o significado e as relações do duplo em vestido de noiva de nelson

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O SIGNIFICADO E AS RELAÇÕES DO DUPLO EM VESTIDO DE NOIVA DE
NELSON RODRIGUES
Patrícia Barth Radaelli – Faculdade
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RESUMO: Este trabalho apresenta o resultado de análise literária que, buscando extrapolar aos
cânones tradicionais, aponta para o valor representativo da dramaturgia de Nelson Rodrigues;
usufruindo, assim, da abrangência da linguagem artística, ao se evidenciar a peça teatral como
forma de expressão no universo da literatura. A soma de todas as linguagens envolvidas numa
criação literária revela a memória dos dizeres e dos fazeres do homem que vive em sociedade.
Para tanto, engendra-se uma análise do texto de Vestido de Noiva (1943) de Nelson Rodrigues,
sob a temática do duplo, a partir da abordagem mitológica de Keppler (1997) e as contribuições
psicológicas de Freud (1976). A peça será tomada enquanto texto literário, cujo estudo estará
pautado na constituição da personagem protagonista, com alguns recortes das ações das demais
personagens. A linguagem do duplo apresenta-se em Nelson Rodrigues na perspectiva de explorar
as múltiplas faces das personagens, numa forma poética de captar a essência do comportamento
humano.
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia, Vestido de Noiva, duplo.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo engendrar uma análise do texto Vestido de Noiva (1943), de
Nelson Rodrigues 2; peça que, apesar de ter sido a segunda produção deste escritor para o teatro, ao ser
encenada, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 28 de dezembro de 1943, já o consagra como
dramaturgo, ao ser considerada por muitos críticos como a real culminação do modernismo.
A análise evidenciará a estrutura do texto dramatúrgico, que mesmo sendo elaborado para ser
encenado, mantem-se como texto literário de expressão, tanto quanto um poema ou um romance.
Destacar-se-á o estudo da protagonista com uma temática recorrentemente explorada por autores desde
a mitologia grega: a condição dupla da personalidade humana; o desdobramento do inconsciente. Isso,
à luz de pressupostos teóricos de Brunel e Kepler, na abordagem mitológica, e Freud, com as
contribuições da psicanálise. Antes, porém, serão tecidas algumas considerações sobre a produção
teatral do autor.
AUTOR E OBRA
Apesar de o autor possuir uma extensa obra, abarcando romances, poesias, contos e crônicas, foi
a dramaturgia, com suas dezessete peças com temáticas que escandalizavam por retratarem o espírito e
a ideologia da classe média, que, mesmo despertando divergentes opiniões da crítica, o transformou
num dos maiores e mais polêmicos dramaturgos do Brasil. Suas pelas inovaram no estilo, na estética e
na abordagem de temas polêmicos.
Já em 1925, aos treze anos, Nelson Rodrigues inicia suas produções. Atuando como jornalista,
foi repórter policial do jornal, Correio da Manhã, durante longos anos. E, desde o início,
impressionava os colegas com sua capacidade de dramatizar pequenos acontecimentos. Especializouse em descrever pactos de morte entre jovens namorados, tão constantes naquela época. Durante esse
tempo, acumulou uma vasta experiência que, emoldurada pela sua própria história de vida, norteou a
produção de seus textos. Sua vida pessoal foi marcada pela polêmica e pela tragédia. O crítico Sábato
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Nelson Falcão Rodrigues nasceu na cidade de Recife – PE, em 23 de agosto de 1912, quinto filho dos catorze
que o casal Maria Esther Falcão e o jornalista Mário Rodrigues puseram no mundo. Veio a falecer em 1980, no
Rio de Janeiro. (Rodrigues, 1981)
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Trabalho de conclusão apresentado ao Curso de Especialização lato sensu em Literatura e Ensino, do Centro de
Educação, Comunicação e Artes da Unioeste, Campus de Cascavel; sob orientação da Profa. Dra. Lourdes
Kaminski Alves.
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Magaldi comenta que: “Nelson nunca se recuperou das tragédias familiares e elas estão no substrato
das histórias mais inocentes que compôs. [...] Ironia do destino, no melhor sentido moderno da Moira
Grega, que Nelson incorporou, com a sua verdade da experiência pessoa ao seu teatro.” (MAGALDI,
1981, p. 11)
Em meados de 1941, após alguns anos trabalhando como jornalista, tomado pelas dificuldades
financeiras, Nelson resolve aventurar-se pela dramaturgia. Seu projeto inicial era produzir uma
comédia, porém sua vocação já o direcionada e a peça se transforma num verdadeiro drama.
