17/1/2-S4 Editorial UMA PUBLICAÇÃO DA Associação Médica de Minas Gerais – AMMG • Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais – CRM-MG • Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda. – Coopmed • Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG • Faculdade de Medicina da UFMG – FM/UFMG • Federação Nacional das Cooperativas Médicas – Fencom • Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais – SES/MG • Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte – SMSa/BH • Sindicato dos Médicos do Estado de Minas Gerais – Sinmed-MG • Unimed-BH Cooperativa de Trabalho Médico Ltda – Unimed-BH. Diretoria Executiva do Conselho Gestor Francisco José Penna - Presidente • Helton Freitas - Diretor Financeiro • Helvécio Miranda Magalhães Júnior - Diretor de Relações Institucionais Conselho Gestor Amélia Maria Fernandes Pessôa (Sinmed-MG) • Ciro José Buldrini Filogônio (Fencom) • Cláudio de Souza (CRM-MG) • Epotamênides Maria Good God (AMMG) • Francisco José Penna (FM/UFMG) • Helton Freitas (UNIMEDBH) • Helvécio Miranda Magalhães Júnior (SMSa-BH) • Ludércio Rocha de Oliveira (FCMMG) • Nery Vital Cunha (SES/MG) • Victor Hugo de Melo (Coopmed) Editor Administrativo Paulo Caramelli Secretária Suzana Maria de Moraes Miranda Normalização Bibliográfica Maria Piedade Fernandes Ribeiro Leite Projeto gráfico: José Augusto Barros Produção Editorial: Folium Tiragem: 2.000 exemplares Correspondências e artigos Revista Médica de Minas Gerais Faculdade de Medicina da UFMG Av. Prof. Alfredo Balena, 190 – Sala 12. 30130-100 – Belo Horizonte. MG.Brasil Telefone: (31) 3409-9796 Email: [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S229 - S317 Com prazer apresentamos o terceiro número do Suplemento de Saúde Coletiva da Revista Médica de Minas Gerais, justamente num momento em que esta Revista passa por profundas reformulações decorrentes de investimentos integrados das mais diferentes instituições de Saúde do nosso meio, formadoras e prestadoras de cuidados. Compartilhamos desse esforço e nos colocamos a serviço dele. Esse é o tom desse novo número; com esse espírito, procuramos ampliar a abrangência da Revista a partir da participação de mais autores vinculados a várias instituições, envolvendo diferentes perfis metodológicos e diferentes áreas e objetos de conhecimento da Saúde Coletiva. Assim, o primeiro artigo desse número, intitulado Infância em Perigo, de autoria de Faustina de Miranda e de Giovanno de Castro Iannotti, respectivamente, professora e doutorando da Universidade Nacional de Córdoba/ Argentina, aborda um tema atual e de relevância em todo o mundo, a violência contra crianças. Em seguida, apresentamos quatro artigos de epidemiologia. O primeiro intitulado Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto Pessoas, de Ana Paula Souto Melo, Francisco de Assis Acúrcio, Mariângela Leal Cherchiglia, Carolina Crosland Guimarães Veloso, Mark Drew Crosland Guimarães, sendo a primeira e o último autor, respectivamente, doutoranda e professor orientador do Programa de Pós-Graduação de Saúde Pública/FM/UFMG. O segundo, intitulado Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006; incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico, de Patrícia Passos Botelho, Maria da Conceição Juste Werneck Côrtes, Salete Maria Novaes Diniz, Gilmar José Coelho Rodrigues, é fruto de parceria do Departamento de Medicina Preventiva e Social com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. O terceiro artigo, Registro Diário de Medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? de Juliana Álvares; Francisco A Acúrcio; Palmira de Fátima Bonolo; Mark D.C. Guimarães, traz na sua autoria professores e profissionais do Departamento de Farmácia Social da Faculdade de Farmácia da UFMG e do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG. Por fim, o quarto artigo: Condições de moradia e de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais, de Olívia Maria de Paula Alves Bezerra, Cláudia Aparecida Marlière de Lima, Roney Luiz de Carvalho Nicollato, José Geraldo Sabioni, todos professores da Universidade Federal de Ouro Preto. Seguem-se dois artigos que são frutos de pesquisa qualitativa: Os cuidadores familiares de idosos: um olhar sobre as relações trabalho-saúde, de Márcia Colamarco Ferreira Resende e Elizabeth Costa Dias, professoras da PUC Minas e da UFMG, respectivamente; Homeopatia no SUS em Belo Horizonte: um estudo de caso, de Thaís Corrêa de Novaes e Paulo Sérgio Carneiro Miranda, professores do Centro Universitário Newton Paiva e da Universidade Federal de Minas Gerais, respectivamente. Os próximos quatro artigos são de natureza predominantemente teórica. O primeiro, intitulado A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime, é de autoria de Maria Helena Rocha; José Eustáquio Machado de Paiva; Maria de Lourdes Dolabela Luciano Pereira, respectivamente, doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/FAFICH/UFMG e professores orientadores da FAFICH/UFMG e da Faculdade de Arquitetura/UFMG. O segundo, A cultura homeopática de paz na saúde, tem como autores Antonio Carlos Gonçalves da Cruz; Mônica Beier; Giovano de Castro Iannotti; Kerlane Ferreira da Costa Gouveia, todos vinculados ao Instituto Mineiro de Homeopatia. Os outros dois, Absenteísmo no trabalho em saúde, de Geraldo Majela Garcia Primo, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro e Emília Sakurai, e Reflexões sobre a Intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família, de Ana Maria Ribeiro de Almeida e Elza Machado de Melo, envolvem mestrandos e respectivos orientadores do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública/FM/UFMG. Os relatos de caso são três. Reação adversa ao látex: relato de caso, de Andréa Maria Silveira, Ricardo José dos Reis, Geraldo da Silva Avelar, trata de experiência do Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador-SAST/UFMG. Projeto Cathivar: o desafio de enfrentar a finitude humana, de Rosa Maria Quadros Nehmy; Sara Monteiro de Moraes; Thaís Costa Drumond, relata a experiência de professors e alunos do Departamento de Medicina Preventiva e Social no Projeto Cathivar. Cefaléia termossensível relacionada ao trabalho: relato de caso, de Claudia Vasques Chiavegatto; Ana Beatriz Araújo Neves; Marcela Sousa Nascimento; Andréa Maria Silveira, retrata experiência na Residência de Medicina do Trabalho/HC/UFMG. Por fim, um artigo de natureza histórica, O associativismo médico em Minas Gerais, de Regina Célia Nunes dos Santos e Délcio da Fonseca Sobrinho, resultante de dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG, da primeira autora com a orientação do segundo. Reiteramos, com o presente número, nosso compromisso com a produção de saúde de qualidade para toda nossa população e esperamos, com ele, contribuir com a formação e informação de profissionais que têm de levar a cabo, dia a dia, esse objetivo. A comissão editorial Comissão Editorial deste número Elza Machado de Melo – coordenação Maria Conceição Juste Werneck Côrtes Andréa Maria Silveira Elizabeth Costa Dias Rosa Maria Quadros Nehmy Giovano de Castro Iannotti 17/1/2-S4 sumário 233 • Infância em perigo: violência institucional Childhood in danger: institutional violence Faustina Dehatri Miranda, Giovano de Castro Iannotti 240 • Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto Pessoas Evaluation of mental health services: care and prevention of sexually transmitted diseases within PESSOAS Project context Ana Paula Souto Melo, Francisco de Assis Acúrcio, Mariângela Leal Cherchiglia, Carolina Crosland Guimarães Veloso, Mark Drew Crosland Guimarães 249 • Situação epidemiológica das meningites no estado de Minas Gerais, 1990 a 2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico Meningitis: epidemiological features in Minas Gerais, Brazil, 1990-2006: incidence and case fatality rates, diagnostic criteria Patrícia Passos Botelho, Maria da Conceição Juste Werneck Côrtes, Salete Maria Novaes Diniz, Gilmar José Coelho Rodrigues 258 • Condições de moradia, saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Housing and basic sanitation conditions and prevalence of intestinal parasite infection among employees of extractive sector of the Steel Vale Region, Minas Gerais Olívia Maria de Paula Alves Bezerra; Cláudia Aparecida Marlière de Lima; Roney Luiz de Carvalho Nicollato; José Geraldo Sabioni 265 • Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? Drug Diary: is it suitable to measure adherence in epidemiological studies? Juliana Álvares; Francisco A Acúrcio; Palmira de Fátima Bonolo; Mark D C Guimarães 272 • A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime Falta título em inglês @@@@@@@@@@@@@@ Maria Helena Rocha; José Eustáquio Machado de Paiva; Maria de Lourdes Dolabela Luciano Pereira 281 • Homeopatia no SUS em Belo Horizonte: um estudo de caso Homeopathy in the Public Health System of Belo Hori- zonte: a case study Thaís Corrêa de Novaes; Paulo Sérgio Carneiro Miranda 288 • Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador 317 • Reação adversa ao látex: relato de caso Adverse reaction to latex: a case report Andréa Maria Silveira; Ricardo José dos Reis; Geraldo da Silva Avelar 321 • Projeto Cativar: o Caregivers of aging people - a new health agent in the national health system: a workers`heatlh approach desafio de enfrentar a finitude humana Márcia Colamarco Ferreira; Resende, Elizabeth Costa Dias Rosa Maria Quadros Nehmy; Sara Monteiro de Moraes; Thaís Costa Drumond 294• Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados Absenteeism at work in health: related factors Geraldo Majela Garcia Primo, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro, Emília Sakurai 303 • A cultura homeopática de paz na saúde The homeopathic culture of peace in health Antonio Carlos Gonçalves da Cruz; Giovano de Castro Iannotti; Kerlane Ferreira da Costa Gouveia; Mônica Beier 310 • Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família Intersectoriality and Family Health Program Speech Ana Maria Ribeiro de Almeida, Elza Machado de Melo Cathivar project: the challenge if facing human finitude 327 • Cefaléia termossensível: relato de caso relacionado ao trabalho Climate-related migraine: occupational case report Claudia Vasques Chiavegatto; Ana Beatriz Araújo Neves; Marcela Sousa Nascimento; Andréa Maria Silveira 3@@ • O associativismo médico em Minas Gerais @@@@@@@@@@@@@@@ Regina Célia Nunes dos Santos; Délcio da Fonseca Sobrinho 3@@ • Normas de Publicação ARTIGO ORIGINAL Infância em perigo: violência institucional Childhood in danger: institutional violence Faustina Dehatri Miranda1; Giovano de Castro Iannotti2 Resumo Partindo de uma perspectiva institucional, foram investigados fatores de risco e de proteção para a ocorrência de maltrato infantil, que confluem no sistema educacional. A amostra foi estratificada entre escolas públicas de educação infantil e de ensino básico, selecionadas por lugar geográfico e por classe social predominante (média, média baixa e baixa), de Córdoba, Argentina. O estudo descritivo correlacional associou vários instrumentos metodológicos: pesquisas, entrevistas, grupos focais, cartilhas de observação. Não foi possível destacar fatores isolados de risco de violência, porque eles se sobrepõem e se inter-relacionam. Foram encontrados aspectos de violência social, institucional e entre pares, tanto real como simbólica, em função das várias situações de risco das quais as crianças participam direta ou indiretamente e cujas conseqüências recaem sobre elas. Tais violências se coacervam num jogo de violência social, institucional e individual. Foram também encontradas, ainda que muito poucas, situações de proteção. 1 Médica, especialista em Psiquiatria. Profesora Universitária – Cátedra de Medicina Preventiva y Social Facultad de Ciencias Médicas – Universidad Nacional de Córdoba – Argentina Membro do Núcleo de Promoção Saúde e Paz – Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil Membro do Nucleo de Promoción Salud y Paz – Córdoba, Argentina 2 Médico Homeopata Doutorando – Universidad Nacional de Córdoba – Argentina Professor – Instituto Mineiro de Homeopatia – Brasil Membro do Núcleo de Promoção Saúde e Paz – Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil Palavras-chave: Maus-tratos infantis. Violência doméstica. Argentina. Abstract This work investigates factors of risk and protection related to the occurrences of child abuse which concour to the educational system, viewed from an institutional perspective. The sample has been stratified amongst public high and elementary schools in the city of Cordoba, Argentina. The schools have been selected per geographic area, as well as per its dominant social class of the pupils (being those middle class, lower middle class and low). Many methodologies have been cross used in the descriptive and correlational study: research, interviews, focal groups, observational studies. During the period of the work, it was impossible to isolate the violence risk factors, being those risks perceived as inter-related and superposed. Aspects of both social and institutional violence have been found, as well as violence amongst peers (symbolic and real violence, as well), and it has been attributed to the many possible risk situations experienced by the children, either direct or indirectly, but whose consequences would befall them. Therefore, those many kinds of violence have been perceived to accumulate in a sort of ‘game’, that mixes social, instutional and individual violence. There has also been found, although in a smaller amount, situations of protection. Key words: Child abuse. Domestic violence. Argentina. INTRODUÇÃO Instituição: Cátedra de Medicina Preventiva y Social – Facultad de Ciencias Médicas Universidad Nacional de Córdoba - Argentina O presente trabalho versa sobre parte dos resultados de uma pesquisa sobre violência infantil, consideradas crianças de zero a 10 anos, em uma perspectiva institucional. Essa pesquisa é creditada à Cátedra de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Córdoba, em uma articulação dos prin- Correspondência: Cátedra de Medicina Preventiva y Social, Facultad de Ciencias Médicas, UNC Pabellón Argentina, 1º Piso, Ciudad Universitaria, Las Hayas S/N Córdoba, República Argentina [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S233-S239 233 Infância em perigo: violência institucional cípios da docência, extensão e pesquisa e foi realizada no Distrito Capital da Província de Córdoba, Argentina. O estudo descritivo correlacional teve como objetivo pesquisar fatores de risco e fatores protetores relacionados à violência, bem como seus determinantes, significados e representações no marco da chamada “nova questão social”1 que é enfrentada pela Argentina, a fim de se conseguir um diagnóstico atualizado e adequado do problema que sirva de base no momento de se elaborarem programas de prevenção ou avaliar diferentes programas de intervenção e/ou prevenção.2-5 Um notável aumento da violência é percebido na Argentina, há vários anos, seja essa violência real ou simbólica, manifesta ou latente e se expressa tanto como violência institucional como social. As crianças têm um marco de proteção legal (Convenção Internacional dos Direitos da Criança, cujo correlato legal na Argentina é a Lei 26.061; e na Província de Córdoba, a Lei 9.283) que lhes garante o direito à vida, à saúde, à educação, aos bens culturais, à liberdade e às instituições. Entre outras, as “instituições educacionais” têm a responsabilidade de “velar por seus direitos e garantir sua proteção integral”.6-8 Segundo Bellamy9, “favorecer o desenvolvimento intelectual da infância mediante um investimento eficiente em saúde, nutrição, educação e cuidados com os miúdos é um imperativo moral e uma decisão econômica adequada: a pobreza na infância é insidiosa e imoral”. As populações minoritárias e/ou marginalizadas, especialmente as crianças, carregam os efeitos mais profundos da indigência e o conseqüente aumento na taxa de mortalidade. Na contramão da tendência mundial, que é de queda dessa taxa, na Argentina a mortalidade infantil passou de 16,3 por mil em 2001 para 16,8 por mil em 2002. Em Córdoba, em 2001, a mortalidade infantil foi superior à média nacional, 16,8 por mil, caindo para 16,5 em 2002. A Directora General de Atención Médica do Ministerio de Salud de la Provincia afirma que em 2001 morreram 32% das crianças de um a quatro anos por traumatismos e outras causas acidentais¸ o que as colocou em primeiro lugar; “são acidentes domésticos, por descuido, negligência e outros tipos de maus-tratos”. Outro aspecto da violência social e do abandono por parte do Estado de suas funções precípuas é o trabalho infantil, que entre 1997 e 2002 aumentou 26 pontos nos conglomerados urbanos entre os menores de 15 anos, alcançando, segundo um informe, 31% do total de 1.939.288 crianças.10 O último relatório da UNICEF assevera que na Argentina seis de cada 10 menores de 18 anos, ou seja, 234 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S233-S239 62,7% (3.689.588 crianças) encontram-se abaixo da linha de pobreza. Entre os indigentes, quase a metade não recebe nenhum tipo de subsídio ou ajuda social (isso significa que os programas sociais não chegam a 48,9% dos mais pobres). Existe também mais “risco educacional”, já que alta proporção de crianças de cinco anos não tem acesso à educação.11 É imprescindível questionar o vínculo da escola com a realidade social complexa e conflituosa, na qual se fazem presentes em cada espaço, em cada âmbito: a imposição dos modelos neoliberais, o ceticismo com a perda de credibilidade nos poderes do Estado e seus valores éticos e morais, a exclusão, a intolerância, a discriminação, o grande desemprego e o subemprego, com lamentável deterioração dos indicadores de saúde e de educação, isolamento, ausência de horizonte e de expectativas que levam à vulnerabilidade e à precariedade dos vínculos e das redes humanas. As violências se diversificam, alimentando-se a si mesmas do medo, da incerteza, da desesperança e, especialmente, da dissolução do vínculo social”.12 Todavia, pensar no fenômeno da violência nas escolas situando-as em seu contexto não implica afirmar que se trata de um conflito de determinados atores ou de determinadas classes sociais. A violência não é problema da pobreza; simplificar essas análises é um obstáculo para conseguir avançar na busca de ferramentas que permitam trabalhar o problema. Perspectivas e abordagens O conceito de violência nesse contexto é complexo. Freqüentemente, refere-se às condutas agressivas das crianças entre si ou dirigidas aos professores e, sobretudo, à existência de condutas caracterizadas como bullying.13-16 Alguns estudos abordam o problema a partir do conceito de agressão17 e outros tentam um olhar mais social da violência do sistema reproduzida na instituição educacional.18,19 Existe vasta bibliografia sobre o assunto, sendo um dos pioneiros o norueguês Dan Olweus (1978 a 1993). Assim, algumas pesquisas incluem abordagens a partir da ótica da violência familiar, especificamente do maltrato infantil,20 outros da situação das crianças maltratadas no âmbito escolar21 e há o enfoque dos efeitos dos maus-tratos sobre a escolarização das vítimas, abordado por diversos autores.22,23 Sem embargo, isso pode ser reducionista, se é levada em consideração a com- Infância em perigo: violência institucional plexa situação que a Argentina atravessa tanto institucional como socialmente, como anteriormente assertamos. Esses determinantes influenciam o aumento dos fatores de risco de desenvolvimento de condutas inadequadas; além disso, o sistema educacional e a instituição escola, como reprodutores do sistema social, apresentam problemas próprios em sua estrutura e funcionamento. O fito do presente estudo é o problema da violência na instituição educacional e o questionamento dos múltiplos determinantes que influenciam sua produção, abarcando as dimensões individuais, familiares, institucionais, sociais, econômicas e culturais, a fim de conseguir-se um primeiro olhar ampliado na sua complexidade. Também é fundamental a aplicação de diferentes metodologias de abordagem para produzir o conhecimento válido e que abranja o fenômeno em toda a sua diversidade, renunciando à visão reducionista da situação. MÉTODOS A pesquisa é descritiva, de natureza quali-quantitativa24 e associa vários procedimentos metodológicos para a melhor abordagem de uma realidade tão complexa. População e amostra: trabalhou-se com uma amostra representativa e estratificada de escolas públicas de níveis inicial e primário do Distrito Córdoba Capital (Córdoba é capital da província homônima). Os critérios de seleção amostral foram setores geográficos e perfis socioeconômicos, estabelecimentos escolares onde predominava a classe econômica baixa, média-baixa e classe média. Em cada setor com essas características, selecionaram-se aleatoriamente escolas iniciais e primárias. A amostra tem 95% de confiança e margem de erro de 5%. Utilizaram-se quatro tipos de instrumentos: ■ questionário semi-estruturado para docentes, autoaplicável, anônimo e voluntário. Esse instrumento foi previamente submetido à prova-piloto para avaliar sua compreensão, a forma de sua aplicação e o tempo de realização, por ser uma adaptação à cultura local de outros questionários. ■ questionário de entrevista para autoridades escolares (diretor(a) e/ou vice), voluntário, realizado por um entrevistador e um secretário que registrava e gravava a entrevista. Esse ins- ■ ■ trumento foi elaborado pela equipe de pesquisa e também foi submetido à prova-piloto. guia para formação de grupos focais (cuja participação também foi voluntária) para docentes, elaborado pela equipe de pesquisa, sendo um por turno de cada escola inicial e primária que participou do projeto, a cargo de um coordenador, um observador e um secretário que registrava a informação. cartilha de observação: instrumento para o levantamento das características estruturais, ambientais e pedagógicas em classe e extraclasse. Utilizaram-se planilhas pré-elaboradas como guias de observação e registro de dados, as quais foram criadas pela equipe de pesquisa e foram utilizadas a partir da primeira visita a cada instituição educacional. A informação foi obtida no terreno por estudantes do último ano do curso de Medicina que participaram voluntariamente do projeto, sendo selecionados e treinados para tal fim pela equipe de pesquisa que também os coordenou. A metodologia de trabalho foi participativa, com visitas a cada uma das instituições de ensino da amostra, para a assinatura de uma carta-compromisso, na qual cada parte assumia suas responsabilidades e também se assentava a agenda de trabalho. Após essa primeira fase, passou-se à coleta de dados; para tanto, formaramse cinco equipes, cada uma com três alunos-pesquisadores, um tutor e um pesquisador responsável. Os dados de natureza quantitativa foram processados pelo programa SPSS® e os dados qualitativos segundo a hermenêutica dialética. A fase de retorno para a comunidade está prevista para depois de finalizado o projeto de pesquisa, ainda em execução. Essa fase, que será de intervenção propriamente dita, visará à construção de uma rede de proteção com função de identificar, notificar, atender e prevenir a violência. Análise e discussão dos resultados 1) Dos resultados quantitativos Foram analisadas 223 pesquisas; o questionário de 12 perguntas semi-estruturadas incluiu perguntas com respostas de múltipla escolha e se agruparam em quatro categorias, para sua melhor compreensão. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S233-S239 235 Infância em perigo: violência institucional a) Sobre identificação, notificação, denúncia e seguimento. Vantagens e desvantagens. Propostas de melhoria. Dos docentes, 80,6% (175) expressaram ter conhecimento de algum caso de maltrato e 50,9% (109), abuso sexual infantil; 48,4% (89) comunicaram o problema e pediram assessoramento, sendo que 49,4% (82) obtiveram respostas as quais foram satisfatórias somente para 57,3% (47). Só 26,5% (59) deles acompanharam as famílias no seguimento. Sobre se conhecem a Dirección de Asistencia a la Víctima del Delito y la Violencia Familiar, 90,5% (201) dos docentes afirmaram que sim; 43,1% (93) conhecem seu funcionamento; e somente 16,9% (36) estiveram nesse local alguma vez. Desse grupo de docentes, 16,9% (36) concordaram que suas denúncias fossem atendidas e que o seguimento fosse realizado. As dificuldades encontradas: 33,3% (12) mencionaram que ao testemunharem receberam represálias vindas das famílias denunciadas; 27,8% (10) consideraram lentos os passos seguintes após as denúncias; 27,8% (10) disseram que as famílias mudam de endereço, o que impossibilita o seguimento; e 11,1% (4) identificaram falhas no atendimento por falta de pessoal. As propostas apresentadas para melhora da situação foram as seguintes: 55,6% (20) propuseram melhorar a organização, agilizá-la e ter equipes técnicas mais sensíveis; 19,4% (7) consideraram necessário ter departamentos especializados nas escolas para lidar com o problema de maneira conjunta; 16,7% (6) sugeriram que houvesse palestras nas escolas sobre as atividades que realizam; 5,6% (2) viram o trabalho em rede como um caminho e os 2,8% restantes (1) não fizeram sugestões. conteúdos em sala de aula, 61% afirmaram fazê-lo de forma transversal e de forma concreta, 49,8% tanto com os alunos como com as famílias, 38,6% realizam planificação modular e 6,3%14 dependem da disposição do docente e o fazem somente com os alunos. Argüidos sobre como abordariam o assunto desde o desenho e planificação até a prática na sala, apesar de que 73% (163) dos docentes consideram esses assuntos indispensáveis para a saúde psicofísica das crianças, na hora de opinarem somente responderam 68,2% (152), dos quais 81,6% (124) o fariam com mais capacitação e com projetos institucionais; 11,2% (17) de forma transversal; 3,9% (6) em conjunto com outros profissionais; 2% (3) com introduções na grade curricular e 1,3% (2) trabalhariam o tema em forma de rede. Sobre o desenvolvimento prático na sala, 96,7% (147) disseram que utilizariam palestras com profissionais da área e com os pais e, 3,3% (5), transversalmente. c) Sobre a formação do docente Não obstante 90,1% (201) dos professores terem afirmado que receberam algum tipo de formação sobre educação sexual, maltrato e abuso infantil, é relevante destacar que essa capacitação para 80,8% (126) é insuficiente e que isso se deveria ao fato de que os custos da formação é elevado. Contudo isso, 19,2% (30) acham que têm formação suficiente. Para que se conhecesse mais sobre sua formação, foram indagados se em sua prática cotidiana eram tratados assuntos como respeito, auto-estima, empatia, polidez, habilidades sociais em geral, direitos e deveres e 92,8% (207) responderam que sim, porque seriam necessários para a formação das crianças e para sua integração à sociedade. b) Sobre a grade curricular Perguntou-se se na instituição pesquisada a grade curricular abordava os seguintes temas: direitos da infância, educação em saúde, educação sexual e prevenção do abuso infantil. Ao todo, 98,2% responderam que os dois primeiros itens estavam contemplados, 46,9% trabalhavam a educação sexual e 25,5% a prevenção de abuso sexual infantil. Tais abordagens são realizadas como parte do projeto curricular em 65% dos casos, projeto institucional em 58,3%, projeto educacional em 52 e 13,9% como forma de projetos de aulas, dependentes de cada docente. Em relação ao desenvolvimento dos 236 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S233-S239 d) Sobre as perspectivas de abordagem. Programas comunitários de incentivo Assuntos como educação sexual, abuso infantil e outras formas de maus-tratos deveriam ser abordados, para 85,7% (191) dos entrevistados, pela escola; para 83,9% (187), pela família; para 77,1% (172), pela comunidade e para 72,6% (162), por outras instituições. Ante o questionamento se deveriam trabalhar em conjunto escola, família, outras instituições e outros profissionais, 95,6% (196) responderam que, com a formação e o apoio técnico suficientes, as instituições de ensino deveriam colaborar com progra- Infância em perigo: violência institucional mas preventivos comunitários, nos quais a escola seria um elo a mais que atuaria em coordenação com outras instituições e setores, porque “trabalhando em rede, obter-se-iam melhores resultados”. Das observações, depreende-se o seguinte: de 20,2% (45) dos entrevistados que fizeram observações, 42,2% (19) afirmaram que deveriam existir políticas sérias que tratassem do tema e deveria ser considerada a possibilidade de se trabalhar em rede com diferentes instituições; 22,2% (10) disseram que deveria existir uma equipe multidisciplinar em cada escola; 15,6% (7) ressaltaram que é útil esse tipo de trabalho (a pesquisa realizada) para se ter consciência sobre o assunto; 11,1% (5) opinaram que é necessário ter mais capacitação; 4,4% (2) responderam que as famílias, ao não educarem como deveriam, delegam toda a responsabilidade à escola; 2,2% (1) manifestaram que a sexualidade é um assunto diário, que as crianças desde pequenas têm relações entre elas, bem como jogos sexuais; e 2,2% (1) mencionaram que a falta de seguimento, a “re-vitimização” e a excessiva burocracia para poder denunciar (dar queixa) desestimulam e não ajudam a resolver o problema. 