Crítica Econômica A Rússia dos anos 90: crônica de um desastre anunciado Fevereiro 26, 2008 por Coletivo Crítica Econômica Numa Mazat Quando a União Soviética dissolveu-se em 25 de dezembro de 1991, podia começar a transição para uma economia de mercado livre, conforme aos desejos de Boris Yeltsin, presidente da recém-criada Federação da Rússia. Os dirigentes russos escolheram uma aplicação acelerada do receituário ortodoxo. Como será demonstrado aqui, essa escolha levou a Rússia à beira do abismo, com resultados catastróficos do ponto de vista político, social e econômico. Em outubro de 1991, Yegor Gaidar, o novo primeiro ministro de Yeltsin, foi encarregado da elaboração de um plano de transição para a Rússia, e chamaram vários economistas ocidentais ortodoxos, como Andrei Shleifer, Jeffrey Sachs, David Lipton ou Anders Åslund. A maioria desses experts já tinha participado das reformas programadas na Polônia, espécie de “laboratório” da transição russa. Desta forma, a transformação da economia russa tornou-se um extraordinário « caso prático » para os policymakers (especialistas) ortodoxos demonstrarem a validade das suas recomendações. A hiperinflação, ligada ao excesso de liquidez em circulação herdado da União Soviética, era apontada pelos reformistas como sendo o maior risco para a economia russa. Eles sabiam, também, que a situação econômica seria piorada pela provável queda da produção provocada pela reconversão da indústria nacional. Temendo que a população russa pudesse não apoiar as reformas por muito tempo, Gaidar e seus especialistas decidiram, então, realizar um conjunto de mudanças consideráveis no mínimo de tempo possível. Assim, a estratégia escolhida ganhou o nome de Terapia de Choque (ou Tratamento de Choque). Havia quatro pilares no programa da Terapia de Choque. O primeiro pilar era a liberalização dos preços, que devia acabar com as penúrias e alinhar os preços relativos internos com os preços internacionais. O segundo pilar era a abertura para a economia mundial, tirando os obstáculos administrativos e tarifários que existiam do tempo da URSS. O objetivo era um aumento das exportações que devia “comprimir” o mercado interno a fim de lutar contra a inflação. O terceiro pilar era uma política de restrições financeiras duras, cuja finalidade era reduzir o risco de inflação que poderia ser criado pela liberalização dos preços. O racionamento do crédito que seria a conseqüência de tal política devia acelerar o processo de reestruturação das empresas. O último pilar era a privatização das firmas estatais, que devia aumentar a competitividade das empresas russas, introduzindo a noção de competição. Mas, como era de se esperar, a realidade foi um pouco diferente. Assim, a abertura comercial descontrolada foi catastrófica para boa parte da indústria russa que ficou exposta demais à concorrência internacional, o que explica a queda dramática dos índices de produção de vários setores (menos 56%, na média). De outro lado, o aumento das exportações esperado depois da abertura comercial não aconteceu nas proporções esperadas, porque muitos países programaram barreiras contra a entrada dos produtos russos. Com a liberalização dos preços, o poder de compra dos russos caiu e apareceram cada vez mais pessoas vendendo seus pertences nas ruas ou reduzidas a praticar o escambo. Dessa forma, na Rússia de 1998, 50% das transações eram realizadas por escambo, fenômeno sem precedente na economia moderna. Ora, no novo sistema econômico, os bancos privados deviam supostamente substituir o Estado para ajudar as empresas a financiar seus investimentos. Isso não aconteceu e o crédito conheceu um grande racionamento, dramático para o investimento, que caiu de 81% entre 1991 e 1998. (Observe nos dados do gráfico 3) A transformação das fazendas estatais em sociedades por ação devia permitir uma melhora da produtividade. No entanto, a concorrência internacional e a falta de investimento provocaram uma queda da produção da agricultura russa de 45% entre 1992 e 1998. (Compare os dados contidos em nosso livro texto página 5- Texto Complementar- O Sobe e desce na Rússia). Enfim, as consequências sociais da transição foram dramáticas. A distribuição da renda piorou de forma dramática (o índice de Gini passou de 0,233 em 1990 a 0,401). Da mesma forma, o salário real caiu de 58% entre 1990 e 1999. Esse fenômeno foi, também, ilustrado pelo aumento exponencial do número de pobres na Rússia, que passou de 2% da população em 1988 para 39% em 1995. (Além do gráfico, observe texto abaixo sobre o significado da sigla GINI). A crise financeira de agosto de 1998, provocada pela fuga de capitais estrangeiros especulativos e pela reticência dos bancos domésticos em financiar a dívida, foi à digna conclusão da Terapia de Choque. Ela marcou o fim de uma década de recessão, com uma queda de mais de 51% do PIB real entre 1990 e 1998. (observe o gráfico 1) Houve um verdadeiro conflito que se concluiu pela vitória de uma porção muito reduzida da população. De fato, a Terapia de Choque foi o meio usado pela casta dos empresários e financistas para se apropriar dos ativos estatais e da riqueza do país. A corrupção e o crime viraram a regra e o Estado perdeu toda sua legitimidade, sendo confiscado pelos interesses particulares. (Observe e compare com os dados contidos no livro texto página 5 2º parágrafo) Gráfico 1- Evolução do PIB real russo entre 1990 e 1998 Fonte: Federal State Statistics Service – Russia (2007). Gráfico 2 – Evolução dos principais indicadores industriais russos entre 1998 e 2004 Fonte: Federal State Statistics Service – Russia (2007). Gráfico 3 – Figura 3.2.3: Evolução do Investimento real russo entre 1990 e 1998 Fonte: Klein, L. ; Pomer, M. (eds) (2001) The New Russia, Transition gone awry. Stanford University Press e Federal State Statistics Service – Russia (2007). Gráfico 4 – Evolução do índice de Gini russo entre 1990 e 2000. Fonte: Gerardo Bracho, C. ; López, G. (2005) The Economic Collapse of Russia, Quarterly Review Banca Nazionale del. Lavoro, Roma, n° 232 Adaptado: http://criticaeconomica.wordpress.com/2008/02/26/a-russiados-anos-90-cronica-de-um-desastre-anunciado/ Texto Índice GINI Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita. Seu valor varia de zero, quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem o mesmo valor), a um, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula). http://www.pnud.org.br/popup/pop.php?id_pop=97 VOCABULÁRIO: Transição: mudança, alteração. Ortodoxo: com os princípios tradicionais de qualquer doutrina. Liquidez é um conceito econômico que considera a facilidade com que ele pode ser convertido em dinheiro. Hiperinflação : trata-se de uma inflação muito alta e fora de controle. Reconversão: atualização, mudanças mantendo os padrões originais. Liberalização: tornar uma atividade econômica mais liberal. Penúria: falta, escassez, pobreza. Estatais: pertencentes ao Estado. Escambo: troca de mercadorias. Precedente: antecedente, anterior, pretexto. Exponencial: ilustre, significativa, importante. Reticência: Omissão, não revelar um fato. Capital especulativo é o capital destinado a produzir lucros rápidos através de atividades de especulação. Confiscado: apoderar-se, tomar posse de algo. Fontes: Dicionário Aurélio, Educacional, wikipédia, yahoo respostas.