PROCESSO CIVILIZADOR NA PERIFERIA

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PROCESSO CIVILIZADOR NA PERIFERIA: SEGREGAÇÃO SOCIAL E UNIDADE
CULTURAL.
Jessé Souza1
Elias percebe o processo civilizatório ocidental como um “continuum”, representando
uma nova fase no desenvolvimento da auto-consciência e da auto-legitimação de uma cultura
específica2. Fases anteriores do mesmo processo seria, por exemplo, a separação entre cristãos e
infiéis, que enseja o surgimento das cruzadas enquanto uma guerra de colonização e expansão. Já
essa divisão traz em sí e leva a um estágio posterior a lembrança de um passado comum, latino e
cristão, que influnciou todos os grandes povos europeus. É a partir dessa herança comum que será
possível pensar as nações europeias, a despeito das diferenças nacionais que serão muito
importantes, como constituindo uma cultura específica. Será precisamente essa unidade básica
européia que ensejará a necessidade de uma língua comum aos estratos cultos das diversas
nacionalidades: de início o latim, depois o italiano e, por fim, no período descrito por Elias, o
francês.
O ponto fundamental da argumentação de Elias é que o comportamento individual e
coletivo corresponde a certas formas de estrutura social. Compreende-se o comportamento atual
das pessoas, a forma como elas pensam e agem, assim como a economia emocional relacionada a
essa forma de comportamento, a partir da estrutura macro-social que a determina. O ponto de
partida de Elias é rigorosamente anti-subjetivista, não interpreta a dinâmica social a partir da
volição de uma “elite” dotada de todas as características da volição individual e é precisamente
porisso que iremos partir de sua análise nesse contexto.
Os aspectos estruturais que interessam a Elias para a explicação da transição da sociedade
tradicional para a moderna, têm basicamente uma dimensão socio-economica por um lado e
política por outro. Na dimensão socio-econômica temos como fundamental, como em Georg
Simmel e Karl Marx, a intensificação da divisão social do trabalho e o advento da economia
monetária. Na dimensão política temos uma leitura muito pessoal de Elias (apesar de lembrar
Max Weber em vários aspectos essenciais) do processo de centralização política a partir do
advento do estado nacional.
A sociedade feudal ou estamental obedecia a um princípio de organização política que
Elias denomina de “mecanismo da descentralização”. Esse mecanismo é típico de uma sociedade
baseada na economia natural e com pouca divisão social do trabalho, onde a terra e não o
dinheiro é o elemento fundamental da dominação política.
Apesar do ímpeto de conquista de novas terras ter estado sempre presente nessa fase
histórica, sendo inclusive a obsessão onipresente dos senhores feudais, as conquistas territoriais
eram estruturalmente passageiras. O “mecanismo de descentralização” age de modo a produzir
sempre novas ondas de fragmentação dos territórios conquistados, pela necessidade mesma da
delegação de autoridade. O representante do líder militar conquistador irá sempre tentar
transformar seu domínio direto sobre a nova posse de modo a torná-la direito hereditário, de tal
modo que a conquista e preservação de territórios tem que ser renovada, com enorme esforço, a
cada geração. É essa circusntância estrutural que explica o caráter fragmentário da sociedade
1
Professor de sociologia do iuperj (Rio de Janeiro).
Elias, Norbert, Über den Prozeß der Zivilization, Suhrkamp, Frankfurt, 1989, pag. 1. As referências posteriores
referem-se a essa edição.
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feudal.
Com o desenvolvimento paulatino da divisão social do trabalho e da economia monetária
vamos ter a possibilidade de uma mudança estrutural nas formas de dominação. Afinal, é um
aumento da interdependência intersubjetiva ocasionado pelo desenvolvimento da divisão social
do trabalho, quando trabalho e distribuição se autonomizam, quando os elos de ligação social se
alongam, que se necessita do dinheiro como meio universal de troca. A sociedade se expande, por
assim dizer, internamente e aumenta sua densidade.
A substituição da economia natural pela monetária, por sua vez, vai permitir, através da
cobrança de impostos, a inversão completa do princípio fragmentador anterior. O estado cobrador
de impostos vai poder pagar a seus representantes e delegados em moeda, o que os mantém
atrelados e dependentes do interesse do estado. Agora o domínio sobre grandes territórios e
populações passa a ser não só possível mas crescentemente funcional para a dominação política,
permitindo a acumulação e concentração de recursos sociais sem riscos de fragmentação.
Nesse novo contexto, entra em cena o “mecanismo centralizador” que terminará por levar
à criação dos estados nacionais europeus. A formação paulatina desses monopólios de dominação
é examinado por Eias antes de tudo no caso exemplar da França. No entanto, o mecanismo
centralizador toma todo o continente levando a que o jogo do poder saia do seu nível local e
ganhe o espaço regional, na formação por exemplo dos grandes ducados frenceses entre os
séculos XII e XV, e alcance os níveis nacional e até supra-nacional. Ao final da Idade média se
contrapoem na Europa apenas o império da casa capetinga na França e a casa Habsburgo na
Austria dividindo as zonas de influência européia entre ocidente e oriente.
Fundamental para a compreensão do argumento de Elias nesse ponto é que essas
mudanças estruturais irão permitir que a “sociedade” enquanto tal ganhe poder em relação aos
“indivíduos”, percebidos como “corpos desejantes”. Com a transformação da sociedade feudal
guerreira baseada na violência, temos uma crescente “pacificação” da vida social. A necessidade
objetiva primordial continua a luta por recursos escassos. Mas a luta pelos mesmos são
crescentemente regulamentados de modo pacífico. É precisamente a influência dessa
transformação macro-social fundamental sobre a economia emotiva individual e sobre a
regulação das trocas intersubjetivas que interessa a Elias explicar. O interesse sociológico e
político da investigação do autor está todo dirigido ao esclarecimento dessa questão fundamental:
Qual é o impacto da pacificação da vida social sobre “psique” individual e portanto sobre a
relação dos homens entre si? Perceber a mudança existencial e política que as novas condições
implicam é o fio condutor da curiosidade do autor.
É precisamente o esclarecimento dessa dinâmica que permite estabelecer a singularidade
do desenvolvimento ocidental para Elias. Os mecanismos sociais em jogo na Idade Média são os
elementos que explicam essa especificidade. Nesse sentido, não existe continuidade com relação
ao mundo antigo. Antes de tudo não havia escravos na idade média européia como era o caso da
antiguidade. 3 Para Elias uma sociedade escravocrata obedece a automatismos muito peculiares.
Antes de tudo, a dependência recíproca dos estratos superiores e inferiores, e, desse modo, toda a
economia emocional e instintiva associada a este fato, se desenvolve segundo linhas bastante
peculiares. Iremos voltar a esse ponto mais tarde no exame do caso brasileiro.