2) Dos resultados qualitativos Os resultados sobre o risco e sua interpretação foram obtidos com base na análise e na avaliação dos fatores de risco ou condições que tornam provável a ocorrência de violências, mas vê-se que eles se inter-relacionam e se sobrepõem. Por isso é muito difícil conhecer o peso específico de cada um deles separadamente. Destarte, trabalhou-se na análise qualitativa sobre eixos que representavam não somente diferentes níveis de análise, mas também os conteúdos relevantes em que os mesmos se cruzavam. A evidência empírica demonstra que a violência na instituição de ensino ocorre de forma associada e responde em grande medida a um mesmo conjunto de determinantes. A maioria das autoridades, ao ser interpelada sobre os casos de maltrato infantil e abuso sexual em suas instituições, expressou-se sobre os assuntos com evidente interesse mais em resguardar o prestígio das instituições do que em reconhecer sua relevância; chegando até, em alguns casos, a negar abertamente a possibilidade de sua existência. Quando relataram casos de denúncias, insistiram na possibilidade de represálias por parte do agressor e sua família contra o denunciante, que vão desde violências verbais a físicas, motivo pelo qual preferiram não denunciar. Consideraram não estar capacitados para abordar corretamente esses problemas, sentiam-se desamparados e sem respaldo. Achou-se uma tendência sistemática a depositar nos outros e no contexto social as causas da violência. O mal-estar dos docentes foi um dos aspectos convergentes nos diferentes níveis sociais, ainda que por causas diferentes. Problemas de infra-estrutura das construções, dificuldades na comunicação entre docentes, docentes e autoridades e com os pais, sobrecarga na função docente e ausência de prestígio, problemas econômicos, entre outros, foram indicados como os principais causadores. Além disso, expressaram-se os inconvenientes derivados da crise social, a diversidade cultural dos alunos e das famílias, os problemas de aprendizagem e fracasso escolar. Em nível institucional, foi evidente certa rigidez diante das propostas de mudança, em particular em dedicar tempo e esforço a programas de intervenção. Segundo uma diretora de educação infantil: É difícil encarar os assuntos porque não estamos preparados, não temos formação específica e também não se podem dizer coisas que as crianças não entendem ou que as assustem. Além do fato de que cada professora tem uma visão diferente da realidade e de como deveriam comportar-se os pais com os filhos. Eu assisti a uma palestra de uma psicóloga, organizada pelo Centro de Saúde, que eu gostei muito; aprendi algo de como detectar violência nas crianças, mas considero que não são suficientes duas horas de palestra para saber como abordar as diferentes situações. Em geral, a participação nos grupos focais foi pobre. Em algumas instituições observou-se uma mensagem implícita das equipes de condução de obrigatoriedade ou conveniência para que se participasse desses encontros. Abordaram-se temas vinculados aos problemas da violência escolar, a partir das experiências e das vivências pessoais. Os conteúdos emergentes que foram se desenvolvendo versaram sobre maltrato infantil, abuso sexual, negligência, violência conjugal, alcance do papel de professor, responsabilidade da escola na detecção de situações de maustratos de crianças, posição do docente como vítima de maltrato na escola, relação dos professores com os pais, professores com alunos, alunos com alunos, violência institucional, mal-estar docente.25 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S233-S239 237 Infância em perigo: violência institucional Foi difícil conseguir que eles mesmos encontrassem soluções criativas para sua realidade cotidiana. A tendência era procurar, junto à coordenação, uma série de receitas mágicas que resolvessem os conflitos. Tentou-se reverter essa atitude passiva incentivando a reflexão e oferecendo elementos teóricos que lhes permitissem abordar diferentes situações problemáticas que se apresentam no cotidiano: “nossa zona é a zona vermelha na questão do maltrato e abuso sexual de crianças”; “dizem que não é papel da escola fazer algo por esse assunto e por tudo”; ”uma companheira fez uma denúncia que supostamente seria anônima, mas teve problemas no final, porque teve que dar vários depoimentos. Ai ficou uma má predisposição para denunciar, porque não queremos ter problemas”; “o 102 (número para denúncia anônima) é um problema e ninguém quer se meter nisso. Preferimos não fazer nada porque muitas vezes fomos ameaçadas pelos familiares do denunciado, quando souberam quem deu queixa”; “não estamos preparadas para detectar nem para abordar o assunto de queixas, denúncias e de outros procedimentos”; “necessitamos de acolhimento por parte do governo quando temos que denunciar, estamos sós para poder cumprir com nosso dever”. A partir das interações coercitivas que convergem no sistema educacional, quer se referir àquelas que aparecem como “violência naturalizada”, como forma de reflexão sobre este trabalho. São as práticas e discursos que, agora, registram-se como violentos e que passavam despercebidos ou, pior ainda, estavam legitimados social e culturalmente, como algo normal que ao ser visto dessa maneira se retroalimenta e se perpetua.26 A escola, como estrutura organizativa estável e rígida, elabora argumentos para justificar a opressão e utiliza medidas disciplinares para assegurá-la.27 Assim, a violência adquire características devastadoras quando o ato de violência é “re-etiquetado” na frase “isto não é violência, é educação”. A pessoa é negada como sujeito social e é tratada como objeto social. Isso não só sucede com as crianças-alunas, mas também faz padecer os adultos-professores presos e submetidos a uma rede de hierarquias. O docente está socializado em uma sacralização, uma idealização do método educacional e está excluído da elaboração dos planos, está alienado de suas próprias necessidades; há um discurso do poder que engendra um ideal para o docente. Dessa forma, vai ritualizando e rotinizando suas práticas, executando instruções que por outros foram elaboradas, 238 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S233-S239 não tomando decisões sobre o próprio trabalho e afastando-se de um vínculo mais criativo e autônimo do conhecimento. Ao não participar do desenho do trabalho, ao ser rompida a relação entre produtor e produto, a matriz da aprendizagem que se configura é estereotipada, passiva e pobre, instalando-se a dissociação entre pensamento e ação. Ai é onde começa a perda de sentido e motivação sobre o que se faz, aparecendo o sofrimento. Por outro lado, infra-estrutura pouco acolhedora, as más condições de trabalho (baixos salários, salas superlotadas, necessidade de se levar trabalho para casa, tarefas burocráticas, etc.) e as carências materiais também geram violência. “Um professor que não tem apoio não pode apoiar os demais”.28 O ato de ensinar está submetido a pressões e tensões que exigem o emprego de capacidades e habilidades para as quais os professores não foram treinados em sua formação inicial, repetindo um modelo homogeneizador e disciplinador que é incapaz de lidar com uma realidade tão dinâmica. Isso leva a situações frustrantes que conduzem os docentes a níveis de tensão que se transformam em estresse, o qual se relaciona com situações enfrentadas que são objetivamente mais difíceis e mais complexas do que se pode resolver, o que, por sua vez, tem a ver com os níveis de formação. Quando crônico, o estresse se chama burnout (sensação de estar esgotado, falido ou de haver colapsado) e sobrevém a perda de sentido e de significado e o trabalho é realizado sem a força e a convicção necessárias, surgindo sentimentos de angústia, desproteção e desamparo. Esse tipo de sofrimento não deve ser obturado ou negado, mas sim escutado e acolhido. Ao analisar as anotações colhidas no campo, visualizaram-se os mecanismos violentos mais antigos e arcaicos que continuam vigentes na escola: a desqualificação, a discriminação e a exclusão. CONCLUSÃO Identificaram-se mais fatores de risco ou condições de risco produtores de violência do que fatores protetores. Nas diferentes atividades levadas a cabo nas escolas foi possível confirmar cotidianamente a presença de um conjunto de fenômenos violentos que respondiam a causas múltiplas. Não obstante as diferenças de modos e causas, estão expostos a condições de risco tanto a criança-aluna, como o adulto-professor. O peso da violência social sobre a Infância em perigo: violência institucional educação, a escola, as autoridades, os docentes as crianças e as famílias faz-se sentir fortemente. Em geral, houve consenso em que a maioria das autoridades e dos professores não está consciente nem preparada para abordar os assuntos relacionados com os diferentes tipos de maltrato infantil. Poucas autoridades e docentes estão dedicados em suas comunidades à luta por uma cultura de saúde e paz em suas comunidades. Ao menos em tese, a escola deveria oferecer condições idôneas para o desenho e a aplicação dos programas de intervenção dirigidos à construção de uma rede de proteção ao menor; além disso, apresenta-se como o contexto mais adequado para detectar de forma precoce a aparição de comportamentos violentos ou evitar que estes se agravem. Os encarregados das tarefas educacionais podem ser formados nas matérias específicas que se pretende abordar e, em todo caso, na escola poder-se-ia obter a colaboração de outras instituições e de pessoas necessárias para a aplicação desses programas. 10. Banco Mundial. Informe sobre desarrollo humano mundial 2000-2001. Rev Foro (Chile) 2002 En-Feb.; (10):10. 11. UNICEF. Sobre el estado mundial de la Infancia.Buenos Aires: UNICEF; 2004. 12. Gutiérrez D.Violencias y miedos In: Violencia, medios y miedos. Los sentidos de las violencias. Peligro, niños en la escuela. Buenos Aires: Novedades Educativas; 2005. 13. Lapetra Coderque P.La comunidad escolar y el maltrato infantil. Primeras jornadas sobre infancia maltratada: el maltrato institucional.Vitoria, España: Asociación Vasca para la Ayuda a la Infancia Maltratada,; 1994. 14. Cantón Duarte J, Cortés Arboleda MR. Malos tratos y abuso sexual infantil: causas, consecuencias e intervención. Madrid: Editorial SIGLO XXI; 1997. 15. 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Titulação: Doutor e Pós-Doutor. 4 Professora Associada do Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG: Titulação: Doutora. 5 Bolsista Iniciação Científica FAPEMIG, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG. 6 Professor Associado do Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG. Titulação: Doutor e Pós-Doutor. Objetivos: avaliar os serviços de saúde mental participantes do Projeto PESSOAS (Pesquisa em Soroprevalência de AIDS na Saúde Mental) por meio de indicadores de estrutura e processo de atenção no contexto da assistência e prevenção às DST/AIDS. Métodos: estudo de corte transversal multicêntrico em amostra representativa nacional de usuários de serviços de saúde mental. Foram selecionados aleatoriamente 11 hospitais psiquiátricos e 15 CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) em todas as regiões do país. Um questionário de avaliação de serviços de saúde mental foi aplicado pelo supervisor local da pesquisa para avaliar descritivamente indicadores selecionados de estrutura e de processo. Resultados: a avaliação indicou que tanto os hospitais psiquiátricos como os CAPS apresentam dificuldades no atendimento da demanda de suporte clínico aos pacientes. Apenas 19,2% dos serviços consideraram que o sistema de referência e contra-referência estava totalmente estruturado, evidenciando uma precária interlocução entre os serviços de saúde. Além disso, há uma fragilidade de recursos humanos e materiais nos CAPS, assim como menos disponibilidade de medicamentos para as urgências clínicas. Poucos serviços tinham programas de educação sexual ou distribuição de preservativos, apesar da existência de pacientes sabidamente infectados pelo HIV. Conclusão: os indicadores avaliados permitiram mais conhecimento da realidade e particularidades desses serviços no contexto do Projeto PESSOAS, fornecendo subsídios para orientar políticas públicas direcionadas para a melhoria da assistência clínica e diminuição da disseminação das DST/ HIV entre as pessoas com transtornos mentais graves. Contudo, a integralidade de ações nesses serviços ainda se mantêm como um desafio para os gestores. Palavras-chave: Avaliação de serviços de saúde. Serviços de saúde mental. Doenças sexualmente transmissíveis. Aids. Pesquisa sobre serviços de saúde. Qualidade da assistência à saúde. ABSTRACT Objective: To evaluate mental health services participanting in PESSOAS Project (HIV seroprevalence in Mental Health Institutions in Brazil: A national multicenter study), using structure and medical care indicators within the context of treatment and prevention of STD/ AIDS. Method: Representative national multicenter cross-sectional study of mental health patients attending public outpatient and inpatient units. Eleven psychiatric hospitals and 15 CAPS (Psychosocial Care Centers) were randomly selected throughout the country. The local research supervisor applied a mental health service evaluation questionnaire to descriptively measure selected structure and process indicators. Results: The analysis revealed that Endereço para correspondência: Ana Paula Souto Melo Rua Espírito Santo 2.727/104 – Lourdes. Belo Horizonte, MG – CEP 30160-032 Email: [email protected] 240 * Projeto PESSOAS- “Estudo de soroprevalência da infecção pelo HIV, sífilis, hepatite B e C em instituições públicas de atenção em saúde mental: um estudo multicêntrico nacional”. Projeto PESSOAS (Pesquisa em Soroprevalência de Aids na Saúde Mental) *PESSOAS Project (HIV seroprevalence in Mental Health Institutions in Brazil: A national multicenter study) Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS both, psychiatric hospitals and CAPS, reported difficulties to meet non-psychiatric medical support demanded by patients. Only 19.2% of these health units considered that the referral and counter-referral systems were fully structured, indicatin a poor coordination among health services. Furthermore, material and human resources are deficient in the CAPS while emergency medication also poorly available. Few mental health services had any sexual education or condom distribution programs, regardless of the existence of HIV-positive patients. Conclusion: The indicators assessed in this study are important additional information within PESSOAS Project context. This knowledge may provide the basis for guiding public policies aimed at improving medical assistance and reducing STD/HIV dissemination in patients with severe mental disorders. However, the integrality of such actions among these services remains a challenge. Key Words: Health services evalutation. Mental health services. Sexually transmitted diseases. Aids. Health services research. Quality of health care. INTRODUÇÃO O tema avaliação de serviços de saúde vem ganhando relevância na literatura a partir da década de 80, apesar de ainda ser uma área incipiente no Brasil, o que revela nossa limitada “cultura avaliativa”1. A situação não é diferente quando se avaliam os serviços de saúde mental. Há pouca produção científica sobre o assunto, tornando escassos os parâmetros de qualidade da assistência prestada por esses serviços. A qualidade do cuidado pode ser avaliada por meio de indicadores de estrutura (e.g. recursos materiais, humanos, arranjos organizacionais), de processo (e.g. atividades inerentes à atenção à saúde incluindo a interação entre profissionais de saúde e a população assistida) e de resultados (e.g. mudanças no estado de saúde da população promovidas pelos cuidados recebidos).2,3 Nas últimas décadas, o Brasil vem promovendo mudanças significativas no modelo de atenção em saúde mental que, até a década de 70, era centrado exclusivamente na assistência prestada pelos hospitais psiquiátricos. Nas décadas seguintes, com o avanço da reforma psiquiátrica, observou-se a abertura de serviços de atenção ambulatorial denominados CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). A implantação desses serviços buscava a construção de alternativas ao modelo hospitalocêntrico e, coerentemente com o movimento da reforma sanitária, foram introduzidas noções como regionalização, territorialização, diversificação e complexificação do modelo. Ademais, a mudança do paradigma que orienta as práticas em saúde mental inclui outras dimensões além da assistência, tais como a reinserção social, o lazer, a hospitalidade e a oportunidade de trabalho para os portadores de sofrimento mental.4 Essas mudanças estão voltadas para a assistência integral aos portadores de sofrimento mental, mais expostos a situações de risco que resultam na maior vulnerabilidade de seu estado de saúde, já que apresentam mais morbimortalidade por doenças crônicas quando comparados à população geral.5 Pacientes com esquizofrenia reportaram menos espontaneamente os seus sintomas físicos, em função dos déficits cognitivos associados à doença, de alta tolerância à dor, ou graças à reduzida sensibilidade à dor associada ao uso de antipsicóticos.6-9 Dentre as várias situações de vulnerabilidade vivenciadas pelos indivíduos com sofrimento mental, ressaltam-se os riscos aumentados para as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Dificuldades cognitivas e de habilidades sociais para negociar sexo seguro, o uso de drogas ilícitas e problemas sociais tais como mais alto grau de pobreza e ausência de moradia fixa são fatores que aumentam a vulnerabilidade para as DSTs.10 As proporções de positividade de HIV entre esses pacientes variam de 0 a 23%, dependendo da população estudada e da metodologia adotada, sendo que apenas 15 a 50% dos pacientes HIV positivo tinham conhecimento da sua situação sorológica.11-13 Tais dados corroboram as necessidades de cuidados clínicos especiais para esses indivíduos, mas pouco se conhece sobre a saúde dos portadores de sofrimento mental fora da abordagem psíquica desses transtornos. Mesmo antes da epidemia de HIV, cerca de 50% das desordens físicas sérias não eram detectados entre os pacientes com problemas mentais graves que recebiam tratamento psiquiátrico.14 Assim, é pertinente investigar se a atual atenção em saúde mental prestada no Brasil tem sido capaz de oferecer assistência integral ao indivíduo com transtorno mental e se os serviços de saúde mental estão adequadamente habilitados na prestação dessa assistência, principalmente em suas necessidades de suporte clínico. É nesse contexto que o projeto PESSOAS (Estudo da Soroprevalência da infecção pelo HIV, Sífilis, Hepatite B e C em instituições públicas de atenção em saúde mental: um estudo multicêntrico nacional) foi planejado e conduzido pelo Grupo de Pesquisas em Epidemiologia e Avaliação em Saúde (GPEAS/FM/UFMG) em Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 241 Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS parceira com o Programa Nacional de DST/AIDS e Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Os principais objetivos do Projeto PESSOAS foram determinar a prevalência da infecção pelo HIV, sífilis, hepatite B e C, avaliar os fatores associados à positividade das mesmas e descrever os indicadores de estrutura e processo relacionados à qualidade da atenção nos serviços participantes em amostra representativa nacional.15 Este artigo apresenta, especificamente, os resultados descritivos do componente avaliação das 26 instituições de saúde mental participantes do projeto no âmbito da assistência e prevenção às DST/AIDS. MÉTODOS Desenho: foi realizado estudo de corte transversal para determinar as prevalências da infecção pelo HIV, sífilis, hepatite B e C entre os pacientes internados em 11 hospitais psiquiátricos ou em atendimento nos 15 CAPS selecionados aleatoriamente. Informações sobre a atenção à saúde, incluindo os aspectos clínicos, o perfil sociodemográfico e as características dos serviços, foram coletadas retrospectivamente. A pesquisa foi iniciada em julho de 2005 e encerrada em junho de 2007. População e amostra: a seleção dos centros foi aleatória e proporcional ao número de casos de AIDS notificados no Brasil por região e tipo de serviço (hospital ou CAPS). O plano amostral foi constituído de cinco etapas: a) cálculo amostral para o qual se estimou serem necessários 3.362 pacientes, considerando-se perda de 40%, precisão de 0,2% e nível de confiança de 0,0516; b) distribuição da amostra de acordo com os estratos hospitais e CAPS, considerando dados disponibilizados pela Área Técnica de Saúde Mental/MS, até dezembro de 2003; c) ponderação de cada estrato de acordo com as regiões e distribuição dos casos de Aids notificados no Brasil até dezembro de 2003; d) Seleção aleatória dos 11 hospitais e 15 CAPS necessários para atingir-se o número desejado de pacientes; e) seleção aleatória dos pacientes dentro de cada unidade.15 Avaliação de serviços: foi elaborado um instrumento específico contendo indicadores de estrutura e processo de atenção destinado a avaliar a qualidade dos serviços selecionados, adaptado de instrumento previamente utilizado e disponibilizado em http://saudepublica.medicina.ufmg.br/ 242 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 instrumentos.htm. Após ter sido testado e avaliado durante o estudo preliminar do projeto PESSOAS, o questionário foi aplicado no período de investigação pelo supervisor local da pesquisa, juntamente com o diretor clínico nos hospitais psiquiátricos e gerentes nos CAPS. A avaliação foi realizada por meio do levantamento de informações em 14 seções do questionário, que incluíam a identificação da unidade, as características do serviço, capacidade instalada de atendimento, recursos humanos, disponibilidade de exames laboratoriais, biossegurança, equipamentos e instrumentos, disponibilidade de documentos normativos e técnicos, sistema de informação, medicamentos, sistema de referência e contra-referência, avaliação do desempenho do serviço em relação às DSTs, garantia dos direitos individuais do paciente e avaliação da obtenção das informações para o questionário Análise: os questionários foram verificados, digitados em banco de dados (Paradox Windows®) e processados para análise. Foram criados filtros de validação visando a aprimorar a qualidade dos dados. As análises descritivas foram feitas de forma agregada e incluíram distribuições de freqüências das variáveis para a caracterização do perfil dos serviços selecionados por meio dos softwares SAS® e Epi-info®. Aspectos éticos: o projeto foi aprovado pelos serviços participantes, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG, Etic 125/05) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).15 RESULTADOS A lista dos serviços selecionados com a distribuição do tamanho amostral pode ser vista na Tabela 1. A maioria desses serviços era de natureza pública (80,9%), sendo 19,1% classificados como privados, todos estes hospitais psiquiátricos (Tabela 2). Todos os CAPS eram vinculados ao município e os hospitais psiquiátricos públicos eram estaduais. Todos os hospitais psiquiátricos funcionavam 24 horas/dia e a maioria dos CAPS entre oito e 12 horas/ dia de segunda à sexta-feira. Em relação aos tipos de assistência prestada aos pacientes, destaca-se que o atendimento familiar e oficinas terapêuticas eram atividades realizadas por todos os CAPS. Por outro lado, todos os hospitais ofereciam internações e atividade de reuniões com pacientes. Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS Tabela 1 - Centros participantes de acordo com o tamanho amostra final, Projeto PESSOAS 2007 Centro CAPS Assis CAPS Cantagalo CAPS Carmo CAPS Formiga CAPS Francisco Morato CAPS II José Foster Jr. Município UF Amostra estimada Assis SP 100 Cantagalo RJ 165 Carmo RJ 165 Formiga MG 165 Franco da Rocha SP 100 Santos SP 120 Morada Nova CE 183 CAPS Nossa Casa Santiago RS 171 CAPS Paraíso Paraíso TO 44 Montes Claros MG 190 S. J. do Rio Pardo SP 165 Anápolis GO 96 Capão do Leão RS 170 Betim MG 165 Goiânia GO 58 Divinópolis MG 110 Manaus AM 26 Natal RN 111 Belo Horizonte MG 149 Maringá PR 206 CAPS Morada Nova CAPS Policlínica Dr. Hélio Sales CAPS São José do Rio Pardo CAPS Vidativa Casa Vida CERSAM César Campos Clínica Isabela Clínica São Bento Menni Hospital Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro Hospital Colônia Dr. João Machado Hospital Galba Veloso Hospital Psiquiátrico de Maringá Hospital Psiquiátrico Vera Cruz Sociedade Civil Ltda Instituto Raul Soares Mental Medicina Especializada Sociedade Civil Ltda Núcleo de Atenção Psicossocial Renascer SES/SP - Departamento de Psiquiatria II - Franco da Rocha SPSES - Hospital Clemente Ferreira O número de profissionais que compõem a equipe foi considerado suficiente em apenas 34,6% das instituições. Houve mais relatos de insuficiência de profissionais nos CAPS (80%) em comparação com os hospitais (45,5%). O principal motivo para esta insuficiência foi o aumento da demanda de atendimento, indicada como excessiva por algumas instituições. Também foi relatada a falta de recursos financeiros para ampliar o quadro de profissionais, além da escassez de oferta de algumas categorias, como médicos psiquiatras, em 19,5% das instituições, ou mesmo de outros profissionais que possibilitassem o funcionamento da instituição em horário integral. Os CAPS ofereceram menor número de capacitação aos profissionais no último ano (60,0%), enquan- Sorocaba SP 112 Belo Horizonte MG 149 Sorocaba SP 113 Ribeirão das Neves MG 120 São Paulo SP 118 Lins SP 92 to os hospitais ofereceram capacitação em 81,8% dos serviços. Os principais problemas encontrados em relação à disponibilidade de exames laboratoriais foram o número insuficiente de cotas, a demora para a autorização e realização dos exames, assim como para o recebimento dos resultados. Além disto, havia menção à dificuldade com o transporte de pacientes e impedimentos para a realização de exames de alta complexidade. Apenas 11,5% dos serviços manifestaram não apresentar problemas com a disponibilidade de exames, sendo que um alegou que não há procura. Os hospitais estão mais bem equipados que os CAPS, sendo relevante a informação de que a quase totalidade dos CAPS não possuía equipamentos Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 243 Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS para atendimento de urgências clínicas, e.g. ambu, laringoscópio e balão de oxigênio (Tabela 2). Além disto, para os CAPS, 33,4% consideraram o estado de conservação desses equipamentos como mui- to ruim e regular, enquanto que todos os hospitais os consideraram bons. Somente os hospitais, em 27,3%, relataram possuir o equipamento de eletroconvulsoterapia (ECT) . Tabela 2 - Características descritivas do funcionamento dos serviços de saúde mental participantes, Projeto PESSOAS 2007 Características CAPs n=15(%) n=26(%) Tipo de serviço Hospital CAPS 11 (100) 0 (- ) 0 (- ) 15 (100) 11 (42,3) 15 (57,7) Natureza jurídica Público Estadual Público Municipal Privado Lucrativo Filantrópico 6 (54,4) 0 (- ) 4 (36,6) 1 (9,0) 0 (- ) 15 (100) 0 (- ) 0 (- ) 6 (23,2) 15 (57,7) 4 (15,3) 1 (3,8) Assistências prestadas Internação Urgência psiquiátrica Leito de observação diurno Leito de observação noturno Atendimento ambulatorial Atendimento domiciliar Atividade de recreação Oficinas terapêuticas Atendimento familiar Reunião com pacientes Relação com associação de usuário Cooperativa de trabalho solidário 11 (100) 7 (63,6) 5 (45,5) 5 (45,5) 8 (72,7) 1 (9,1) 10 (90,9) 9 (81,8) 9 (81,8) 11 (100) 6(54,5) 1 (9,0) 2 (13,3) 6 (40,0) 9 (60,0) 0 (- ) 12 (80,0) 12 (80,0) 12 (80,0) 15 (100) 15 (100) 13 (86,7) 8(53,3) 6 (40,0) 13 (50,0) 13 (50,0) 14 (53,8) 5 (19,2) 20 (76,9) 13 (50,0) 22 (84,6) 24 (92,3) 24 (92,3) 24 (92,3) 14(53,8) 7 (26,9) 5 (45,5) 165 17 (65,4) 11 (100) 11 (100) 10(91,0) 11 (100) 9 (81,9) 11 (100) 11 (100) 11 (100) 11 (100) 3(27,3) 13 (86,6) 13 (86,6) 1 (6,6) 13 (86,6) 2 (13,4) 13 (86,6) 1 (6,6) 0 (- ) 2 (20,0) 0( - ) 24 (92,3) 24 (92,3) 11 (42,3) 24 (92,3) 11 (42,3) 24 (92,3) 12 (46,1) 11 (42,3) 13 (50,0) 3(11,3) 9(82,0) 9(60,0) 18(69,2) Profissionais Insuficiente Equipamentos Esfignomanômetro Estetoscópio Lanterna Luvas Otoscópio Termômetro Balão de oxigênio Laringoscópio Ambú ECT Arquivo médico e estatístico Serviço informatizado Parcialmente Não 9(81,8) 2(18,2) 10(66,6) 5(33,4) 19(73,1) 7(26,9) Medicamentos Saúde Mental Insuficiente Urgências Clínicas Insuficiente/Muito insuficiente 1( 9,0) 2(18,0) 4(26,7) 9( 60,0) 5(19,2) 11(42,3) 1( 9,0) 9(82,0) 1( 9,0) 4(26,7) 8(53,3) 3(20,0) 5(19,2) 17(65,4) 4(15,4) Satisfatório Pouco satisfatório Insatisfatório 4 (36,6) 7(63,6) 0( - ) 4(26,7) 10(66,7) 1( 6,6) 8(30,8) 17(65,4) 1( 3,8) Satisfatório Pouco satisfatório Insatisfatório 0 (- ) 8 (72,7) 3(27,3) 2(13,3) 11(73,3) 2(13,3) 2( 7,7) 19(73,1) 5(19,2) Sistema de Totalmente estruturado Referência e Parcialmente estruturado Contra-referência Não estruturado Sistema de referência Sistema de contra-referência 244 Total Hospital n=11(%) Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS O serviço de arquivo médico e de estatística esteve presente em 69,2% dos serviços. Nenhum serviço era totalmente informatizado, sendo que 73,1% eram parcialmente informatizados e 26,9% não eram informatizados. Entre os CAPS, aproximadamente um terço (33,4%) não era informatizado, enquanto que nos hospitais esse percentual foi de 18,2%. Para 80,8% dos serviços, a disponibilidade de medicamentos para a atenção em saúde mental foi considerada suficiente e nenhum serviço a classificou como muito insuficiente. Já em relação aos medicamentos para o manejo de urgências clínicas, 19,2 e 23,1% dos serviços consideraram sua disponibilidade muito insuficiente e insuficiente, respectivamente. Entre os CAPS, essa estimativa foi ainda pior, já que 60,0% deles classificaram-na como insuficiente e muito insuficiente. Um total de 81% dos serviços dispunha de programa de dose individualizada, enquanto que a padronização de medicamentos ocorria em 92,3%. Apenas 19,2% dos serviços indicaram que o sistema de referência e contra-referência estava totalmente estruturado, sendo que 65,4% o consideraram parcialmente estruturado e 15,4% como ausentes. Destaca-se que 20,0% dos CAPS não têm esse serviço estruturado. A maioria o descreveu como pouco satisfatório (65,4%). Já para o sistema de contra-referência, manifestaram estar pouco satisfeitos, insatisfeitos e satisfeitos em 73,1, 19,2 e 7,7%, respectivamente. Os principais problemas encontrados no sistema de referência e contra-referência foram dificuldades para marcar consultas médicas nas unidades básicas de saúde e consultas especializadas, além da obtenção de retorno das clínicas especializadas. Havia pouco diálogo entre os serviços e pouca oferta de vagas. Em apenas 26,9% das instituições existiam programas de educação sexual (Tabela 3), a maioria deles nos CAPS (33,4%). Tais programas eram realizados em oficinas com os pacientes, com temática acerca de sexualidade e planejamento familiar, assim como por meio de palestras mensais e cursos de educação sexual. Foram 31% os serviços que indicaram oferecer programas e atividades de educação específicos para DST, 25% destes considerados pouco satisfatórios ou insatisfatórios. Houve distribuição de camisinhas em apenas 30,8% dos serviços, sendo a grande maioria CAPs e apenas um hospital psiquiátrico. Os motivos alegados para a não distribuição de camisinhas foram a sua distribuição pelas unidades básicas e a falta de programas de educação sexual nas instituições. Uma instituição identificou o serviço como local impróprio, onde acreditavam que não poderia haver relações sexuais. Outra indicou que era pressuposto que os pacientes não mantivessem relações sexuais durante a internação. Entretanto, um dos centros declarou que os pacientes internados man- Tabela 3 - Avaliação do desempenho do serviço em relação às DST nos serviços participantes, Projeto PESSOAS 2007 Características Total Hospital n=11(%) CAPs n=15(%) n=26(%) Programas de educação sexual 2(18,2) 5(33,4) 17(26,9) Programas/atividades de educação específicos para DSTs: 3(27,2) 5(33,3) 8(30,8) Satisfatórios* 3(100) 3(60,0) 6(75,0) 0( - ) 2(40,0) 2(25,0) Desempenho dos serviços em relação as DST/Aids Pouco satisfatórios/Insatisfatórios* Distribuição de camisinhas 1(9,0) 7(46,7) 8(30,8) Existência de pacientes sabidamente HIV positivos 7(63,6) 9(60,0) 16(61,5) Existência de atividade em grupo para pacientes HIV positivos 2(18,2) 1(6,6) 3(11,5) Encaminha para serviço especializado 1(9,0) 2(13,4) 3(11,5) Encaminha e agenda consultas 0( - ) 2(13,4) 2( 7,7) Encaminha, agenda consultas e transporta para os serviços 8(72,8) 7(46,6) 15(57,7) Trata na instituição 2(18,2) 0( - ) 2( 7,7) 0( - ) 4(26,6) 4(15,4) Conduta do serviço em relação aos pacientes com HIV Ignorado * Em relação ao total com programas específicos para DST. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 245 Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS tinham visitas íntimas. Em 61,5% das instituições, no momento da pesquisa, havia pelo menos um paciente sabidamente portador da infecção pelo HIV/ Aids. Em apenas 11,5% instituições os pacientes falavam sobre o problema em atividades de grupo. A maioria dos serviços (57,7%) tinha como conduta encaminhar, agendar as consultas e transportar esses indivíduos até os serviços especializados, para seu acompanhamento e tratamento. Quando algum paciente da instituição estava infectado por alguma DST, incluindo HIV/AIDS, o procedimento mais comum era o registro nos prontuários, além de comunicar a ele, à família e a outros profissionais de saúde da instituição (23,1%). Finalmente, em 73,1% das instituições era garantida a inviolabilidade da correspondência dos pacientes. Aproximadamente 77,0% dos serviços possuíam registro de queixas, sendo que a forma de registro variava de assembléias de pacientes (23,1%), livro de queixas (11,5%), caixas de sugestões (11,5%) e ouvidoria (7,7%). Nenhuma instituição descreveu a presença de cela forte ou espaços restritivos ou punitivos. DISCUSSÃO Os resultados da avaliação dos serviços participantes do Projeto PESSOAS indicaram que tanto os hospitais psiquiátricos como os CAPs apresentaram dificuldades no atendimento da demanda de suporte clínico aos pacientes. Esse dado é preocupante diante da maior vulnerabilidade da população de pacientes psiquiátricos às doenças clínicas, principalmente aqueles com quadros psiquiátricos mais graves.5-8,17-18 Estes resultados devem ser compreendidos no Projeto PESSOAS, cuja unidade de análise principal será o indivíduo selecionado dentro de cada centro, não representando assim todos os CAPS ou hospitais brasileiros. São dados complementares que podem subsidiar as análises dos índices de positividade para as DSTs nessa população, bem como os fatores a elas associados. Os CAPS funcionam, em sua grande maioria, entre oito e 12 horas diárias, de segunda à sexta, o que é condizente com dados do Ministério da Saúde, nos quais 75% dos CAPS incluem-se entre as modalidades de CAPS I e II. No Brasil, apenas 3,7% dos CAPS são estruturas mais complexas, denominados de CAPS III, com funcionamento 24 horas por dia, como os hospitais psiquiátricos.19 246 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S240-S248 Evidenciou-se precária interlocução com os serviços de referência e contra-referência, principalmente sobre a atenção clínica dos aspectos não-psiquiátricos dos pacientes. Apenas 19,2% dos serviços reconheceram que o sistema de referência e contra-referência estava totalmente estruturado. Tanto os CAPS como os hospitais referiram precariedade do retorno dos encaminhamentos da clínica médica e de outras especialidades. As barreiras de acesso aos serviços, que potencialmente colocam essa população em risco de desassistência, têm sido tema de discussão. Sullivan et al.14, em estudo sobre a relação entre os serviços de saúde mental e a atenção e prevenção das DST/AIDS, afirmam que médicos clínicos estão menos inclinados a fazer um trabalho cuidadoso com pessoas com sintomas precoces de HIV que também apresentam doença mental grave, enquanto os prestadores da saúde mental são relutantes em tratar os clientes que são HIV positivo. Esses dados mostram a fragmentação do cuidado dos aspectos físicos e mentais dos pacientes psiquiátricos no sistema de saúde. Quando se avaliam distintamente os hospitais psiquiátricos e os CAPS, observam-se diferenças estruturais entre os dois tipos de serviços pesquisados. A análise apresentou fragilidade de recursos humanos e materiais dos CAPS, quando comparados aos hospitais. Há mais insuficiência de profissionais nos CAPS (80,0%) do que nos hospitais (65,4%). Na disponibilidade de equipamentos, os hospitais estão em melhores condições do que os CAPS, sendo relevante a informação de que a quase totalidade dos CAPS não possuía equipamentos para atendimento de urgências clínicas, como, por exemplo, ambu, laringoscópio e balão de oxigênio. A situação também é preocupante quando se enfoca a disponibilidade de medicamentos para atenção a urgências clínicas; apenas 40% dos CAPS apresentavam medicação suficiente, enquanto estas estavam presentes em 82% dos hospitais. A legislação em saúde mental, que regulamenta o funcionamento dos CAPS, não especifica com detalhes os parâmetros de funcionamento para atendimento às necessidades clínicas dos pacientes. A portaria GM336/2002 delimita que, para o credenciamento e funcionamento dos CAPS, devem-se contemplar: adequada área física, recursos humanos mínimos para compor a equipe técnica, responsabilização pela organização da demanda de saúde mental e assistências que Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do Projeto PESSOAS devem ser prestadas aos pacientes.20 Em contraposição, os hospitais psiquiátricos, por meio do PNASH (Programa Nacional de Avaliação Hospitalar/Psiquiatria, Portaria GM251/2002)20, são mais fiscalizados. A legislação é mais específica e determina avaliações regulares destes e, entre outras definições, estabelece a necessidade de leitos de intercorrência clínica, material e medicamentos para a assistência às urgências clínicas. O PNASH nos hospitais psiquiátricos tem como objetivo apurar indicadores de qualidade e estabelecer classificações com o objetivo de reestruturar o sistema hospitalar psiquiátrico.20 Os CAPS apresentam melhores resultados quando se avaliam alguns recursos terapêuticos, como, por exemplo, a presença de cooperativas de trabalho ou similares que visam ao ganho produtivo consoante com a política de reinserção social dos pacientes. Além disso, na avaliação do desempenho dos serviços em relação à prevenção e assistência às DST, os CAPS também apresentaram melhores resultados, embora as instituições em conjunto tenham evidenciado dispor de poucos recursos para o desenvolvimento dessas atividades, revelando, mais uma vez, os obstáculos à atenção clínica aos pacientes. É importante enfatizar que poucos serviços tinham programas de educação sexual ou distribuição de preservativos, apesar da existência de indivíduos sabidamente portadores da infecção pelo HIV. Essa situação indica despreparo para desenvolver programas de prevenção, abordar questões relacionadas com a sexualidade e lidar com o usuário vivendo com HIV, assim como prover atendimento às condições clínicas não-psiquiátricas, incluindo as DSTs. Diante disso, conclui-se que é grave a situação desses serviços de saúde em relação à sua adequação para a prevenção e assistência às DSTs. Finalmente, apesar da reforma psiquiátrica brasileira ter promovido avanços na discussão e construção da cidadania dos indivíduos com sofrimento mental, gerando ações que objetivam a inclusão social e criando a oferta de novos dispositivos, a implementação da diretriz de integralidade das ações, principalmente no que tange à assistência aos problemas clínicos desses pacientes, ainda se mantém como um desafio para os gestores. O fortalecimento de uma política que contemple tal desafio e aprofunde o desenvolvimento do novo modelo assistencial apresenta grande relevância social, considerando-se a maior vulnerabilidade clínica observada entre os indivíduos com sofrimento mental, especialmente no âmbito das DST/ AIDS. Será necessária a concentração de esforços para melhorar a assistência clínica e reduzir a disseminação das DST/HIV entre as pessoas com problemas mentais sérios, bem como tratar efetivamente todos aqueles que já estão infectados. REFERÊNCIAS 1. Nemes MIB, Castanheira ERL, Melchior R, Alves MTSSB; Basso CR. Avaliaçäo da qualidade da assistência no programa de AIDS: questöes para a investigaçäo em serviços de saúde no Brasil . Cad Saúde Pública. 