Elementos melodramáticos, naturalistas e expressionistas comparecem em todas as peças de
Nelson Rodrigues nos seus cinquenta e cinco anos de produção. Magaldi (1981) propôs uma
subdivisão que imbrica as peças em três núcleos temáticos: peças psicológicas, que se ocupam do
inconsciente das personagens; pelas míticas, que mergulham nas sobras do inconsciente coletivo; e
tragédias cariocas, nas quais o dramaturgo expõe e realidade cotidiana com aventuras perenes de amor
e morte. A divisão é procedente, porém essas características não se mostram isoladas. O próprio
Magaldi assinala: “as peças psicológicas absorvem elementos míticos e da tragédia carioca. As peças
míticas não esquecem o psicológico e afloram a tragédia carioca. Essa tragédia carioca assimilou o
mundo psicológico e o mítico nas obras anteriores”. (MAGALDI, 1981, p. 9)
Em A mulher Sem Pedado (1941), sua primeira peça, o dramaturgo expõe um protagonista que
se encontra prestes a extrapolar os limites da censura do inconsciente. Olegário, Casado com Lídia,
convive com os fantasmas e medos criados pela sua imaginação doentia. Morre de ciúmes de sua
mulher e desconfia que está sendo traído. Forja uma situação – disfarça-se de paralítico das pernas –
para por à prova sua mulher. Lídia, enfurecida pelo ciúme incessante e mórbido do marido, acaba por
traí-lo fugindo com Humberto, motorista contratado para vigiar seus passos.
Esta primeira peça já expõe as principais características que dariam estrutura a dramaturgia
nelsonrodriguiana. Segundo Fernando Marques, “A Mulher Sem Pecado já contém a mistura de
gêneros e processos distintos que daria estrutura a grande parte do teatro de Nelson. Ao que parece ele
pretendeu realizar um trabalho híbrido, em que na tragédia, melodrama e farsa, entre outros gêneros,
coexistiss3em”. (MARQUES, 2000, p. 42)
Em janeiro de 1943, Nelson Rodrigues escreve sua segunda peça teatral: Vestido de Noiva. Elza,
sua mulher, fez mais de vinte cópias datilografadas para serem entregues a jornalistas, críticos e
amigos. O primeiro a receber foi Manuel Bandeira. Ele gostou. Escreveu sobre a peça no Jornal A
Manhã (06/02/1943): “O progressos de A Mulher Sem Pecado para O vestido de noiva foi grande [...]
Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é
não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação”. (BANDEIRA, 1943
apud MAGALDI, 1981, p. 15)
Os demais jornais também falavam sobre Vestido de Noiva, mas o autor não conseguia encenála. Todos diziam que era uma peça de alto custo, pois exigia um cenário muito complexo.
O dramaturgo continuava a seguir o trato psicológico da primeira peça; ocupando-se do
inconsciente da personagem Alaíde, a protagonista, que sofreu um acidente misterioso e alucina entre
a vida e a morte, numa tessitura psicológica que não segue uma ordem cronológica; suas lembranças
confundem seu passado com o da prostituta Madame Clessy, de quem ela lera o diário. Tramas,
assassinatos, mentiras envolvem Alaíde, o marido Pedro e a irmã Lúcia.
Só em dezembro de 1943, sob a direção de Thomaz Santa Rosa, e do Polonês Zbigniew
Ziembinski, 2.205 espectadores viram a peça. Duras horas depois a peça chegou ao fim. O silêncio foi
total na plateia. Nos bastidores ninguém sabia o que fazer. Ziembisnski entre palavrões em polonês,
manda subir o pano. Os artistas surgem e o aplauso é ensurdecedor. O diretor aparece e o teatro delira.
Foi o primeiro grande sucesso de público de Nelson Rodrigues.
Nos dois últimos meses de 1945 e nos dois primeiros meses de 1946 o grupo “Os Comediantes”
encenou Vestido de Noiva e A Mulher Sem Pecado no Teatro Phoenix, com lotação esgotada. Nelson
Rodrigues começa a escrever, então, Álbum de Família. Uma trama de ressentimentos, desejos
proibidos e incestos. Jonas e Senhorinha tem quatro filhos: Edmundo, Guilherme, Nonô e Glória.