A especificidade da situação feudal para a Elias baseia-se em relações sociais muito
peculiares. De início, falta qualquer base material para o exercício do direito como conhecemos
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A escravidão, quando existia, era fenômeno marginal o que evitava o desenvolvimento de todas as suas
potencialidades de abranger e atingir, em suas consequências deletérias, todas as relações sociais.
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hoje. A aplicação de um Direito universal pressupõe uma instituição central organizada.
Obrigações sociais existiam apenas em relação a ordem de vassalagem, sob sua forma dupla:
pretensão de proteção a partir de cima e exigência de serviço em relação aos subordinados. Isso
era válido tanto para a relação dos senhores entre sí quanto para a relação dos camponeses em
relação aos senhores em geral.
A única lei, portanto, é a lei da espada, e a economia emocional correspondente é a da
expressão mais ou menos direta dos impulsos naturais e agressivos. O gozo do momento é a
palavra de ordem. Nao só na relação entre poderosos e oprimidos em termos sociais, mas também
na relação relação entre os sexos. Entre estes reina a inimizade e a estranheza, sendo a idéia de
amor romântico ainda inexistente. Será também a repressão da violência como meio legítimo que
permitirá o aumento da significação social da figura feminina.
Alguma forma de controle comportamental é perceptível apenas nas cortes dos senhores
mais poderosos que passam a disputar não apenas guerra mas também prestígio entre sí. Esta é a
fase histórica da “courtoisie”. Aqui existe, ainda em grau mínimo se comparado com épocas
posteriores, alguma convenção, alguma regulação dos afetos e da conduta. É precisamente a
relativa instabilidade desses grandes domínios, constantemente ameaçados pelos efeitos
desagregadores do “mecanismo descentralizador” descrito acima, que impede a uma regulação da
conduta mais profunda e estável como ocorrerá mais tarde.
Elias percebe, nesse sentido, três fases distintas de sociabilidade e de tipos de
personalidade que correspondem a fases distintas do processo descrito acima. Além da
“courtoisie”, teríamos a “civilité” e, finalmente a “civilisation”, assumindo essa última,
especialmente na França, um modo cortesão aristocrático e uma posterior reinterpretação
burguesa e democrática.Essas fases distintas vinculam-se a formas estruturais peculiares,
fazendo corresponder, desse modo, mudanças quantitativas no tamanho e na intensidade de
estruturas macro sociais a mudanças qualitativas na forma da sociabilidade intersubjetiva.
Pela impossibilidade mesma de se determinar um ponto zero na história das mudanças
comportamentais, parte Elias da alta Idade Média, mais precisamente dos escritos de Erasmo de
Roterdam. Erasmo é tão significativo por escrever sobre normas de comportamento em uma
época de rupturas, ainda dentro do contexto medieval mas já antecipando, no entanto, formas de
comportamento do período seguinte.
O período histórico que lhe serve de base para sua análise empírica é o da renascença e,
portanto, da transformação ocorrida no comportamento dos estratos sociais superiores desde o
paradigma de uma “courtoisie”, que designa o código comportamental da sociedade feudal dos
cavaleiros, em favor de uma “civilité”, já apontando para a transição em direção à sociedade
cortesã. Os escritos de “boas maneiras” de Erasmo revela a fronteira entre as duas sociedades
sendo seu estudo especialmente relevante para Elias.
Em Erasmo já temos a análise do comportamento como “espelho da alma”, ou seja, uma
abordagem psicológica que enfatiza a dimensão matizada e nuançada da personalidade humana,
por oposição à relativa indiferenciação anterior. A modificação social correspondente é a da
transição da sociedade feudal cavaleiresca em direção à sociedade cortesã. Essa transição é
fundamental para Elias. Ela representa, como vimos, a progressiva substituição do primado da
violência por meios pacíficos na competição social pelos recursos escassos. A pressão coletiva
sobre o comportamento individual aumenta e o comportamento adequado transforma-se em
problema e em arma central na competição social.
Essa transformação da sensibilidade social se produz primeiro nos estratos superiores,
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tanto como uma forma de distinção social operante dentro desse estrato, quanto em relação aos
estratos inferiores. Esse movimento ganha um “motto” próprio na medida em que dado parametro
de comportamento passa a ser imitado tanto pelos indivíduos do estrato superior, quanto pelos
estratos inferiores em conjunto. Na medida, no entanto, que o próprio sucesso, ou seja, a imitação
generalizada do comportamento distinto se consolida, perde esse, simultâneamente, seu valor
diferenciador. Cria-se, nesse sentido, uma dialética entre inovação e disseminação que se
constitui na dinâmica específica do processo como um todo.
Elias analisa exemplos de mudança de comportamentos em várias esferas distintas do agir
humano: o comportamento à mesa, o uso de talheres, o hábito de se assoar, de cuspir, a forma de
dormir, a forma da relação entre os sexos, a gressividade, etc. O que está em jogo em todas essas
manifestações parciais é uma mudança de fundo comum: o movimento em direção a um aumento
da sensibilidade em relação ao que é penoso observar nos outros e do que produz vergonha no
próprio comportamento. É o “avanço” dessa fronteira (Vorrücken der Peinlichkeitsshwelle), que
aprendemos a perceber como um “refinamento” do comportamento. A direção do processo de
refinamento já é conhecida. Tudo que lembra a origem animal do homen é reprimido ou
reservado a espaços próprios, a cozinha, o quarto de dormir, o banheiro.
É importante notar que, na argumentação de Elias, a sociogênese da regulamentação
comportamental não obedece critérios higiênicos ou “racionais”. O processo civilizatório
expressa no máximo uma “racionalização” no sentido neutro com relação a valores, ou seja, de
uma mera “direção” do processo de desenvolvimento societário. O que é valorável ou civilizado é
antes de tudo o que é aceito como tal pela elite social. Isso. Por sua vez, não significa de modo
algum um controle consciente pelas elites do processo como um todo. Não existe sujeito no
processo civilizatório.
Dado o constrangimento social de produzir distinções num contexto de maior
proximidade dos homens entre sí e dada a crescente proibição da violência como meio legítimo
de perpetuação das diferenças sociais, reagem as elites estigmatizando comportamentos e criando
tipos de condução de vida acessíveis somente a iniciados, agindo como forma de reconhecimento
entre os pares e como mecanismo distintivo e legitimador em relação aos subordinados.
De início, nos estágios da “courtoisie” e da “civilité” só existe constrangimento social em
relação aos próprios pares. Não se sente “vergonha” ou constrangimento em relação aos
“inferiores” sociais. A partir de certo grau de interdependência social entre os indivíduos como
resultado da intensificação da divisão social do trabalho, temos uma mudança fundamental na
direção da sociedade democrática e industrial moderna.