2004; 20(supl.2):310-21. 2. Donabedian A. The quality of care. How can it be assessed? JAMA. 1988; 260: 1743-8 3. Vuori HV. A qualidade de saúde. Divul Saúde para Debate. 1991; 1(3):17-25 4. 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Secretaria Executiva.Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde mental:1990-2004. 5ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. 340p. ARTIGO ORIGINAL Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico Meningitis: epidemiological features in Minas Gerais, Brazil, 1990-2006: incidence and case fatality rates, diagnostic criteria Patrícia Passos Botelho1, Maria da Conceição Juste Werneck Côrtes2, Salete Maria Novaes Diniz3, Gilmar José Coelho Rodrigues 4 RESUMO A meningite é um problema de saúde pública complexo em razão da sua multicausalidade de natureza infecciosa cuja prevenção e controle exigem estratégias diversas. Objetivo: analisar características epidemiológicas e a qualidade diagnóstica da meningite em Minas Gerais. Método: realizou-se estudo descritivo das meningites em Minas Gerais no período de 1990 a 2006, notificadas à Secretaria de Estado de Saúde e registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Foram analisadas incidência e letalidade por etiologia e faixa etária, critério diagnóstico, com destaque para a doença meningocócica (DM). Resultados: predominou a meningite de etiologia bacteriana, média de 47%, seguida da meningite virótica, média de 30%. Dentre as bacterianas, o maior número de casos deveu-se à Neisseria meningitidis, seguido pelo Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae. A partir de 1999, a incidência das meningites bacterianas e das não especificadas vêm decaindo, porém a letalidade apresentou aumento. Após 2001, ocorreu diminuição também da incidência da meningite presumivelmente viral. A incidência foi maior na faixa etária menor de cinco anos e a letalidade maior no menor de um ano e após 50 anos de idade. A DM foi diagnosticada principalmente por bacterioscopia e clínica (54%) e as outras etiologias pela citoquímica e clínica em 70% dos casos. Esta deficiência no diagnóstico reflete-se na baixa sorogrupagem dos casos de DM, com identificação de 25 a 30%. A redução na incidência e o aumento da letalidade das meningites podem ser devidos à subnotificação que, somada à deficiência no diagnóstico etiológico, torna prioritário o aprimoramento das ações de vigilância e melhoria da rede assistencial e laboratorial de Minas Gerais. 1 Médica, Pediatra e Epidemiologista; Referência Técnica das Meningites da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. 2 Médica, Doutora, Professora de Epidemiologia do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina de UFMG. 3 Psicóloga e Epidemiologista; Coordenadora, Coordenadoria de Monitoramento de Dados Epidemiológicos da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. 4 Técnico de informática da Coordenadoria de Agravos e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Palavras-chave: Meningite/epidemiologia. Meningite/diagnóstico. Meningite/prevenção & controle. Vigilância epidemiológica. ABSTRACT Meningitis is a complex public health problem by virtue of its multiple infectious causes that demand many prevention and control strategies. Objective: To analyze epidemiologic aspects and the diagnostic efficacy of meningitis in Minas Gerais in the period between 1990 and 2006. Method: A descriptive study of meningitis was carried out based on the cases notified to the State Office of Health and registered in the Diseases of Mandatory Notification Surveillance System – SINAN. Cases were analyzed regarding incidence, case fatality rates per etiology and per age group and diagnostic criteria, with an emphasis on meningococcal disease (MD). Results: Bacterial meningitis, with an average of 47%, was observed to be predominant, followed by viral meningitis, with an average of 30%. Among bacterial etiologies, the most frequent agent was found to be Neisseria meningitides, followed by Streptococcus pneumoniae. From the year of 1999, the incidence of bacterial and non-specified meningitis decreased, but Endereço para Correspondência: Rua Alfredo Balena nº 190, sala 803 CEP 30130-100 E-mail: [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 249 Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico lethality increased. After 2001, the incidence of presumed viral meningitis incidence began to decrease. The highest incidence was found in the age group of less than 5 years, and lethality was highest in the age ranges below one and above 50 years. MD was diagnosed mainly by means of bacterioscopy and clinical findings (54% of the cases), while the other etiologies were diagnosed with citochemistry and clinical findings in 70% of the cases. This diagnostic deficiency reflects on a low serogrouping of MD cases, with an identification rate of 25-30%. The observed decrease in incidence and increase in the lethality of meningitis may be due to undernotification, which, in addition to the deficiency in etiological diagnosis, stresses the need for prioritizing improvements in surveillance actions and in the health care network of the state of Minas Gerais. Key words: Meningitis/epidemiology. Meningitis/diagnosis. Meningitis/prevention & control. Epidemilogic surveillance. INTRODUÇÃO A meningite é um processo infeccioso das membranas que envolvem o sistema nervoso central, causado por múltiplos agentes: bactérias, vírus, parasitas e fungos.1,2 Constitui-se em um problema de saúde pública complexo em razão da sua multicausalidade de natureza infecciosa e cuja prevenção e controle exigem estratégias diversas. As meningites de etiologia bacteriana e viral são as mais importantes no contexto da saúde pública, pela sua freqüência, patogenicidade, potencial de disseminação e capacidade de ocasionar surtos. Os agentes viróticos mais comuns são os enterovírus e, entre as bactérias, a Neisseria meningitidis, o Streptococcus pneumoniae e o Haemophilus influenzae.3,4 A distribuição da doença é universal, de forma endêmica, sendo de transmissão respiratória de pessoa a pessoa ou fecal-oral (enterovírus), com aumento do número de casos nos meses frios, favorecido pela aglomeração ambiental.1 A incidência é maior entre as crianças menores de cinco anos de idade, sendo variável de acordo com a região, sofrendo ação de fatores biológicos individuais, processo social/ econômico e variação temporal.4,5 Em países desenvolvidos, a incidência está entre um e três casos por 100.000 habitantes; já em países em desenvolvimento, a incidência é aproximadamente 10 vezes maior, de 10 a 25 casos por 100.000 habitantes. No chamado cinturão africano da meningite (área que se estende da Mauritânia à Etiópia), a cifra atinge, em epidemias, 1.000 casos por 100.000 habitantes. Durante a década de 70, ocorreu epidemia de meningite no Brasil com início em 250 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 São Paulo, pelo meningococo sorogrupo C em 1971, com 50 a 100 casos/100.000 habitantes, recrudescendo em 1974 com o sorogrupo A, chegando a 175 casos/100.000 habitantes, estendendo-se para quase todos os estados. O sistema de saúde, surpreso e despreparado, percebeu a necessidade da implantação, de forma prioritária, de um serviço de vigilância de agravos nocivos à saúde pública no Brasil.5-7 Em Minas Gerais, foram relatadas epidemias de DM pelo sorogrupo C no município de Iapu em 1988, no município de Belo Horizonte em 19907, nos municípios de Nepomuceno e Três Corações em 1994, em Divinópolis em 1996, em Muriaé em 2006 e em Sete Lagoas em 2007. Ocorreu aumento do sorogrupo B no município de Juiz de Fora em 1994, resultando em campanha de vacinação local. Em 2001, ocorreram epidemias de meningite virótica em vários municípios e em 2007 em Ipatinga, com o total de 31 casos pelo Echovirus 6.8 No Brasil, em uma série histórica de 2001-2006, ocorreu média anual de 27.460 casos de meningite. A meningite virótica correspondeu a 42,4% das etiologias e a bacteriana a 44,3%. A DM foi responsável por 12,9% do total de ocorrências no território nacional.9 A vigilância epidemiológica (VE) da meningite está inserida na Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e na Coordenadoria Geral de Doenças Transmissíveis (CGDT) do Ministério da Saúde; na esfera estadual, na Subsecretaria de Vigilância em Saúde, na Gerência de Vigilância Epidemiológica, Coordenadoria de Agravos e Doenças Transmissíveis. Nas Gerências Regionais de Saúde (GRS) e Secretarias Municipais de Saúde (SMS) está situada na Coordenadoria de VE. As ações de vigilância epidemiológica no nível central da SES incluem investigação, orientação, capacitação, transferência de informação, análise dos dados notificados e delineamento de ações de controle executadas em parceria com a Gerência Regional de saúde e o município. Esta análise constitui-se em importante instrumento para subsidiar e direcionar o planejamento e implantação da rede assistencial e promocional de saúde e na priorização de ações nos eventos vulneráveis à prevenção e controle.10 O conhecimento do número de casos e a análise constante das notificações feitas à Secretaria Municipal possibilitam a ação rápida de controle de surtos. Outra ação de controle executada de forma rotineira é a realização de quimioprofilaxia quando da ocorrência de doença meningocócica (DM) ou meningite por Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico Haemophilus, importante para impedir a continuidade de transmissão desses agentes na comunidade.1,11 A partir do ano de 2000 foi implantado nas esferas nacional, estadual, regional e municipal o SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação, no qual são registrados os dados da ficha de notificação ou investigação dos agravos no município ou na GRS e transmitidos ao setor de informação estadual e deste para a esfera nacional. 1,10 A notificação é realizada rotineiramente pelo serviço ou profissional responsável pelo atendimento do paciente à Secretaria Municipal de Saúde. Técnicos da Vigilância Epidemiológica fazem a investigação e o preenchimento da Ficha de Investigação do agravo com dados do paciente, demográficos, clínicos, exames realizados e evolução. Após digitação no SINAN, as informações são encaminhadas semanalmente pelas Gerências Regionais de Saúde para a Secretaria de Estado de Saúde, que as envia quinzenalmente ao Ministério de Saúde. Anteriormente à implantação do SINAN, os dados eram enviados pelas regionais de saúde por intermédio de Boletim Mensal e digitados na Secretaria de Estado de Saúde em um programa próprio.1,8 O SINAN, atualmente em sua 11a versão, é o sistema de informação de agravos de notificação compulsória nos âmbitos nacional, estadual e municipal e, apesar de suas limitações, constitui a única fonte formal de dados para conhecimento e análise dos agravos pela vigilância epidemiológica.1,10 Durante a implantação do SINAN, ocorreu grande mudança na forma de registro dos dados, levando à fragmentação da informação dentro do Estado. Na avaliação das atividades e na implantação e implementação de medidas de controle e prevenção, é primordial uma análise histórica do agravo. O atendimento adequado ao paciente com meningite é dependente de estudos epidemiológicos freqüentes, periódicos, que mostrem as variações nos padrões de distribuição etiológica naquele local – particularmente na era pós-vacinação contra o Haemophilus influenzae e de resistência crescente do pneumococo aos antibióticos – uma vez que a terapia antimicrobiana é instituída antes da determinação do agente etiológico nos quadros suspeitos de meningite. Esses estudos podem contribuir no planejamento em saúde pública tanto quanto na atuação clínica.12 Pretendeu-se, com este estudo, verificar as características epidemiológicas das meningites em Minas Gerais de 1990 a 2006 e registrar a informa- ção com o intuito de preservá-la, considerando as mudanças ocorridas no banco de dados estadual pela implantação e reformulação do SINAN. METODOLOGIA Realizou-se estudo descritivo da ocorrência das meningites em Minas Gerais, de 1990 a 2006. Os dados foram obtidos na Coordenadoria de Doenças Transmissíveis da Superintendência de Epidemiologia da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, para o período de 1990 a 1999, de um programa de compilação de dados elaborado no EPIINFO pelo núcleo de vigilância epidemiológica no nível estadual e de 2000 a 2006 do SINAN, atualizado até a semana epidemiológica 48 do ano de 2007. Foram estudadas as variáveis: número de casos confirmados, critério diagnóstico, sorogrupo da DM, óbito, idade e agente ou agrupamento etiológico (bactérias especificadas ou não, vírus e as meningites não especificadas) de acordo com a ficha de investigação do agravo no SINAN. Destacaram-se também alguns aspectos da DM pela sua importância em saúde pública e pela necessidade de implementação imediata de medidas de controle, individuais e coletivas, como a quimioprofilaxia e vacinação. As idades foram agrupadas em faixas etárias. Foram calculadas a incidência e letalidade anual por etiologia e suas medianas no período, por faixa etária e etiologia. Nos cálculos populacionais, usaram-se dados dos censos realizados pelo IBGE nos anos de 1991 e 2000 e as projeções intercensitárias dos demais anos. Na elaboração deste estudo foram utilizados os programas EPIINFO 6.04, Microsoft Office Word 2003 e o Microsoft Office Excel 2003. RESULTADOS Em Minas Gerais, no período de 1990 a 2006, ocorreu média anual de 1.900 casos de meningite, predominando a meningite bacteriana, com percentual de 47% do total. A meningite virótica foi responsável por 30% dos casos; dentre as bacterianas, o maior número foi devido à Neisseria meningitidis, com o percentual médio de 15% do total das meningites. A partir de 1999, o Streptococcus pneumoniae vem sendo a segunda entre as causas Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 251 Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico bacterianas, correspondendo a 6% do total, substituindo o Haemophilus influenzae. As meningites bacterianas não especificadas e as de etiologia desconhecida, cujo diagnóstico baseia-se no exame citoquímico do líquor e no quadro clínico do paciente, responderam por 37% do total. Desde 1999 a incidência das meningites, na sua totalidade, vem decaindo, devido à redução das de etiologia bacteriana, as não especificadas, aquelas causadas pelo Haemophilus influenzae e a doença meningocócica. A partir de 2001, ocorreu também diminuição da incidência da meningite de etiologia presumivelmente viral. Na década de 90 também pôde-se notar o aumento da incidência das meningites por outras etiologias e as causadas pelo Streptococcus pneumoniae (Gráfico 1). As taxas de incidência por 100.000 habitantes variaram para a doença meningocócica de 2,97 casos em 1995 a 0,81 em 2006, sem caracterização de surtos; da meningite virótica de 1,4 em 1991 a 4,9 em 1998; e para as meningites bacterianas de 0,4 em 1991 a 3,4 em 1995 e 1996. Houve incidência predominante na faixa etária de menores de cinco anos de idade, principalmente no grupo menor de um ano nas principais etiologias. O Gráfico 2 mostra a incidência mediana do período, por idade. Detectaram-se como critério diagnóstico os exames de baixa especificidade, principalmente citoquímica e bacterioscopia do líquor e o quadro clínico no caso de meningococcemia e meningites não especificadas. Na doença meningocócica, os critérios predominantes foram o clínico e a bacterioscopia do líquor em 54% dos casos. Critérios de alta especificidade perfizeram o total de 44% (Gráfico 3). Nas meningites por outras etiologias que não a meningocócica, predominaram também os critérios de baixa especificidade, citoquímica do líquor e quadro clínico em um total de 70%; e a cultura respondeu por 19% dos diagnósticos realizados. Nesta série estudada, houve melhora gradativa, mas pequena, no diagnóstico etiológico das meningites, principalmente a partir de 2003 (Gráfico 4). 6,0 TAXA DE INCIDÊNCIA / 100.000 hab. 5,0 4,0 3,0 2,0 1,0 0,0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 ANO MV MB MNE DM MP MOE MTBC MH Gráfico 1: Incidência das principais etilogias* das meningites, Minas Gerais, 1990-2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. *Etiologias: MV (meningite virótica), MB (meningite bacteriana especificada e não especificada), MNE (meningite não especificada), DM (doença meningocócica), MP (meningite pneumocócica), MOE (meningite por outra etiologia), IGN (ignorado), MTBC (meningite tuberculosa), MH (meningite por hemófilos). 252 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 ETIOLOGIA Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico 24,0 22,0 20,0 18,0 16,0 14,0 12,0 10,0 8,0 6,0 4,0 2,0 0,0 00 -| 01 01 -| 05 05 -| 10 10 -| 15 15 -| 20 20 -| 50 50 e + IGN FAIXA ETÁRIA Virótica Pneumo Hemófios Bacteriana Não Especificada D. Meningo Gráfico 2: Incidência mediana, segundo a etiologia e faixa etária, Minas Gerais 1990-2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. 100% 80% 60% 40% 20% 0% 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Cultura CIEF AG. Latex Clínico Bacterioscopia Necrópsia Vínculo Epidemiológico Citoquímica Outros At. Óbito PCR Ign/Em branco Gráfico 3: Critério diagnóstico da doença meningocócica em Minas Gerais no ano de 1990 a 2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Em Minas Gerais predomínou o sorogrupo B a partir da década de 90 até 2004, quando se iniciou o predomínio do sorogrupo C. Ocorreram casos esporádicos de W135, X e Y. A sorogrupagem alcançou o percentual de aproximadamente 25 a 30% dos casos de doença meningocócica. A taxa de letalidade da doença meningocócica apresentou variação de 17 a 35%, com média de 24%. A meningococcemia foi responsável por 36% dos casos de DM, com taxa de letalidade média de 54% (Gráfico. 5). Nas meningites por outras etiologias, a taxa de letalidade variou de a 18%, com média de 11%. Houve aumento progressivo da letalidade a partir de 2002 nas meningites em geral (Gráfico 6). A taxa de letalidade nas etiologias em estudo é maior nos menores de cinco anos de idade e nos maiores de 50 anos, sendo acima de 66% após 60 anos. A partir dos 50 anos de idade, a letalidade foi maior na meningite pneumocócica (Gráfico 7). Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 253 Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico 100% 80% 60% 40% 20% 0% 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 ANO Cultura CIEF AG. Latex Clínico Bacterioscopia Necrópsia Citoquímica Outros PCR Ign/Em branco Gráfico 4: Critério diagnóstico das meningites de outras etiologias, Minas Gerais, 1990-2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. 40,0% 600 35,0% 500 400 N˚ DE CASOS 25,0% 20,0% 300 15,0% TAXA DE LETALIDADE 30,0% 200 10,0% 100 5,0% 0,0% 0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Mulher ANOS Homem Tx. Letalidade Gráfico 5: Nº de casos, óbitos e letalidade da doença meningocócica em Minas Gerais nos anos de 1990 a 2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. 254 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico 20,0% 2500 18,0% N˚ DE CASOS 14,0% 12,0% 1500 10,0% 8,0% 1000 TAXA DE LETALIDADE 16,0% 2000 6,0% 500 4,0% 2,0% 0 0,0% 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 ANOS CASOS ÓBITOS Tx. Letalidade Gráfico 6: Nº de casos, óbitos e letalidade das meningites de outras etiologias em Minas Gerais nos anos de 1990 a 2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. 60,0 40,0 20,0 0,0 00 -| 01 01 -| 05 05 -| 10 10 -| 15 15 -| 20 20 -| 50 50 e + IGN Virótica Pneumo Hemófios Bacteriana Não Especificada D. Meningo Gráfico 7: Letalidade mediana segundo etiologia e faixa etária, Minas Gerais, 1990-2006 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais DISCUSSÃO Em Minas Gerais predominaram as meningites de etiologia bacteriana, seguidas das viróticas em todos os anos, mostrando tendência constante neste estudo, acompanhando a tendência nacional.8 As meningites bacterianas não especificadas e as de etiologia desconhecida responderam por 37% das ocorrência, dificultando a análise do agravo no estado e a definição de medidas de controle adequadas em quadro emergencial. Estes achados são semelhantes aos de estudo realizado de 1993 a 1997, reforçando a realidade do padrão de qualidade laboratorial no diagnóstico das meningites em Minas Gerais.13 Com a introdução da vacina contra Haemophilus influenzae B no calendário de imunização de rotina em 1999, ocorreu rápida queda do número de casos de meningite por este agente, já bem evidente um ano após, em todo o território nacional.10 O aumento do número de casos das meningites por outras etiologias a partir de 2000 pode ter sido ocasionaRev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 255 Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico do principalmente pelo Cryptococcus neoformans, considerando-se o aumento de pessoas portadoras de imunodepressão no estado. Já a meningite pelo Streptococcus pneumoniae apresentou aumento gradativo e lento, de forma irregular desde 1997, possivelmente pela melhoria diagnóstica, não significando necessariamente aumento real de casos. A redução do número de casos de meningites a partir de 1999 em Minas Gerais sugere subnotificação, coincidente com a época da implantação do SINAN. A descentralização com transferência da digitação dos dados para as Gerências Regionais de Saúde e posteriormente para quase todos os municípios do estado somada à constante rotatividade de técnicos de vigilância epidemiológica nas Regionais de saúde e municípios geraram dificuldades de padronização e consolidação da informação.4 No Brasil, de 2001 a 2006, ocorreu redução da incidência da doença meningocócica e redução discreta das meningites bacterianas.9 Em Minas Gerais, a redução do número de meningites bacterianas especificadas e não especificadas corrobora a hipótese de aumento de subnotificação e da irregularidade da incidência em todas as etiologias até 1999. O decréscimo do número de casos da doença meningocócica na esfera nacional e estadual reflete a queda dos casos do sorogrupo B que predominava desde a década de 90, pois os quadros epidêmicos do sorogrupo B evoluem de forma lenta e gradual, persistindo, como foi o caso, durante mais de uma década.5,14,15 A incidência das meningites foi maior no menor de cinco anos, principalmente abaixo de um ano e no maior de 50 anos de idade, também vistos nos demais estudos citados, confirmando as faixas de risco mais alto. O deslocamento da incidência para as faixas etárias mais altas, principalmente adolescentes e adultos jovens, foi observado durante surtos ou epidemias da DM, sendo sinal de alerta para a vigilância local.6 A deficiência no diagnóstico etiológico persistiu neste estudo para todas as etiologias, mostrando não realização de exames laboratoriais de alta especificidade, como cultura, aglutinação em látex e contra-imunoeletroforese, que se aliaram à urgência de tratamento que se impõe frente à suspeita diagnóstica de meningite. Na DM, os critérios diagnósticos de mais especificidade alcançaram 44% do total de exames realizados, bem maior que nas outras etiologias, provavelmente devido ao 256 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 potencial desse agente de ocasionar surtos e epidemias, implicando medidas de controle oportunas, embora bem abaixo do necessário para uma vigilância adequada. A incidência e letalidade do Streptococcus pneumoniae baixa no menor de um ano de idade é outro fator que possivelmente reflete a deficiência laboratorial no diagnóstico etiológico das meningites no estado.3,16 A precariedade de diagnóstico laboratorial das meningites pode ser devida a vários fatores: ausência de laboratórios capacitados para exames de mais especificidade nos municípios, distância territorial dificultando o envio de material para outros laboratórios e para a Fundação Ezequiel Dias, falta de técnicos capacitados devido à sua alta rotatividade e número inadequado para a vigilância municipal e das GRS para cobrança, repasse de informação aos profissionais de saúde nos municípios, busca de resultados laboratoriais dentro dos hospitais, falta de conscientização dos profissionais de saúde da prioridade de exames laboratoriais para diagnóstico etiológico e o uso de antibioticoterapia antes do estabelecimento do diagnóstico e da coleta de material para os exames pertinentes.4 O diagnóstico das meningites virais é realizado em Minas, como em todo o Brasil, por meio da citoquímica do líquor, por falta de laboratórios na rede pública que realizem exames mais específicos. Atualmente está em fase de implantação o Protocolo das Meningites Viróticas, a partir do qual serão coletadas semanalmente quatro amostras de líquor, fezes e soro para diagnóstico etiológico em dois hospitais de referência.14 Como esperado, devido à dificuldade laboratorial, a sorogrupagem alcançou o percentual de 25 a 30%, implicando que não é conhecido, fidedignamente, o sorogrupo predominante em Minas Gerais, só sendo possível uma avaliação precária do sorotipo e subtipo circulantes no estado. O desconhecimento do sorogrupo circulante e da incidência da DM pelo técnico de vigilância do município e GRS acarreta retardo na avaliação e na adoção de medidas de controle na ocorrência de surto, com conseqüente prejuízo para a população.1, 15 O aumento na letalidade, progressivamente a partir de 2002 em todas as etiologias, não condicionado à maior incidência ou a surtos da DM, sugere uma possível somatória de subnotificação, evolução para casos graves avançados, com con- Situação epidemiológica das meningites em Minas Gerais, 1990-2006: incidência, etiologia, letalidade e critério diagnóstico seqüente deficiência no atendimento ao paciente, diagnóstico e terapia tardios de suma importância na boa evolução do quadro clínico17 e vigilância local passiva. Esse aumento da letalidade no tocante à DM não seria esperado normalmente, já que a virulência do sorogrupo C, que agora predomina no estado, é menor do que a do B.5,15, 18-20 Na análise da meningite em Minas Gerais, os dados resultam da somatória de fatores pessoais e estruturais nas Gerências Regionais de Saúde (GRS) e municípios, que refletem, muitas vezes, o esforço de algumas pessoas na qualidade de suas vigilâncias, manifestando, assim, seu envolvimento no serviço de vigilância naquela área de abrangência. Para que haja melhora desse quadro é necessário cooperação entre o Ministério da Saúde, técnicos da vigilância, profissionais de saúde em geral, laboratórios e demais instituições de saúde para valorização da notificação, conscientização dos profissionais de saúde na solicitação de exames laboratoriais pertinentes, capacitação e menos rotatividade de técnicos de vigilância e formação de uma rede laboratorial que suporte a necessidade estadual das doenças de notificação compulsória em geral. 7. Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Bol Epidemiol. 1992 jan/fev; 1 (2) 8. Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Bol Epidemiol. 2007 set./out.; 10 (3) 9. Brasil. Ministério da Saúde. Banco de dados do Sistema Único de Saúde. [Citado em dez.2007]. Disponível em: www.datasus.gov.br 10. Miranzi SSC, Moraes SA, Freitas ICM. Tendência das meningites por Haemophilus influenzae tipo b no Brasil, em menores de 5 anos, no período de 1983 a 2002. Rev Soc Bras Med Trop. 2006; 39.(5):473-7. 11. Donalisio MR, Rocha MMM, Ramalheira RMF, Kemp B. Critério diagnóstico da doença meningocócica na Região Metropolitana de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2004; 20(6):1531-7. 12. Côrtes MCJW. Vigilância das meningites na Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG, 1999: o uso dos sistemas de informação em saúde e o método da captura –recaptura na estimação da incidência e da subnotificação [tese]. Belo Horizonte, Minas Gerais: Universidade Federal de Minas Gerais; 2002. 13. Miranzi SSC, Camacho LA, Valente JG. Haemophilus influenzae tipo b: situação epidemiológica no Estado de Minas Gerais, Brasil, 1993 a 1997. Cad Saúde Pública. 2003; 19(5):1267-75. 14. Brasil. Ministéio da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. [site]. [Citado em out. 2007]. Disponível em: www.saude.gov.br/svs REFERÊNCIAS 15. Dean AG, Dean JA, Burton AH, Dicker RC. EpiInfo, versão 6.04. 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São Paulo: Atheneu; 2000 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S249-S257 257 ARTIGO ORIGINAL Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Housing and basic sanitation conditions and prevalence of intestinal parasite infection among employees of extractive sector of the Steel Vale Region, Minas Gerais Olívia Maria de Paula Alves Bezerra1, Cláudia Aparecida Marlière2, Roney Luiz de Carvalho Nicollato3, José Geraldo Sabioni4 RESUMO 1 Doutora, Professora Adjunta do Departamento de Nutrição Clínica e Social da Escola de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto. Campus Morro do Cruzeiro, s/n. Ouro Preto, MG. CEP: 35400-000 ([email protected]). Fone: (31)3559-1838; Fax: (31) 3559-1828. 2 Doutora, Professora Adjunta do Departamento de Nutrição Clínica e Social da Escola de Nutrição - Universidade Federal de Ouro Preto. 3 Graduado, Professor Adjunto do Departamento de Análises Clínicas da Escola de Farmácia - Universidade Federal de Ouro Preto. 