
Neste mesmo sentido, a legislação estabelece que as áreas a serem utilizadas
para compensação deverão ser equivalentes em extensão, estar localizadas no mesmo bioma da RL a ser compensada e, se for fora do estado, estar localizada em áreas
identificadas como prioritárias pela União ou pelos estados (art. 66, § 6º).
Assim sendo, em virtude de tais alterações no Código Florestal, no que tange ao instrumento da reserva legal, surgiram alguns embates bastante pertinentes
entre ruralistas e ambientalistas que levam, inevitavelmente, ao questionamento
acerca da (in)constitucionalidade da instituição da reserva legal ante o direito de
propriedade privada.
O embate entre ruralistas e ambientalistas sobre as alterações do
Código Florestal
Conforme já destacado, o instituto da reserva legal passou por inúmeras modificações no ordenamento jurídico brasileiro a partir da aprovação do primeiro Código
Florestal brasileiro de 1934 (Decreto n. 23.793) e, posteriormente, do Código Florestal de 1965 (Lei n. 4.771/65), que visava à proteção de todas as reservas florestais
nativas existentes, tomando novas feições com o novo Código Florestal de 2012 (Lei
n. 12.651/12).
Ocorre que, segundo os ruralistas, após a criação da reserva legal eles passam a
assumir grandes responsabilidades, pois é deles a obrigação de manter a RL, arcando
com reflorestamento, plantio e replantio, custo de fiscalização e de preservação da
área. Nesse sentido, alegam a impossibilidade de ampla exploração econômica do
imóvel e a sujeição a severas sanções em caso de descumprimento, não recebendo
nada em contrapartida (cf. DUTRA, 2009).
Pode se dizer que, em parte, o posicionamento dos ruralistas é o de que a criação
das reservas legais como instrumento de preservação do meio ambiente, mesmo que
motivada pela função social e ambiental inerente à propriedade, deve ser vista como
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uma ação arbitrária e inconsequente. O poder público precisa compreender que sua
ação na criação das reservas legais não deve ter caráter de confisco e, para tanto,
precisa necessariamente impor uma justa compensação financeira ao proprietário.
Em um resgate histórico da aplicação do instituto da reserva legal, cumpre
destacar que, no ano de 1997, o Governo Federal, visando persuadir o proprietário
rural a instituir a RL, editou o Ato Declaratório Ambiental (ADA) pela Portaria nº
162/97 do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais).
Considerava-se que, a partir da aplicação deste ato, o proprietário que fizesse uma
declaração ao Ibama, pedindo o reconhecimento de áreas de preservação como preservação permanente e reserva legal, obteria um comprovante que o tornaria isento
do Imposto Territorial Rural (ITR).
No entanto, no entendimento de Ozório Vieira Dutra (2009), tal ato não passava
de uma armadilha ao proprietário rural, pois o levava a instituir a RL sem a devida
compensação financeira, considerando que o valor pago pelo imposto é ínfimo em
relação ao valor da indenização que realmente deveria ser paga ao proprietário que
deixaria de produzir e explorar parte de suas terras, sendo atingidas, diretamente, em
sua potencialidade econômica.
Por conseguinte, em agosto de 2001, por meio da medida provisória nº 2.16667, foi inserido no texto da Lei nº 4.771/65 mais um instituto jurídico com o intuito de estimular a criação da RL e justificar a preservação ambiental, denominada
servidão florestal, representada por um título, uma cota de reserva florestal. Esses
títulos resultavam da criação de uma área de mata nativa instituída pelo proprietário
rural, após apresentar ao órgão ambiental o interesse na emissão de cotas. Depois de
aprovada a proposta, eram emitidas as cotas florestais, representando a vegetação
nativa. Esses títulos poderiam posteriormente ser adquiridos por proprietários que
ultrapassaram o limite legal de desmatamento.
Diante destas circunstâncias, novamente se entendeu a criação e instituição de
tal instituto ambiental como um meio de persuasão do poder público sobre o proprietário rural, já que a implantação da reserva florestal, objetivando a emissão das cotas,
acarretava investimento muito elevado (cf. DUTRA, 2009).