Edmundo sente uma atração pela mãe, enquanto Glória é alvo de adoração de seu pai e de Guilherme.
Nonô é o filho preferido de Senhorinha, e após ser escorraçado pelo pai, vinga-se traindo-o com a
própria mãe, depois enlouquece. A peça causa tamanho furor e escândalo.
Em fevereiro de 1946, o texto é submetido à censura federal e os censores ficam horrorizados. A
peça foi proibida. As opiniões se dividiam entre os intelectuais, os críticos e os jornalistas da época,
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uns a favor da liberação, outros contra. Venceram os contra, pois a peça só foi liberada em 1965 e
encenada pela primeira vez em julho de 1967.
Em defesa da peça, conceituou Prudente de Morais Neto: “O que houve foi medo, o horror a
uma palavra: incesto. E o avestruz em pânico enfiou os olhos na areia. Se consentisse em desenterrálos, veria, por certo, a Oréstia e Édipo, aclamadas como duas obras-primas há mais de 2000 anos”.
(MORAES, apud MARQUES, 2000). Já Álvaro Lins, que elogiara Vestido de Noiva, tece críticas
severas sobre Álbum de Família. Lins ataca a temática e a linguagem.
Anjo Negro (1946) estreia em abril de 1948. Como sempre, gerou comentários polêmicos. A
peça explora a questão do preconceito: a corda pele; num exercício de atração e repulsa entre os
personagens: o negro Ismael e a branca Virgínia. Alguns críticos não gostaram, acusaram-na de ser
racista. Mas, na verdade, Nelson Rodrigues intencionava a denúncia desta situação que imperava na
sociedade da época. Com Anjo Negro, o dramaturgo inicia um ciclo de peças consideradas, pela
crítica, mais complicadas, num trabalho com o contexto mítico, que já havia iniciado em Álbum de
Família. Seguem-na Senhora dos Afogados (1947), peça que estreia no Rio, em 1954, com a direção
de Bibi Ferreira, e Dorotéia (1948), uma tragédia sombria, considerada por muitos como o seu melhor
trabalho. Nessas duas peças, Senhora e Dorotéia, a linguagem ultrapassa a fala coloquial e o lirismo
aflora na produção do dramaturgo.
Em 1951, Nelson retoma, com o monólogo Valsa nº 6, a trama psicológica. A peça foi
considerada pela crítica como Vestido de Noiva às avessas. Assim, como a personagem Alaíde, Sônia
está agonizando. Aquela foi atropelada, esta, assassinada. A diferença é que Alaíde contracena com as
personagens do seu imaginário, enquanto Sônia apenas as rememora, encenando sozinha as
personagens que participam do enredo, num processo imitativo. Um instante limite entre a vida e a
morte, num fragmento de segundos, compõe a trama em câmera lenta.
Nelson compõe o monólogo com profundo lirismo. “A sugestão poética”, salienta Madaldi “não
define um instante. A imaginação febril da adolescente fundamenta os versos que se entremeiam à
história: “ ‘Quando chove em cima das igrejas, os anjos escorrem pelas paredes’. Nelson tem o direito
de contrabalancear a secura de seu diálogo com o derramamento lírico, nunca sem propósito, neste
monólogo”. (MAGALDI, 1981, p. 27).
O dramaturgo ainda escreve mais duas peças que adentram aos meandros do subconsciente,
enquadradas nas peças de cunho psicológico: Viúva, Porém Honesta (1957), “farsa irresponsável” que
critica a manipulação do discurso vendido às massas e a inutilidade dos críticos de teatro da nova
geração, e Anti-Nelson Rodrigues (1973). Nesta, o dramaturgo tranquiliza a crítica, não chegando a ser
polêmico, por isso, talvez o título. As personagens Tereza e Gastão trocam juras de amor, e a peça, ao
contrário das demais, tem um final harmônico.
As demais peças de Nelson Rodrigues configuram as tragédias cariocas: A falecida (1954),
Perdoa-me por me Traíres (1957), Os Sete Gatinhos (1958), Boca de Ouro (1959), Beijo no Asfalto
(1960), Bonitinha, mas Ordinária (1962), Toda a Nudez será Castigada (1965) e A Serpente (1979).