4 Doutor, Professor Adjunto do Departamento de Alimentos da Escola de Nutrição - Universidade Federal de Ouro Preto. Foram estudadas as condições de moradia e de saneamento básico e a prevalência de parasitoses intestinais em uma amostra de 806 trabalhadores do setor extrativista vegetal de quatro municípios da região do Vale do Aço, Minas Gerais, dos quais 77 possuíam vínculo formal de trabalho com uma empresa produtora de celulose bruta e 729 eram terceirizados. As atividades laborais eram relacionadas ao plantio, cultivo e extração de eucaliptos. As condições de moradia e de saneamento básico foram investigadas por meio de aplicação que questionários semi-estruturados e a prevalência de parasitoses intestinais por meio de exame parasitológico de fezes, utilizando-se o método da sedimentação espontânea. As condições de moradia e de saneamento básico foram consideradas precárias e a prevalência de parasitoses foi da ordem de 31,1% dos examinados, dos quais 25,7% encontravam-se poliparasitados. As espécies de parasitas mais freqüentes foram E. coli (36,1%), G. lamblia (21,3%), A. duodenalis (19,7%), E. histolytica (17,3%) e A. lumbricoidis (10,8%). Os resultados indicam a urgência da adoção de medidas de proteção sanitária e ambiental, envolvendo melhoria da qualidade da água de consumo humano e adequada disposição de dejetos tanto nas residências quanto no campo; promoção de atividades de educação sanitária e em saúde, com ênfase na adoção de medidas de higiene ambiental, corporal e dos alimentos; orientação sobre cuidados na manipulação de alimentos; adoção urgente de medidas de saneamento básico; e o tratamento dos doentes. Palavras-chave: Saneamento básico. Habitação. Perfis sanitários. Doenças parasitárias. Trabalhadores rurais. ABSTRACT Endereço para correspondência: FALTA ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA @@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@ 258 Housing and basic sanitation conditions and prevalence of intestinal parasite infection were studied in a sample of 806 employees of the extractive vegetal sector of 4 municipalities of the Steel Vale, Minas Gerais. From this sample 77 works were formal employees of cellulose company and the others were third part ones. Their labour activities included planting and extraction of eucalyptus trees. Housing and basic sanitation conditions were investigated by the application of semi-structured questionnaire and the prevalence of intestinal parasite infection by mean of stool specimens examined by spontaneous sedimentation. Housing and basic sanitation conditions were considered precarious and the prevalence of intestinal parasite infection was 31.1% of the sample examined, of which 25.7% were found several parasites. The more frequent species found were E coli (36.1%), G. Lambia (21.3%), A. Duodenalis (19,7%), E. Histolytica (17,3%) e A. Lumbricoides (10.8%). The results indicate the urgent need of sanitation and environmental measures, which involve improvement the water quality of human consumption and a proper disposition of dejects in both houses and the work’s field; promotions of sanitation and of health in education programmes with environmental focus, body and food hygiene; orientation food care, adoption of strict procedures of basic sanitation and treatment of the deseased employees. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Key words: Basic sanitation. Housing. Sanitary profiles. Parasitic disease. Rural workers. INTRODUÇÃO O Brasil apresenta grandes diversidades geográficas e sociais refletidas em perfis variados de qualidade de vida e nos indicadores de saúde, observando-se doenças próprias da pobreza e aquelas encontradas nas sociedades ricas do denominado “primeiro mundo”.1 Entre as enfermidades associadas à pobreza e às precárias condições de vida, encontram-se as parasitoses intestinais, que ainda hoje representam grave problema de saúde pública pela elevada prevalência e pelos custos diretos e indiretos que acarretam para os indivíduos e a sociedade. O parasitismo intestinal está associado a quadros de diarréias, anemias e desnutrição, especialmente em crianças, podendo levar ao retardo do crescimento e desenvolvimento; desconforto digestivo, o que interfere na ingestão alimentar; redução da disponibilidade de nutrientes para o organismo; sangramentos intestinais; além de obstrução intestinal, prolapso retal e formação de abscessos.2 As precárias condições de moradia, de saneamento básico e de trabalho, o acesso insuficiente à informação e à atenção em saúde, os baixos níveis educacionais e a precária distribuição de renda são alguns dos fatores potenciais de risco de parasitoses intestinais, contribuindo para a sua disseminação no ambiente. A importância do saneamento básico está bem estabelecida, uma vez que a disposição inadequada de dejetos no ambiente contamina água, solo e alimentos, possibilitando o surgimento de enteroparasitoses como ancilostomíase, amebíase, ascaridíase e teníase, entre outras. Por outro lado, o investimento público em saneamento básico tem se mostrado efetivo para o controle da transmissão das doenças parasitárias e a promoção da saúde humana. Neste artigo, são apresentados os resultados de um estudo sobre as condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de enteroparasitoses entre trabalhadores do setor florestal que atuam no plantio, cultivo e extração do eucalipto e na produção da celulose bruta em municípios do Vale do Aço, estado de Minas Gerais. Os achados resultam de uma pesquisa mais ampla realizada por solicitação de uma empresa produtora de celulose bruta, na qual foi feito diagnóstico de saúde de uma amostra significativa de trabalhadores do setor florestal, com vistas à implantação de ações curativas e preventivas destinadas à reversão dos agravos e promoção da saúde. METODOLOGIA Foi realizado estudo epidemiológico descritivo de delineamento transversal, do tipo “inquérito de prevalência”, envolvendo uma amostra estatisticamente significativa de trabalhadores do setor florestal, calculada com intervalo de confiança de 95% e margem de erro de 5%, sendo contemplados diferentes municípios e localidades onde ocorria o desenvolvimento de atividades de plantio, cultivo e extração de eucalipto e produção de celulose bruta. A composição da amostra incluiu indivíduos que exerciam atividades de trabalho nos municípios de Belo Oriente (376 trabalhadores), Guanhães (150 trabalhadores), Ipaba (148 trabalhadores) e Nova Era (132 trabalhadores), totalizando 806 trabalhadores. Destes, 77 possuíam vínculo formal de trabalho com a empresa produtora de celulose bruta e 729 eram vinculados a empresas prestadoras de serviços terceirizados relacionados ao plantio, cultivo e extração de eucaliptos. A seleção dos trabalhadores foi realizada de forma aleatória, por meio de sorteio. Em função do não fornecimento de amostras de fezes ou da ausência do trabalhador no momento da aplicação dos questionários, reduziu-se a 795 indivíduos que realizaram exame parasitológico de fezes (ou 98,6% do total previsto) e 796 que responderam aos questionários (ou 98,7% do previsto). Destes, ainda houve variações no n devidas ao desconhecimento ou recusa em responder a algumas informações. A coleta de dados ocorreu em setembro de 2004, tendo sido realizadas as seguintes etapas: a) leitura e assinatura do termo de consentimento, em cumprimento aos preceitos éticos que envolvem pesquisas com seres humanos, dispostos na Resolução CNS nº. 196, de 10 de outubro de 1996, de acordo com o projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Ouro Preto; b) recebimento das amostras de fezes e acondicionamento para posterior transporte; e c) aplicação de inquérito individual sobre condições socioeconômicas, de moradia e de saneamento básico. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 259 Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Para a coleta das amostras de fezes os trabalhadores receberam orientações impressas, as quais foram lidas e explicadas a eles. Um frasco contendo líquido conservante (MIF) foi entregue a cada um, já devidamente rotulado e identificado, e três amostras de fezes foram coletadas no próprio domicílio, em dias diferentes e consecutivos, as quais foram entregues à equipe de pesquisadores no momento da aplicação dos inquéritos. Os frascos foram, então, devidamente acondicionados em caixas de isopor contendo gelo e em seguida transportados até o laboratório de análises clínicas, onde foram analisados pelo método Hoffman, Pons & Janer (sedimentação espontânea). A obtenção de dados socioeconômicos, condições de moradia e de saneamento básico utilizou questionários semi-estruturados elaborados especialmente para fins do estudo e aplicados por entrevistadores devidamente treinados. Para o tratamento dos dados obtidos adotou-se o software EPIINFO 2004. Os resultados individuais dos exames parasitológicos de fezes foram impressos e enviados aos trabalhadores. Foi enviado relatório da situação do coletivo de trabalhadores às empresas contratantes pela equipe de pesquisadores, com orientações e recomendações quanto às medidas corretivas e preventivas a serem adotadas. RESULTADOS média de 33,4 ± 10,0 anos (mediana=32 anos), sendo que 53,8% encontravam-se na faixa etária de 30 a 35 anos. Aproximadamente 85% deles eram analfabetos ou possuíam baixa escolaridade. A Tabela 1 apresenta a distribuição dos trabalhadores segundo a renda média domiciliar mensal percebida. A distribuição dos trabalhadores segundo as condições de moradia é apresentada na Tabela 2. A Tabela 3 apresenta a distribuição dos trabalhadores segundo as condições de saneamento básico. Na Tabela 4 são apresentadas as prevalências de parasitismo, poliparasitismo e espécies simultâneas de parasitas intestinais encontradas nos exames parasitológicos de fezes. A prevalência de parasitismo intestinal distribuída por espécies de parasitas encontrados nos exames parasitológicos de fezes dos trabalhadores estudados está na Tabela 5. Tabela 1 - Distribuição da amostra de trabalhadores segundo a renda média domiciliar mensal (n=721 ) Faixa de renda (SM) Freqüência % ≤1 61 8,5 1,001 – 3,000 535 74,2 3,001 – 5,000 94 13,0 5,001 – 8,000 25 3,5 8,001 – 12,000 4 0,6 12,001 – 20, 000 - - > 20,000 Todos os trabalhadores que participaram do estudo (n=796) eram do sexo masculino, com idade Total 260 0,2 100,0 Nota: SM= salário-mínimo vigente à época (R$ 260,00). Tabela 2 - Distribuição dos trabalhadores segundo as condições de moradia Variável analisada 2 721 Continua... Freqüência % Área de residência (n=760) Rural Urbana Total 170 590 760 22,4 77,6 100,0 Condição do domicílio (n=733) Próprio Alugado Cedido Ocupado Outros Total 574 121 28 2 8 733 78,3 16,5 3,8 0,3 1,1 100,0 Número de moradores por domicílio (n=715) 1–5 6 – 10 11 – 15 ≥16 Total 118 492 101 4 715 16,5 68,8 14,1 0,6 100,0 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Tabela 2 - Distribuição dos trabalhadores segundo as condições de moradia Variável analisada Continuação... Freqüência % Número de cômodos por domicílio (n=715) ≤3 4–6 7 – 10 >10 Total 118 492 101 4 715 16,5 68,8 14,1 0,6 100,0 Tipo de parede (n=714) Alvenaria Outros Total 691 23 714 96,8 3,2 100,0 Tipo de piso (n=710) Impermeabilizado Não impermeabilizado (terra batida) Total 691 19 710 97,3 2,7 100,0 Tipo de cobertura (n=700) Bem vedada Mal vedada (com infiltrações) Total 590 110 700 84,3 15,7 100,0 5 0,7 195 27,5 Número de torneiras/pontos de água (n=709) Nenhuma Uma ou duas Três a cinco Seis ou mais Total 466 65,7 43 6,1 709 100,0 Presença de cachorros ou gatos (n=796) Sim Não Total 321 475 796 40,3 59,7 100,0 Sim Não Total 246 30,9 Presença de roedores (n=796) 550 69,1 796 100,0 Sim Não Total 255 541 796 32,0 68,0 100,0 Presença de baratas e outros insetos (n=796) DISCUSSÃO O perfil básico do trabalhador estudado pode ser caracterizado como do sexo masculino, baixa escolaridade e jovem, compatível com o tipo de atividade física requerida pelo trabalho, normalmente muito intensa, exigindo vigor físico e grande dispêndio energético. A renda domiciliar média mensal dos trabalhadores é baixa, estando mais de 80% na faixa de até três salários-mínimos mensais e 8,5% na faixa de menos de um salário-mínimo mensal. A relação entre baixa renda e parasitismo intestinal tem sido demonstrada em nosso meio em estudos recentes.3,4 Embora 77,6% dos trabalhadores residam em área urbana, as suas condições de moradia e de saneamento básico não são satisfatórias. Aproximadamente 16,5% pagam aluguel de suas residências, comprometendo parcela da renda familiar; e apro- ximadamente 4% residem em domicílio cedido ou ocupado, o que representa fator de insegurança para o trabalhador e sua família. Cerca de 70% dos domicílios abrigam entre seis e 10 moradores e 15% abrigam 11 ou mais pessoas, sendo que 70% das moradias têm de quatro a seis cômodos e em torno de 15% têm três ou menos cômodos. A densidade de pessoas que compartilham o mesmo espaço favorece a transmissão de doenças infecciosas e parasitárias. A qualidade das construções de paredes e pisos apresenta-se adequada na maioria das casas, porém, pequena parcela (3,2 e 2,7%, respectivamente) apresenta-se inadequada, o que favorece a transmissão e disseminação de doenças infecciosas e parasitárias. Em relação à qualidade da cobertura ou telhado, verificou-se que um número importante de domicílios (15,7%) apresenta infiltrações e facilita abrigo para insetos e roedores. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 261 Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Tabela 3 - Distribuição dos trabalhadores segundo condições de saneamento básico Variável analisada Freqüência % Tratamento público da água de consumo (n=718) Tratada Não tratada Total 523 195 718 72,8 27,2 100,0 Tratamento domiciliar da água de consumo (n=718) Nenhum tratamento Só filtrada Só fervida Filtrada e fervida Total 148 544 12 14 718 20,6 75,8 1,7 1,9 100,0 Interrupções no abastecimento domiciliar de água/ semana (n=483) Nunca ou raramente 1–3 vezes 4–6 vezes Todos os dias Total 328 111 17 27 483 67,9 23,0 3,5 5,6 100,0 Destino domiciliar de águas servidas (n=720) Fossa Controle fechado/esgoto Controle aberto/rio ou córrego Sem controle/rua Outros Total 54 429 196 24 17 720 7,5 59,6 27,2 3,3 2,4 100,0 Destino dos dejetos fecais (n=721) Fossa Controle fechado/esgoto Controle aberto/rio ou córrego Sem controle/rua Outros Total 94 411 188 15 13 721 13,0 57,0 26,1 2,1 1,8 100,0 Destino do lixo domiciliar (n=725) Coleta pública Enterrado Queimado Lançado em terreno baldio Lançado na rua Lançado em rio/canal Outros Total 589 11 94 13 4 2 12 725 81,2 1,5 13,0 1,8 0,6 0,3 1,7 100,0 Tabela 4 - Prevalência de parasitismo, poliparasitismo e espécies simultâneas de parasitas intestinais entre os trabalhadores Variável analisada 262 Freqüência % Ocorrência de parasitismo (n=795) Não Sim Total 546 249 795 68,7 31,3 100,0 Ocorrência de poliparasitismo (n=249) Não Sim Total 185 64 249 74,3 25,7 100,0 Número de espécies de parasitas (n=249) 1 2 3 4 6 Total 185 52 8 3 1 249 74,3 20,9 3,2 1,2 0,4 100,0 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais Tabela 5 - Prevalência de parasitismo intestinal entre os trabalhadores, estratificada por espécie de parasita (n=249) Parasita Freqüência % Freqüência % Ancylostomo duodenalis 200 80,3 49 19,7 Ascaris lumbricoidis 222 89,2 27 10,8 Entamoeba coli 159 63,9 90 36,1 E. histolytica 206 82,7 43 17,3 Endolimax nana 227 91,2 22 8,8 Enterobius vermicularis 247 99,6 1 0,4 Giardia lamblia 196 78,7 53 21,3 Hymenolepis nana 245 98,4 4 1,6 Iodamoeba butschlii 243 97,6 6 2,4 Shistosoma mansoni 235 94,4 14 5,6 Strongyloides stercoralis 233 93,6 16 6,4 Taenia saginata 248 99,6 1 0,4 Tricocephalus trichiurus 243 97,6 6 2,4 Grande parte dos trabalhadores (27%) não tem acesso à rede pública de água tratada, cerca de 20% não fazem nenhum tipo de tratamento domiciliar da água e apenas 1,9% filtra e ferve a água de consumo - o que os predispõem a contraírem doenças infecciosas e parasitárias. Acresce-se a isso o fato de que significativo número de trabalhadores (32%) relatou interrupções freqüentes no abastecimento domiciliar de água, levando-os a recorrer a outras fontes de abastecimento, como cursos d´água próximos das residências, com aumento do risco de contrair tais doenças. O número de torneiras ou pontos de água mostrou-se insatisfatório em aproximadamente 28% dos domicílios, que possuíam nenhuma, uma ou apenas duas torneiras. A indisponibilidade ou insuficiência de água para uso nas moradias são fatores que comprometem a qualidade da higiene pessoal, do ambiente, dos utensílios e dos alimentos, contribuindo para a disseminação de doenças infecciosas e parasitárias. Quase 40,3% dos domicílios abrigam animais de estimação, cachorros ou gatos, que constituem veículos de contaminação fecal do ambiente e podem funcionar como hospedeiros de parasitas. A presença de roedores, baratas e outros insetos foi relatada em 30,9 a 32% das casas, indicando inadequação das condições de saneamento básico e certamente contribuindo para a disseminação de parasitas. Quanto ao destino das águas servidas, a maioria mencionou a utilização de fossas sépticas ou canalização para a rede pública, porém, 33% dos domicílios não têm acesso a esses serviços, lançando as águas servidas diretamente em rio ou córrego, na rua ou em outros locais inadequados. É particularmente preocupante o fato de aproximadamente 27% das moradias lançarem suas águas servidas e esgotos em rios ou córregos, pois, segundo depoimento dos trabalhadores, os mesmos cursos d´água são utilizados para abastecimento domiciliar, lavagem de roupa, banho ou lazer, especialmente quando das interrupções de abastecimento, que são freqüentes. Em relação ao destino do lixo, mais de 95% dos domicílios são servidos pela coleta pública ou tratam os resíduos queimando-os ou enterrando-os. Apenas 3%, mais ou menos, dos domicílios apresentam-se inadequados nesse aspecto, lançando os resíduos em terreno baldio, cursos d´água ou no peridomicílio. No entanto, essa prática contribui para o aumento da contaminação ambiental e favorece o aumento da população de vetores e hospedeiros envolvidos na transmissão de doenças infecciosas e parasitárias para as pessoas. Foi constatada prevalência de aproximadamente 31% de parasitismo intestinal entre os trabalhadores examinados, considerada bastante elevada em se tratando de população adulta.5,6 Desses, em 25,7% foi identificada a presença de mais de um parasita intestinal (poliparasitismo) e quase 5% deles apresentaram três ou mais parasitas simultaneamente, sendo que um único indivíduo chegou a apresentar seis espécies simultâneas de parasitas intestinais. Essas prevalências podem ser consideradas bastante elevadas, quando comparadas com outros achados Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 263 Condições de moradia, de saneamento básico e prevalência de parasitoses intestinais entre trabalhadores do setor extrativista vegetal da região do Vale do Aço, Minas Gerais em nosso meio.7,8 Os parasitas encontrados são, em geral, de distribuição comum em países tropicais pobres, sendo os mais freqüentes E. coli (36,1%), G. lamblia (21,3%), A. duodenalis (19,7%), E. histolytica (17,3%) e A. lumbricoidis (10,8%). As amebíases e a giardíase estão relacionadas à ingestão de água de má qualidade, ao passo que a ancilostomíase e a ascaridíase estão associadas à ingestão de alimentos mal higienizados ou veiculadas por meio de mãos sujas. Há que se considerar também que a ancilostomíase ocorre entre indivíduos que permanecem em contato com terra contendo dejetos fecais de pessoas infectadas e pode estar ligada ao tipo de trabalho desenvolvido pelos trabalhadores estudados. Também chamam a atenção as prevalências de estrongiloidíase (6,4%) e esquistossomose (5,6%). mente em relação à cobertura e qualidade da água de consumo humano e disposição de dejetos tanto nas residências quanto no campo; a promoção de atividades de educação sanitária e em saúde, com ênfase na adoção de medidas de higiene ambiental, corporal e dos alimentos; e a orientação sobre os cuidados na manipulação de alimentos de origem animal. Seguindo orientação da equipe de pesquisadores, as empresas passaram a adotar banheiros químicos e água mineral para consumo dos trabalhadores no campo. O controle efetivo dos problemas detectados deverá compreender ainda o desenvolvimento de ações em nível microeconômico - envolvendo fatores estruturais, apontando para medidas de longo prazo e que assegurem ambientes de vida e de trabalho saudáveis; e em nível macroeconômico, tendo em vista principalmente a redução das desigualdades sociais. CONCLUSÕES REFERÊNCIAS Inúmeros estudos disponíveis na literatura demonstram que a elevada prevalência de parasitoses intestinais está relacionada às precárias condições de moradia e de saneamento básico, aos baixos níveis educacionais e de renda, à ausência do poder público na garantia de condições dignas de existência da população, especialmente no meio rural, entre outros fatores. O estudo realizado demonstrou a precariedade das condições de moradia e de saneamento básico para parcela significativa dos trabalhadores das empresas de reflorestamento e elevada prevalência de enteroparasitoses, com destaque para o expressivo número de indivíduos poliparasitados, indicando, provavelmente, relação positiva de causa e efeito entre condições de moradia e saneamento básico e prevalência de enteroparasitoses. Entretanto, é importante considerar que outros fatores podem estar contribuindo para esse quadro, entre eles as condições de trabalho, uma vez que esses indivíduos permanecem em contato direto com a terra e em ambientes úmidos, sem instalações sanitárias adequadas e sem água de boa qualidade para consumo durante a jornada de trabalho. Para eliminar ou mitigar os problemas detectados, medidas de proteção sanitária e ambiental devem ser adotadas pelo poder público e pelas empresas às quais os trabalhadores se encontram vinculados, incluindo o tratamento dos doentes (já foi realizado pelas empresas); a adoção urgente de medidas de saneamento básico, habituais ou alternativas, especial264 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S258-S264 1. Arruda KGA, Figueira F. Aspectos geopolíticos da problemática alimentar e nutricional. Cad Saúde Pública. 1988; 4(1):62-87. 2. Abraham RS,Tashima NT, Silva MA. Prevalência de enteroparasitoses em reeducandos da Penitenciária Maurício Henrique Guimarães Pereira de Presidente Venceslau, SP. Rev Bras Anal Clin. 2007; 36 (1):39-42. 3. Mascarini LM, Donalisio MR. Epidemiological aspects of enteroparasitosis at daycare centers in the city of Botucatu, State of São Paulo, Brazil. Rev Bras Epidemiol. 2006; 9(3): 297-308. 4. Teixeira JC, Heller L, Barreto ML. Giardia duodenalis infection: risk factors for children living in sub-standard settlements in Brazil. Cad Saúde Pública. 2007; 23(6):1489-93. 5. Almeida IS. Estudo transversal de prevalência de Giardia lamblia e outros parasitas intestinais no bairro Nossa Senhora de Fátima – Planaltina, DF. Brasília Méd. 1991; 28(1/4):16-9. 6. Ismael G. Prevalência de parasitoses intestinais entre os usuários do Centro de Saúde do Distrito Souzas, Campinas, São Paulo (1986-1990). Rev Soc Bras Med Trop. 1992; 25 (3): 177-82. 7. Santos RCV, Hoerlle JL, Aquino ARC. Prevalência de enteroparasitoses em pacientes ambulatoriais do Hospital Divina Providência de Porto Alegre, RS. Rev Bras Anal Clin 2004; 36(4): 241-3. 8. Souza EA, Silva-Nunes M, Malafronte RS, muniz PT, Cardoso MA, Ferreira MU. Prevalence and spatial distribution of intestinal parasitic infections in a rural Amazonian settlement, Acre State, Brazil. Cad Saúde Pública. 2007; 23(2):427-34. ARTIGO ORIGINAL Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? Drug Diary: is it suitable to measure adherence in epidemiological studies? Juliana Álvares1; Francisco A Acurcio2; Palmira de Fátima Bonolo3; Mark D C Guimarães 3 RESUMO O uso adequado dos anti-retrovirais (ARV) constitui-se em desafio tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde. Nesse contexto, é fundamental medir e analisar a ocorrência de não-adesão, na busca de intervenções que a minimizem. Objetivo: avaliar o Registro Diário de Medicamentos (RDM) como instrumento de medida de adesão ao tratamento anti-retroviral em estudos epidemiológicos. Métodos: pacientes infectados pelo HIV, recebendo sua primeira prescrição de ARV obtiveram explicações sobre a forma de utilização do RDM na entrevista basal do projeto Adesão ao Tratamento Anti-Retroviral (ATAR). Foram convidados a preencher o instrumento e devolvê-lo no mês seguinte. A análise se dividiu em:a) análise da compreensão do preenchimento; b) análise da resposta; c) análise da adequação do preenchimento. Resultados: a análise da compreensão mostrou que 96,5% dos entrevistados tiveram compreensão total do instrumento. A análise da resposta mostrou perda de 28,2% dos RDMs, havendo diferenças entre respondentes e não-respondentes. Na análise da adequação observouse que ser do sexo feminino (OR: 2,31; IC 95%: 1,21-4,40) e morar sozinho (OR: 2,42; IC 95%:1,10-5,34) estavam associados independentemente ao preenchimento inadequado do RDM. Conclusões: é viável a utilização do RDM por pacientes com baixa escolaridade. Os resultados indicam a necessidade de modificações em sua estrutura para melhor adaptá-lo como instrumento de medida de adesão em estudos epidemiológicos. Entretanto, o RDM pode ser útil como uma ferramenta para auxiliar os profissionais de saúde a prestarem informações ao paciente sobre o uso dos medicamentos e como uma estratégia de promoção da adesão ao tratamento anti-retroviral. 1 Mestre - Departamento de Farmácia Social da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. 2 Doutor - Departamento de Farmácia Social da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. 3 Doutor - Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Palavras-chave: Infecções por HIV/quimioterapia. Anti-retrovirais/administração & dosagem. Aids/terapia. Terapêutica. ABSTRACT The adequate use of antiretroviral drugs (ARV) is a challenge to both patients and health professionals. In that context, it is essential to measure and analyze the occurrence of nonadhesion to search for interventions that minimize it. Objective: to evaluate the Drug Diary (DD) as a tool to measure adherence to the antiretroviral treatment in epidemiological studies. Methods: Patients infected with HIV, receiving their first ARV prescription, were given explanation on the use of DD at the ATAR project’s basic interview. They were asked to fill up the document and to return it on the following month. The analysis comprised three aspects: 1. Understanding of the document; 2. Analysis of the answers; 3. Adequacy in filling the document. Results: The analysis of understanding showed that 96.5% of the patients completely understood the document. The analysis of answers showed a loss of 28.2% of DD, with differences between respondents and non-respondents. The analysis of adequacy in filling the document showed that being a female (OR: 2.31; CI 95%: 1.21-4.40) and living alone (OR: 2.42; CI 95%:1.10-5.34) were independently associated with inadequate filling of the DD. Conclusions: The use of DD is feasible for patients with low levels Endereço para correspondência: Francisco de Assis Acurcio Av. Antônio Carlos, 6627 FAFAR Sala 1048B2 Cep: 31270-010 Belo Horizonte, MG, Brasil. [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 265 Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? of education. The results indicate a need for structural changes on the DD, aiming its better use as a tool to measure adhesion in epidemiological studies. However, the DD showed to be a useful tool to assist health professionals in providing patients with information about the use of medicines, as well as a strategy to promote adherence to the antiretroviral treatment. Key words: HIV Infections/drug therapy. Anti-retroviral Agents/administration & dosage. Aids/therapy. Therapuetics. INTRODUÇÃO Desde a década de 90 o Ministério da Saúde oferece aos pacientes infectados pelo HIV/AIDS, gratuitamente, os medicamentos necessários ao controle do avanço da doença. O Brasil conseguiu, de forma notável, superar o problema de acesso aos anti-retrovirais, peculiar aos países em desenvolvimento.1 Observa-se, no entanto, que os pacientes nem sempre utilizam os medicamentos conforme as recomendações médicas e, mesmo em situações de risco de vida potencial, a não-adesão ao tratamento anti-retroviral é consideravelmente alta.2,3 Diante disso, o desafio que se impõe para os profissionais de saúde é encontrar formas de estimular o uso correto dos medicamentos, haja vista a necessidade de cerca de 95% de adesão para a redução adequada da carga viral. Assim, o monitoramento da utilização dos medicamentos e a identificação dos não-adeptos tornam-se imprescindíveis na prática clínica cotidiana.4-6 A medida adequada e bem realizada é uma das chaves no estudo da adesão à terapia ARV. É importante verificá-la corretamente para que se possa planejar o tratamento de forma efetiva e garantir que as mudanças no estado de saúde do paciente se devam unicamente ao uso, ou não, dos medicamentos.7 Ocorre, entretanto, que não existe um “padrãoouro” para medir adesão. Tal fato leva à necessidade da pesquisa por melhores instrumentos e do uso de vários deles, no mesmo estudo, para a obtenção de dados mais próximos da realidade. Várias estratégias têm sido relatadas na literatura e nenhuma delas está isenta de problemas, sejam eles de ordem prática ou metodológica; todos apresentam limitações e, de algum modo, super ou subestimam a adesão. Os métodos usados para a medida variam em grau de conveniência e efetividade5,7,8. Três instrumentos baseiam-se no método do auto-relato do paciente: a entrevista estruturada, o questionário padronizado e o registro diário de medi266 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 camentos (RDM). As principais vantagens desse método são o baixo custo e a flexibilidade do desenho. Os dados são facilmente coletados e podem ajudar a determinar por que os pacientes são não-adeptos. As entrevistas estruturadas apresentam como principal viés o fato de os indivíduos nem sempre revelarem a verdade. No entanto, a identificação dos não-adeptos é altamente específica e indica onde devem ser feitas intervenções.1,6,8 O questionário padronizado também é uma medida subjetiva, mas, quando verifica comportamentos referentes a recomendações médicas específicas (freqüência de alimentação e uso de medicamentos, por exemplo), podem ser um bom preditor de adesão, melhor até que a entrevista.7 O RDM tem como vantagem a facilidade de preenchimento, sendo acessível inclusive a pacientes de baixa escolaridade; a desvantagem é que o paciente precisa se lembrar de preencher o diário e de forma adequada e prospectivamente. Outra possível limitação desse instrumento é a possibilidade de que ele não somente meça a adesão, mas interfira no comportamento de ingestão de medicamentos.6,9 De modo geral, o auto-relato, independentemente do instrumento utilizado, reflete a adesão apenas em curto período de tempo ou a adesão média, normalmente superestimada. De fato, todas as medidas que dependem da colaboração do paciente estão sujeitas à inacurácia, seja pela informação dada pelo paciente, seja por sua perda de vontade de cooperar.10 Nesse contexto, o objetivo principal deste estudo é avaliar o uso do RDM como instrumento de medida de adesão à terapia anti-retroviral em indivíduos em início de tratamento, visto que se trata de um instrumento de fácil acesso e pode contribuir para a melhoria da adesão a tratamentos prescritos. MATERIAL E MÉTODOS O presente trabalho integra o projeto de pesquisa ATAR (Adesão ao Tratamento Anti-retroviral)11 desenvolvido pelo Grupo de Pesquisas em Epidemiologia e Avaliação em Saúde (GPEAS) da Universidade Federal de Minas Gerais. O estudo tem delineamento prospectivo concorrente e foi realizado em dois serviços públicos de saúde de referência para a assistência ambulatorial especializada em HIV/AIDS, em Belo Horizonte. Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? Foram incluídos todos os indivíduos com evidência laboratorial de infecção pelo HIV/AIDS, inscritos nos serviços ambulatoriais para sua primeira prescrição de ARV no período de maio de 2001 a maio de 2002, com idade igual ou superior a 18 anos e gestantes a partir de 16 anos, que compareceram a pelo menos uma entrevista de acompanhamento. Foram excluídos os indivíduos em abandono de tratamento que retomaram a terapia e aqueles sem autonomia mínima para decidir sobre o tratamento, desacompanhados de um responsável. O projeto foi submetido e aprovado pelos dois serviços de saúde e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG. Os participantes assinaram termo de consentimento informado e esclarecido e o princípio de confidencialidade foi mantido. A coleta dos dados foi feita por meio de instrumentos testados e validados e após a capacitação dos entrevistadores. Os pacientes foram entrevistados logo após a primeira dispensação dos medicamentos ARV (entrevista basal), para coleta de dados socioeconômicos e demográficos, vulnerabilidade ao HIV/AIDS e utilização dos serviços de saúde. Na ocasião, os participantes foram esclarecidos sobre o modo de preenchimento do RDM e orientados a preenchê-lo duas semanas após a entrevista basal. A primeira entrevista de acompanhamento ocorreu aproximadamente um mês após a entrevista basal, quando o RDM foi devolvido pelos pacientes e realizada a outra medida da adesão pelo auto-relato do paciente, por meio do questionamento sobre o uso dos antiretrovirais nos três dias anteriores à entrevista. O RDM é um formulário desenhado para obter informações sobre o uso dos ARVs durante uma semana. Nele é registrada detalhadamente a forma como o paciente utilizou os medicamentos: o horário da tomada, o número de comprimidos e a alimentação concomitante. Foi elaborado para atender principalmente àqueles indivíduos de baixa escolaridade ou que não soubessem ler e escrever. Para facilitar o preenchimento, foram utilizados símbolos para o horário (relógio de ponteiros) e alimentação (sanduíche). O paciente também recebeu adesivos com fotografias coloridas dos medicamentos por ele utilizados, visando a orientar melhor os registros das tomadas. O RDM era apresentado ao final da entrevista basal. O entrevistador exemplificava a forma correta de preenchimento. Após a explicação, era pedido ao paciente que preenchesse o RDM, como havia sido orientado pelo entrevistador. Caso ele não acertasse, repetia-se a orientação e, uma vez mais, solicitava-se o preenchimento do formulário. Finalmente, acertando ou não, o paciente era convidado a levar um RDM para casa, preenchê-lo duas semanas após a entrevista basal e devolvê-lo na primeira entrevista de acompanhamento, agendada para daí a um mês. A avaliação do instrumento baseou-se nos seguintes critérios: em primeiro lugar, foi observada sua capacidade de ser compreendido pelo paciente; em seguida, verificou-se sua aceitação por parte dos usuários, por meio de uma análise de resposta; e, por último, analisou-se a qualidade do preenchimento, em uma análise de adequação. A análise dos dados foi dividida em três partes: 1) Análise da compreensão do preenchimento - foi avaliada no momento da explicação inicial dada pelo entrevistador. A compreensão foi considerada total quando o paciente soube reproduzir o explicado pelo entrevistador após a primeira explicação; parcial, quando foi necessária uma segunda explicação. 