É que a dependência dos estratos superiores em relação aos inferiores torna-se
insofismável, levando a que também estes sejam crecentemente levados em consideração por
aqueles. O sintoma intersubjetivo imediatamente perceptível dessa mudança é que, agora, sentese “vergonha” também em presença do socialmente subordinado, contribuindo para a superação
da dupla-moral típica das sociedades hierárquicas. Apenas numa sociedade democrática (e
industrial com avançada divisão social do trabalho) temos a ver com uma moral única válida para
todos. Apenas nesse estágio, o da sociedade burguesa moderna, temos também o pressuposto
universal de um auto-controle total e automático de todos os indivíduos. Para Elias é a produção
desse indivíduo homogêneo e universalizável que permite a constituição de uma categoria social
como a do cidadão intercambiável em seus direitos e deveres. A cidadania efetiva baseada na
igualdade é um produto de organização social específica. Ela não pode ser “decretada”. Veremos
adiante as consequências dessa idéia para a análise do caso brasileiro.
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A entrada do componente democrático para Elias tem a ver com um fato único na história:
a entrada em cena de um estrato dominante que “trabalha”, a burguesia. É esse estágio que
permite uma repressão impessoal e totalizante se referindo a todos como a própria lei, sendo tão
abstrata e impessoal como esta. Esse aspecto é interessante para todo o argumento de Elias. Para
ele o aspecto precisamente não-reflexivo do desenvolvimento ocidental ocupa o centro da análise.
Ele enfatiza o elemento da internalização da represssão, uma espécie de sociogênese da
constituição do super-ego freudiano, como uma resposta automática e irrefletida a anseios de
mobilidade social e medos de perda de prestígio relativo de acordo com regras socialmente
estabelecidas.
A contrapartida da constituição do super-ego na personalidade moderna é a constituição
de um “Id” crescentemente reprimido e tornado inconsciente sendo o elemento constituidor de
experiências que não podem mais ser vividas de acordo com os novos padrões de convivencia e
formas de auto controle. Essas experiências passam a ser ocultadas, ou da própria consciência ou
da sociedade, a partir da constituição progressiva de uma esfera privada enquanto uma esfera da
intimidade.
Aqui interessa a Elias a repercussão prática do processo civilizatório no “Habitus” dos
individuos, ou seja, na sua economia afetiva primária. Nesse sentido, o processo civilizatório é
sintetizado como uma transformação da repressão externa em repressão interna. A nova
topografia da consciência reflete essa transformação fundamental. Ao invés de temer a espada do
inimigo, o homen moderno só teme perder seu auto-controle. A repressão interna é responsável
por uma “razão” peculiar, a partir da diferenciação de um super-ego na própria psique individual
regulando a vida impulsiva e o comportamento em todas as suas manifestações. É, antes de tudo,
a necessidade de uma “reflexão prospectiva” o que determina a reorganização da economia
afetiva e a renúncia ao prazer imediato. As consequências da internalização dessa economia
afetiva para a acumulação de riquezas e maior eficiência em todas as esferas da vida não deve ser
ignorada.
Do ponto de vista individual é interessante notar a “psicologização” correspondente ao
processo acima. A personalidade ganha em densidade e profundidade com o maior controle
afetivo. Agora ela precisa ser cuidadosamente estudada e analisada. Autores como Proust, Balzac
ou Flaubert são os primeiros grandes mestres de uma observação humana de novo tipo. De novo
tipo precisamente na medida em que os personagens nunca são retirados das correntes de
interdependência que dão compreensibilidade a seus comportamentos e atitudes. Os homens são
as suas circunstâncias e não existem fora delas.
Esse processo já estava em pleno desenvolvimento na passagem da soiedade cavaleiresca
feudal para a cortesã, ou seja da passagem do uso da violência a meios pacíficos como os únicos
legítimos na luta pelos recursos sociais de riqueza, poder e prestígio. Elias usa todo seu
conhecimento acerca da vida de corte francesa nos séculos XVII e XVIII (que já havia sido seu
objeto de estudo na sua tese de doutorado) para exemplificar a enorme regulação da conduta até
nos mínimos detalhes, de modo a ocultar qualquer afinidade ou aversão pessoal, sendo essa arte a
regra de ouro para a sobrevivência e sucesso na corte.
Na dimensão social, Elias deixa claro que não cabe falar-se de “ideologia”, no sentido de
conjunto de idéias conscientes. A mudança de “Habitus” implica transformações tanto na esfera
consciente quanto inconsciente. Elias pretende precisamente levar em consideração tanto as
estruturas pulsionais e afetivas inconscientes quanto os elementos conscientes de modo a expor o
mecanismo da economia dos afetos na sua imbricação entre indivíduo e sociedade no seu todo.
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Um indivíduo, assim como uma sociedade, é composto de ambos os aspectos.
A ambigüidade do processo civilizatório para Elias seria que a repressão (necessária ?)
dos impulsos não se efetuou como uma “conscientização”, mas como proibição e tabu. Daí o
abismo entre impulsos e consciência que caracteriza o mundo moderno. Apenas quando a
consciência é menos permeada pelos impulsos é que os automatismos pulsionais podem adquirir
a forma de compostos a-históricos, quase naturais, que caracteriza o inconsciente. Na sua
experiência com o meio externo, pode a consciência então assumir a forma de uma instância
relativamente livre de afetos e pulsoes, uma instância racional.
Mas para Elias o processo civilizatório não possue apenas uma dinâmica própria na
concorrencia social por prestígio e poder relativo no interior de cada sociedade. Também os
diferentes países “civilizados” apresentam distinções importantes entre sí a partir da forma
peculiar em que o conflito entre grupos concorrentes por prestígio e poder se articularam no
interior da sociedade.
Existe, por exemplo, uma diferença importante entre a Inglaterra e a França, por um lado,
e a Alemanha, por outro. Essa diferença implica uma diferença importante quanto ao próprio
conceito de “civilização”. Tanto a Inglaterra quanto a França lograram cedo a unificação política
dos seus respectivos territórios, processo no qual o conceito de civilização serviu, primeiro para
grupos particulares e depois para a nação como um todo, como legitimação do próprio poder e
auto consciência. A alemanha, ao contrário, país de unificação e desenvolvimento tardios, sempre
teve que se perguntar: O que faz, ou qual é a nossa singularidade? Veremos como preocupações
semelhantes irão ser importantes para a compreensão do tardio e seletivo processo civilizador no
Brasil.