Nelas o dramaturgo expõe, com certo humor, fatos corriqueiros do cotidiano brasileiro, mais
especificamente, do carioca, entrelaçados com aventuras perenes de amor e morte. Sobre elas
Fernando Marques sintetiza: “Da comédia ao drama, do drama à comédia, a dança de convenções,
enriquecidas por elementos aflitivos, sórdidos ou escatológicos, responde em grande parte pelo
impacto e pela originalidade das tragédias cariocas”. (MARQUES, 2000, p. 48)
Nessa fase, a linguagem coloquial se impõe como sua marca indissipável, o que acaba por
contribuir com esse processo de comunicação mais afinado à realidade dos brasileiros; o uso da
própria fala carioca, nas décadas de 50 e 60, pelo teatro nelsonrodriguiano, e por outros que o
seguiram, consagra o coloquial como significativa expressão estético-dramatúrgica.
Com Nelson Rodrigues, o texto de teatro no Brasil passa a ter algo de novo e de único ao dizer
ao mundo. Porém, bem ironiza Fernando Marques (idem, p. 49), “nada de chamá-lo de ‘nosso
Shakespeare’ – a referência somos nós, deve estar deste lado do Atlântico, essa foi também a lição do
escritor. O mais lisonjeiro e exato será admitir que Shakespeare, vamos e venhamos, é o Nelson
Rodrigues dos ingleses”.
Da Mitologia à Psicanálise: Desdobramentos do Inconsciente em Vestido de Noiva
As religiões tradicionais asseguram que a própria estrutura interior do homem pressupõe a união
de dois elementos diferentes: a alma e o corpo. Sob outro prisma, em Gênesis, o home começa sendo
um. Do seu próprio corpo, Deus extrai um novo ser: a mulher; e já encontramos aí a ideia subjacente
do mito do duplo.
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Na mitologia, o homem é interpretado como possuidor de uma natureza dupla, em particular
masculina e feminina. Esta ideia da dualidade do humano masculino/feminino, homem/animal,
espírito/carne, vida/morte, revela, segundo Brunel, “uma crença na metamorfose que implica uma
certa ideia do homem como responsável pelo seu destino”. E a literatura, segundo o mesmo autor,
“tem a vocação de por em cena o duplo, invalidando o princípio da identidade, o que é uno e também
múltiplo”. (BRUNEL, 2000, p. 262)
Porém, nem sempre foi assim. Da Antiguidade até o final de século XVI, o mito do duplo
simboliza o homogêneo, o idêntico: a semelhança física entre duas pessoas usada para efeitos de
substituição; o gêmeo é confundido com o herói e vice-versa, cada um com sua identidade própria.
Somente, a partir do século XVII, a concepção do duplo sofre uma radical mudança, e passa a assumir
a figura do heterogêneo, com “uma abertura para o espaço interior do ser que força ao abandono
progressivo do postulado da unidade da consciência, da identidade de um sujeito, única e
transparente”. (BRUNEL, 2000, p. 217). No século XIX, estudos sobre a divisão do “eu” concebem
como à quebra da unidade.
Na contemporaneidade, com as contribuições da psicanálise freudiana, a temática do duplo
mantém-se na problemática do heterogêneo, privilegiando porém, o aspecto psicológico.
Em 1900, Freud apresenta a primeira concepção sobre a estrutura e funcionamento da
personalidade. Essa teoria refere-se à existência de três sistemas ou instâncias psíquicas: inconsciente,
pré-consciente e consciente.
O inconsciente, exprimindo o conjunto de conteúdos não presentes no campo atual da
consciência, constituído então, por conteúdos reprimidos que não tinham acesso ao sistema préconsciente (local onde permanecem aqueles conteúdos acessíveis à consciência) pela ação de censuras
internas, é que propiciaria um fracionamento infinito do ser – a condição dupla ou múltipla da
personalidade.
Em 1920 e 1930, Freud remodela a teoria do aparelho psíquico e introduz os conceitos de id,
ego e superego. O id, possuidor do reservatório da energia psíquica, recebe as características
atribuídas ao sistema do inconsciente da primeira teoria, passa a ser o responsável pela condição da
dupla personalidade; o ego é o sistema que estabelece equilíbrio entre as exigências do id e as ordens
do superego; O superego assume as internalizações das proibições dos limites e da autoridade.
No processo terapêutico e de postulação teórica, Freud, inicialmente, entendia que todas as
cenas relatadas pelos pacientes tinham de fato ocorrido. Posteriormente, descobriu que poderiam ter
sido imaginadas, mas com a mesma força e consequências de uma situação real. Aquilo que, para o
individuo, assumia valor de realidade era, na verdade, realidade psíquica. (ARANHA E MARTINS,
1999). E o duplo, então, seguindo essa concepção, seria originado por conflitos psíquicos, numa
projeção da desordem íntima.