2) Análise da resposta - foi definida como o ato do paciente preencher e trazer o RDM para a entrevista de acompanhamento. Para a análise, comparouse o grupo dos que preencheram o formulário e o entregaram com os que não o devolveram, com o objetivo de avaliar se as perdas foram diferenciais, ou seja, verificar a existência de tendências na não-resposta. Foi utilizado o teste do qui-quadrado de Pearson com nível de significância de 0,05. 3) Análise da adequação do preenchimento - a adequação foi definida com o preenchimento realizado da forma como explicada pelo entrevistador. Foi considerado inadequado qualquer preenchimento feito de forma diferente. Para cada RDM foram contabilizados os números de preenchimentos inadequados pela distribuição de freqüência simples. Para a realização da análise do preenchimento, calculou-se a proporção de inadequados, dividindo-se o número de preenchimentos inadequados pelo número de registros efetivos em cada RDM e multiplicandose o resultado por 100. As análises univariada e multivariada foram desenvolvidas adotando-se, para a variável resposta, um ponto de corte no terceiro quartil da distribuição das proporções de preenchimentos inadequados. O nível de significância empregado foi 0,05, estimado pelo qui-quadrado de Pearson. Para a medida de associação foi utilizado o risco relativo. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 267 Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? O efeito independente de variáveis selecionadas sobre o preenchimento inadequado foi avaliado por meio de análise de regressão logística. Variáveis associadas ao preenchimento inadequado em nível de significância de 0,20 na análise univariada foram incluídas no modelo inicial , bem como aquelas consideradas de relevância epidemiológica. Foi utilizado o método de deleção de variáveis até a obtenção do modelo final. RESULTADOS A entrevista basal do projeto ATAR foi respondida por 406 indivíduos. Destes, 391 (96,3%) fizeram o treinamento do preenchimento do RDM e 362 (89,2%) retornaram para a primeira entrevista de acompanhamento. Dos que retornaram, 260 (71,8%) entregaram o RDM e, dentre estes, 251 (96,5%) permitiram a leitura do que haviam preenchido. Dos 406 participantes do projeto ATAR, 15 (3,7%) não fizeram o treinamento do preenchimento do registro diário. O principal motivo para o não-treinamento foi falta de tempo ou recusa. Análise da compreensão do preenchimento O treinamento foi realizado com 391 pacientes. Destes, 377 (96,5%) foram capazes de reproduzir a explicação dada pelo entrevistador na primeira tentativa. Para esses a compreensão do preenchimento do RDM foi considerada total. Para 14 (3,5%) pacientes foi necessário repetir a explicação. Após a segunda demonstração da forma correta de preenchimento, eles puderam realizar a tarefa proposta e sua compreensão foi tida como parcial. Todos foram capazes de preencher o RDM. Características sociodemográficas A análise descritiva das características sociodemográficas dos 362 pacientes que retornaram para a entrevista de acompanhamento indicou que a mediana de idade dos entrevistados foi de 33 anos e 54,1% estavam na faixa etária de até 35 anos. Aproximadamente 55% eram homens e em torno 268 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 de 66% dos indivíduos tinham escolaridade baixa e eram solteiros, separados ou viúvos (61,0%). Dos participantes, 199 (54,7%) declararam ter tido renda individual no mês anterior à entrevista basal e 293 (81,6%) tinham alguma renda familiar. Em relação à percepção e vulnerabilidade ao HIV e AIDS, a maioria dos entrevistados (68,2%) relatou a indicação de profissional de saúde como o motivo para a realização do exame de HIV. A grande maioria (83,1%) falou com alguém próximo (parente, amigo e/ou parceiro) sobre a soropositividade para o HIV; 80,1% informaram morar com alguém. Análise da resposta ao instrumento A análise da resposta ao instrumento foi feita com os 362 pacientes que retornaram para a entrevista de acompanhamento. Destes, 102 (28,2%) não trouxeram o RDM preenchido. A comparação entre o grupo respondente e aquele não-respondente mostrou que os grupos diferem em relação a algumas características. Observa-se que morar com alguém que usa ARV (p=0,004), usar outro serviço de saúde (p= 0,030), ficar pelo menos um dia sem usar ARV (p=0,001) e trocar de esquema ARV (p=0,001) estão associados de forma estatisticamente significativa a não entregar o RDM. Apesar da diferença não ser estatisticamente significativa, verifica-se maior proporção de não-respondentes entre indivíduos residentes em Belo Horizonte (p= 0,090) e que deixam de tomar alguma dose de ARV (p=0,063). Os dados encontram-se na Tabela 1. Análise da adequação do preenchimento A distribuição de freqüência simples mostrou que 74 (28,5%) RDMs apresentavam pelo menos um preenchimento inadequado. Na distribuição das proporções de preenchimentos inadequados foi possível observar que 75% dos RDMs tinham menos que 5% de preenchimentos assim classificados. Adotou-se, então, o terceiro quartil desta distribuição como ponto de corte para a análise da associação entre preenchimento inadequado e variáveis selecionadas. A análise univariada Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? mostrou maior proporção de preenchimentos inadequados entre as mulheres, entre os nãobrancos, os de baixa escolaridade, os que não tinham renda familiar, os que moravam sozinhos, os que não tinham plano de saúde e entre os indivíduos que utilizaram esquema terapêutico com três ou mais ARVs. Entretanto, apenas a baixa compreensão das orientações médicas segundo a percepção do paciente (RR: 1,21; IC 95%:1,01-1,45) esteve associada de forma estatisticamente significativa ao preenchimento inadequado do RDM. A análise multivariada mostrou que ser do sexo feminino (RR: 2,31; IC 95%: 1,21-4,40) e morar sozinho (RR: 2,42; IC 95%:1,10-5,34) estavam associados independentemente ao preenchimento inadequado do RDM. Ter baixa compreensão das orientações médicas (RR: 1,83; IC 95%:0,96-3,48) mostrou associação limítrofe, mas permaneceu no modelo final. Os dados encontram-se na Tabela 2. Tabela 2 - Análise de regressão logística para preenchimento inadequado do RDM Variável RR (IC 95%) p-valor Sexo feminino 2,31 (1,21 - 4,40) 0,011* Morar sozinho 2,42 (1,10 - 5,34) 0,028* Baixa compreensão das orientações médicas 1,83 (0,96 - 3,48) 0,065 * p<0,05 DISCUSSÃO A avaliação de um instrumento de medida é um desafio, uma vez que se buscam respostas que podem ser fundamentais para o desenvolvimento de outros estudos e, mais que isso, podem justificar ou não a sua utilização pelos serviços de saúde. Tabela 1 - Análise da resposta ao RDM de acordo com variáveis selecionadas em indivíduos HIV em uso de ARV na primeira entrevista de acompanhamento, Belo Horizonte, 2001-2003 Característica Entregaram RDM (%) Não entregaram RDM (%) Qui-quadrado p-valor Escolaridade > 8 anos ≤ 8 anos 94 (36,4) 164 (63,6) 30 (29,4) 72 (70,6) 1,60 0,206 Estado civil Casado / união Solteiro/separado 97 (37,3) 163 (62,7) 44 (43,1) 58 (56,9) 1,05 0,306 Residência Belo Horizonte Interior 210 (80,8) 50 (19,2) 90 (88,2) 12 (11,8) 2,88 0,090 Teve renda no último mês Sim Não 142 (54,6) 118 (45,4) 54 (52,9) 48 (47,1) 0,08 0,774 Mora com alguém que usa ARV Sim Não 32 (12,3) 228 (87,7) 25 (24,5) 77 (75,5) 8,22 0,004* Usa outro serviço de saúde Sim Não 46 (18,3) 206 (81,7) 28 (28,9) 69 (71,1) 4,72 0,030* Ficou pelo menos 1 dia sem usar ARV Não Sim 217 (83,5) 43 (16,5) 61 (59,8) 41 (40,2) 23,00 0,001* Deixou de tomar alguma dose Não Sim 222 (85,4) 38 (14,6) 78 (77,2) 23 (22,8) 3,48 0,063 *p< 0,05. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 269 Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? Treinamento e compreensão do preenchimento No estudo do RDM foi possível observar, na entrevista basal, que somente 15 participantes (3,7%) não fizeram o treinamento por falta de tempo ou por se recusarem a expor seu tratamento às pessoas do convívio pessoal. De fato, o estigma e a discriminação existentes constituem uma barreira aos portadores do HIV/AIDS e é compreensível que alguns indivíduos prefiram manter sua condição em sigilo. De acordo com a UNAIDS11, o estigma e a discriminação enfraquecem ações de prevenção e bloqueiam os esforços para o controle da epidemia, criando um clima ideal para favorecer seu crescimento. Juntos, eles constituem uma das maiores barreiras para a prevenção de infecções, promoção de cuidado, suporte e tratamento adequados, bem como redução do impacto da doença, pois fazem com que as pessoas sintam medo de verificar se estão infectadas e desencoraja a adoção de medidas preventivas, que podem ser interpretadas como uma confissão de que elas estão infectadas pelo HIV. No momento do treinamento todos os pacientes foram capazes de reproduzir a explicação do entrevistador sobre a forma de preenchimento do RDM e para apenas 3,5% foi necessário repetir a instrução. Tal fato confirma a capacidade do RDM de atender indivíduos de baixa escolaridade ou analfabetos, visto que a maior parte da população tinha oito anos ou menos de escolaridade formal. Observou-se que o RDM ajuda o paciente a compreender melhor a forma de utilização dos ARVs. Nos dois serviços estudados, antes que seja feita a primeira dispensação de ARV, os pacientes são orientados por um farmacêutico sobre a forma correta de uso dos medicamentos e outros aspectos importantes do tratamento. Dessa forma, o formulário pode ser usado como um tipo de intervenção, no sentido de promover a adesão do paciente ao tratamento. Além A revista disso, de acordo com Wagner & Ghosh-Dastidar 9, a exige o &? utilização de um diário pode promover a adesão por aumentar a percepção do paciente sobre seu tratamento. É como um sistema de retro-alimentação: o paciente se lembra do formulário e conseqüentemente dos medicamentos e, do mesmo modo, se lembra dos medicamentos e, por isso, do RDM. Weidle et al.12 encontraram que uma das principais causas de falhas de doses entre 173 pacientes estudados foi o esquecimento, demonstrando que os pacientes precisam de ajuda para se lembrarem dos medicamen270 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 tos e o RDM pode ser usado neste sentido. Straka et al.13 estudaram a adesão ao tratamento em pacientes com doença cardíaca e observaram que aqueles que completavam o registro diário tinham aumento significativo na adesão, de 46 para 55%. Resposta Dentre os 362 pacientes que retornaram para a entrevista de acompanhamento, observou-se taxa de não-resposta de 28,2%. A análise das perdas mostrou que o grupo que retornou e trouxe o RDM apresentou algumas características diferentes daquelas verificadas no grupo que retornou e não trouxe o RDM, inclusive em variáveis que podem indicar a adesão ao tratamento (p.ex. ficar pelo menos um dia sem usar os medicamentos). A alta taxa de perda e a perda diferencial são vieses importantes em estudos epidemiológicos e devem ser considerados especialmente ao se utilizar o instrumento, em pesquisa ou na rotina do serviço, como forma de medida. Adequação de preenchimento O RDM apresenta muitas vantagens como um instrumento de medida de adesão, entre elas o baixo custo e a facilidade de assimilação por parte dos respondentes, no entanto, é necessário que o paciente preencha o formulário e este é um problema de difícil resolução. Sua utilização deve levar em consideração aspectos relacionados ao tratamento e ao estilo de vida dos pacientes. É de grande importância o papel do serviço e sua influência sobre o comportamento dos indivíduos, devendo haver abordagem diferenciada, além da conscientização, multiprofissional se possível, sobre o uso do RDM e seu potencial impacto na saúde do sujeito em tratamento. Sugere-se monitorização do preenchimento, que pode evitar perdas e otimizar o uso do RDM. Dois fatores que podem ter dificultado a aceitabilidade do instrumento pelos pacientes são seu tamanho e visibilidade, que facilitam a identificação dos indivíduos como portadores do HIV. Sugere-se então que, para ser utilizado pelo serviço de saúde, o RDM passe por modificações que o tornem mais discreto e de mais fácil manuseio pelo paciente. Pode ser feita redução do tamanho ou torná-lo em forma que permita dobras. Registro diário de medicamentos: adequado para medir adesão em estudos epidemiológicos? A análise da adequação do preenchimento confirmou, mais uma vez, a capacidade do instrumento em atender a indivíduos de baixa escolaridade. Dos RDMs entregues na entrevista de acompanhamento, 28,5% apresentavam algum tipo de inadequação do preenchimento, no entanto, apenas nove (3,5%) não permitiam leitura do que foi preenchido. Considerando que a maior parte dos indivíduos infectados pelo HIV tem baixa escolaridade, a utilização de um mecanismo de fácil manuseio e entendimento pode prover resultados de maior acurácia. Neste trabalho o não-preenchimento do registro foi considerado não-utilização dos medicamentos, mas é preciso cautela na avaliação do que foi preenchido pelo paciente no RDM, principalmente quando este apresenta espaços em branco. Uma solução mais adequada seria acrescentar à estrutura do RDM um espaço específico para que o paciente pudesse deixar claro quando o medicamento não foi utilizado. CONCLUSÃO O estudo do RDM mostrou bons resultados no que diz respeito ao entendimento dos pacientes quanto à forma de utilização. A barreira da escolaridade foi vencida e não foram observadas dificuldades no que diz respeito ao preenchimento. O maior problema ocorreu com a resposta dos indivíduos ao instrumento. A perda de 28,2% dos respondentes e o fato dessa perda ter ocorrido de forma diferencial entre eles são aspectos complicadores para a utilização do instrumento, na forma proposta. Os resultados indicam a necessidade de modificações em sua estrutura para melhor adaptá-lo como instrumento de medida de adesão em estudos epidemiológicos Acredita-se, entretanto, que com as alterações sugeridas e o adequado monitoramento dos pacientes, esta limitação pode ser contornada, tornando o formulário apto a ser utilizado na rotina do serviço ou em pesquisa. O que se percebeu foi que o RDM pode ser utilizado como uma ferramenta para auxiliar profissionais de saúde a prestarem informações ao paciente sobre o uso correto de medicamentos e, conseqüentemente, como uma estratégia de promoção da adesão ao tratamento anti-retroviral. REFERÊNCIAS 1. Hacker MA, Petersen MI, Enriquez M, Bastos FI. 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Straka RJ, Fish JT, Benson SR, Suth JT. Patient self-reporting of compliance does not correspond with electronic monitoring: An evaluation using isosoride dinitrate as a model drug. Pharmacoterapy. 1997; 17: 126-32. 15. Miller LG, Liu H, Golin CE,Ye Z, Beck K, Kaplan AH, et al. Knowledge of antiretroviral regimen dosing and adherence: a longitudinal study. Clin Infec Dis. 2003; 36: 514-7. 16. Brasil. Ministério da Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Secretaria de Vigilância em Saúde. 01ª à 34ª semanas epidemiológicas. Bol Epidemiol. AIDS; 2004 jan./jun.; 28(1) [Acesso em 06 jun. 2005]. Disponível em: www.aids.gov.br . Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S265-S271 271 ARTIGO ORIGINAL A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime Falta título em inglês Falta título em inglês Falta título em inglês Maria Helena Rocha1; José Eustáquio Machado de Paiva 2; Maria de Lourdes Dolabela Luciano Pereira3 RESUMO 1 Doutoranda da UFMG/FAFICH/Sociologia 2 Doutor/UFMG/ARQ/TAU 3 Pós-Doutora/UFMG/FAFICH/Sociologia Belo Horizonte tem experimentado um intenso processo de urbanização e acentuado crescimento populacional nas últimas décadas, seguidos de crescimento econômico e avanços tecnológicos. Disto advém profundo impacto sobre o espaço físico da cidade, segmentando-a, dividindo-a em múltiplos territórios marcados pela disputa de espaços e por crescente onda de violência. Por sua vez, a morfologia da cidade denuncia um crescimento irregular, entremeado ora por uma ocupação planejada, ora por ocupação desorganizada assentada em área de risco, com sua forma singular que, como um selo, destaca-se por toda a cidade. Isto propicia indagar sobre o que há de comum entre essa dinâmica espacial e a disputa territorial, no trato da violência e da criminalidade. É interessante, nesse sentido, fazer uma aproximação entre a morfologia urbana e as teorias ecológicas da desorganização social com o crime de homicídio consumado. Para tanto, este trabalho propõe, por meio de revisão bibliográfica, identificar a priori quais são esses aspectos e fatores ligados à forma urbana relacionados com essa criminalidade violenta exponencial. Não Palavras-chave: Violência. Crime. Morfologia. Urbanização. Cidades grandes. Belo Horizonte. ABSTRACT são máximo de 5 palavraschave? Belo Horizonte has been going through an intense process of urbanization and a marked population growth in the last decades, followed by economic growth and technological advancements. These changes generate a deep impact on the physical space of the city, which segments it into multiple territories characterized by disputes of space and an increasing violence wave. In its turn, the morphology of the city shows an irregular growth, intermingled sometimes by a planed occupation and other times by a disordered occupation settled in risky areas, with a unique form which, like a seal, outstands throughout the city. This line of thought leads us to ask what is common among such space dynamics and the territorial dispute, when it comes to violence and criminality. It is interesting, in this sense, to approach the relationship of urban morphology and the ecological theories of social disorganization to accomplished homicide. For such, this work intends to identify, a priori, and by means of a bibliographic review, which are such aspects and factors connected to the urban form that are related to the exponential violent criminality. Key words: Violence. Crime. Morphology. Urbanization. Large cities. Belo Horizonte. INTRODUÇÃO Endereço para correspondência Praça Cairo, 34, ap. 301; B. Santo Antonio. CEP.: 30.330.280 E-mail: [email protected] 272 A violência vem se pronunciando cada vez mais como um fenômeno mundial, trazendo à tona diferentes teorizações e ênfase na abordagem multidisciplinar, Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime envolvendo diversos campos do saber empenhados em deslindar novas formas de gerir esse fenômeno. Se, inicialmente, a violência foi atribuída aos saltos abruptos do progresso, hoje sua expansão se dá indiscriminadamente, sendo que, no Brasil, essa fase é marcada nos finais dos anos 80, coincidindo com a globalização e com a comunicação virtual e seus desdobramentos. Assiste-se, na atualidade, ao emergir de um acentuado sentimento de medo e de insegurança coletiva, ao mesmo tempo em que as políticas públicas e a justiça tradicional “[...] se mostram incapazes de garantir a ordem por um lado e promover os direitos fundamentais da pessoa humana, por outro”1, numa situação em que se constata, sobretudo, o aumento do fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de impor a lei e a ordem. Por sua vez, a sociedade como um todo vem se submetendo ao exercício cotidiano da violência, sob forte pressão psicológica em face dos fatos que assolam traumaticamente alguns locais e pessoas e cuja notícia é “[...] disseminada e dramatizada pelos meios de comunicação em escala global”2. A associação entre o urbano e a criminalidade violenta tem sido objeto de estudo desde o início do século XX, nos Estados Unidos, com a abordagem ecológica caracterizada pela Escola de Chicago, inicialmente representada por Park9, Shaw e McKay11, Bursik3, e, mais tarde, Sampson e Groves10, entre outros. Eles constituíram um marco ao conformar o campo da sociologia urbana por meio de esforço sistemático de consolidar como objeto de análise a construção do espaço urbano diante da apropriação feita pelos migrantes. Isto também se verifica nas metrópoles brasileiras, fortemente marcadas pela intensa migração que mudou radicalmente seu perfil nas últimas cinco décadas e que ainda continua a exercer forte influência na configuração urbana e no conjunto das relações sociais, econômicas e políticas. Na estruturação da forma urbana podem ser distinguidos três aspectos fundamentais, “[...] representados pelas categorias formais distintas do Urbanismo, do tecido urbano e do uso do solo”3. Eles se encontram vinculados entre si numa relação espacial hierarquizada, de modo a constituir determinadas unidades, cujos padrões e ocupação relacionam-se ao uso do solo e à dinâmica social. Dessa forma, quatro elementos complexos ganham destaque: o lugar, o sistema viário, o padrão de parcelamento dos lotes e a implantação das edificações nos lotes, traduzindo-se na ocupação e no uso dos impulsos advindos de cada período da vida dos seus habitantes. As múltiplas edificações refletem como a política de urbanização e seus vetores se instalam, bem como a prosperidade marca a cena urbana pela sua localização, sua grandiosidade e significação na silhueta da cidade.3 Por outro lado, as teorias ecológicas do crime4 têm permitido ampliar a compreensão do espaço urbano, substituindo o enfoque individual das teorias tradicionais e conquistando mais espaço nos estudos em criminologia. Com base na Teoria da des(Organização), buscou-se entender por que em algumas áreas da cidade persistiam altos índices de criminalidade, explicando a persistência do crime numa área como uma função da falta de organização social da localidade. A presença, portanto, dessas características de “(des)organização” tornam essa comunidade mais vulnerável e incapaz de proteger-se contra a criminalidade.5, 6 Também a Teoria das Janelas Quebradas propõe-se a explicar a criminalidade, mapeando as áreas onde ela ocorre com mais incidência por meio da correlação entre delitos menores e crimes mais sérios, tendo como conseqüência a decadência e a queda da qualidade de vida de seus moradores. Seu pressuposto básico é que desordem e crime estão “inextricavelmente ligados”7. Kelling e Coles6 concluem que a demanda por ordem permeia todas as classes sociais e grupos étnicos, ressaltando que o problema não é a condição das pessoas, mas sim o seu comportamento ou conduta. A isto se soma a importância das características físicas de um local como um provável e forte fator para se explicar a criminalidade. Tendo em vista essa dinâmica, o presente estudo busca relacionar as características morfológicas da cidade e o local de ocorrência da violência e do crime, buscando aprofundar um pouco mais o conhecimento sobre essa relação. A metodologia desse estudo é composta da abordagem teórica agregada à referência empírica do cotidiano urbano de dois contextos morfologicamente distintos do município de Belo Horizonte, representados pelo bairro Caiçara, situado na zona noroeste da capital, e pelo Aglomerado Urbano Pedreira Prado Lopes (PPL), localizado na proximidade da região central da cidade e também situado na zona noRev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 273 A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime roeste. Os dados relativos à criminalidade foram obtidos junto ao Centro de Estudos de Crimi- nalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP/UFMG)8, uso, observam-se, além das residências, comércio e serviços amplos variados12, tanto de atendimento local quanto de alcance metropolitano. referentes ao período de 2000 a 2005, utilizando-se os recortes da subclasse de homicídio consumado especificado por ano, local, tipo de crime e logradouro. Foram também analisados os dados obtidos do 34o Batalhão da PMMG (Polícia Militar do Estado de Minas Gerais), gerados pela experiência desse contingente em ambos os espaços, seguidos da análise da morfologia urbana apoiada naqueles aspectos apontados por Conzen3, considerados em termos da dinâmica da forma da cidade.9 Dois espaços, duas realidades: Caiçara e Pedreira Padre Lopes O bairro Caiçara encontra-se quase todo compreendido entre dois eixos arteriais de importância metropolitana. Constitui um bairro residencial de classe média (renda média superior a cinco salários mínimos), implantado na primeira metade do século passado, com arruamento ortogonal, lotes padronizados, áreas de lazer, infra-estrutura e serviços urbanos adequados (Figuras 1 e 2). Situa-se em uma encosta de pouca declividade e a malha urbana foi implantada sem grandes movimentações de terra na sua maior parte.3 Sua expansão foi motivada pela criação de um eixo de comunicação abrangendo as áreas residenciais, os equipamentos esportivos (estádio de futebol e ginásio de esportes), sedes de grandes corporações e órgãos governamentais da região da Pampulha (noroeste), o principal campus da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais.), além de um grande shopping center e de um cemitério municipal, com o centro comercial da cidade. O uso das quadras e lotes admite construções residenciais uni e multifamiliares, estas especialmente compostas por edifícios verticais, como também uso misto, incluindo comércio e serviços, principalmente na proximidade dos corredores de trânsito, o que se consolida a partir de 1985 compondo as tipologias edilícias de sua edificação. Há predomínio de ruas calçadas e de algumas poucas asfaltadas.9 A ocupação encontra-se consolidada, possuindo contingente populacional em 2000 de 37.146, segundo o IBGE10, em uma área de 4,27 km2. Em relação ao 274 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 Figura 1: Bairro Caiçara: estrutura viária Fonte: PRODABEL/FJP – Atlas de Desenvolvimento Humano/RMBH/200611 Figura 2: Bairro Caiçara: morfologia Fonte: PRODABEL/FJP – Atlas de Desenvolvimento Humano/RMBH/200611 Quanto às tipologias edilícias9, o bairro conta com uma mistura de edificações, conforme a época e o uso, destacando-se as residências unifamiliares correspondentes às primeiras décadas de ocupação; os edifícios verticais, constituindo áreas mais adensadas de uso residencial, mais para o interior do bairro; e as edificações de uso comercial, principalmente ao longo do eixo viário da Av. Presidente Carlos Luz. Essa modificação da volumetria do bairro reflete a transição de uso e A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime valor do solo urbano e se relaciona à perda da qualidade urbana devido ao aumento da população emigrada e da densidade construtiva e ao aumento do tráfego, do ruído e da poluição urbana.3, 9 Já a Pedreira Prado Lopes (PPL) remonta à fundação da capital, contando hoje com mais de um século, sendo remanescente de uma área de acampamento com finalidade de dormitório, fruto da exploração da pedreira que lhe dá o nome. Aos poucos foram surgindo barracos em decorrência de processo migratório, sem, contudo, constituir laços de comunidade coesa, herança essa que ainda vigora na atualidade.12 Caracteriza-se por periferia com diferentes níveis de pobreza, fruto do apossamento das encostas ou de áreas sem atrativos para a especulação imobiliária, passando, ao longo do tempo, com a expansão da cidade junto aos seus limites, a ser fortemente marcada pela presença da prostituição e da violência. Constitui um local cercado completamente por bairros de classe média e próximo do principal eixo metropolitano de ligação norte, Av. Presidente Antônio Carlos que, nas suas proximidades, agrega um comércio forte e variado, serviços e equipamentos, como o Hospital Odilon Behrens e Delegacia de Furtos e Roubos. Nas últimas décadas do século XX, estabeleceu-se aí um pólo de tráfico e distribuição de drogas, relacionado ao aumento da violência e do crime.12 Situado próximo ao hipercentro, ocupa uma área elevada, íngreme, cuja declividade chega a ser superior a 45º em alguns trechos.11 Em 2004 abrigava cerca de 12.000 habitantes em uma área de 142 mil m2, congregando aproximadamente 58% de jovens até 25 anos.12 Sua ocupação e usos não se encontram regulados pela legislação municipal, sendo a área considerada fora dos padrões aceitáveis de assentamento, devido às características da estrutura urbana e das moradias, além da topografia inadequada, com encostas abruptas, boqueirões, voçorocas e cavas resultantes da exploração da antiga pedreira, que deu o nome ao lugar.3 Seu sistema viário é praticamente inexistente, com exceção da R. Pedro Lessa, traçada nos anos de 1950 com a finalidade de conexão com a área hospitalar e escolar, como o verificado nas Figuras 3 e 4. A ocupação se faz de forma completamente diferenciada da malha ortogonal dos bairros do entorno.3 Apresenta grande densidade construtiva, predominantemente residencial, ocupando terrenos exíguos, irregulares, cujos acessos se dão por um emaranhado de ruelas e becos que se alargam e estreitam numa lógica própria, estabelecida pela irregularidade da ocupação de barracos e casas sem planejamento prévio, construído, no mais das vezes, de forma precária e com grande diversidade de materiais13. Dessa forma, somente os moradores detêm e administram a mobilidade na área, restringindo o acesso e as incursões da polícia. Os becos são quase todos cimentados, mas apresentam conservação precária, com muitos buracos e com esgoto correndo por eles, muitas vezes a céu aberto.9 Figura 3: Pedreira Prado Lopes: estrutura viária Fonte: PRODABEL/FJP - Atlas de Desenvolvimento Humano/RMBH/200611 Figura 4: Pedreira Prado Lopes: morfologia Fonte: PRODABEL/FJP - Atlas de Desenvolvimento Humano/RMBH/200611 O sistema de drenagem convencional é precário ou inexistente e a sujeira e o lixo amontoamse precariamente em algumas áreas. Há moradias em áreas de risco, precariedade do sistema viário Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 275 A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime Refletindo os dados Com apoio nos dados e na literatura utilizada, pode-se inferir que em lugares onde predominam a desordem, a desarmonia, a tensão e a luta, acontece também a convergência maior para algum tipo de incivilidade.14 Pode-se compreender que o tecido urbano das grandes cidades se estrutura e define as relações de força política entre os diversos grupos sociais que aí se afirmam. A teoria da (des)Organização postula que a existência de certas características sociais nos espaços das vilas e bairros contribui para a permanência de altas taxas de criminalidade13. Entre essas características são significativas as heterogeneidades étnicas, o grau de imigração nesses espaços, as redes sociais dos moradores e a eficácia coletiva da comunidade, como foi demonstrado por Shaw e Mckay5; Bursik15; Sampson e Groves16, entre outros. Percebe-se, ainda, que as mudanças da cidade contemporânea estão relacionadas com o confinamento dos terrenos de sociabilidade, com a redefinição dos modelos de lugares, quer públicos, quer privados, e com o acirramento da violência correspondendo à mobilidade e ao estreitamento de usos do espaço de circulação e provocando alteração dos hábitos.17 Assim, cada vez mais essas mudanças são quantificáveis e se distinguem e se diferenciam pelo volume de transporte privado, pela moradia, pela circulação em lugares seguros, buscando proteger a população dos que podem menos. São visíveis as diferenças - tanto da perspectiva da morfologia já discutida quanto das formas de organização, da celeridade migratória e da fraca coesão social - entre os moradores do Caiçara e da PPL. A presença dessas características de “(des)organização” torna a última comunidade mais vulnerável e incapaz de proteger-se contra a criminalidade. Isto se faz notório quando se comparam os dados obtidos de homicídio consumado entre o Caiçara e a PPL (Gráfico 1 e Tabela 1). Registros de Homicídios por Bairro (2000 a 2005) 20 N. de