Em palestra aos agricultores e cooperados da região norte do estado do Rio
Grande do Sul, o deputado Luiz Carlos Heinze (2010) lembrou que o Brasil tem mais
de seis milhões de produtores e que eles representam 40% da força de trabalho e
com um montante de mais de 260 milhões de reais movimentados pelo agronegócio.
Com a imposição do Estado de instituir a RL, o País consolida a imposição externa dos países desenvolvidos, que atribuem ao Brasil a responsabilidade ambiental
por considerá-lo o “pulmão do mundo”. Com menos produção brasileira, diminui a
concorrência externa. Em síntese, o Brasil preserva e os demais produzem. É o que
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
também entende o doutrinador Ozório Dutra, ao abordar este tema, demonstrando o
prejuízo que essa averbação trará para a economia do País:
com a devida vênia em relação aos entendimentos em contrário, a
obrigatoriedade da criação da reserva legal não constitui uma servidão administrativa, porque com sua instituição e averbação no registro
imobiliário, o uso e a exploração econômica da propriedade rural fica
totalmente prejudicada, ou seja, o proprietário fica tolhido do direito de
usar, gozar e dispor livremente da propriedade na sua potencialidade
econômica. (2009, p. 30).
A despeito do que bradam as bem intencionadas vozes em prol de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, há que se refletir mais amplamente sobre os
impactos da implementação da RL nos percentuais previstos em lei, sob pena de
macular importantes aspectos econômicos e sociais do País, principalmente neste
momento de moderado crescimento (cf. TRENNEPOHL, 2010).
Dessa forma, pode-se dizer que a RL poderá gerar custos, tanto privados quanto
sociais. No âmbito privado, têm-se os custos com a manutenção, plantio, replantio,
reflorestamento, além do sacrifício ao lucro que seria obtido com a utilização da área
para atividades econômicas. No âmbito social, considera-se que a redução da produção agropecuária (oferta de produtos e empregos) tem efeito no preço dos produtos,
limitação das áreas disponíveis para expansão do desenvolvimento, redução dos impostos arrecadados que poderiam ser utilizados em melhorias sociais.
Merece destaque o entendimento referido pelo ministro Celso de Mello de que:
a doutrina e a jurisprudência dos tribunais têm sempre enfatizado que a
instituição de limitações administrativas, quando incidam sobre diversas
faculdades jurídicas em que se pluraliza o domínio, comprometendo e afetando a própria substância econômica do direito de propriedade, impõe ao
poder estatal a ineliminável obrigação de indenizar o proprietário do bem
atingido pelo Poder Público (MELLO apud DUTRA, 2009, p. 42).
Portanto, com base nos entendimentos referidos, os ruralistas defendem que a
imposição do poder público na instituição da RL viola o direito de propriedade, pois
desconsidera os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988. De tal forma, é imprescindível que a sociedade compreenda que a
proteção do meio ambiente não se justifica diante de abusos e ilegalidades impostas
a uma parcela da população, no caso, os proprietários de imóveis rurais.
Em entendimento contrário, os ambientalistas defendem entusiasticamente a
instituição e aplicação da RL. Para eles, a legislação brasileira trata consideravelCadernos de Direito, Piracicaba, v. 12(23): 215-233, jul.-dez. 2012 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 227
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mente da proteção ambiental, mas o problema reside na falta de sua efetiva aplicação. O artigo 225, § 1, I, da Constituição Federal de 1988 elenca a principal base
argumentativa dos ambientalistas, uma vez que, para assegurar o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, incumbe ao poder público definir, em todas as unidades da
Federação, espaços territoriais a serem protegidos, dentre eles a área de RL.
A Constituição Federal, em seu artigo 24, IV, traz a competência da União,
dos Estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre florestas,
caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais,
proteção do meio ambiente e controle da poluição. A União, representada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
pela reforma da Lei n.º 7.803-89 (art.18), pode intervir em toda exploração e manejo
florestal. A capacidade do órgão federal, de praticar o poder de polícia ambiental é
idêntico ao poder que os estados podem exercer. Sendo assim, caracteriza-se como
plenamente constitucional a implantação da RL, decorrente de Lei Federal.