Para Elias, portanto, o “caráter nacional” não é nenhuma enteléquia, um conjunto de
impressões subjetivas metafísicas. Ao contrário, caráter nacional ganha o sentido preciso de um
esquema de vida afetiva e espiritual de indivíduos que são socializados sob a pressão de uma
tradição internalizada e institucionalizada de modo particular. Nesse processo, a “luta de classes”,
por hegemonia material e ideológica é o aspecto principal, sem obviamente, que tenhamos aqui a
tendência Marxista e Lukacsiana de atribuir categorias da filosofia da consciência a construtos
coletivos. Para Elias, a luta de classes por hegemonia se dá em um contexto quase-sistêmico,
onde a noção de subjetividades coletivas construídas sob o modelo da subjetividade individual
não encontra lugar.
Esse é um aspecto fundamental para nossos propósitos já que permite perceber a
seletividade do processo de modernização civilizatória. No caso brasileiro, isso pode nos ajudar a
perceber a forma peculiar do processo de reeuropeização que toma conta do país a partir do
século XIX com suas consequências atuais. Acredito que a perspectiva preferida por Elias é
inspiradora na medida em que, no seu esquema explicativo, são as condições objetivas,
sistêmicas, para além da intenção de sujeitos coletivos de qualquer espécie, inclusive de uma
suposta “elite”, que constituem a auto-representação social e objetiva de seus membros.
No caso de uma sociedade periférica com passado escravocrata como a nossa poderíamos
pensar em dois processos interrelacionados que podem nos ajudar a compreender aspectos
importantes de nossa singularidade social e cultural. Penso na contradição aparente da existência
de uma sociedade dual, rigidamente separada entre incluídos e excluídos, a qual ao mesmo tempo
se representa como unitária, compartilhando valores e representações que são independentes de
classes sociais. Como explicar essa convivência a partir da especificidade de nosso processo
civilizatório?
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EUROPEIZAÇÃO, SEGREGAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DA UNIDADE CULTURAL
BRASILEIRA.
Uma tentativa semelhante de compreender o „processo civilizatório“ brasileiro, a
empreendida por Elias para o caso europeu, é levada a cabo por Gilberto Freyre na sua trilogia
sobre a „sociedade patricarcal no Brasil4. O fio condutor da argumentação desenvolvida por
Gilberto Freyre em „Casa Grande e Senzala5“ é captar a especificidade da formação social
brasileira a partir do tipo particular de colonização portuguesa que se implantou nessa parte da
América. Como o dado estrutural mais importante dessa singularidade foi a constituição de uma
sociedade escravocrata de tipo bastante peculiar, nada mais natural que a forma específica da
escravidão que se constituiu no Brasil seja a chave fundamental para a compreensão da
singularidade social e cultural brasileira.
Em Freyre a visão sobre a especificidade da escravidão brasileira alterna entre uma ênfase
no sado-masoquismo e uma concentração no tema da mestiçagem. Essa ambiguidade é
constitutiva da forma como Freyre percebe a singularidade da escravidão brasileira. Ela seria,
para ele, uma forma peculiar de formação social uma „escravidão muçulmana“. Malgrado todas
as características comuns a todas as formas de escravidão na américa, essa forma de escravidão
teria particularidades importantes.
Para Freyre, a escravidão muçulmana é aquela que repete a estratégia muçulmana nas suas
guerras de conquista e escravização, quando o escravo nascido de muçulmano seria equiparado a
este em „status“, caso assumisse a religião e os „valores“ do pai. Essa astuciosa estratégia
permite uma expansão e durabilidade da conquista inigualáveis na medida em que associa o
acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do dominado com os valores do
opressor. A conquista pode assim abdicar da vigilância e do emprego sistemático da violência
para a garantia do domínio e passar a contar crescentemente com um elemento volitivo
internalizado e desejado pelo próprio oprimido.O Brasil colônia estava cheio de exemplos desse
tipo de política. Isso permitia que fossem usados aqui capitães de mato e feitores negros ou
mulatos, fato impensável nos EUA por exemplo, onde toda a atividade de vigilância e controle
dos escravos era realizado exclusivamente por brancos. Permitia também a povoação de enormes
massas territoriais sem que a dominância do elemento conquistador fosse posta seriamente em
perigo.
Essa astuciosa estratégia de domínio se, no pólo negativo, implica subordinação e
sistemática reprodução social da baixa auto-estima nos grupos dominados, no pólo positivo, abre
uma possibilidade efetiva e real de diferenciação social e mobilidade social.
Na construção do seu argumento, Gilberto Freyre retira todas as consequências do fato de
que a família é a unidade básica, dada a distância do Estado português e de suas instituições, da
formação social brasileira o que o permite interpretar o drama social da época sob a égide de um
conceito psicoanalítico e da psicologia social. Na construção desse conceito, Freyre se concentra
em condicionamentos estritamente macro-sociológicos, semelhantes àqueles que guiariam a
reflexão de Norbert Elias (apenas seis anos mais tarde) acerca do caso europeu na passagem da
baixa à alta idade média.
Antes de tudo, o caráter autárquico do domínio senhorial condicionado pela ausência de
instituições acima do senhor territorial imediato era o fundamento dessa especificidade
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Os livros que compõem a trilogia são “Casa Grande e Senzala”, Sobrados e Mucambos” e “Ordem e Progresso”.
Freyre, Gilberto, Casa Grande e Senzala, ed. Livros do Brasil, Lisboa, 1957.
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compartilhada. Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da classe
dominante é exercido pela via direta da violência armada (como era o caso nos dois tipos de
sociedade), não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aos desejos primários de
sexo, agressividade, concupisciência ou avidez. As emoções são vividas em sua reações
extremas, são expressadas diretamente, e a convivência de emoções contrárias em curto intervalo
de tempo é um fato natural.
A explicação sociológica para a origem desse „pecado original“ da formação social brasileira
para Gilberto Freyre, exige a consideração da necessidade objetiva de um pequeno país como
Portugal solucionar o problema de como colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a
particulares, antes estimulando do que coibindo o privatismo e a ânsia de posse. Como resultado
não existe justiça superior aos senhores de açucar e gente, como em Portugal era o caso da justiça
da Igreja que decidia em última instância querelas seculares, não existia também poder policial
independente que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no caso das dívidas
impagáveis de que fala Freyre, não existia ainda poder moral independente posto que a capela era
uma mera extensão da casa grande. O senhor de terras e escravos era um hiper-indivíduo, não o
super-homem futurista nietzscheano que obedece aos próprios valores que cria, mas o superhomem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de limites em relação aos seus
impulsos primários.
É nesse contexto de total dependência dos escravos em relação ao senhor, sem a proteção
que o costume e a tradição garantiam ao serva da gleba europeu possibilitando desse modo
formas de constituição de auto estima e reconhecimento social independentes da vontade do
senhor é que podemos compreender a especificidade do tipo de sociedade que aqui se constituiu.