A partir dessas descobertas, os estudos sobre o desdobramento do ser passam a relacionar os
diferentes aspectos do duplo na literatura, da mitologia à psicanálise.
Keppler (1972), em seu estudo, dedica-se à pesquisa dos duplos na literatura. É dele uma das
definições mais rigorosas sobre a temática: “o duplo é ao mesmo tempo idêntico ao original e diferente
– até mesmo o oposto – dele. É sempre uma figura fascinante para aquele que ele duplica, em virtude
do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e
complementar), provocando no original, reações emocionais extremas – atração e repulsa”.
(KEPPLER apud BRUNEL, 2000, p. 263)
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Então o senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia,
tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha
tomado do homem, o senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do Homem.
Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela
se chamará mulher, porque foi tomada do homem. (GÊNESE, 2: 21-23)
Em Vestido de Noiva, a condição dupla é composta por Nelson Rodrigues no intuito de explorar
as múltiplas faces dos personagens, numa forma literária de captar os múltiplos aspectos do
comportamento humano. Essa condição explica a angústia da personagem protagonista diante do seu
próprio dilaceramento interno.
A peça tem um cenário subdividido em três planos que se intercalam num processo de ações
simultâneas: o plano da alucinação, o plano da memória e o plano da realidade. Este último surge
esporadicamente, apenas para da ruma certa ordem linear aos fatos.
Nelson Rodrigues inicia Vestido de Noiva ao som de ruídos indicadores de um acidente. A
personagem Alaíde, uma rica senhora da sociedade carioca, é atropelada numa das ruas do Rio de
Janeiro, e fica entre a vida e a morte. A partir de então, Nelson Rodrigues passa a trama para os planos
da alucinação e da memória da personagem, com os quais ele constrói a maior parte da peça, e de onde
podemos colher a essência da sua temática.
O acidente desagrega a personalidade da protagonista que, já mergulhada em seu subconsciente,
inicia o enredo à procura de sua heroína, Madame Clessi; é o processo de desdobramento da
personagem.
Neste enredo, enquadra-se bem o conceito sobre o duplo apresentado por Rank (1914). Para ele
o “duplo está ligado também ao problema da morte e do desejo de sobreviver-lhe. Sendo o amor por si
mesmo e a angústia da morte indissociáveis. Visto sob essa perspectiva, o duplo é uma personificação
da alma imortal que se torna a alma do morto, ideia qual o eu se protege da destruição completa, o que
não impede que o duplo seja percebido como um ‘assustador mensageiro da morte’”(BRUNEL, 2000,
p. 263)
E, assim, pode-se afirmar que Nelson Rodrigues constrói Vestido de Noiva numa projeção
exterior do subconsciente da sua personagem protagonista, Alaíde. O que, segundo Madaldi (1981, p.
16) se transforma num campo exploratório privilegiado pelo autor.
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Clessi: - Quer falar comigo?
Alaíde (aproxima-se fascinada): - Quero sim. Queria...
Clessi: - Vou botar um disco.
Alaíde: - Lí o seu diário.
[...]
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Análise da Personagem
A análise da personagem Alaíde é imprescindível para a compreensão de Vestido de Noiva, uma
vez que a peça transcorre sob a projeção do seu subconsciente, num jogo de sobreposições entre
lembranças e alucinações.
Décio de Almeida Prado (1981, p. 88) em seu artigo, “A personagem no Teatro”, expõe as três
principais vias para caracterizar, em teatro, a personagem: “o que a personagem revela sobre si
mesma, o que faz, e o que os outros dizem a seu respeito” Para ele, a primeira solução só oferece
algum interesse quando se trata de trazer à tona o mundo submerso de sentimentos e reflexões. Já a
observação da ação, segunda possibilidade, é, além da forma mais concreta de análise, única que o
realismo considera legítima. E, no terceiro modo, a análise fica relegada à consciência crítica dada
pelo dramaturgo às demais personagens.
Nelson Rodrigues constrói, em Vestido de Noiva, uma personagem tão complexa que sua
análise acaba por imbricar as três vias explicitadas pelo crítico Décio de Almeida Prado. A verificação
das ações de Alaíde e a observação do que as outras personagens revelam sobre ela, implicam em
verificar o que ela mesma revela sobre si, uma vez que a peça se passa no seu subconsciente e todas as
informações são delimitadas pelo próprio afã.