Registros e acentuado adensamento e verticalização das casas13. As construções são, em geral, mal acabadas e apresentam quase sempre conservação precária, com tipologias que variam de um a três pavimentos, resultantes de acréscimos constantes para abrigar novas famílias e demandas de espaço, apresentando-se muitas vezes sem revestimento externo ou mesmo sem acabamento interno, apesar de que, muitas também acabam, ao longo do tempo, a apresentar condições melhores de habitabilidade. Quando cercadas por muros, estes se encontram muitas vezes pichados e também descamados. O comércio é restrito, constituído predominantemente por pequenos bares, vendas, salões de beleza ou lojas de produtos diversos. Possui ainda duas escolas estaduais e uma municipal, um posto de saúde e pequenos templos, com predomínio das igrejas evangélicas.9 15 10 5 0 2000 2003 2002 2001 2005 2004 Ano Prado Lopes Caiçara Gráfico 1: Dados de homicídio consumado – 2.000 a 2.005 Fonte: Tabela 1 – CRISP/UFMG Tabela 1 – Registros de Homicídios por Tipo de Logradouro/ Bairro/ Ano Bairro Tipo de Logradouro Caiçara Prado Lopes 276 Ano Total 2000 2001 2002 2003 2004 2005 AV (57,14%) 0 0 2 1 1 0 4 RUA (42,86 %) 2 0 0 1 0 0 3 TOTAL 2 0 2 2 1 0 7 AV (10.81%) 0 0 1 1 2 0 4 BECO (24,32 %) 1 2 1 0 2 3 9 RUA (64,86%) 5 0 2 1 13 3 24 TOTAL 6 2 4 2 17 6 37 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime Beato18 acusa que o risco de ser vítima de homicídio é significativamente superior entre aqueles que habitam áreas, regiões ou bairros com deficiências sociais e de precária infra-estrutura urbana. Percebe-se, portanto, que a desigualdade socioeconômica define não só a especialização do crime, como também a camada mais protegida do “mote” da violência classificada como homicídios dolosos19. Essa concentração de desvantagens estruturais e socioeconômicas “contribuiu para que uma comunidade da PPL demorasse várias décadas para organizar suas primeiras entidades representativas e, conseqüentemente, para começar a formalizar suas reivindicações de maneira mais sistemática”12. Neste sentido, ao se comparar o número de homicídios consumados em relação ao período de 2000 a 2005 no bairro Caiçara, obtém-se certa regularidade nos anos 2000, 2002 e 2003 e declínio em 2004, até atingir, em 2005, com a ausência de homicídios, a exemplo de 2001, o que parece indicar uma resposta favorável a certas iniciativas, em particular “a integração entre moradores e Polícia Militar”, segundo os dados do 34º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais.20 Diferentemente, a PPL, no mesmo período, apresenta curva ondular, atingindo em 2004 o pico, em termos de homicídios consumados, e significativo decréscimo em 2005, chegando a número similar ao verificado no ano de 2000. Embora as curvas de homicídios da PPL e do Caiçara se tangenciem em 2003, elas possuem significados diferentes, uma vez que, se para a PPL significa declínio, para o Caiçara significa elevação, comparado ao seu perfil de criminalidade. Segundo Shaw e Mckay5, o ponto central é que certos tipos de crime tornam-se norma cultural dentro de uma zona em transição, concluindo que as causas da criminalidade se devem à desorganização social, à diversidade étnico-cultural e à transmissão cultural da delinqüência. Ao que tudo indica, o pico em 2004 deve-se à seqüência de fatos que têm início em 2003 e se ligam à prisão do traficante Denis Peixoto. Nesse ano a Polícia Civil contabilizou 19 assassinatos12 e nos nove primeiros meses de 2004 o número de pessoas mortas ampliou-se para 50, em meio aos combates que se tornaram quase que diários em face da guerra entre os traficantes pelo domínio do tráfico na PPL.12 Pode-se prever, em função desses dados, que a criminalidade violenta, além de encontrar-se referenciada em determinado recorte espacial, também se encontra especializada em função das oportunidades oferecidas por ele.21 Isto parece afinizar com o já tácito na literatura, uma vez que é nas camadas mais pobres que mais se verifica a ocorrência do grau extremo da violência, o homicídio doloso, notadamente em seus agentes masculinos mais jovens, independentemente de cor.22 Desta forma, o conjunto de desvantagens com que vivem os moradores da PPL torna-os mais vulneráveis e a região mais profícua ao tipo de crime violento. Contudo, a diferença da freqüência de dados de homicídios entre o Caiçara e a PPL sugere ainda as indagações: o que está por trás desse registro acentuado de homicídios na PPL? É a morfologia dos sítios? São questões de ordem estrutural? Ou a forte presença do tráfico na PPL? Um olhar superficial poderia se encaminhar para respostas simplistas, mas a literatura especializada e os dados de pesquisas anteriores, acrescidos dos dados obtidos e analisados na presente pesquisa, possibilitam inferir que cada um desses três aspectos tem o seu peso. Entretanto, não foi possível estabelecer relações de causa e efeito, em função da limitação do tratamento estatístico aplicado. Mas, ao que tudo indica, pode-se, ainda, atribuir pertinências à presença de outros fatores, tal como o adensamento populacional. Enquanto o bairro Caiçara apresenta a área de 427 ha e densidade igual a 87 habitantes por ha em 2000, a PPL possui 14,2 ha e densidade de 634 habitantes por ha. Ao forte adensamento populacional da PPL somam-se a migração ostensiva, a ausência do poder público nos problemas ligados ao uso e ocupação do solo, a precária infra-estrutura e a ausência de serviços urbanos, “o que tem estimulado ações clandestinas na favela pela posse de água, luz, telefone e TV a cabo”20. A permanência inconteste do espraiamento dessas múltiplas realidades, ao lado do assegurar a satisfação do desejo e da posse de bens, sem ter com isso que pagar pelo mesmo, legitima a posse pela posse e a não-responsabilização pelo que se adquire. Desta forma, “(...) consumidores e cidadãos se confundem no imaginário social”23, utilizando-se das marcas representadas pelos objetos-consumo no sentido de se obter um laço de pertencimento no meio social em que vivem. Isto vem propiciando, principalmente nas camadas mais jovens, o aparecimento de comportamentos desviantes.19 Esses aspectos agregados têm prorrogado e mesmo sustentado diferenças que vão se apresentar de alguma forma, culminando quase na ausência de controle por parte da “máquina” do Estado. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 277 A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime Quanto aos logradouros, se no Caiçara o crime elege indistintamente o espaço público ou privado, na PPL ele ocorre preferencialmente no beco e na rua, cabendo ao ambiente desorganizado e com suas instalações e lógica própria construir as armadilhas do crime. Se o homicídio é raro no Caiçara, na PPL mostra assimetria ao longo do ano, sendo sua maior incidência nas ruas Carmo do Rio Claro, Pedro Lessa e Becos do Machado, seguindo-se as avenidas e ruas do entorno e proximidades. O território apresenta, assim, papel marcante nas relações entre grupos distintos, o que é bem demonstrado por Zaluar19 em relação à luta pelos locais de venda de drogas envolvendo traficantes e a polícia, com predomínio pela disputa de poder entre aqueles considerados ”fora da lei” e do próprio poder do Estado19. Isto pode ser observado na PPL, uma vez que moradores e criminosos se misturam e oito “bocas de fumo” se instalam e brigam entre si pelo domínio do território e pelo aumento de vendas. Este “império das drogas” utiliza-se do trabalho infantil e do adolescente, o que tem impacto nas relações sociais12. Repercute, ainda, “na determinação das áreas de acesso para cada grupo de moradores, da área delimitada”20. Isso favorece a quebra do clima de coesão, fragmentando as relações que se tecem sob o fio do medo, da insegurança e da desconfiança15. Esses grupos atuam não só no controle da vida dos cidadãos, mas também, [...] no sentido de reproduzir ações típicas do Estado, como: defesa; pavimentação de vias; oferta de remédios, entre outros, com o objetivo de manter e controlar a fidelidade da população fragmentada por seções de domínio do grupo e agindo em resposta às demandas essenciais desse grupo20. Segundo Skogan14, uma vizinhança menos urbanizada seria aquela área da cidade de indústria e comércio nas quais as relações entre os residentes são menos diretas e mais frágeis. Isso provocaria menos capacidade de controle e supervisão em nível local e geraria ambiente favorável à criminalidade e delinqüência. A população jovem encontra-se, na maioria, desatrelada da educação formal. Há predominância do emprego informal, sendo os mais jovens alvos de tarefas escalonadas e verticalizadas pelo grupo de traficantes local.12 Paralelo a esse trabalho, as crianças encontram-se expostas à cultura desenvolvida nessas comunidades, como à admiração pelo status do mais forte, do mais corajoso ou que 278 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S272-S280 possua invejável currículo de “assassinatos”19. A “adrenalina” é muito alta e a juventude está sintonizada com o clima real de perigo, de espertezas e de regras que têm que desenvolver para permanecer viva. Para Zaluar19, isto vem propiciando, principalmente nas camadas mais jovens, o aparecimento de comportamentos desviantes. No ambiente interno do aglomerado, as relações são enfraquecidas pelo grande contingente migratório, pelo medo e pelo aumento do crime por homicídio12. Com base na Escola de Chicago da sociologia urbana, buscou-se entender a evidência de que, em certas áreas da cidade, a presença e persistência de altos índices de criminalidade são compreendidas como uma função da falta de organização social da localidade.5,15,16 Dessa forma, se uma comunidade perde a capacidade de controlar, informalmente, o comportamento de seus membros, acaba se tornando vulnerável a uma “invasão criminógena”6. Isto encontra suporte na Teoria das Janelas Quebradas, que considera como um processo de decadência um espectro que vai de pequenos atos de vandalismo até o tráfico de drogas ou o acontecimento de crimes com violência contra idosos, mulheres ou crianças.6 Assim, “(...) como resposta ao medo, as pessoas passam a evitarem-se umas às outras, enfraquecendo os controles informais[...]”6. No aglomerado da PPL, a manutenção das atividades de tráfico se deve à sua alta lucratividade e se sustenta ativa, pelo suborno a policiais ou mesmo por driblar o controle por parte desses efetivos, agregado à sustentação de toda uma infra-estrutura de clandestinidade e de sofisticação de estratégias de planejamentos.12 Isto apresenta sintonia com os dados descritos como violência por parte das patentes do Batalhão: A violência na maioria das vezes um fenômeno grupal, fruto do convívio ao longo dos anos da socialização nas ruas e becos, do convívio com pessoas de má índole ou com pessoas desocupadas, alcoólatras, prostitutas, de atividades grupais não supervisionadas, que surgem as primeiras gangues de grupos de delinqüência. A lei é do mais forte contra o mais fraco. Eles vivem pouco.20 Neste sentido, a violência é uma linguagem cuja fala se impõe, surgindo a indústria da violência19, a partir da depuração de ações planejadas, estratégicas, mutantes e de ações consumadas para driblarem o poder do Estado e da comunidade. A morfologia urbana e a desorganização do espaço como condição favorável à exarcebação do crime A aplicação paradigmática da teoria das Janelas Quebradas se efetivou com o modelo de policiamento conhecido pelo nome de tolerância zero, cujos resultados serviram de base para os fundamentos da moderna política criminal americana, implantada em meados da década de 1990.14 Esse modelo tem sido adotado no Brasil em algumas capitais, a partir da segunda metade da década de 1990, em virtude do aumento exponencial do crime. Em Belo Horizonte, mais conhecido como polícia comunitária, tem penetrado pouco a pouco em áreas quase inacessíveis, como o aglomerado da PPL. Já no Caiçara, as condições físicas, sociais e econômicas favorecem as relações de vizinhanças, facultadas pela maior estabilidade de seus moradores, presença de associações e demais organizações educacionais e religiosas, “permitindo o estabelecimento de estratégias conjuntas com os militares”20, no sentido de maior exercício de cidadania e de se defenderem da onda de violência. É verdade que “nem sempre a opinião pública reconhece as organizações policiais como parceiros, o que tende a inviabilizar a utilização de técnicas no combate e na prevenção situacional do crime”24. No entanto, dados mais recentes de 2006 e 2007 e referendados pelos entrevistados20 mostram que estatisticamente o crime tem diminuído na PPL, provavelmente como resultado de intervenções sistemáticas das policias Militar, Civil e de trabalhos sociais afetando crianças e adolescentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados apresentados e discutidos permitem aduzir que características da morfologia urbana, o reticulado cultural construído por seus moradores, como também os elementos de (des)organização do espaço, traduzidos na degradação do ambiente, o forte contingente migratório, a fragmentação dos laços afetivos e da baixa participação em organizações formais e voluntárias apresentam-se como fatores altamente favoráveis ao aparecimento de alguma forma de incivilidade, o que corrobora tanto a Teoria da (des)Organização5 quanto a das Janelas Quebradas7. Entretanto, faz-se necessário mais aprofundamento quanto à relação entre morfologia urbana, desordem social e criminalidade, uma vez que os dados explorados apresentam indícios favoráveis quanto a essa relação. REFERÊNCIAS 1. Adorno AS, Nancy C. Nota de apresentação. Ciên Cult. 2002 jul./set.; 54(1): 20. 2. Tavares Santos JV. Microfísica da violência, uma questão social mundial. Ciên Cult. 2002 jul./set.; 54(1): 22. 3. 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Os pressupostos teóricos que embasam a prática homeopática atendem aos princípios que regem o SUS; e sua implantação em larga escala, como propõe a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares-PNPIC, depende de mais conhecimento, pelos gestores, de suas possibilidades terapêuticas e vantagens econômicas. Métodos: a pesquisa qualitativa na forma de estudo de caso utilizou amostra de profissionais e pacientes envolvidos no atendimento homeopático, cujo tamanho foi considerado satisfatório a partir da saturação e suficiência das informações. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, gravadas, com todos os participantes. A seguir, elas foram transcritas e analisadas segundo enfoque fenomenológico, buscando as representações sociais e os significados que pacientes e profissionais atribuem ao tratamento e à homeopatia. A análise interpretativa levou em consideração dados quantitativos preexistentes da Coordenação do Programa de Práticas Não-alopáticas da Prefeitura de Belo Horizonte e também trabalhos anteriores com outras populações. Resultados: os usuários procuraram esse atendimento espontaneamente a partir da observação de tratamentos bem-sucedidos anteriores ou de pessoas conhecidas. Outras motivações foram o insucesso com a medicina alopática e os efeitos colaterais das drogas. O acesso é limitado, com existência de demanda reprimida, o que pode comprometer a eficiência do tratamento. O acesso gratuito ao medicamento homeopático não tem sido garantido, mas seu custo foi considerado baixo. Os usuários consideram o serviço oferecido equivalente em qualidade ao atendimento privado nessa especialidade médica, recomendando-o aos seus amigos. Conclusões: as percepções e as condutas que esses usuários demonstraram ter sobre a homeopatia, o tratamento e o medicamento mostram que essa prática terapêutica os tem beneficiado. 1 Mestre em Saúde Pública – Área de Concentração: Políticas de Saúde – Faculdade de Medicina – UFMG- Centro Universitário Newton Paiva – Belo Horizonte 2 Doutor em Salut Publica –Universitat Autonoma de Barcelona Faculdade de Medicina – Universidade Federal de Minas Gerais Palavras-chave: Homeopatia. Acesso aos serviços de saúde. Sistema Único de Saúde. Cobertura da serviços públicos de saúde. ABSTRACT Objectives: The goal of this work was to acquaint with the patients seen during the year of 2002 at the homeopathy service at the Santa Terezinha Health Center, which is part of the Public Health System of the Municipality of Belo Horizonte, and to understand how they perceive it and which attitudes they have vis à vis their treatments. The theoretical assumptions that underlie the practice of homeopathy are in accordance with the principles that guide the Public Health System, and its large-scale implementation, as proposed by the National Policy of Complementary and Integrative Practices – PNPIC, depends on a wider knowledge, on the part of health managers, of its therapeutic possibilities and Instituição Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais Endereço para correspondência: Thaís Corrêa de Novaes Rua Madre Mazzarello 91 – Bairro Dom Cabral Belo Horizonte – MG E-mail: [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 281 Homeopatia no SUS em Belo Horizonte – um estudo de caso economic advantages. Methods: We carried out a qualitative assessment in the form of case study, which used a sample of professionals and patients involved in homeopathic assistance, the size of which was considered to be satisfactory because of information saturation and sufficiency. Semi-structured interviews were recorded with all participants. Following that, the interviews were transcribed and analyzed in the light of a phenomenological focus, searching for social representations and meanings that patients and professionals assign to treatment and homeopathy. The interpretational analysis took into account pre-existing quantitative data from the Coordination of the Program of Non-allopathic Practices of the Belo Horizonte City Administration as well as from previous studies in other populations. Results: Public Health System users looked for this service spontaneously, after having observed successful treatments of acquaintances or previous conditions. Other motivations were failure of treatment with allopathic medicine and medication side effects. Access is limited, and there is a repressed demand, which may compromise treatment efficacy. Free access to homeopathic medication has not been warranted, but their costs have been considered to be low. Users consider the service to be equivalent to that of offered by private practitioners of the same specialty, and recommend it to friends. Conclusions: The perceptions and attitudes these users displayed towards homeopathy, treatment and medication show that this therapeutic practice has been of benefit to them. Key words: Homeopathy. Health Services Accessibility. Single Health System; State Health Care Coverage. INTRODUÇÃO Considerando a história da homeopatia em nosso país, observa-se que a sua participação no sistema público de saúde sempre foi praticamente inexistente ou fragmentária. O advento do SUS, em meados da década de 80, prevendo a utilização de práticas alternativas e, após um intervalo de quase 20 anos, a publicação da Portaria nº 971, de 3/5/06, que aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) prevendo a implantação da homeopatia no Sistema Único de Saúde-SUS, inauguram nova relação entre a homeopatia e o sistema público. Desde que foi introduzida no Brasil, em 1840, a homeopatia foi utilizada de forma tímida e fragmentária pelo serviço público. Durante os períodos Colonial e Imperial, a prática médica se caracterizava pelo baixo nível de medicalização da sociedade, pela quase inexistência de práticas voltadas para os escravos e pelo caráter fiscalizador do Estado, propiciando uma medicina popular com base nas culturas das etnias aqui presentes2. Em 282 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 meio a conflitos políticos com a classe médica incipiente no país, pobres e escravos eram tratados pelos poucos médicos homeopatas; fazendeiros e padres levaram-na para o interior, onde a escassez de assistência médica se somou às vantagens da aplicação da homeopatia, medicina generalista, de baixo custo e extremamente segura por utilizar medicamentos em pequenas doses. Na República foram expandidos os serviços de saúde pública seguindo um modelo campanhista, visando às epidemias urbanas e endemias rurais, o que se tornou um dos pilares das políticas de saúde adotadas mais tarde2. Durante o surto de febre amarela de 1873, no Rio de Janeiro, criou-se, temporariamente, na Santa Casa de Misericórdia, uma enfermaria homeopática. Desse episódio foi feita uma estatística, por um médico não homeopata do mesmo hospital, mostrando que, dos 179 pacientes atendidos pela homeopatia, 34 morreram (18,99%) contra 57 mortes (31,62%) dos 183 pacientes tratados pela medicina convencional. Apesar destes dados, a homeopatia não foi aproveitada, nesse momento, de forma ampla1. Em três de fevereiro de 1886, foi publicado o decreto nº 9.554 do Regulamento do Serviço Sanitário, o primeiro na legislação brasileira a mencionar a existência de farmácias homeopáticas no Brasil. De acordo com Luz1, de 1900 a 1930, observa-se um período de crescimento da homeopatia, com aumento do atendimento, criação de instituições homeopáticas e mais legitimação junto à população . Com a criação da Faculdade Hahnemanniana e do Hospital Homeopático, em 1912 e 1916, e a obrigatoriedade de farmacêutico homeopata nas farmácias homeopáticas, oficializa-se a homeopatia, em 25 de setembro de 1918. Para essa autora, a conquista de espaços institucionais e a legalização da homeopatia estão ligadas à conjuntura política republicana. Por volta de 1930, estima-se que sete milhões de pessoas tratavam-se exclusivamente com homeopatia, o que representava um quinto da população1. O período seguinte, de 1930 a 1970, foi marcado pelo declínio dessa terapêutica, inclusive com o fechamento do Hospital Homeopático, em 1945, por se contrapor às características assumidas pela prática médica, em especial o aumento da especialização e do aspecto tecnológico, o distanciamento entre a medicina preventiva e a curativa, a ênfase no atendimento hospitalar e a dependência das Homeopatia no SUS em Belo Horizonte – um estudo de caso multinacionais farmacêuticas direcionadas pelos interesses mercantilistas, com descaracterização da relação entre médico e farmacêutico e mesmo entre o médico e suas formulações1. Segundo Moreira Neto3, o silêncio da medicina hegemônica sobre a homeopatia “está relacionado a um grande desenvolvimento de novos medicamentos e procedimentos diagnósticos3”. Durante o período militarista, a centralização e concentração do poder institucionais aliaram campanhismo e curativismo, levando a medicalização social, sob um regime político avesso à participação da sociedade civil e uma política econômica que privilegiou os trabalhadores especializados, e aumentando as desigualdades e criando a ideologia do consumo no seio da sociedade. Além disso, levaram a saúde a ser vista como consumo de assistência médica. Essa atenção médica massificada, em detrimento da medicina preventiva e social, comandada pelos interesses dos empresários da saúde, que visavam mais ao lucro do que à cura de sua clientela, associado ao ensino médico voltado para a especialização e sofisticação tecnológica, dependente das indústrias farmacêuticas, levou a uma relação autoritária, mercantilizada e tecnificada entre médico e paciente e entre os serviços de saúde e a população1. A necessidade da reforma sanitária passou a ser vista como indispensável à transição democrática e trouxe a discussão da unificação institucional dos serviços de saúde, que se concretizou com a criação do SUS em 1988, mudando a concepção de assistência médica e o papel do Estado na prestação dessa assistência. Em 1986, a VIII Conferência Nacional de Saúde já recomendava a introdução das práticas médicas alternativas na rede pública. Em 1987, foi criada uma comissão técnica na CIPLAN (Comissão Interministerial de Planejamento) objetivando formular as diretrizes políticas para essa implantação, o que resultou na Resolução nº 04/88 de 08/03/88 sobre homeopatia no setor público4. Nesse contexto, a homeopatia começou a ser utilizada no serviço público por algumas cidades a partir da iniciativa dos gestores locais, seja no atendimento primário, como é o caso da cidade de Belo Horizonte, seja no secundário, como, por exemplo, em Juiz de Fora. A chegada de Patrus Ananias à Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) em 1993 tornou a saúde uma das prioridades de governo, com o compromisso de cumprir o previsto na Lei Orgânica Municipal, que no seu artigo 144 § 6 atribuiu ao município o dever de oferecer aos cidadãos todas as formas de assistência e tratamento adequado, incluída a homeopatia. Formou-se um grupo de trabalho para operacionalizar a implantação de práticas não-alopáticas que, entre outros questionamentos iniciais, deparou-se com um embate entre os representantes da Secretaria Estadual de Saúde, que propunham a criação de um serviço separado como centro de referência para todo o município, e os da Secretaria Municipal de Saúde, que argumentavam a favor da descentralização e a aproximação com as demais especialidades nos centros de saúde. Esta última foi a proposta implantada, considerando-se sua adesão ao modelo assistencial preconizado pelo SUS e a formação básica desses profissionais, que não justificaria sua lotação em centros de referência especiais4. A evolução, em nossa sociedade, do conceito de saúde, vista atualmente como estado de bemestar, e do conceito de doença, que passa a abranger, além do biológico, os âmbitos psicológico e social, também contribui para a aproximação entre homeopatia e o SUS. A homeopatia se ajusta bem a essas novas concepções a seus desdobramentos em termos de atenção à saúde: por ser medicina generalista, que busca atender o paciente nas suas necessidades de saúde, sejam elas psíquicas ou orgânicas; por considerar o ser humano uma unidade integrada entre corpo e mente em contínua interação com seu meio físico e social; por ser medicina pouco invasiva e pouco iatrogênica, na qual a relação entre o médico e o paciente é pessoal e pouco tecnificada. No atual panorama de saúde pública brasileira, de recursos escassos e necessidades crescentes dos usuários do sistema, a homeopatia busca aliar alto grau de resolubilidade ao baixo custo de investimentos, considerando-se os recursos materiais necessários para sua prática e o custo do medicamento homeopático. Segundo dados da Coordenação do Programa, em 2001, dos 8.614 atendimentos realizados, apenas três foram encaminhados para internação, 31 para atendimentos de urgência, 127 para outras especialidades e 24 para outros setores do mesmo serviço. Foram solicitados exames laboratoriais para 447 pacientes e radiológicos para 148. Ao comparar esses dados com os da Clínica Médica no mesmo período, pode-se observar diferença principalmente no tocante aos encaminhamentos Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 283 Homeopatia no SUS em Belo Horizonte – um estudo de caso para especialidades e exames complementares. O atendimento homeopático encaminhou menos de 0,1% dos pacientes atendidos para internação, 0,4% para urgência e 1,5% para especialidades, enquanto a clínica médica encaminhou 0,2, 0,7 e 11,7%, respectivamente. Quanto aos pedidos de exames complementares, a homeopatia solicitou exames laboratoriais e radiológicos para 5,2 e 1,7% dos pacientes consultados, sendo que no mesmo período a clínica médica solicitou 24,9 e 8,8% respectivamente5. Os dados para esse artigo foram coletados no período de agosto a dezembro de 2002 como desenvolvimento da dissertação de mestrado intitulada “Percepções do paciente usuário dos serviços homeopáticos do SUS em Belo Horizonte – Estudo de caso no Centro de Saúde Santa Terezinha”, apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG, que buscou conhecer como tem-se dado o acesso ao serviço, o perfil das pessoas que se acercam desse tratamento e suas percepções, opiniões e condutas sobre a homeopatia, o tratamento e o medicamento homeopáticos. MÉTODO Realizou-se estudo de caso utilizando como procedimento relatos pessoais a partir de entrevista semi-estruturada, cujo roteiro foi definido após a realização de pré-testes. A amostra foi composta de pacientes que chegavam para consultas, sendo considerada de tamanho satisfatório a partir da saturação dos dados e início de repetição de pacientes. Também foram entrevistados profissionais do serviço e da Coordenação do Programa. As entrevistas com os usuários, num total de 43, foram feitas e gravadas no Centro de Saúde Santa Terezinha e tiveram duração média de 30 minutos. Utilizaram-se também dados quantitativos preexistentes na Coordenação do Programa de Práticas Não-alopáticas da Prefeitura de Belo Horizonte para se traçar o perfil desses usuários. Partindo das contribuições da sociologia compreensiva e da fenomenologia e utilizando o conceito de representações sociais6, a análise dos dados iniciou-se com a transcrição das fitas na fase de pré-análise, possibilitando pouco a pouco o conhecimento e a organização do material. Os dados obtidos nas entrevistas foram separados de acordo 284 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 com temas anteriormente definidos, gerando listagens de respostas cujas divergências e convergências foram detectadas. Posteriormente, com nova leitura das entrevistas, foram levantadas as idéias centrais, entendidas como a síntese do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos, como também as expressões-chave, trechos selecionados dos discursos, ou seja, a “prova discursivo-empírica”7. A análise interpretativa contrapôs os dados levantados com aqueles encontrados por outros autores e os resultados ora apresentados constituem apenas uma síntese desse processo de análise realizado durante a pesquisa. RESULTADOS E DISCUSSÃO A área de abrangência do Centro de Saúde, segundo sua gerente, corresponde aos bairros circunvizinhos, com população de 24.000 habitantes, dos quais aproximadamente 80% procuram o serviço. Os vários serviços prestados contam com diferentes modalidades de marcação de consultas. Para o atendimento de saúde mental, ginecologia e odontologia, o usuário deve passar primeiramente pelo acolhimento, quando então as demandas são detectadas e administradas. A marcação de consultas para pediatria e clínica médica acontece de acordo com o número de vagas, pela manhã, exceto crianças menores de um ano e gestantes que, ao chegarem ao centro de saúde, são agendadas para fazerem os acompanhamentos de puericultura e pré-natal. Há também atendimento a grupos específicos da saúde mental, hipertensos, diabéticos, gestantes, desnutridos, planejamento familiar, asmáticos e de terceira idade, buscando maior participação dos pacientes no seu processo de tratamento a partir da mudança de hábitos e comportamentos. As consultas para homeopatia são marcadas uma vez por mês por meio de distribuição de senhas, o que leva as pessoas a dormirem na fila. O acesso ao tratamento homeopático não tem sido fácil, mesmo comparando-se às dificuldades próprias do SUS, pois o atendimento não está disponível em todos os centros de saúde e são poucos os médicos disponíveis. A marcação da consulta foi a grande dificuldade apontada por todos os entrevistados. Outro fator necessário para que o serviço seja eficiente é a garantia de acesso ao medica- Homeopatia no SUS em Belo Horizonte – um estudo de caso mento, que deveria ser gratuito, considerando-se as condições econômicas da população atendida. No entanto, não tem sido assim. A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) realizou um convênio com as farmácias homeopáticas para o fornecimento de medicamentos, mas ele funcionou de forma irregular e atualmente está extinto. Apesar disso, observou-se que a população tem boa adesão ao tratamento devido ao baixo custo dos medicamentos homeopáticos. O conhecimento da homeopatia se deu a partir de conhecidos, sendo também mencionados os meios de comunicação social, relatos que coincidem com os dados de Micali et al.8, sendo os usuários do serviço os seus maiores divulgadores. O insucesso com a medicina alopática e o sucesso com o tratamento homeopático de conhecidos foram as principais motivações dos usuários, que buscam o tratamento espontaneamente, tendo havido poucos encaminhamentos, formais ou não. Outras motivações foram os efeitos colaterais das drogas convencionais e a busca pela medicina “natural”. O custo dos medicamentos foi uma motivação bastante forte. Os entrevistados buscaram o atendimento, na maioria das vezes, por queixas que podem ser classificadas como emocionais, seguidas pelas relacionadas ao sistema respiratório e pela hipertensão arterial. Eles demonstraram alto grau de satisfação com o atendimento e, segundo sua opinião, a qualidade do atendimento homeopático no serviço público não se diferencia da prestada em serviço privado. Consideram que o SUS deve oferecer o atendimento homeopático porque é eficaz, menos agressivo que o convencional, de baixo custo e capaz de abordar aspectos emocionais, reiterando, dessa forma, a necessidade de cuidados integrais. Esses cuidados, por sua vez, coincide com as representações detectadas por esta pesquisa, segundo as quais a homeopatia é eficaz para doenças crônicas e produz atenção ao