A proteção era discrição do senhor e estava relacionada a outra característica árabe da sociedade
colonial brasiliera: a família poligâmica. Os filhos dos senhores e escravos, desde que
assumissem os valores do „pai“, ou seja se eles se identificassem com ele, tinham a possibilidade
de ocupar os postos intermediários em sociedade tão marcadamente bipolar. Devia haver
inclusive grande concorrência seja entre os filhos ilegítimos seja entre as candidatas a concubinas
pelo favores e pela proteção do senhor e de sua família. Existiam prêmios materiais e ideiais
muito concretos em jôgo de modo a recompensar quem melhor interpretasse e internalizasse
como se fosse sua a vontade e os desejos do dominador. E é precisamente essa assimilação da
vontade externa como se fosse própria, assimilação essa socialmente condicionada e que mata no
nascedouro a própria auto-representação do dominado como um ser independente e autônomo
que o conceito de sado-masoquismo quer significar.
A importância desse tema para uma compreensão da sigularidade social e cultural brasileira
não deve ser subestimada. No tipo de sociedade descrito em CGS o sado-masoquismo tem os
seus efeitos restritos à família poligâmica e sua complexa trama de favores e proteção, de afetos e
invejas, de ódio e amor. Na sociedade brasileira analisada em „Sobrados e Mucambos“ e depois
em „Ordem e Progresso“ no entanto, do Brasil que se moderniza sob impacto de uma Europa
agora não mais „mourisca“ como o Portugal que nos colonizou, mas já individualista e burguesa
nos exemplos da Inglaterra, França e Alemanha, o sado-masoquismo pode ser visto como
condicionando de forma muito interessante o Brasil moderno.
No decorrer de todo o século XIX o „mulato talentoso“, ou seja, precisamente aquele
elemento intermediário típico da escravidão muçulmana e da família poligâmica, vai
desempenhar um papel fundamental como „classe“ suporte dos novos valores individualistas da
reeuropeização. Com a institucionalização paulatina de um Estado racional e de um mercado
capitalista incipiente, que se constituem em algumas cidades brasileiras a partir de 18086,
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Freyre, Gilberto, Sobrados e Mucambos, ed. Record, Rio de Janeiro, 1990, Caps. IX,X,XI.
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paralelamente à escravidão ainda toda dominante no campo, será o elemento mestiço, essa meiaraça que assume modos de classe média para Freyre, que irá ocupar grande parte das novas
posições e oportunidades.
Mas algo se mantém da lógica da escravidão muçulmana: será apenas o mulato que se
„europeiza“, ou seja, aquele que assume como seus os valores do „pai“, segundo a velha regra
muçulmana - agora os valores impessoais do individualismo europeu que vira de ponta cabeça
essa espécie de „china tropical“ que era o Brasil colonial no período pré-reeuropeização – que
ascende socialmente. Apesar de toda a notável mudança ocorrida nessa época a regra de inclusão
e exclusão social se mantém. Também no século XX, quando não mais os mercadores ingleses
mas o próprio Estado interventor torna-se a alavanca mestra do processo de modernização, a
inclusão social, no caso através da „cidadania regulada“7, realiza-se seletivamente. Agora não
mais pela absorção de indivíduos especialmente talentosos, mas através da inclusão social, pelo
acesso às garantias asseguradas pela carteira de trabalho, daqueles setores dos trabalhadores
identificados com o esforço modernizador do Estado.
A transformação de uma sociedade pessoal e patriarcal em impessoal e moderna não
logrou transformar a regra da exclusão/inclusão instituída pela escravidão muçulmana tratada em
CGS. Em Freyre, a lógica da assimilação/imitação dos valores individualistas ocidentais vai, de
certa forma, substituir na nascente sociedade urbana brasileira o princípio personalista
hierarquizador operante na sociedade escravocrata colonial. Ao invés da oposição
senhor/escravo, passa a ser determinante a filiação do indivíduo ou grupo aos novos valores
ocidentalizantes, especialmente do individualismo, como fica claro na nova possibilidade de
alcançar projeção social por meio do conhecimento, como no exemplo do mulato talentoso,
forma burguesa e individualista por excelência, dada sua independência em relação à critérios
adscritivos de estamento e raça e sua determinação interna, envolvendo necessáriamente os
elementos de vontade e responsabilidade individual.
É em nome dela também que passa a operar a distinção entre os estratos europeizados dos
africanos e ameríndios, com toda a sua lista de distinções derivadas tipo doutores/analfabetos,
homens de boas maneiras/joão ninguems, competentes/incompetentes, etc. A „posse“ de valores
europeus individualistas vai, dessa forma, legitimar a dominação social de um estrato sobre o
outro, vai justificar os privilégios de um sobre o outro, vai calar a consciência da injustiça ao
racionalizá-la, e vai permitir a „naturalização“ da desigualdade como a percebemos e
vivenciamos hoje8.
Fundamental é compreender que essa constelação social não é produto consciente de uma
„elite má“. Esse tipo de sociologia intencionalista na verdade „contrabandeia“ as pressuposições
objetivas e inevitáveis que fazemos uso no senso comum para o terreno científico. De acordo
com uma perspectiva como a de Elias, como vimos, o processo civilizatório se faz em benefício
das classes superiores mas sem a apropriação reflexiva por parte destas seja dos motivos seja das
consequências desse desenvolvimento. O „processo“ envolve todas as classes na sua lógica
impessoal. É isso que faz com que as próprias classes superiores tenham elas próprias que se
submeterem as crescentes interdições que o processo civilizatório implica. A ascenção da
burguesia completa e realiza essa tendência nivelante ao submeter-se ela própria às mesmas
interdições, possibilitando a criação de uma economia emocional específica, a do „homem
universal“, suporte material do cidadão moderno. As condições de possibilidade da
7
Dos Santos, Wanderley Guilherme, Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática, Ed. Rocco, Rio de Janeiro,
1998, pags. 63/114.
8
Para uma discussão detalhada da especificidade do processo de modernização brasileiro partindo de continuidades
histáricas de longa duração ver: Souza, Jessé, “A Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema
Brasileiro”, Ed. Universidade de Brasília, 2000.
9
10
universalização dessa economia emocional comum é dada, para Elias, pelo processo de crescente
„interdependência social“ entre as classes fruto da intensificação da divisão social do trabalho e
do advento da economia monetária. A dependência mútua das diversas classes torna-se
insofismável.