Contudo, na época em que houve a iniciativa de reformulação do Código Florestal, a bancada ruralista passou a sustentar, como base de argumentação para a não
averbação da RL, a ameaça de o Brasil deixar de ampliar suas fronteiras agrícolas e,
assim, perder sua competitividade no mercado exterior. E, ainda, a necessidade de
ampliar a produção de alimentos, o que justifica a não averbação da RL e das APPs.
Em contraponto ao entendimento acima exposto, os ambientalistas salientam
que o enfoque principal da alteração da legislação deveria ser a diminuição dos impactos ambientais provocados pelos grandes latifundiários pela adoção de um novo
modelo econômico de produção, a denominada agricultura moderna, em que se deveria estimular a busca pela agricultura sustentável, modelo de produção que, simultaneamente, conserva os recursos naturais e fornece alimentos saudáveis. Como bem
salienta Miguel Altieri,
Após três décadas de implantação, o padrão convencional de agricultura tem se mostrado insustentável, não só pelo aumento da pobreza e
o aprofundamento das desigualdades, mas também pelos impactos ambientais negativos causados pelo desmatamento continuado, pela redução dos padrões de diversidade preexistentes, pela intensa degradação
dos solos agrícolas e contaminação química dos recursos naturais, entre
tantos outros impactos. (2000, p. 8).
Além do mais, inúmeras pesquisas realizadas no País demonstram que há terras
disponíveis em quantidade suficiente para elevar a produção agrícola sem que seja
necessário devastar a Amazônia e as demais vegetações existentes. Mas, para que o
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
aumento na produção possa vir a acontecer, é necessária a adoção de um projeto de
desenvolvimento baseado na agricultura sustentável.
O movimento socioambientalista, que congrega mais de 2 mil ONGs e movimentos sociais com atuação no desenvolvimento de pesquisas e projetos voltados
à conservação ambiental e ao desenvolvimento sustentável, sugeriu, nestes últimos
anos, algumas propostas com relação à averbação da RL. Entre elas, destaca-se a
necessidade da criação de incentivos ambientais aos proprietários para que mantenham e recuperem a RL, vinculando a concessão de crédito fundiário à manutenção
de tal área, premiando os imóveis com cadastramento ambiental e áreas efetivamente
preservadas com juros menores e rebate maior. Também se propõe a ampliação da
política de preços para os produtos florestais e agroflorestais produzidos nas áreas de
manejo, facilitando a criação de mercado para eles.
Ainda, Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray, presidente do Instituto pelo Direito a um Planeta Verde, que surgiu na década de 1990 e reúne operadores do direito
preocupados e atuantes na defesa do meio ambiente, defende que, assim como toda
lei setorial existente no Brasil, a legislação florestal também precisa ser atualizada
paulatinamente, considerando as mudanças socioeconômicas regionais. Contudo,
entende que, mais importante que reformar o Código Florestal, é fortalecer sua aplicação (cf. PLANETA VERDE, 2010).
Sendo assim, os ambientalistas compreendem ser constitucional a implantação
da área de reserva legal no âmbito da propriedade privada rural com base na Constituição Federal de 1988 e nos princípios ambientais instituídos. Para eles, as reformas
no Código Florestal brasileiro devem ser orientadas por todos os envolvidos e pesquisadores da área, e não apenas por alguns latifundiários preocupados apenas com
seus próprios interesses.
Por fim, é importante ressaltar que, acerca do novo Código Florestal Brasileiro
de 2012, os ambientalistas entendem que o veto presidencial foi periférico e insuficiente, tendo revogado mais de vinte conquistas na adequação da legislação existente. Também salientam que tais alterações, diante do que está posto na Constituição
Federal de 1988, representam um retrocesso social que acabará por legitimar o desmatamento indiscriminado ocorrido no passado e induzir a novos desmatamentos.