Em coma profundo, Alaíde preconiza uma ruptura entre o seu ego e a realidade; e, ficando
liberta da censura do superego, reconstrói sua história de vida de acordo com os desejos do id. Assim,
inconsciente e insatisfeita com os fatos reais, a personagem rememora, em solidão absoluta, seu
passado por meio da soma dos episódios da realidade e de suas fantasias; seus desejos.
No início de seus devaneios Alaíde, a beira da morte, percorre os caminhos do seu imaginário,
em busca de Madame Clessi; em busca do seu mais íntimo desejo, o de ser como Madame Clessi, uma
prostituta de luxo que fora liricamente assassinada, no início do século XX, pelo namorado
adolescente. Ela a encontra e, assim, assume o processo de desdobramento do seu eu:
Alaíde: - Aconteceu uma coisa, na minha vida, que me fez vir aqui. Quando foi que
eu ouvi seu nome pela primeira vez (estou me lembrando) (V. N3., p. 115)
No plano da memória, Alaíde relembra que, quando solteira, encontrou o diário de Madame
Clessi, no sótão da casa que fora residir com a família. E que a história a havia fascinado tanto que ela
passava a pesquisar, na biblioteca pública, todos os jornais que traziam as notícias do assassinato da
prostituta, ocorrido em 1905.
Alaíde internalizou o desejo de ser como a cortesã, o que veio à tona com o acidente e estado de
coma profundo. Então, o processo de desdobramento acontece como uma tentativa de resgate do
inconsciente à vida, e ao que a estimula. Alaíde transfere para Madame Clessi seus impulsos de
fantasias de grandeza.
Alaíde: - La via mala – com roupas, as ligas, o espartilho cor-de-rosa. E encontrei o
diário (arrematada) Tão Lindo, ele!
Clessi (forte): - quer ser como eu, quer?
Alaíde (veemente): - Quero, sim. Quero.
Clessi (exaltada, gritando): - Ter a fama que eu tive. A vida. O dinheiro. E morrer
assassinada?
[...]
Alaíde: - Quero ser como a senhora. Usar espartilho. (doce) Acho espartilho
elegante! (V. N., p. 117)
Logo, Alaíde entra num vácuo de ideias obsedantes. Para ela, Pedro, seu marido, a está
perseguindo. Então, passa a vê-lo em todos os homens com que se depara. Este também seria um
processo de desdobramento de Pedro, não do próprio personagem, ma dos desejos de Alaíde.
Alaíde (trazendo de braço, a 1ª mulher, para um canto): - Aquele homem ali. Quem
é?
(Indica um homem que acaba de entrar e que fica olhando para Alaíde)
3º Mulher: - Sei lá! Vem aos sábados.
Alaíde (aterrorizada) – Tem o rosto de meu marido, (recua, puxando a outra) a
mesma cara(idem, p. 112)
[...]
Alaíde (saturada): - Ah! Meu Deus! Esse também!
1ª Mulher: Quem?
Alaíde: - Aquele. Tem a cara do meu noivo. Os olhos, o nariz do meu noivo – estão
me perseguindo. Tomo mundo tem a cara dele (V. N., p. 114)
Essa ideia de perseguição é, na verdade, fruto da neurose estabelecida nos conflitos do
subconsciente. Conflitos estes amparados num fato real. Alaíde disputou com Lúcia, sua irmã, o
namorado Pedro. E este jogo de rivalidade com a irmã, impulsionou-a ao casamento. Depois, o
cotidiano surge avassalando a união e instigando novos desejos em Alaíde.
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De agora em diante, nesse trabalho, todas as citações da peça Vestido de Noiva d
e Noiva de Nelson Rodrigues, passarão a ser caracterizadas com as maiúsculas (V. N.).
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Alaíde (provocadora): - Você não acaba com esse livro?
Pedro: - Mas, minha filha, comecei agora!
Alaíde (com irritação): - Por causa dos seus livros você até esquece que eu existo!
Pedro (Conciliatório): - Não seja boba (V. N., p. 120)
[...]
Alaíde (intransigente): - Pedro! (repele-o) também vou ler!
Pedro: o quê?