É essa dependência que propicia a constituição de uma economia emocional comum para
todos os indivíduos, independente do pertencimento de classe. Essa é a fase da sociedade
democrática/industrial para Elias. A burguesia, como primeira classe superior na história que
„trabalha“, pode ela própria aceitar as mesmas limitações e interdições emotivas que passa a ser
fundamental para uma ética do trabalho socialmente compartilhada por todas as classes. É esse
„tipo humano“ comum que permitiu a equalização das condições sociais que assitimos ocorrer
em todos os países centrais no último século. Ele é a base tanto do mercado competitivo quanto
da democracia efetiva. Ele é o fundamento da igualdade social, da cidadania política e,
consequentemente, do tipo específico de solidariedade social e de reconhecimento social das
sociedades modernas.
Essa dinâmica é fundamentalmente diferente em uma sociedade periférica marcada pelo
escravismo como a nossa. Para Elias, uma sociedade escravocrata não permite a constituição da
lógica descrita acima cujo motor é a consciência da interdependência social entre as diversas
classes. Apesar deste argumento não ser desenvolvido pelo autor em todas as suas virtualidades, é
razoável cogitar que essa especificidade das sociedades escravocratas é responsável pela
impossibilidade de criação de um tipo social homogêneo e universalizável como substrato
material da noção de cidadania moderna. Assim, a eficácia social da norma que diz „todos são
iguais perante a lei“, estaria condicionada a efetiva existência de um consenso social implícito
que perceberia todas as pessoas como iguais. O fundamento desse consenso para Elias seria a
consciência da „interdependência social“, o reconhecimento de que o trabalho de todas as classes
é igualmente fundamental para a vida em comum.
Em uma sociedade como a brasileira, cujo processo de modernização, ou europeização
como preferia Freyre, significou a constituição de um exército de párias urbanos e rurais,
formado pelos antigos escravos agora sem qualquer função social ou econômica com a
decadência do escravismo, e que jamais lograriam recuperar qualquer função produtiva, esse
reconhecimento da „interdependência social“ entre estratos superiores e inferiores nunca
aconteceu. Para as vítimas do abandono, a letra da lei, a letra da igualdade cidadã, estava
destinada a ser letra morta, sem eficácia social, visto que não só para uma „elite má“, mas
também os próprios excluídos – na medida precisamente que essa auto-representação não é um
ato de vontade individual mas socialmente constituido – passa a existir pessoas que são „gente“ e
pessoas que são, em alguma medida, „não gente“, feitas de um „outro barro“9.
9
A necessidade urgente de se despedir de abordagens intencionalistas e moralistas (as duas parecem ser
irmãs gêmeas) com relação ao tema da desigualdade social no Brasil deve-se ao fato de que essas abordagens são
apenas aparentemente „progressistas“. Na realidade elas são de um conservadorismo visceral como todo populismo.
Quando se diz „o povo é bom, as elites é que são más“, essa frase que, nas suas infinitas variações, é o pão de cada
dia de nossos políticos, cientistas socias, jornalistas e intelectuais de toda espécie, esta-se na realidade, evitando
qualquer solução efetiva para a questão da desigualdade no nosso país. Afinal se o povo já é „bom“, porque se
discutir formas eficazes de se minorar sua miséria material e simbólica? A questão da superação efetiva da
desigualdade se quer se põe. Passa a ser uma contradição em termos. O „populismo sociológico“, que repassa
categorias da filosofia da consciência como vontade, intencionalidade ou reflexividade para grupos socias como as
famigeradas „elites“, na realidade só permitem uma válvula de escape transitória ao ressentimento popular ao criar
um „culpado“ para suas mazelas. Serve para vender revistas que denunciam o „vilão da semana“, repetindo o
maniqueísmo das novelas populares, serve para rebaixar o patamar do debate político ao sentimentalizar e
10
11
Se isso é verdade, como compreender esse paradoxo tão brasileiro, como compreender a
formação no Brasil de uma identidade nacional que apaga diferenças socio-econômicas ter sido
tão bem sucedida? Afinal é patente a identificação do brasileiro de todas as classes com signos
extremamente efetivos de unidade nacional. Essa eficácia chega até a produção científica que se
diz crítica ao criar tipos sociais supra classistas como o „homem cordial“ por exemplo. Por que a
desigualdade socio-econômica não se traduz em luta de classes cultural? Funcionaria a pretensa
unidade cultural como máscara de desigualdades mais profundas? Por que não há uma luta por
hegemonia nesse campo? O exame desse tema em suas variadas facetas ultrapassa em muito
minha competência. Ainda assim, gostaria de arriscar alguns comentários acerca dessa
singularidade que me parece fundamental. E novamente gostaria de usar ensinamentos de Norbert
Elias e de Gilberto Freyre para abordá-la.
Uma idéia interessante de Elias nesse particular parece-me a noção de „Verkitschung der
Seele“10, numa tradução livre algo como uma „ausência de originalidade da alma“, para analisar a
forma pela qual as classes inferiores adotam o padrão de comportamento das classes superiores.
O mesmo fenômeno pode ser aplicado, segundo o próprio Elias, para a relação entre países
centrais (exportadores não só de capital e tecnologia mas também de „civilização“) e
periféricos11. O ponto aqui é o de que o „Kitsch“, essa forma muito peculiar de mal gosto, que se
mostra como tal pela pretensão de ser o que não se é, não adere apenas a objetos, por exemplos
aos móveis populares que são laqueados para reluzir e assim imitar a boa madeira, mas também
a pessoas, transformado-se, portanto, em uma forma específica de consciência reificada.
A ausência de originalidade da alma procura indicar que a imitação de comportamento é,
no caso das classes inferiores e países periféricos, reativa e compulsiva não sendo mediada por
nenhuma atitude reflexiva que pudesse permitir alguma forma de distanciamento crítico em
relação ao comportamento imitado. Como falta distanciamento reflexivo não existe a
possibilidade da seleção de aspectos a serem imitados. A imitação é feita em bloco e sob o receio
do não reconhecimento do superior. Os valores destes são, portanto, absolutos, não existindo
distância crítica possível em relação a eles. Essa forma de reificação da alma pretende mostrar
que o que se importa, pelas classes inferiores ou países periféricos, não são produtos materiais
apenas, mas sim e especialmente, valores, atitudes, formas de consciência individual e formas de
pensar coletivas.
Quando o Brasil se europeiza no decorrer do século XIX12, como nos mostra sobejamente
Freyre no seu admirável „Sobrados e Mucambos“, sob a influência agora de uma Europa
efetivamente moderna e individualista, especialmente no exemplo da Inglaterra a potência
industrial que muda o rosto do país naquele século, temos um excelente exemplo histórico do que
Elias pretende aludir. A Europa que nos chega de navio a partir de 1808, com a vinda da familia
real e com a abertura dos portos, se contrapõe à espécie de „China tropical“ que era o Brasil
colonial. Uma sociedade patriarcal sado-masoquista, onde mulheres, crianças e escravos eram
extensão da vontade do senhor. Uma sociedade que mal conhecia a tração animal, onde os
emocionalizar debates que deveriam pressupor distanciamento e objetividade, serve para que num país tão carente de
debates de fundo, os culpados sejam pessoas e não instituições e processos objetivos.