A (in)constitucionalidade da limitação do direito de uso da
propriedade privada rural diante da instituição da reserva legal
O direito de propriedade encontra-se assegurado entre os direitos fundamentais
elencados na Constituição Federal de 1988. Em seu artigo 5º, a Constituição garante
o direito de propriedade (XII), desde que cumpra sua função social (XIII). Também
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são encontrados na Carta Magna outros preceitos legais tratando da propriedade privada e de sua função social, como o artigo 170 (II, III), que refere ser a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim
assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, observados
os princípios da propriedade privada e da função social da propriedade.
Igualmente, entre os critérios garantidores do direito à propriedade, encontra-se
o disposto no artigo 186 da Constituição Federal de 1988, que refere alguns requisitos que devem ser observados, sendo estes o aproveitamento racional e adequado
da propriedade, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis nesta, a preservação do meio ambiente, a observância das disposições que regulam as relações
de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Assim sendo, a garantia do direito depende da “função social”, ou melhor,
depende do modo de uso.
Outrossim, pode-se dizer que a instituição da RL no âmbito da propriedade
privada rural nada mais é que um meio de fazer cumprir sua função social. Contudo,
para que isso aconteça é necessário compreender que se vive hoje em um estado democrático de direito que pressupõe a intervenção do Estado nos direitos individuais
em prol do bem-estar social e da garantia dos direitos coletivos. Sendo assim, pelo
princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, entende-se que sempre que houver conflito entre um interesse particular e um interesse público coletivo,
deve prevalecer o interesse público. Ademais, deve-se buscar sempre o equilíbrio
entre desenvolvimento social, crescimento econômico e a utilização dos recursos
naturais e isso exige um planejamento territorial que deve, necessariamente, passar
pela ingerência do Estado no âmbito da propriedade privada.
A par do que foi mencionado, apresenta-se evidente a importância do instituto
da RL para a preservação ambiental e a manutenção do equilíbrio ecológico, sendo
imprescindível a regularização das reservas legais nas propriedades rurais que ainda
não a possuam. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça, ao se manifestar sobre a
supressão da RL, referiu entender:
incabível afastar a proibição de desmatamento de vegetação ciliar, ainda que sua supressão seja de reduzido impacto ambiental, pois inexiste
tal exceção legal. Descabe o Judiciário ampliar exceções à proibição de
desmatamento, sob pena de comprometer o sistema legal de proteção
do meio ambiente, já bastante fragilizado. (Dec. n. 750/1993, arts. 1º e
10c/c CF/1988, art. 225, 1º, IV, e Lei n. 4.771/1965, art. 2º, a, 1). (Resp.
176.753-SC, Relator Ministro Herman Benjamin, j. 7-2-2008).
Com relação à análise da (in)constitucionalidade da imposição do Estado à instituição da RL, é claramente perceptível a constitucionalidade de tal implantação,
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O código florestal e o uso da propriedade rural na perspectiva da (in)constitucionalidade da reserva legal
uma vez que esta apresenta-se no plano normativo abstrato como um meio eficaz
na preservação ambiental e na manutenção do equilíbrio ecológico. A RL, portanto,
é uma contribuição de cada proprietário rural para um futuro melhor, com justiça
social e ambiental, priorizando-se ações sustentáveis em prol de toda a coletividade.
Alterar ou flexibilizar as normas ambientais que já estão consolidadas na legislação, mesmo que ainda pendentes de aplicabilidade ou de efetividade, representa
um retrocesso ambiental injustificável, em que há a violação de um mínimo existencial ambiental conquistado ao longo de gerações. Além disso, o capítulo do meio
ambiente na Constituição torna evidente, por meio de seu caput, incisos e parágrafos
que, por existir garantia constitucional de proibição de insuficiência de proteção ambiental, a flexibilização da legislação ambiental compromete a segurança jurídica,
acarretando vício de inconstitucionalidade por não observar importantes princípios
constitucionais ambientais.