Alaíde (enigmática): - Você nem faz ideia! Um diário! O diário de uma grande
mulher! (V. N., p. 121)
Com a mente em desequilíbrio, no mergulho do coma, Alaíde, passa a confundir as lembranças
com alucinações, assim, chega a relatar a Clessi como assassinara Pedro. E as duas passam a visualizar
o cadáver e a planejar como escondê-lo. Depois, a personagem passa a ter dúvidas quanto a este e a
outros fatos, e trava uma luta contra esses pensamentos dúvidas, o que faz ou fez. E, é o próprio
desdobramento da sua personalidade, Clessi, quem a ajuda a recobrar as passagens verídicas e a situar
a realidade.
Clessi: - Talvez você não tenha assassinado seu marido [...] Às vezes pode ter sido
um sonho!
Alaíde: - Sonho – será? Estou com a cabeça tão virada! Pode ser que tudo tenha
ficado só na vontade. (V. N., p. 150)
Os conflitos do inconsciente de Alaíde propiciam outras figuras em desdobramentos. A
ambiguidade é recorrente na peça. O cheiro das flores que a personagem passa a sentir, e que a
incomoda tanto, simboliza uma alegoria paradoxal: tanto pode ser dos enfeites de sue casamento, do
velório de Madame Clessi, ou o prenúncio de seu próprio velório e do casamento de Lúcia co Pedro:
Clessi: - Olha, Alaíde. Antes de sua mãe entrar, quando você pediu o bouquet, tinha
alguém lá? Sem ser Pedro? (V. N., p. 129)
Clessi: - Não disse que tinha que ter mais gente? Olha aí! (noutro tom) A mulher de
véu. (V. N., p. 130)
Clessi instiga Alaíde a identificar quem é a mulher de véu. Aos poucos o autor revela que a
Mulher de Véu é o desdobramento, criado por Alaíde, de Lúcia. É o próprio inconsciente de Alaíde
que a encoberta com um véu, como se não quisesse revelar que as acusações e as ameaças feitas por
aquela mulher, no dia de seu casamento, estivessem vindo da sua própria irmã:
Clessi: - Então você tirou os namorados da mulher de véu? (pausa para uma réplica
de Alaíde que ninguém ouve) (V. N., p. 134)
Clessi: - Quer dizer que Lúcia e a mulher de véu são a mesma pessoa. (V. N., p.
145)
Clessi (doce): - Irmãs e se odiando tanto! Engraçado – Eu acho bonito duas irmãs
amando o mesmo homem! Não sei – mas acho. (V. N., p. 146)
Estas três personagens ironizam com os estigmas recorrentes da moralidade; Clessi é uma
prostituta íntegra, enquanto Alaíde e Lúcia, moças de família são dissimuladas e fúteis.
O amor perfeito é idealizado por Alaíde entre Madame Clessi e o namorado adolescente. Este
chega a propor um pacto de morte – a morte por amor. O diálogo simulado pelo inconsciente da
protagonista, entre a meretriz e a mãe do rapaz anuncia as divagações. Enquanto a mãe exige que
Clessi abandone seu ingênuo filho, Alaíde introduz alusões à opera de Alfredo Germont, Traviata e ao
filme E o Vento Levou. À primeira, Madame Clessi, e, por consequência, Alaíde, assume o papel da
mocinha para a qual o pai do rapaz vem pedir satisfações. E, na segunda alusão, Madame Clessi
transforma-se na dissimulada Scarlett, num trecho em que esta divide seu amor com Melânie, assim
como Alaíde divide com Lúcia. É a figura do duplo assumindo novos desdobramentos:
Mãe (num largo gesto, visivelmente caricatural, trêmulo na voz): - A senhora é que é
Madame Clessi?
Clessi: - Sou. A senhora não quer sentar-se?
Mãe (em tom de dramalhão): - Não. Estou bem assim (exageradíssima) Sou mãe de
Alfredo Germont.
Clessi (humilde): - Eu sei. (V. N., p. 155)
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Clessi: - O olhar daquele home despe a gente!
Mãe: - Você exagera Scarlett!
Clessi: - Rett é indigno de entrar numa casa de família!
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[...]
Mãe: - Em compensação Ashley é espiritual demais. Demais. Assim também não
gosto.
Clessi: - Ashley pediu a mão de Melânie! Vai se casar com Melânie! (V. N., p. 156)
Após as sequências entre os delírios e as rememorações da protagonista, que, num jogo de
sobreposições, desvendam toda a trama, a peça retoma o plano da realidade, para direcionar o
desfecho final. Configurado pela morte de Alaíde, o remorso e a recuperação de Lúcia, a preparação
do casamento desta com Pedro. Já a reaparição de Alaíde e de Madame Clessi, agora como uma
comparsa, no ato da entrega do Bouquet à Lúcia, anuncia um final fantasmagórico que extrapola os
ritos da existência real.