10
Elias, Ibid, vol. II, pag. 426.
Afinal tinha sido o próprio Elias que havia pleiteado a sucessão histórica de um processo interno e nacional de
civilização o qual depois é exportado e usado como legitimação do colonialismo. Também podemos entender a fase
colonialista como a fase “heróica” desse processo, o qual hoje se dá segundo processos bem mais eficientes e menos
visíveis.
12
E aqui é fundamental ter em mente que nossa influência colonial tem pouco ou nada de europeía no sentido
moderno do termo, sendo o Brasil desta época muito mais àrabe e oriental num sentido lato deste termo.
11
11
12
brancos não se davam ao trabalho de andar na rua pelas próprias pernas sendo carregados em
palanquins pelos negros. Era uma sociedade movida a tração humana e primitivamente antiigualitária e anti individualista.
Os ingleses não trazem apenas mercadorias que se tornariam indispensáveis para brasileiro da
época como pão e cerveja ou tecidos e luz elétrica, eles trazem também a máquina numa
sociedade até então movida a tração animal. A produção de riquezas através do domínio da
natureza é um desafio fundamental para qualquer forma de sociedade. Não é difícil imaginar a
impressão causada por essas máquinas que faziam com vantagens o trabalho de centenas de
homens. O fascínio e admiração daí decorrentes explica em parte a transformação social radical
causada pela europeização, essa grande revolução brasileira do século XIX, seja na estrutura
produtiva, seja na reorganização do espaço público e privado, seja ainda na dimensão do
comportamento individual.
Não podemos aqui13 desenvolver esse ponto fundamental dos efeitos dessa transformação em
todas as áreas da vida social do Brasil da época. O caráter absoluto dos novos valores européus é
o aspecto que nos interessa aqui de modo a esclarecer como foi possível construir uma identidade
cultural transclassista entre nós. O prestígio avassalador que acompanhava qualquer das
novidades européias introduzidas a partir da primeira metade do século XIX, sejam produtos
materiais sejam idéias, foi erroneamente interpretado como „idéias fora do lugar“ ou como
apropriação superficial e epidérmica de uma tradição estranha. Imitávamos o europeu „para
inglês ver“, de „mentirinha“, para efeitos de demonstração, sem real apropriação dessas novas
idéias e comportamentos.
Nada me parece mais enganoso que esse tipo de juízo largamente dominante entre nós. Ele
confunde primeiro, momentos do processo de assimilação da cultura europeia com o processo
como um todo. É claro que essas idéias e comportamentos „fora do lugar“ em algum momento
deve ter parecido ridículas, precisamente pelo seu automatismo imitativo, ao observador. No
entanto, essa é uma etapa necessária de qualquer processo de assimilação cultural. Essas novas
idéias e comportamentos poderiam ser mais apropriadamente denominadas de „a procura de um
lugar“, que aliás logo encontrariam, que fora de lugar. Essa visão não é apenas de Roberto
Schwartz, ela é da maioria avassaladora dos intérpretes brasileiros do século XIX. Um século
visto como da inautenticidade pelas mudanças percebidas como de superfície enquanto a
substância, personalista, ibérica e patrimonialista teria permanecido a mesma.
A apropriação maciça da concepção de mundo européia, seja na economia, na política ou na
cultura, apresentou um padrão seletivo o que é bem diferente de inautentico e epidermico. Essa
concepção disseminou-se nas camadas superiores da sociedade e passou a representar os valores
guia da sociedade como um todo. „Ordem e progresso“, recuperar o tempo perdido e modernizarse passa, a partir dessa época, a ser a „religião civil“ dos brasileiros14.
Toda sociedade, no entanto, precisa se auto-representar como singular. É essa representação
real ou imaginária que permite separá-la de outras nações. Se o Brasil que se europeizava retirava
seu modelo de desenvolvimento alhures, como seria possível, nesse contexto, uma autorepresentação de singularidade? A questão é complexa e multifacetada. A romantização da figura
do índio com virtudes morais e estéticas européias transformado em símbolo diferenciador da
nação mostra bem a dificuldade da empreitada. A liminaridade da figura do índio, na realidade
banido para as profundezas da selva, ajudava à sua transfiguração simbólica.
13
Ver Souza, Jessé, Ibid, especialmente capítulos 7 e 8.
A aplicação do termo ao Brasil é de Sérgio Costa. Religião civil refere-se, na obra de Robert Bellah que forjou o
conceito, aos pressupostos implícitos e inarticulados que servem de fundamento á solidariedade política de uma
sociedade particular.
14
12
13
A figura do negro, durante todo o século XIX a mais discriminada e reprimida nas suas
manifestações culturais, ganha paulatinamente o espaço central da „cidadania cultural“ com o
evolver do século XX. Gilberto Freyre, não o sociólogo arguto que ele também foi, mas o
Gilberto Freyre ideólogo do luso-tropicalismo, irá desenvolver e dar contornos definitivos a
ideologia da „democracia racial“, ideologia na qual o negro ocupa o lugar mais visível ainda que
subordinado. É ele que garante, pelo menos no espaço transfigurado do mito, uma singularidade
positiva na qual o país pode espelhar-se com orgulho. Um país marcado pela singularidade do
tipo de comunicação cultural, tolerância e mestiçagem que teria acontecido aqui de forma mais
marcante que em qualquer outra parte.
Uma análise mais detida do mito, no entanto, nos mostra que a posição do negro, apesar
de destacada ainda é subordinada. Central, nesse contexto, é a idéia da „mestiçagem“ cultural e
racial como peculiaridade social brasileira. Essa construção, por secundarizar o elemento de
opressão e subordinação sistemática, é efetivamente ideológica. Ela levou Freyre, provavelmente
influênciado pela tradição germânca do „Volksgeist“ (espírito do povo) e estimulado pelo seu
mestre Boas15, a pleitear uma espécie de „contribuição singularmente brasileira à civilização“.
Apenas a partir dessa idéia é que podemos compreender a contraposição que perpassa a sua obra
entre a democracia racial, ou „social“ como ele preferia 16, brasileira e a democracia „apenas
política“ dos norte-americanos. Esse relativismo politicamente perigoso o levaria, especialmente
nas suas obras luso-tropicalistas, a toda espécie de delírio culturalista acerca do moreno e
mestiço, e a toda sorte de elogio do autoritarismo político para a proteção dessa pretensa
originalidade luso-tropical.