Por outro lado, cabe frisar que o fato de a norma ambiental estabelecer a implementação de instrumento que restrinja ou modifique a forma de utilização da
propriedade privada, seja ela rural ou urbana, não acarreta inconstitucionalidade por
ferir o direito constitucionalmente assegurado à propriedade privada, uma vez que o
próprio texto constitucional condiciona o exercício de tal direito a deveres de cunho
social e ambiental. Sem o exercício do dever fundamental de cumprimento da função
socioambiental não há o justo título de propriedade, sendo, inclusive, passível de desapropriação a propriedade privada que a descumprir. De outro modo, a RL apresenta-se no Código Florestal brasileiro como instrumento de efetivação dos princípios
do desenvolvimento sustentável e da função socioambiental da propriedade, inerentes ao próprio direito de propriedade, que há muito deixou de ser um direito absoluto.
Por fim, deve-se observar que a alteração do Código Florestal brasileiro, mesmo
com o intuito de buscar torná-lo mais próximo da realidade e das circunstâncias que
devem ser objeto de tutela pelo poder público, não pode desconsiderar a urgência na
sensibilização da sociedade para a necessidade de preservar o meio ambiente, não
somente para as presentes e futuras gerações, mas, pelo fato de o homem ser parte do
meio ambiente e, como sujeito dotado do atributo da razão, ter o dever legal e moral de
zelar por todas as formas de vida sob pena de a lei tornar-se inócua, sem aplicabilidade
e carente de credibilidade social, acarretando grave retrocesso social e ambiental.
Considerações finais
O tema da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade da limitação do direito de uso da propriedade privada rural, diante das alterações do Código Florestal
Brasileiro, com a instituição da reserva legal, é assunto de extrema relevância no
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contexto do reconhecimento e garantia de direitos. O debate atual, entre ruralistas e
ambientalistas, gira em torno da aplicação da reserva legal no que tange à observância dos preceitos constitucionais ambientais, bem como à utilização da propriedade
privada, que deixa de ter caráter individualista passando a estar condicionada ao
exercício da função social e ambiental.
Observando-se a proposta do presente estudo, passou-se a enfatizar que o direito de propriedade, ao longo do tempo, sofreu alterações, passando de um direito
absoluto e inquestionável a um poder-dever. Em outras palavras, a propriedade continua a ser privada, contudo, a partir do surgimento dos direitos sociais e dos direitos
coletivos, o direito individual à propriedade assume nova feição: o de ser um direito
exercido para auferir vantagem econômica do bem, mas, ao mesmo tempo, que a
fruição do direito não implique a desconsideração dos direitos sociais e a inobservância das normas de proteção ambiental. Assim sendo, o proprietário rural que observar o instituto da reserva legal estará cumprindo com a função ambiental inerente
ao seu direito de propriedade.
Ademais, analisou-se o instituto da reserva legal no novo Código Florestal brasileiro e os apontamentos dos ruralistas e ambientalistas quanto à sua aplicação.
Entendeu-se que é imprescindível o equilíbrio entre a dimensão da sustentabilidade
ambiental e do desenvolvimento socioeconômico pelo novo Código Florestal Brasileiro, deixando claro que a proteção do meio ambiente não é tarefa exclusiva do
Estado, mas de todos os membros da sociedade, que devem promover o desenvolvimento econômico e social em harmonia com a proteção ambiental, com base no
princípio da sustentabilidade.
Por fim, a partir do que foi exposto, procurou-se também analisar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da ingerência do Estado na forma de utilização
da propriedade privada rural por meio da implementação da reserva legal, sendo que
esta interferência faz-se possível a partir da aplicação do princípio da supremacia
do interesse público sobre o particular e da existência do princípio da função socioambiental da propriedade. Outrossim, entendeu-se que a flexibilização das normas
ambientais já consolidadas na legislação brasileira representa retrocesso ambiental e
insegurança jurídica que, no mínimo, acarretaria a violação de um mínimo existencial ambiental custosamente conquistado ao longo de décadas.
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Submetido em: 13/7/2012
Aceito em: 26/11/2012
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