O tratamento que os personagens, do plano da realidade, dispensam à protagonista divulga a
banalização do ser humano frente ao progresso da modernidade. Os diálogos entre os repórteres e
entre os médicos, no início da peça, denunciam a frieza que embarca ao profissionalismo; é a
incapacidade de comoção diante da dor alheia. Os primeiros querem apenas mais uma notícia para
arrolar em seus jornais, e os outros, tratam da acidentada como um objeto a ser recomposto:
Pimenta: - É o diário?
Redador: - É.
[...]
Pimenta: Um automóvel acaba de pegar uma mulher.
Redador: D´A Noit: O que é que há?
[...]
Pimenta: - O Chofer fugiu.
Redator de Diário: - O. K.
[...]
Pimenta: Bonita, bem vestida.
Redador D´A Noite: Morreu?
Carioca-Reporter: - Ainda não, mas vai. (V. N., p. 111)
[...]
1º Médico (pedindo): - Pinça.
2º Médico: - Bonito corpo.
1º Médico: - Cureta.
3º Médico: Casada - olha a aliança.
1º Médico: - Aqui é amputação.
3º Médico: - Só milagre.
1º Médico: - Serrote. (V. N., p. 134)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O teatro de Nelson Rodrigues tem suscitado diversos estudos, principalmente a partir da
abordagem temática do caráter de desmascaramento da família patriarcal – num estilo irônico e
sarcástico – e a decadência dessas famílias. No entanto, o texto das peças do dramaturgo pode ser
estudado ainda sob diversos prismas, uma vez que o autor sempre usufruiu de múltiplos recursos
inovadores na criação de suas obras: variações de linguagem, de intrigas, de personagens e situações.
A consciência da necessidade de libertação do homem diante das matizes que compõe as
convenções sociais é uma constante em toda a obra do dramaturgo. Mas a demonstração desta
realidade social é, entretanto, imbricada pelo adentramento no imaginário humano, no mundo
internalizado das personagens – com apontamentos substanciais da essência humana.
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Toda a incoerência manifestada pelas ações dos personagens, no transcorrer da peça, foi, na
verdade, a maneira que Nelson Rodrigues escolheu para construir uma proposta com uma lógica
proporia que evidencia o desdobramento da personagem, demonstrado os conflitos do inconsciente, os
desejos reprimidos, numa forma de denúncia da hipocrisia que entrelaça as relações humanas quando
o amor e o ódio emanam num mesmo patamar e, em, segundo plano, a banalização da tragédia
humana, a indiferença do homem moderno com o seu semelhante. Dessa forma, toda essa desarmonia
configurou-se numa proposta coerente.
Assim, a opção pelo estudo de Vestido de Noiva sob a orientação da psicanálise e do resgate
mitológico, observando a importância do duplo como um recurso estilístico potencial, foi no intuito
não de mostrar os conflitos e os desajustes das personagens em meio ao mundo contemporâneo, mas
também de como um estudo dessa natureza pode trazer contribuições importantes para a recepção do
teatro de Nelson Rodrigues.
Embora estejam, atualmente, pacificadas as polêmicas, que acompanharam a obra do autor
desde a primeira peça lançada em 1942, Nelson Rodrigues continua a inspirar debates agora mais
serenos e articulados do que noutras fases. Trata-se, porém, de entender seus textos como elevada
produção artística e de, a partir deles, pensar a condição humana, o amor e a morte.
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REFERÊNCIAS
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2ª ed. São Paulo: Moderna, 1999.
BENTLEY, Eric. O Dramaturgo como Pensador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 1991.
BOCK, Ana M.; FURTADO, Odair; e TEIXEIRA, Maria de Lourdes. Psicologias – Uma Introdução
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BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de mitos literários. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
CANDIDO. Antônio. “A personagem no teatro”. In: A Personagem de Ficção. São Paulo:
Perspectiva. p. 83-101, 2000.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976
GÊNESE, cap. 2 : 21-23. Bíblia Sagrada. Edição Claretiana. São Paulo: Ave-Maria, 1995.
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PALLOTINI, Renata. Dramaturgia – a construção do personagem. São Paulo: Ática, 1998.
RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. A Dama do lotação e outros contos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
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