A figura do negro é subordinada na medida em que irá ser a famosa „plasticidade“ do
português, uma qualidade anterior e positiva deste portanto, que possibilitará a assimilação de
características e valores culturais dos negros. Essa plasticidade é desenvolvida em CGS sob a
forma de um retrato do caráter nacional português, caráter esse que traria o dado da dualidade e
da ambiguidade como seu traço fundamental. Por ser ambíguo, de uma ambiguidade cultural tão
fundamental como a bissexualidade da personalidade humana, o português traria todos as
oposições e todos os antagonismos dentro de si. Essa noção serve, no entanto, dentro do contexto
do raciocínio freyriano para demonstrar um elemento de continuidade e de permanência
essencial, elemento esse eivado ele próprio de ambiguidade. Aqui não se trata mais da
ambiguidade do português mas do próprio argumento de Freyre. É que para demonstrar sua tese
da mestiçagem e da comunicação entre culturas, primeiro como característica distintiva do
português como colonizador e mais tarde, nos seus textos luso-tropicalistas, como contribuição
luso-brasileira à civilização, Freyre é obrigado a defender simultaneamente uma continuidade
sem rupturas e uma interpenetração „democratizante“ com outras culturas do elemento dominante
português.
A noção de plasticidade se presta maravilhosamente a esta prestidigitação teórica. É que a
plasticidade permite que imaginemos o português ao mesmo tempo como uma entidade que se
comunica e que se transforma no contato com o diferente, permanecendo, no entanto, em sua
essência sempre igual a si mesmo no decorrer do tempo. O português entra em contato com o
elemento nativo e com o adventício formando, em contraposição ao colonizador anglo-saxão por
exemplo, uma nova ligadura, um novo produto social e cultural. Por outro lado, o elemento
15
Ver sobre o tema Bunzl, Matti, “Franz Boas and the Humboldtian Tradition: from Volksgeist and
Nationalcharacter to an Antropological Concept of Culture”, in: Stocking, George (org.) Volksgeist as Method and
Ethik: Essays on Boasian Etnography and the German Antropologiacal Tradition, Madison, The University of
Wisconsin Press, 1996.
16
A discussão sobre a existência ou não do termo “democracia racial” em Freyre é bizantina. Mesmo que não exista
o nome a presença da idéia é insofismável.
13
14
português permanece malgrado todos esses contatos sempre igual a si mesmo. O portugues é ele
e o outro ao mesmo tempo. Ele é plástico por já possuir dentro de sí todos os opostos. Essa
espantosa qualidade cultural permite que, ao encontrar alguma alteridade fora dele, o português
possa lançar mão de características assemelhadas a esse alter na sua própria personalidade que
possibilita interpenetração sem perda da sua „substância“ original.
Acredito que grande parte da discussão acerca das „contradições em equilíbrio“, acerca de
todo culto à contradição e à ambiguidade em Freyre, tenha a ver com a noção visceralmente
imprecisa e escorregadia da „plasticidade“ do português. Falta qualquer sentido unívoco a essa
noção de plasticidade e sabemos o quanto dependemos de conceitos precisos para a compreensão
de uma realidade complexa. A polissemia serve pouco à ciência e muito à ideologia e acredito
que a noção de plasticidade está na base da operação de transvalorização ideológica que animou o
esforço de Freyre tanto em CGS quanto na sua obra luso-tropicalista posterior. Gilberto Freyre
almejava inverter o sinal negativo da obra portuguesa aqui e alhures como meio de reverter a
baixa auto-estima do brasileiro17.
Como toda inversão especular, no entanto, ela é reativa e está de algum modo ligada ao
seu contra-polo. Falta a ela distância crítica e portanto o exercício de uma auto-crítica reflexiva
que efetivamente mudasse os termos do debate. A crítica do raciocínio negativista e pessimista
com relação as potencialidades do país, exigiria não a sua inversão em „maior civilização dos
trópicos“ ou em „contribuição singular à civilização“ representada pela produtiva comunicação
entre diferentes, mas um ato de distanciamento reflexivo tanto em relação aos termos do debate
quanto em relação à própria identificação da personalidade do pesquisador com sua própria
cultura.
De qualquer modo, seja ainda como figura subordinada, o negro pôde „aparecer“ no palco
cultural pela primeiras vez e ter reconhecida sua co-participação na singularidade do país. Ele é o
elemento fundamental na prestidigitação gilbertiana que transforma o negativo em positivo e
assegura o lugar especial ao país no „concerto das nações“.
Produz-se, ao mesmo tempo, no entanto, uma contradição peculiar do nosso processo
civilizatório periférico marcado pela experiência da escravidão. Por um lado, a modernização
seletiva dos estratos sociais que se europeizaram efetivamente (e não para inglês ver como
percebe boa parte de nossa historiografia), implica que a sociedade como um todo (e não apenas
uma elite má como o intecionalismo de certa má sociologia prega) perceba algumas pessoas
como valendo mais que outras. Por outro lado, a singularidade do país, aquilo do qual ele se
orgulha possuir por comparação com outras, implica a valorização ( ainda que folclorizada)
precisamente do elemento não-europeizado, afinal é apenas ele que nos permite representar como
uma sociedade singular e especial.
Acredito que essa mensagem de duplo sentido e visceralmente ambígua seja
extremamente eficaz para que a potencial rebeldia do excluído brasileiro, quase sempre mais
„escuro“ ou negro, mantenha-se como a-política ou sem ser explicitada reflexivamente, ou seja,
mantenha-se como „consciência fragmentada“18. Afinal, como posso me representar como
injustamente excluído se são as minhas raízes culturais na música, na dança, no esporte que são
celebradas por todos? Existem partes da vida, partes do dia ou da semana, onde são precisamente
essas manifestações que ganham proeminência e lugar de destaque. Sintomaticamente, no
entanto, quando isto acontece, estas não são as partes do dia ou da semana que têm a ver com a
17
Seu famoso prefácio confessional de “Casa Grande e Senzala” é um bom exemplo dessa inversão. À vergonha de
ser brasileiro provocada pela visão dos desgraçados marinheiros brasileiros no exterior, seria substituída pelo orgulho
permitidas pela sua própria (re)construção mitológica.
18
O fenômeno do Hip-hop na periferia do Rio de Janeiro é um belo exemplo de desconstrução dessa folclorização do
oprimido.
14
15
distribuição de recursos escassos. O lazer é (ou pelo menos pode ser) democrático, o mundo do
trabalho e do espaço público não. A economia e a política escapam a dinâmica que preside a
celebração folclorizada do oprimido.
15
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