doente, englobando bem-estar físico e psíquico. Todas essas avaliações são concordantes com a da Coordenação das Práticas Não-Alopáticas da PBH.5 A maioria dos entrevistados são mulheres, casadas, de 30 a 59 anos de idade, católicas, com o segundo grau, completo ou não, e em até três anos de tratamento. Moram no bairro Santa Terezinha, em casa própria, com até cinco moradores por moradia, com renda per capita de R$ 101,00 a R$ 250,00 e familiar de R$ 401,00 a R$ 1.000,00. Carvalho et al. 9, em estudo realizado na cidade de São Paulo, concluíram que a família típica de usuários era constituída por três a quatro pessoas, com renda média de três a 10 salários mínimos, escolaridade correspondente ao primeiro grau completo ou não, casado, católico, cuja predominância de entrevistados foi de mulheres, mães de pacientes9. Ao situar as representações percebidas por este trabalho no contexto de representações presentes na nossa sociedade, pode-se observar que os usuários desse atendimento homeopático concebem a doença e a saúde tanto como as representações hegemônicas os vêem, como disfunção orgânica, quanto como as contra hegemônicas, que consideram a saúde um estado de bem-estar integral, concepção que embasa a terapêutica homeopática. Constata-se, portanto, que nem todos que optam por essa prática médica têm conhecimento de suas bases terapêuticas. Encontra-se uma concepção do tratamento homeopático como o que promove a cura integral do indivíduo, ou seja, dos aspectos físicos e emocionais, dado também observado por Mendicelli10. A homeopatia é vista como uma medicina individualizada e diferente em relação às práticas hegemônicas, seja pela consulta, pelo tratamento e medicamento. Há confiança dos entrevistados na capacidade da homeopatia de curar as doenças, sendo percebidas como incuráveis a AIDS e o câncer, havendo certa semelhança entre essa percepção dos entrevistados e a visão de Minayo6 das doenças metafóricas. Observou-se conhecimento superficial sobre homeopatia, que é confundida com tratamento à base de plantas, sendo a percepção mais persistente a de uma terapêutica mais natural o que, para essa população, diz respeito à origem dos medicamentos e à ausência de “química”, que é associada à potencialidade de provocar efeitos indesejáveis à saúde. Essa visão, fortemente arraigada na percepção dos entrevistados, da homeopatia como incapaz de lesar o organismo foi apresentada também por outros autores3,9,10. A influência da religião para a eficácia do tratamento foi negada; mas a fé foi apontada como importante no processo de cura em qualquer forma de terapêutica adotada. A expectativa dos entrevistados com o tratamento homeopático mostrou-se ou muito ampla ou muito reduzida. De maneira semelhante à descrita por vários autores,3,10,11 a percepção de alguns Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 285 Homeopatia no SUS em Belo Horizonte – um estudo de caso usuários sobre a eficácia da homeopatia é resultante da observação de melhora dos sintomas; de outros, resulta da exacerbação dos sintomas no início do tratamento, coincidindo com a percepção dos profissionais do serviço, além de ser fato previsível, segundo Eizayaga12. O relato de melhora de aspectos emocionais de vários entrevistados, mesmo nos usuários que buscaram o tratamento somente por queixas físicas, mostra a concepção de cura integral enquanto a de doença permanece mais localizada. A percepção da duração do tratamento como lento parece ser independente da experiência dos entrevistados e influi na conduta deles em relação às doenças consideradas tratáveis pela homeopatia. Essa representação pode ser devida ao fato de a homeopatia ser procurada muitas vezes para doenças crônicas e incuráveis após o insucesso com a terapia convencional. Observou-se, juntamente com outros autores3,11, que a relação médico-paciente na homeopatia é mais satisfatória, pois requer anamnese individualizante, o que contribuiu para a efetividade e adesão ao tratamento comprovadas pelo fato da maioria deles não utilizar outras especialidades médicas nem outros medicamentos e ser pequeno o número de intercorrências que exigiram acompanhamento de outro profissional. Nesse caso, a busca de atendimento recaiu sobre os serviços de urgência e clínicas médica e pediátrica ambulatoriais, ao contrário do observado por CARVALHO et al. 9, que relataram a busca, em primeiro lugar, de outro atendimento homeopático e da farmácia. A maioria dos usuários entrevistados diz obedecer às recomendações dos médicos, inclusive à solicitação de suspensão do uso de outros medicamentos. Isso parece estar relacionado à confiança depositada no profissional e pode ser devida à relação que se constrói entre eles durante o tratamento, pois consideraram positivo serem atendidos sempre pela mesma profissional, independentemente dos sintomas que apresentam ao longo do tratamento. Os entrevistados consideram o medicamento homeopático eficaz, simples, prático e de baixo custo. Referem-se a ele muitas vezes com palavras no diminutivo, o que faz supor que teriam a expectativa de pouca eficácia, e mostram surpresa com a observação de seu efeito. Ao compararem os medicamentos homeopáticos com os convencionais, consideram que aqueles têm menos efeitos colaterais, são mais eficazes e não apresentam risco de 286 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 dosagem excessiva nem contra-indicações, percebendo os medicamentos convencionais como fortes e causadores desses efeitos indesejáveis. Embora alguns pacientes tenham afirmado que já ficaram sem usar o medicamento por não terem condições financeiras de adquiri-lo, em geral eles o consideram de baixo custo, o que é um fator positivo para a adesão ao tratamento. Como Mendicelli10, observou-se neste trabalho o pouco conhecimento sobre os medicamentos homeopáticos, mas o suficiente para saber que ele precisa ser conservado sob determinadas condições e que foram orientados sobre isso pelo profissional e na farmácia. Não se observaram a prática de automedicação nem indicação de medicamentos homeopáticos para conhecidos, pois o medicamento é percebido como específico para cada um, escolhido a partir de análise detalhada da pessoa nos seus aspectos físicos e emocionais, considerado-se que a prerrogativa dos médicos em prescrevê-los se deve ao conhecimento que detêm. Além disso, afirmaram que na farmácia homeopática por eles utilizada não há dispensação do medicamento sem a prescrição médica, ao contrário da prática comum na alopatia. CONCLUSÕES Para a maior utilização da homeopatia no serviço público, há que se responder à questão se os usuários estão sendo beneficiados. Os usuários demonstraram confiança nessa terapêutica e satisfação com o atendimento, considerando o serviço de qualidade comparável ao que é oferecido pelo sistema privado nessa especialidade médica, divulgando-o. O atendimento tem sido eficiente, já que poucos utilizam outros profissionais ou medicamentos concomitantemente, o custo dos medicamentos é baixo e a relação médico-paciente um fator positivo para a adesão ao tratamento. Os medicamentos são tidos como eficazes, incapazes de provocar reações indesejáveis e específicos, não se observando prática de automedicação nem indicação de medicamentos a conhecidos. Como o modelo de assistência prestada pela homeopatia, por seus pressupostos teóricos, prevê o cuidado do paciente, considerando-o na sua totalidade como indivíduo, a homeopatia se apresenta apropriada ao princípio do SUS de integralidade das ações. Homeopatia no SUS em Belo Horizonte – um estudo de caso Pode-se concluir que o acesso ao medicamento e ao tratamento homeopático no SUS em Belo Horizonte está limitado, existindo demanda reprimida, o que pode levar à queda da adesão e diminuição de sua eficiência. Não há oferecimento do tratamento homeopático em todos os centros de saúde da cidade e a área geográfica atendida por esse centro específico é muito grande, o que agrava essa situação. Com a criação do SUS, o Brasil ingressa numa fase em que a saúde é vista como direito de todos e dever do Estado, mas o que se verifica atualmente são várias dificuldades na implementação de suas metas de universalização e de igualitarismo do atendimento, de hierarquização, de descentralização e de democratização das decisões sobre o planejamento das ações prestadas pelos serviços de saúde. A consolidação da política adotada torna-se necessária para o aprimoramento do atual modelo como resposta aos desafios hoje impostos. Nesse sentido, a estabilidade democrática, o aumento da conscientização sanitária da população com o conseqüente crescimento de sua participação no planejamento das ações, o financiamento e a formação de recursos humanos em consonância com esses princípios ideológicos são pressupostos necessários para que o SUS possa atingir suas metas. Este trabalho mostrou que, embora o atendimento homeopático se constitua uma política pública em Belo Horizonte, há falta de vontade política para sua implementação; e que o princípio da universalidade permanece, no presente, como um desafio. O maior aproveitamento da homeopatia pelo SUS dependerá da relação custo-benefício, que é favorável, e de maior conhecimento por parte dos gestores das suas possibilidades terapêuticas. A publicação da PNPIC significa um importante passo nesse sentido. REFERÊNCIAS 1. Luz MT. A arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. São Paulo: Dynamis Editorial; 1996. 2. Somarriba MMG. 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Micali IA, Salume S, Machado VLT. Imagens da homeopatia na comunidade de Vitória - Espírito Santo. Rev Homeopatia. 1995; 60(3/4):27-33. 9. Carvalho MPSL, Mansur Y, Waldmann CCS. Avaliação dos conhecimentos em homeopatia dos usuários em três serviços públicos de saúde. Rev Homeopatia. 1998; 2:69-86. 10. Mendicelli VLSL.Homeopatia: percepção e conduta de clientela de postos de saúde [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, USP; 1994. 11. Frank R. Homeopath & patient – a dyad of harmony? Social Scien Med. 2002; 55 (8):1285-96. [Acesso em 24 ago. 2002]. Disponível em: http://www.sciencedirect. com. 12. Eizayaga FX.Tratado de medicina homeopática. 3ª ed. Buenos Ayres: Marecel; 1992. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S281-S287 287 ARTIGO ORIGINAL Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador* Caregivers of aging people - a new health agent in the national health system: a workers`heatlh approach Márcia Colamarco Ferreira Resende1; Elizabeth Costa Dias2 RESUMO 1 Fisioterapeuta. Mestre em Saúde Pública pela UFMG; Professora-Assistente I da PUC Minas Betim. Médica Sanitarista e do Trabalho. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas; Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social- Faculdade de Medicina da UFMG. 2 As mudanças demográficas decorrentes do rápido processo de envelhecimento da população brasileira impactam, de modo significativo, o sistema de saúde. Neste cenário, chama a atenção o surgimento dos cuidadores de idosos, reconhecidos como agentes de saúde, pela Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI). Buscouse na investigação realizada estudar a percepção de cuidadores familiares de idosos sobre o suporte que recebem para o desenvolvimento de suas atividades, a partir dos referenciais teórico-metodológicos do campo da saúde do trabalhador. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, seguidas de análise temática, com os cuidadores familiares dos idosos do território de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de BetimMG. Os resultados mostraram que esses trabalhadores têm relativa autonomia para organizar a rotina de cuidados e descrevem impactos negativos sobre a saúde, como cansaço, depressão, dores no corpo, perda de sono, entre outros. Os cuidados com os idosos foram caracterizados como uma atividade solitária, com suporte precário dos familiares e da UBS. O suporte religioso foi considerado fator de amparo e consolo. A Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa considera os cuidadores de idosos parceiros das equipes de saúde na assistência aos idosos dependentes. Dessa forma, cabe ao Sistema Único de Saúde prover ações de capacitação e suporte dos cuidadores para qualificação desse trabalho Palavras-chave: Cuidadores. Saúde do Trabalhador. Medicina do Trabalho. Saúde do Idoso. ABSTRACT The goal of the text is identifying in literature repercussions of the work of aging health caregivers and arguing the lines of direction of Public Politics directed toward them. The study is based on the reference of the thematic field “Worker Health”. According to literature, the occupation of “aging caregiver” seems to be predominantly an activity exerted by the informal sector of work, usually done by some relative from female sex, and it has brought consequences for the quality of the aging care and for the caregiver health, causing low back pains, depression and hypertension. The National Politics of the Elderly Health is sufficiently advanced talking about taking care with this population and has in the familiar caregiver a partner for its actions. Studies on the ways of this kind of work are still necessary to assist on the elaboration of public politics actions. Key words: Caregivers. Occupational Health. Occupational Medicine. Health of the Elderly Endereço para correspondência: Márcia Colamarco Ferreira Resende Rua Progresso, 1587- apto 101- Bloco A - Caiçara, CEP 30720-320Belo Horizonte, MG Email: [email protected] [email protected] 288 * Este artigo integra o projeto de pesquisa “Condições de trabalho e a saúde dos cuidadores de idosos do território de uma Unidade Básica de Saúde de Betim-MG”, desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Saúde Pública – área Saúde e Trabalho. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, no processo n° CAAE: 0470.0.203.000-05. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S288-S293 Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador INTRODUÇÃO O aumento da expectativa de vida e, conseqüentemente, do número relativo e absoluto de pessoas idosas no Brasil, assim como no restante do mundo, acarreta mudanças significativas no perfil epidemiológico dessa população.1 Segundo Peixoto et al.2, essa mudança impacta de modo particular o Sistema Único de Saúde (SUS). No ano de 2001, a razão entre a proporção dos recursos pagos pelo SUS para as internações hospitalares e o tamanho proporcional da população aumentou gradualmente com a idade, sendo equivalente a 0,7 na faixa etária de 20-59 anos, 2,2 na de 60-69 anos; 3,1 na de 70-79, chegando a 3,7 na faixa acima de 80 anos de idade. O estudo revela também que as doenças do aparelho circulatório e respiratório corresponderam por cerca de metade dos custos com internações hospitalares de idosos brasileiros. O aumento do número de pessoas portadoras de doenças crônicas e múltiplas tem sido acompanhado do aumento de incapacidades e disfunções.3 Esta situação acarreta freqüentemente a perda da independência do indivíduo, o que requer a presença de outra pessoa para cuidar desses idosos e auxiliar nas atividades de vida diária. Nesse contexto, surge a figura do cuidador familiar do idoso, que o auxilia na realização de suas atividades.4 O trabalho de cuidar dos idosos dentro do domicílio tem sua origem em tempos remotos e retorna na atualidade como uma opção para proporcionar atenção humanizada a esses indivíduos, nas situações em que não cabe a alternativa de uma instituição asilar, por causa da importância que a renda do idoso tem para algumas famílias e/ou para baratear os custos advindos das internações hospitalares freqüentes e prolongadas. A Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI)4 destaca que o apoio informal e familiar constitui um dos aspectos fundamentais à saúde desse grupo populacional. No entanto, o corpo humano responde com sinais de desadaptação ao formato dessas atividades. Estudos vêm mostrando que certas doenças, como a hipertensão arterial, a depressão e as dores lombares, parecem estar intimamente relacionadas ao trabalho dos cuidadores.5,6 De acordo com o referencial da Saúde do Trabalhador, esse processo de adoecimento guarda relação com os processos de trabalho e está articulado ao conjunto de valores, crenças, idéias e representações sociais desses trabalhadores.7 Esse modelo explicativo nasce vinculado ao setor industrial, mas as mudanças decorrentes dos processos de reestruturação produtiva, como, por exemplo, o aumento do trabalho terceirizado, informal e familiar, obrigam que se invista “fortemente no conhecimento dos diversos tipos de agravos à saúde em todos os setores nos quais se acumulam problemas causados pela labilidade dos vínculos de trabalho, como o caso do antigo e hoje crescente trabalho familiar”8. O retorno ao modelo de cuidados domiciliares estimula o cuidado familiar, mas não retira do Estado a responsabilidade de promover, proteger e recuperar a saúde do idoso, além de otimizar o suporte familiar, o que lamentavelmente não tem sido observado.9,10. Nessa perspectiva, este estudo teve por objetivo estudar a percepção de cuidadores familiares de idosos sobre o suporte que recebem da família e do Sistema de Saúde para exercerem sua atividade em domicílio. METODOLOGIA O estudo foi realizado a partir dos relatos e percepções dos cuidadores familiares de idosos sobre sua atividade e o suporte que recebiam para realizá-las. Na tentativa de apreender a construção das representações e as relações com o contexto na qual se produzem, foi utilizada uma abordagem qualitativa, que enfoca a sua atenção no específico, no peculiar, no individual, buscando a compreensão e não a explicação dos fenômenos estudados.11 Foram avaliados cuidadores familiares com idade superior a 60 anos, não remunerados, que vivem e trabalham no território de influência da Unidade Básica de Saúde (UBS) Imbiruçu, localizada na cidade de Betim/MG. Sua identificação foi realizada por meio do relato dos agentes comunitários de saúde (ACS) sobre os usuários visitados por eles, em uma reunião entre a pesquisadora e a equipe do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). A partir desses relatos, as escolhas dos indivíduos a serem entrevistados e a ordem na realização das entrevistas foram determinadas pela disponibilidade do ACS, facilidade de acesso ao domicílio e a receptividade do cuidador para participar do estudo. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S288-S293 289 Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador O contato inicial entre entrevistador e cuidadores foi feito na residência destes últimos, segundo a sua conveniência, na presença do ACS responsável pela respectiva microárea. Dessa forma, a relação entrevistador/entrevistado foi estreitada e promoveram-se os laços de confiança e simpatia necessários ao bom andamento da entrevista. Após esse primeiro contato, foram agendados o dia e hora da entrevista. Foi utilizado um roteiro de entrevista semi-estruturada abordando dados pessoais do cuidador e do idoso, a descrição das atividades de cuidado, o suporte e as percepções do trabalho. As entrevistas foram realizadas no próprio domicílio do entrevistado, em local que garantia privacidade e não constrangimento dos mesmos, sendo que as duas primeiras foram consideradas pilotos do estudo e contribuíram para melhor adaptação do instrumento. O número de entrevistas realizadas foi definido pelo critério de ponto de saturação das informações, que se caracteriza como o momento em que nenhuma nova informação surge, ocorrendo repetição dos dados já colhidos.11 Foi efetuada a transcrição da gravação imediatamente após o término da entrevista, seguida de exaustiva leitura dos textos transcritos e sua organização segundo pertinência, representatividade e homogeneidade. Para extrair os significados manifestados no material coletado, foi utilizada a técnica de Análise Temática, que visa a explorar a compreensão de questões ou a significância de idéias. Isso se tornou possível por meio da identificação dos temas que foram mais evidentes no texto em diferentes níveis e da construção de redes de temas estruturados e descritos.12 Dessa forma, a análise foi realizada com o programa de análise de dados qualitativos NUD*IST, versão 6.0 (N6), em três fases: ■ 1° FASE: foram elaborados indicadores a partir do contato exaustivo com o material e sua organização, com conseqüente determinação das unidades de registro. ■ 2° FASE: por meio das unidades de registro determinadas na fase anterior, foram escolhidas regras de contagem e realizada a classificação e agregação dos dados, determinando categorias teóricas para o direcionamento da especificação dos temas. 290 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S288-S293 ■ 3° FASE: os resultados brutos foram submetidos a operações simples que permitiram colocar em destaque as informações obtidas. A partir disso, foram realizadas as inferências e interpretações previstas no quadro teórico. A realização do estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, no processo n° CAAE: 0470.0.203.000-05. RESULTADOS Após a realização de 11 entrevistas, verificou-se saturação nas informações colhidas, finalizando esta etapa do trabalho. Desse total, duas entrevistas foram excluídas das análises por causa do agendamento incorreto das ACSs, uma vez que as cuidadoras tinham menos de 60 anos, fato identificado pela entrevistadora no decorrer da entrevista. O tempo das entrevistas variou entre 38 minutos e 46 segundos; e 74 minutos e 44 segundos. Nas nove entrevistas válidas, todas as cuidadoras eram do sexo feminino, com idade variável entre 32 e 68 anos, tempo médio como cuidadoras de cinco anos e renda familiar mensal entre um e cinco salários mínimos. O grau de parentesco se distribuiu da seguinte forma: sete eram filhas, uma era irmã e uma era nora da idosa que cuidava, sendo todas as idosas também do sexo feminino, com média de idade de 79 anos. Todas as cuidadoras moravam no mesmo domicílio que as idosas, sendo que cinco moravam também com seu cônjuge e filhos; três moravam somente com seu cônjuge e a idosa; uma morava com seu filho, uma sobrinha e a idosa. Na literatura consultada, estudos ressaltam a ocupação de cuidador como uma atividade exercida predominantemente no setor informal, por alguém da família e do sexo feminino.6,13,14 No estudo desenvolvido por Karsch5, 92,9% dos cuidadores entrevistados eram do sexo feminino, sendo que a maior parte era formada de esposas (44,1%), seguidas pelas filhas (31,3%) e mais raramente noras e as irmãs. A faixa etária encontrada nessa população era: 59% dos cuidadores estavam acima de 50 anos e 41% tinham mais de 60 anos. No estudo realizado, as principais atividades de cuidado com as idosas, descritas pelas cuidadoras, foram: alimentação, incluindo a escolha e Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador preparo do alimento até o auxílio direto para a idosa alimentar-se, higiene pessoal, como banho, troca de fralda e higiene íntima), locomoção (dentro e fora do domicílio), medicação (administração e aquisição de medicamentos) e cuidados noturnos. As atividades não apresentam ritmo ou cadência fixos. As variações e situações imprevisíveis restringem a autonomia das cuidadoras na escolha do modo de realizar as atividades, acarretando pouco controle sobre elas. As necessidades e exigências específicas de cada idosa concorrem com outras atividades, que estão sob a responsabilidade da cuidadora dentro do lar. No que tange às repercussões do trabalho sobre a saúde, as cuidadoras relataram cansaço físico, fraqueza e falta de energia. Falas como “Eu sinto muito cansaço!”, “A sensação que eu tenho é que eu durmo e acordo cansada!”, “Eu não descanso nem dormindo” foram ouvidas com freqüência, além de queixas de nervosismo e “depressão”. Alterações do sono também foram freqüentemente citadas, cinco cuidadoras relataram ainda dificuldade para dormir, dores no corpo, lombalgia, dores nos membros superiores e hipertensão arterial. A literatura pesquisada sugere a existência de relação entre a demanda de cuidados exigidos pelos idosos e sintomas de cansaço e depressão entre seus cuidadores15,16 Em situações nas quais não é possível agir sobre os objetivos ou sobre os meios de trabalho, os resultados exigidos são atingidos ao custo de modificações do estado interno do indivíduo, que com o tempo se traduzem em agressões à saúde. 6 A ausência ou precariedade do suporte familiar no cuidado do idoso dependente foi uma queixa freqüente entre as cuidadoras e geralmente se restringe ao apoio financeiro. A ajuda de outras pessoas da família, quando acontece, é esporádica e insatisfatória, na opinião das cuidadoras: “tem os filhos, mas mal-mal eles ligam pra cá pra saber... igual eu tenho uma irmã que mora lá no Barreiro, essa irmã não me dá uma mínima. Não liga pra saber se a mãe é viva, se a mãe come, se a mãe bebe!”. A falta de cooperação dos familiares sobrecarrega o cuidador e limita significativamente sua vida social. “Às vezes uma pessoa me convida pra um aniversário, me convida pra fazer alguma coisa, eu nunca posso ir. Tenho que ta sempre falando não pra pessoa, porque se eu for pedir eles pra vim ficar com a mãe pra mim, ninguém deles pode. Todo mundo tem os compromissos dele. Aí eu fico com raiva mesmo!” (C1). Segundo Bocchi17, essa situação parece estar relacionada à relutância do cuidador em solicitar ou aceitar ajuda, com receio de que essa atitude possa ser interpretada como sinal de fracasso ou inadequação dos cuidados; e ao medo e à ansiedade em abandonar o paciente na casa, sem atendimento, tornando-o suscetível ao agravamento das incapacidades. Essas duas possibilidades aparecem nos relatos das cuidadoras. “Eu penso assim, se eu não cuidar, eu acho que outra pessoa não ia cuidar igual eu cuido dela. Ou podia até cuidar, mas não ia ter o mesmo carinho que eu tenho com ela” (C3); “E quando eu saio, eu fico muito preocupada, eu saio, mas eu não deixo de pensar nela. Porque, igual algumas vezes que eu saí de casa, eu nem bem cheguei no lugar, a menina já tava me ligando pra mim voltar, porque a mãe deu uma febre ou passou mal. Aí eu tenho que ta voltando de novo” (C2). As cuidadoras também ressaltaram a importância do amparo da religião, na qual encontram força e consolo para “suportar” o trabalho diário de cuidados. “Deus é que dá coragem à gente, pra gente vencer”. Muitas vezes a situação é interpretada como designada por Deus. “Então, eu acho assim, que muito que me acontece, Deus deve achar que ta bem assim.”. Outra idéia recorrente nas falas é a esperança de a dedicação ao familiar idoso ser recompensada na velhice do cuidador. “Porque eu não sei o meu dia do amanhã também, né? Porque eu faço meio interessada, assim, pedindo a Deus pra encaminhar uma pessoa pra cuidar de mim (risos). Eu tô cuidando dela, agora tem que ter um pra cuidar de mim.” Segundo Zunzunegui et.al.18, o suporte religioso e familiar foi associado à preservação da saúde mental dos cuidadores de idosos. Além disso, os autores afirmam que o envolvimento religioso tem sido abordado como um importante fator para aceitação da função de cuidadoras entre esposas de idosos. Diante da insuficiência ou mesmo ausência do suporte familiar, cabe perguntar pelo apoio que os cuidadores de idosos têm recebido do SUS. A PNSPI4 prevê a “incorporação, na atenção básica, de mecanismos que promovam a melhoria da qualidade e aumento da resolutividade da atenção à pessoa Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S288-S293 291 Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador idosa, com envolvimento dos profissionais da atenção básica e das equipes do Programa de Saúde da Família”. Além disso, estabelece diretrizes para o reconhecimento das situações de trabalho dos cuidadores, com o objetivo de desenvolver ações de prevenção à saúde das pessoas que cuidam. Entretanto, na percepção dos cuidadores entrevistados, o suporte oferecido pela UBS foi considerado precário ou inexistente, como expresso nas seguintes afirmativas: “mas eu fui lá (na UBS), conversei com a assistente social, mas ninguém nunca me deu idéia pra nada, a assistente social de lá, sabe” e “e a médica nunca veio aqui ver ela. Essas agentes de saúde também têm muito tempo que não vêm aqui. Muito tempo que elas não vêm aqui”. Algumas cuidadoras informaram ter recebido orientações de profissionais do nível secundário de atenção à saúde do SUS (Hospitais, Centros de Referência) sobre técnicas cuidadoras, durante os momentos de internação ou consulta das idosas, por exemplo: “quando ela saiu do hospital já veio com a tabela sobre alimentação. Inclusive a médica fonoaudióloga que fez o acompanhamento dela fez muitas recomendações que eu não segui muito não.” Entretanto, nenhuma delas pediu a continuidade dessas orientações na atenção primária (UBS): “Não, eu nem sabia que a gente tinha que pedir isso aqui no posto! Quem me ensinou alguma coisa foi a fisioterapeuta, quando eu levava mamãe pra fazer fisioterapia. Foi ela que me ensinou como tirar mamãe da cama pra passar pra cadeira, pra mim não dá problema nas costas, não me cansar tanto.” . O suporte da UBS (como previsto na PNSPI) foi considerado pelas cuidadoras um fator favorável para a condição de saúde da idosa e facilitador do trabalho e melhoria da sua própria saúde, caso viesse acontecer, como pode ser observado no seguinte depoimento: “orientação pra facilitar o trabalho aqui. Por exemplo, hoje eu já sei o que eu tenho que fazer pra curar a ferida que deu no pé dela, mas se eu tivesse tido alguma informação antes, quem sabe não tinha nem dado a ferida”. E continua: “orientação pra prevenir as coisas que a gente não conhece, não sabe que pode acontecer. Eu acho que a prevenção é a base pra que as pessoas tenham uma vida mais saudável e equilibrada.” Um grupo de enfermeiras procedeu a um estudo, em Samoa, com a população do país, cerca de 175.000 habitantes, no qual foram realizadas oficinas educativas para cuidadores de idosos. Os obje292 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S288-S293 tivos foram: desenvolver um programa de educação barato direcionado para eles; determinar o impacto das oficinas sobre os cuidadores e sobre os cuidados com os idosos; e auxiliar na determinação de políticas específicas para os idosos. Essa investigação mostrou que após duas semanas de oficinas e 540 cuidadores participantes, os cuidados com os idosos melhoraram e a comunidade se tornou mais sensível às questões relacionadas ao envelhecimento. Desse trabalho resultou a formação de um grupo interdisciplinar para discutir e elaborar políticas governamentais de apoio aos idosos.19 No Brasil, essas atividades permanecem incipientes e isoladas, fornecendo suporte a grupos de cuidadores de idosos por tempo determinado e de forma desarticulada do sistema público se saúde.20 CONSIDERAÇÕES FINAIS O rápido aumento da população idosa, em particular daqueles dependentes, que necessitam de cuidados especiais diários e consomem parcela significativa dos serviços públicos de saúde, tem exigido a formulação de novas estratégias e ações das políticas públicas de cuidado a essa população. A PNSPI4 define as diretrizes para o cuidado aos idosos, em especial aos dependentes. A escassez de estruturas de cuidado intermediário no SUS e as evidências dos aspectos favoráveis à melhoria da qualidade de vida desses idosos, quando apoiados pela família, contribuíram para que na PNSPI os familiares sejam considerados parceiros importantes das equipes de saúde na execução dos cuidados e reconhecidos como agentes de saúde que garantem o cumprimento dos objetivos dessa política. Infelizmente, no Brasil, o sistema público de saúde não tem atendido à crescente demanda de cuidado aos idosos e seus familiares. A PNSPI, ao considerar os cuidadores de idosos parceiros das equipes de saúde na assistência aos idosos dependentes, torna o sistema de saúde responsável por fornecer condições dignas de trabalho para esses “agentes de saúde”. A constatação de que o processo de saúde e doença dos cuidadores familiares de idosos tem relação com as suas atividades cuidadoras leva a crer que o suporte a essa população deve ir além das técnicas cuidadoras com os idosos e abordar também as formas de organização e suporte a esse trabalho. Os cuidadores familiares de idosos: um novo agente de saúde no SUS: o olhar da saúde do trabalhador Essa distância entre as diretrizes da PNSPI e a realidade do trabalho dos seus principais parceiros – cuidadores familiares – demonstra também a falta de diálogo intra-setorial, ou seja, entre essa política e a Política Nacional de Saúde do Trabalhador, que visa a “garantir que o trabalho (...) seja realizado em condições que contribuam para a melhoria da qualidade de vida, a realização pessoal e social dos trabalhadores e sem prejuízo para sua saúde, integridade física e mental.”4 REFERÊNCIAS 1. Veras R. 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Não citados Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S288-S293 293 ARTIGO DE REVISÃO Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados Absenteeism at work in health: related factors Geraldo Majela Garcia Primo1, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro2, Emília Sakurai3 RESUMO 1 Médico do trabalho. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG. 2 Professor Adjunto do Departamento de Medicina Preventiva e Social – Faculdade de Medicina da UFMG. 3 Professora Adjunta do Departamento de Estatística – Instituto de Ciências Exatas – UFMG. Apresenta-se uma revisão de literatura sobre o absenteísmo por motivo de doença e fatores relacionados à sua magnitude e variabilidade, enfatizando-se os trabalhadores no setor hospitalar e da saúde. Foram apresentados os conceitos de absenteísmo e seu contraponto, o presenteísmo. Os fatores relacionados ao absenteísmo são aqueles relativos ao perfil sociodemográfico e ao ambiente de trabalho, incluindo os riscos psicossociais. As situações peculiares ao ambiente de trabalho em saúde e os elementos comportamentais envolvidos no processo decisório, como a motivação e a relação do indivíduo com o trabalho e com seu processo de saúde-doença, também foram considerados. São apresentadas também algumas iniciativas de intervenção no ambiente de trabalho e suas repercussões nas taxas de absenteísmo. As evidências estatísticas e as análises conceituais confirmam a importância de se acompanharem as taxas de absenteísmo como um indicador, não só da situação epidemiológica, mas também das condições laborais, dos riscos específicos, do clima organizacional e do grau de comprometimento do grupo estudado. Palavras-chave: Absenteísmo. Organizações em saúde. Recursos humanos em saúde. Saúde do trabalhador. Doenças ocupacionais. Saúde pública. Administração de serviços de saúde. Gestão em saúde. ABSTRACT A literature review on absenteeism due to disease and factors related to its magnitude and viability is presented, emphasizing hospital and health workers. It were presented the concepts of absenteeism and its counterpoint, the presenteeism. The factors related to absenteeism are those concerning the social-demographic profile and the work environment including psychosocial risks. The situations peculiar to the work environment in health and the behaving elements involved in the decision making, as motivation and the individual relation with the work and his health-disease process were also taken into consideration. It were also presented some steps of intervention at work environment and its repercussions on absenteeism rates. The statistical evidences and the conceptual analyses confirm the importance of following the absenteeism rates as an indicator, not only on epidemiological situation but also labor conditions, specific risks, organizational climate and engagement level of the studied team. Key words: Absenteeism. Health organizations. Health manpower. Occupational health. Public health. Health services administration. Health management. INTRODUÇÃO Endereço para correspondência: Geraldo Majela Garcia Primo Rua Poços de Caldas 81/101. Belo Horizonte, MG. CEP: 31080-080. Email: [email protected] 294 O trabalho ocupa a maior parte do tempo da vida das pessoas, notadamente dos anos mais saudáveis. Sinal dos tempos modernos, o trabalho está tão imbricado no dia-a-dia que se chega a confundir saúde com capacidade para Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S260-S268 Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados o trabalho. Melhor dizendo: “sei que estou doente quando não consigo trabalhar.” É possível identificar desde a Antigüidade, embora de forma não sistemática ou não reconhecida, elementos que relacionam o trabalho a determinados padrões de doenças e condições de sofrimento e até mesmo morte prematura de determinados grupos de trabalhadores.1 A influência do trabalho como fator causal de dano ou agravo à saúde está hoje bem estabelecida e dimensionada em sua importância e magnitude.2 O Ministério da Saúde reconhece a correlação entre o trabalho e o processo saúde-doença, classificando essas doenças para os órgãos e sistemas do corpo humano.3 O absenteísmo, conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é definido como “a falta ao trabalho por parte de um empregado”, ao passo que o absenteísmo por licença médica “consiste no período de baixa laboral atribuída a uma incapacidade do indivíduo, contabilizado desde o início à margem de sua duração”4. As ausências no trabalho por motivo de doença têm importância na saúde pública, uma vez que indicam o processo de adoecimento dos trabalhadores e têm impacto econômico, pois interferem na produção, aumentam o custo operacional e reduzem a eficiência no trabalho. O absenteísmo acarreta sobrecarga àqueles que permanecem no trabalho, tendo que executar também as atividades dos colegas ausentes, podendo levar ao aparecimento de novos problemas de saúde e possíveis afastamentos no futuro. Contrapondo-se ao absenteísmo, foi identificado nos últimos anos um novo fenômeno: a presença do trabalhador, ainda que doente, no seu local de trabalho. O presenteísmo pode ser entendido como resultado das novas relações de trabalho, caracterizadas pelas altas taxas de desemprego, reestruturação nos setores públicos e privados, diminuição no tamanho da organização, redução do número de empregados, aumento do número de pessoas com contratos temporários e redução dos benefícios na empresa e entidades governamentais.5 O trabalho em saúde é considerado uma fonte de vários fatores de risco, tanto que recebeu por parte do Ministério do Trabalho tratamento específico, quando este promulgou a Norma Regulamentadora número 32 (NR-32) que trata das condições e necessidades dos trabalhadores em atividades de atenção à saúde.6 No Brasil, o setor saúde emprega 7,5% da mão-de-obra do mercado formal, sendo que o setor hospitalar corresponde a 62% desse contingente.7 Numericamente, perfazem no Brasil mais de 2,5 milhões de trabalhadores. Na América Latina, Estados Unidos e Caribe totalizam cerca de 20 milhões de trabalhadores.8 O setor hospitalar, como ramo de atividade classificado pela Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE), apresentou em 2005 uma taxa de acidentes de trabalho de 58,89 por 1.000 vínculos, enquanto a média nacional ficou em 19,85.9 Este trabalho apresenta uma revisão da literatura sobre a situação do absenteísmo no setor saúde e notadamente no setor hospitalar. Discrimina os diversos fatores que têm sido considerados relevantes nas estatísticas de ausência ao trabalho por motivo de doença e medidas preventivas que têm sido tomadas para minimizar essas taxas. Tece comentários sobre fatores peculiares ao setor saúde que estão implicados nesses valores e que muitas vezes são de difícil percepção e mensuração. MATERIAL E MÉTODOS A revisão bibliográfica se deu a partir de pesquisa na base de dados: MEDLINE via BIREME no período de 1996 a 2006 com o descritor [absenteísmo] e a palavra [hospital], encontrando-se 231 artigos dos quais 37 foram selecionados pelo título. Na base de dados WEB OF SCIENCE, até 2006, com o Subject categories: Public, environmental & occupational health e o descritor [absenteísmo], encontraram-se 517 artigos, dos quais 50 foram selecionados pelo título. Na base de dados LILACS até 2006 e com o descritor [absenteísmo] e a palavra [hospital], foram encontrados 82 artigos. Os artigos de língua inglesa, portuguesa ou espanhola foram selecionados pelo título e pelo resumo de acordo com a proposta temática de estudo. Aqueles considerados de interesse foram recuperados e lidos integralmente. ABSENTEÍSMO NO SETOR HOSPITALAR As taxas de absenteísmo apresentadas nos estudos em hospitais brasileiros variaram de 3,0 a 27,9 dias de afastamento/trabalhador/ano. O índice de absenteísmo (dias de ausência x 100/dias esperados x população laboral) variou de 1,23 a 6,82 e a Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S294-S302 295 Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados média de duração das licenças (taxa de severidade) ficou entre 3,9 e 27,9 dias.10-15 Mesa e Kaempffer16 levantaram dados de absenteísmo de mais de 30 anos em quatro segmentos de trabalho no Chile: hospitais, minas, indústria automobilística e universidades e organizações de pesquisa. O setor hospitalar apresentou as mais altas taxas. O índice de duração-dias (IDD) ou taxa de incapacidade foi de 14,3 dias/funcionário/ano. O índice de freqüência de trabalhadores (IFT) foi de 1,3 e a duração média das licenças (taxa de gravidade) foi de 10,6 dias (Tabela 1) Fatores sociodemográficos e de saúde A tendência de senso comum é considerar o absenteísmo o indicador direto da morbidade do grupo estudado. Esta é uma verdade parcial. O absenteísmo é um fenômeno multicausal e deve ser analisado à luz da sua complexidade, contemplando fatores relativos à instituição e à classe de trabalhadores em seu ambiente e contexto organizacional e social, os riscos a que estão sujeitos e implicações subjetivas no ato de se ausentar do trabalho. As pesquisas sobre absenteísmo procuram identificar as condições pessoais ou de natureza sociodemográficas que o influenciam. Assim, foram encontradas variações positivas nas profissões de nível elementar como auxiliar de serviços gerais, técnico de nutrição e dietética, auxiliar de cozinha e também entre os auxiliares e técnicos de enfermagem.12,14 A categoria de enfermagem tem sido bastante estudada e os índices de absenteísmo são elevados, considerando-a isoladamente ou quando comparados com outras categorias.12-13,17-21 Por sua vez, entre os médicos tem sido observada tendência a baixo absenteísmo e altos índices de presenteísmo.14,15,22 Lim et al. 14 compararam o absenteísmo de trabalhadores em um hospital de ensino. As 142 profissões foram agrupadas em seis grandes tipos: médicos, enfermeiros, outros profissionais de saúde em contato direto com o paciente (farmacêuticos, psicólogos, pessoal de enfermagem, etc..), pessoal de laboratório e apoio propedêutico, pessoal de escritório e trabalhadores manuais (motoristas, mecânicos, pedreiros, etc.). Considerável diferença no absenteísmo de curta duração foi encontrada entre os diversos tipos: a taxa entre os médicos foi quase nove vezes mais baixa que entre o pessoal de laboratório: respectivamente, 34 episódios para cada 100 trabalhadores-ano contra mais de 300 episódios para cada 100 trabalhadores-ano. Embora o pessoal de enfermagem tivesse taxa quase quatro vezes mais alta que os médicos, o número foi considerado pequeno comparado com outras categorias. O absenteísmo de longa duração apresentou menor variação entre os diversos tipos. Os médicos novamente tiveram as mais baixas taxas (menos que sete episódios por 100 trabalhadoresano), enquanto trabalhadores manuais e outros profissionais de saúde apresentaram taxas quatro vezes mais altas e significativamente mais altas que os outros grupos. (Tabela 2) Outros fatores que aumentaram o absenteísmo foram: baixa escolaridade14,23-25; idade avançada14,24,26; estado civil casado14,25 e sexo feminino.12,23,24,27,28 Ala-Mursula29 identificou que o aumento do absenteísmo está associado ao hábito de fumar, obesidade e sedentarismo. De acordo com Isosaki27, a jornada de trabalho e a presença de crianças em casa também influenciam a elevação dessas taxas. Tabela 1 - Comparação do absenteísmo entre várias seguimentos de organizações População laboral Número de Licenças Dias de licença IDD (Tx. de incapacidade Taxa de freqüência Taxa de severidade Hospitalar 6.825 9.190 97.422 14,3 1,3 10,6 Mineração 7.577 10.438 91.647 12,0 1,3 8,7 Industrial 849 470 6.070 7,1 0,6 12,9 1.981 1.481 12.234 6,2 0,7 8,2 Setor Universitário Adaptado de Mesa e Kaempffer 296 16 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S294-S302 Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados Tabela 2 - Absenteísmo entre trabalhadores de um hospital de ensino, por tipo e duração Curta-duração (1 a 3 d) Longa-duração (> 3d.) Média de dias perdidos Taxa de episódios/100 Trabalhadores-ano (IC95%) Taxa de episódios/100 Trabalhadores-ano (IC95%) Trabalhadores-ano 34,2 (29,4-40,0) 6,6 (4,4-9,4) 1,0 Enfermeiros 135,2 (130,4-140,2) 19,8 (18,0-21,7) 2,9 Outros profissionais de saúde 264,9 (252,6-277,6) 26,9 (23,1-31,2) 4,5 Apoio propedêutico 312,1 (296,6-328,3) 12,6 (9,7-16,2) 4,4 Pessoal de escritório 229,5 (219,0 -240,3) 17,4(14,6-20,6) 3,6 Trabalhadores braçais 259,6 (250,9-268,5) 28,3 (25,5-31,4) 4,6 Tipo Médicos Adaptado de Lim et al14 Fatores organizacionais Uma multiplicidade de fatores da organização do trabalho interfere nas taxas de absenteísmo, seja no sentido de facilitar seu aparecimento ou minimiza-lo. Os aspectos enfatizados dizem respeito à natureza da organização, às condições de risco, ao processo de trabalho e aos elementos de natureza relacional dentro e fora da empresa. As instituições públicas têm taxa mais alta que as privadas.20,30 Similarmente, a estabilidade no emprego favorece seu incremento11,24,31. O contato direto com pacientes parece ter alguma influência, ou seja, trabalhar em unidades de internação aumenta o absenteísmo, comparado com outros postos de trabalho.12,13,18 Os critérios de concessão e os protocolos utilizados para conceder-se o atestado parecem influenciar na incidência do absenteísmo e na sua duração. Silva e Marziale13 constataram que os atestados que dispensavam a perícia médica (um e dois dias) corresponderam a 79% dos atestados emitidos na instituição estudada. A natureza das relações pessoais e hierárquicas na organização reflete-se no incremento das taxas de absenteísmo: a relação do trabalhador com seu ambiente familiar e como a chefia administra essa problemática27; a exigência de assiduidade e baixa capacidade de flexibilidade no ritmo do trabalho28; o clima organizacional desfavorável; limitações na carreira; baixa qualidade do trabalho em equipe; e constrangimentos pessoais podem aumentar as ausências ao trabalho.32-35 Serxner et al.36 observaram que o comportamento de risco no ambiente laboral na área da saúde favorece o absenteísmo. Kivimaki et al.15, em seguimento com grupo de médicos e grupo-controle por dois anos, constataram que o trabalho em equipe teve o mais forte impacto no absenteísmo nos médicos, mas não no grupo-controle. Médicos que trabalhavam em equipes mal estruturadas tiveram mais chances de terem absenteísmo de longa duração que médicos que trabalhavam em equipes fortes [OR=1,8 (IC95% 1,3-3,0)]. O risco psicossocial O estresse no trabalho tem se convertido numa das principais causas de afastamento em vários seguimentos laborais. A aparição desse fenômeno pode ser atribuída às exigências da organização do trabalho.35 As repercussões desse fenômeno do ponto de vista da perda de produtividade, absenteísmo, perda da qualidade de vida e adoecimento são muitas e de difícil mensuração, por tratar-se de risco, muitas vezes, não reconhecido ou declarado.37 Nos últimos anos, alguns modelos têm surgido para sistematizar e permitir a análise e a intervenção nas situações de trabalho que podem levar ao estresse.37 O Modelo de Demanda e Controle desenvolvido por Karazek38 tem encontrado adeptos no mundo e vários estudos estão sendo realizados para testá-lo e às suas implicações em diversos aspectos, inclusive nas taxas de absenteísmo.29,39-41 O modelo baseia-se nas características psicossociais do trabalho: as demandas psicológicas que este estabelece e certa combinação dos controles das tarefas e o uso das capacidades (a chamada latitude de tomada de decisão).42 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S294-S302 297 Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados A primeira hipótese é que as reações de tensão psicológicas mais negativas (fadiga, ansiedade, depressão e enfermidades físicas) se produzem quando as exigências psicológicas do posto de trabalho são grandes e, além disso, há escassa amplitude de tomada de decisão do trabalhador. Estabelece-se a denominada “tensão psicológica”. Não é só a liberdade de ação a respeito da maneira de realizar a tarefa formal que libera a tensão; a liberdade para participar de “rituais” informais, a pausa para o café, para fumar, para “perambular” um pouco atuam também como mecanismos complementares de liberação da tensão durante a jornada de trabalho.43 Resumidamente, o modelo afirma que os postos de trabalho com grandes exigências e escassos controles sobre a tarefa – e também com escasso apoio social – são os que mais riscos de enfermidade apresentam. Observa-se que, em geral, o baixo controle sobre o trabalho e a falta do suporte social se relacionam diretamente com o aumento do absenteísmo.24,39,40,44 Nos estudos em que se tentou interferir nas variáveis em questão, ou seja, o aumento do controle sobre o trabalho e a diminuição das tensões psicológicas, verifica-se que os resultados ainda não são claros quanto à consistência das mudanças e sua influência no absenteísmo.40,44 Observa-se que o impacto das mudanças é mais efetivo no absenteísmo de longa duração.39 Perfil de morbidade O perfil de morbidade estabelecido a partir do diagnóstico atribuído por ocasião da concessão da licença tem fundamental importância na avaliação das condições de trabalho e das conseqüências no adoecimento dos trabalhadores. Diversos estudos têm apontado resultados semelhantes. As nosologias mais comuns na área da saúde têm sido as músculo-esqueléticas,11,12,13,16,23,26,27,45,46 as do aparelho respiratório para o absenteísmo de curta duração11,12,13,16,23 e os transtornos mentais para as ausências de longa duração.12,26,45,46 Entre os transtornos mentais, merece destaque a síndrome de Burnout. Vista como estado de exaustão física e emocional, resultado de estresse ou frustração prolongada, foi inicialmente diagnosticada nos anos 1970 e vem sendo encontrada em larga variedade de profissionais de saúde. O burnout leva a transtornos físicos e mentais e também ao abuso 298 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S294-S302 de substâncias. Os profissionais de risco incluem médicos, enfermeiros, assistentes sociais, dentistas, cuidadores, membros dos serviços de emergência, de saúde mental, fonoaudiólogos, entre outros.47 Borritz et al.48 verificaram que, entre diversos segmentos, cuidadores domiciliares e parturientes atingiram os mais altos níveis de burnout. Mudanças individuais na intensidade de burnout levaram ao aumento das taxas de absenteísmo de curto e de longo prazo. A taxa de absenteísmo variou de 13,9 para 6,0 dias entre o mais alto e o mais baixo quartil de burnout. MEDIDAS PREVENTIVAS Com o reconhecimento da importância de se cuidar do absenteísmo como indicador sintomático da condição de saúde e do desempenho dos trabalhadores e da organização do trabalho, novas medidas têm sido propostas e implementadas naqueles que seriam os fatores que o influenciam. McCluskey et al.49 constataram que o contato precoce, identificação de obstáculos psicossociais, modificação temporária do ambiente de trabalho e comunicação com os colegas reduziram o absenteísmo de 10,8 para 6,5 dias. Lavoie-Tremblay et al.42, em uma organização de cuidados de longo prazo, introduziram mudanças para diminuir as condições estressantes da organização identificadas previamente pela própria equipe. Os resultados foram avaliados a partir de questionários de avaliação do conteúdo do trabalho, equilíbrio esforço-recompensa e índices de sintomas psiquiátricos. Houve aumento da percepção do reconhecimento no trabalho e queda no absenteísmo de 8,26 para 1,86%, permanecendo o mesmo no restante da instituição (p<0,01). Arnetz50, em intervenção pró-ativa no gerenciamento do risco e orientações ergonômicas, verificaram completa reabilitação em maior proporção (84% contra 27% do grupo-controle). O retorno ao trabalho foi mais rápido que no grupo-controle OR=2,5 (IC95% 1,2-5,1). DISCUSSÃO O absenteísmo pode ser visto como resultado de um processo decisório no qual o trabalhador exerce, de forma deliberada ou inconsciente, sua Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados autonomia frente às pressões, de um lado a necessidade e/ou motivação para o trabalho e de outro as suas condições físicas de saúde. Aqui um paradoxo, em que a condição física é atribuída à situação de saúde e/ou doença do indivíduo como uma tentativa de agrupar os aspectos biológicos, psicológicos e mentais em um termo que se traduz em um comportamento resumidamente estabelecido: “consegue se locomover, se deslocar para o trabalho, exercer suas atividades?”. No entanto, a decisão de se ausentar do trabalho pode ser um atributo em que o trabalhador irá exercer sua capacidade de se manifestar. Do ponto de vista da decisão por comparecer ou não ao trabalho, que fatores seriam determinantes? O aspecto “físico” da doença, ou seja, o adoecer propriamente dito, terá como resultado uma incapacidade que pode variar em grau e acometer diferentes órgãos e terá implicações na relação com o trabalho e exercício de suas competências. A fratura de um membro obviamente irá impossibilitar o motorista de exercer plenamente e com segurança sua atividade de dirigir. Ressalvadas aquelas condições nas quais não há dúvidas da decisão de comparecer ou não ao trabalho ou da concessão do atestado médico, pode haver as que não são tão óbvias. Vai depender de elementos que escapam a uma visão simplista do problema. Muitas vezes, a opção diz respeito mais ao ambiente e objeto de atuação que à própria condição do exercício das atividades. Exemplo pode ser dado com trabalhadores da saúde quando no contato com pacientes imunodeprimidos e em que um simples resfriado contra-indica o trabalho, muito mais pelo risco ao paciente que pela condição do trabalhador, ainda que justificado como absenteísmo por doença. As estatísticas não especificam essas particularidades. Ocasionalmente, a decisão de afastamento se deve mais ao ambiente de trabalho que às condições de saúde: quando determinada exposição irá desencadear ou agravar um quadro mórbido previamente conhecido. Está-se falando dos riscos de várias naturezas, como a exposição a ruído, calor, agentes químicos, microorganismos, risco de acidentes e fatores da organização do trabalho. Nessas situações, a condição de saúde do trabalhador, embora não absoluta, também será levada em conta. Diante da queixa de dor persistente no membro superior, o médico irá avaliar se o trabalho pode ser um fator de risco para aquela queixa e decidir pelo seu afastamento. Provavelmente, outros trabalhadores estão expostos aos mesmos riscos e não irão apresentar as mesmas queixas. Assim, não serão passíveis de intervenção médica, seja para atuar no resultado do risco em seu corpo, seja para intervir no ambiente de trabalho. A identificação do fenômeno do presenteísmo, a partir da década de 1990, traz novo ingrediente a essa discussão. O maior índice de presenteísmo é disparado nas áreas da saúde e educação (enfermeiros e pessoal técnico de enfermagem, professores e demais educadores) [OR=2,29 (IC95% 1,79-2,93)]. As maiores queixas entre os que apresentaram presenteísmo se referem a lombalgias e dores cervicais, sensação de fadiga e estados depressivos menores. Os grupos ocupacionais que apresentaram alto índice de presenteísmo também são os que apresentaram as mais altas taxas de absenteísmo (p<0,01) e a hipótese da correlação entre baixos salários e presenteísmo foi confirmada (p<0,01). Por fim, a combinação mais comum encontrada, comparando-se as diversas ocupações, foi a baixa produtividade, altos níveis de presenteísmo e altos níveis de absenteísmo. Essa correlação poderia ser explicada pelo fato de que a ausência ao trabalho por doença é apenas uma questão de tempo entre aqueles que insistem em trabalhar em precárias condições de saúde ou ainda pela maior vulnerabilidade desses grupos a condições adversas de trabalho desencadeando o agravamento da condição de saúde e conseqüente absenteísmo.51 Estabelecidas resumidamente essas condições extremas ou qualitativamente bem justificadas, podese discorrer naquela faixa sobre a qual não há consenso. Ou seja, para as mesmas situações objetivas será encontrada uma variabilidade nas estatísticas de absenteísmo. Certamente, trata-se de um fenômeno cuja explicação não pode ser atribuída a fatores específicos e bem determinados. Simplificando e “enquadrando” as condições de capacidade para o trabalho e sua efetivação, têm-se quatro situações possíveis: a) indivíduo sadio e presente ao trabalho; b) indivíduo doente e presente ao trabalho (presenteísmo); c) indivíduo sadio e ausente ao trabalho; e d) o indivíduo doente e ausente ao trabalho (absenteísmo). Um elemento que perpassa essas quatro condições e que pode explicar, em parte, a inserção em determinado quadrante poderia ser aquele que se denomina a motivação para o trabalho. A motivação, Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S294-S302 299 Absenteísmo no trabalho em saúde: fatores relacionados em Psicologia, diz respeito a como o comportamento é iniciado, dirigido e sustentado. Os estados motivacionais são energizantes no sentido de que ativam ou estimulam os comportamentos.52 O estado motivacional para trabalhar teria implicações significativas no resultado final do absenteísmo. São condições que podem influenciar esse estado motivacional: a situação socioeconômica, valores sociais, sentido de disciplina e comprometimento com o trabalho, busca por reconhecimento pessoal e profissional, entre outras. Os fatores motivacionais no ambiente de trabalho podem ser medidos a partir de pesquisa de clima organizacional, sistemas de recompensas e punições, apoio social na empresa, sistema de referência, percepção, consciência e interpretações sociais do risco, etc. Entender os fatores motivacionais no ambiente de trabalho torna-se relevante para a atuação visando à melhoria do clima organizacional, da produtividade, das condições de trabalho, minimização de riscos, promoção de saúde e, conseqüentemente, diminuição do absenteísmo. CONSIDERAÇÕES FINAIS As relações de trabalho são sociais e assim devem ser entendidas. O homem social não se abstrai dos outros níveis, mas os completa; o homem biológico sujeito às agressões físicas, químicas e biológicas, vulnerável aos acidentes; o homem psíquico e sua interpretação do mundo, como o percebe, organiza e se relaciona com o meio e é influenciado por ele. O absenteísmo-doença, comportamento visível, em uma escala de resposta a uma condição de saúde pode ser visto também como resultado de uma estratégia cognitiva de resposta do trabalhador, submetida a uma escala de valores coletivos e individuais. O absenteísmo é uma rendição ao adoecimento? Uma resposta a situações de riscos e constrangimentos no trabalho? Resposta a climas organizacionais desfavoráveis? Ou o reflexo de uma situação absolutamente independente do trabalho? Ao tomar a decisão de não trabalhar está-se afirmando uma condição e uma posição diante do trabalho. Posso ou não adoecer? Que compromissos tenho com meus companheiros? Com minha chefia? Com o resultado de meu trabalho?... Todos os dias, o trabalhador acorda e decide se vai trabalhar ou não. O seu chefe está contando com essa decisão e espera não ter “surpresas”. 300 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S294-S302 Em dada população exposta a determinados riscos, tem-se mais ou menos absenteísmo, de acordo com os fatores motivacionais a que está sujeita. Para uma mesma condição motivacional, a presença no trabalho sofrerá influências dos riscos no ambiente de trabalho e fora dele. O perfil sociodemográfico influenciará a seu modo, de acordo com composição de seu contingente: sexo, idade, escolaridade, estado civil, constituição familiar, etc. Delimita-se, assim, uma equação assumidamente incompleta, mas que permite uma referência para a atuação e intervenção. O absenteísmo confirma-se como um importante indicador, não só do perfil de adoecimento, mas também das condições de trabalho, do clima organizacional e de quão comprometidos estão os trabalhadores. Por fim, é necessário o desenvolvimento de instrumentos de medição, qualitativos e/ou quantitativos, para o melhor entendimento dessa realidade. Esses instrumentos devem ser sensíveis às diversas possibilidades de explicação para o fenômeno e suficientemente específicos, possibilitando, assim, a intervenção, tanto no aspecto preventivo de sua inserção quanto para reparar uma condição já instalada de dano à saúde por meio do trabalho. REFERÊNCIAS 1. Mendes R, Waissmann W. Aspectos históricos da Patologia do Trabalho. In: Mendes R. Patologia do Trabalho. 2ª ed.. São Paulo: Atheneu; 2003. p.3-45. 2. Mendes R. Conceito de Patologia do Trabalho. In: Mendes R. Patologia do Trabalho. 2º ed. Atualizada e Ampliada. São Paulo: Atheneu; 2003. p. 47-92. 3. Dias EC. Organizadora. Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Representação do Brasil da OPAS/OMS; 2001. 4. Oficina Internacional Del Trabajo. 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Ciência psicológica: mente, cérebro e comportamento. Porto Alegre: Artmed; 2005. ARTIGO DE REVISÃO A cultura homeopática de paz na saúde The homeopathic culture of peace in health Antonio Carlos Gonçalves da Cruz1; Giovano de Castro Iannotti2; Kerlane Ferreira da Costa Gouveia3; Mônica Beier4 RESUMO A Medicina Homeopática (MH) considera que há uma LEI que ordena o TODO do mundo a partir de uma díade que lhe é comum: o Princípio de Semelhança. Para a Homeopatia, o TODO é um discurso vivo e dialético compreendido como uma experiência hermenêutica de semelhança. Essa conversa emanativa é a saúde que representa a LEI se atualizando no organismo de todas as coisas. Já a doença corresponde ao impedimento desse livre discurso ou vida. Assim, a obstaculização da saúde equivale a uma violência simbólica e genérica capaz de se atualizar em violências circunstanciais e específicas. Objetiva-se demonstrar como a MH contribui para a resolução dessas violências estudando-se um caso clínico de ferida simbólica e dialética do pesar atualizada em abscessos recorrentes de mama, tratado com Sarsaparilla. A partir de seu método de assimilação das atualizações de saúde a MH trata representações de doença e promove a saúde pela comunhão ou consenso da díade médico-paciente baseado em memória sintética experimental. A demonstração do consenso homeopático permite concluir que a MH pode contribuir para a construção da cultura de paz na saúde, auxiliando as pessoas na resolução de seus conflitos íntimos. 1 Médico Homeopata - Notório Saber em Homeopatia pelo Instituto Mineiro de Homeopatia (IMH) - Coordenador do Grupo Paracelsus de Estudos Homeopáticos do IMH. 2 Médico Homeopata – Doutorando – Universidad Nacional de Córdoba – Argentina Professor – Instituto Mineiro de Homeopatia – Brasil Membro do Núcleo de Promoção Saúde e Paz – Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil Miembro del Núcleo de Promoción Salud y Paz –Universidad Nacional de Córdoba – Argentina 3 Médica Homeopata - Mestranda em Ciências da Saúde do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Unimontes, Montes Claros, Minas Gerais – Professora do Serviço Phýsis de Homeopatia do IMH 4 Médica Homeopata - Coordenadora do Serviço Phýsis de Homeopatia do Instituto Mineiro de Homeopatia . Instituição: Instituto Mineiro de Homeopatia Palavras-chave: Homeopatia. Fundamentos da Homeopatia. Consenso. Violência. ABSTRACT The Homeopathic Medicine (HM) considers that there is a LAW that organizes the WHOLE in the world through a dyad that is common to it: the Principle of Similitude. For Homeopathy the WHOLE is a living and dialectic discourse understood as a hermeneutic experience of similitude. This emanative conversation is the health that represents the LAW being updated in the organisms of all things. However, the disease corresponds to an impediment of this free discourse or life. Then, the impediment of health equates to a symbolic and generic violence capable of renewing itself in specific and circumstantial moments of violence. The goal of this essay is to demonstrate how HM contributes to the resolution of these moments of violence through the study of a clinical case of a symbolic and dialetic wound of grief updated by recurring breast abscesses, which was treated with Sarsaparilla. Through its method of assimilation of the health renewals HM treats the representations of the sickness and promotes health through the communion or the consensus of the physician-patient dyad based on the synthetic experimental memory. The demonstration of the homeopathic consensus allows us to conclude that the HM can contribute to the construction of a peace culture in health, helping people to solve their inner conflicts. Key words: Homeopathy. Homeopathy Basis. Consensus. Violence. INTRODUÇÃO Endereço para correspondência: A Medicina Homeopática (MH) foi sistematizada por Samuel Hahnemann (1755-1843) com base no principio hipocrático Similia Similibus Curentur para Instituto Mineiro de Homeopatia Rua Brumadinho, 275 – 2º andar, Prado CEP 30410-120 Belo Horizonte – MG. www.imh.com.br [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 303 A cultura homeopática de paz na saúde o tratamento das perturbações de saúde. Ele estabelece que determinada variação natural de saúde é susceptível de ser modificada curativamente a partir de interação com influências naturais ou artificiais cujos efeitos na saúde lhe sejam semelhantes. Esse fundamento é conhecido como Princípio de Semelhança (PS). De outro modo, quando se utiliza a estratégia terapêutica de contrariar a perturbação de saúde por efeitos medicamentosos antagônicos à sintomatologia dada, o que se pratica é o fundamento, também hipocrático, Contraria Contrariis Curentur (Tabela 1). Desenvolvendo criteriosa pesquisa, Hahnemann tanto observou interações naturais entre influências semelhantes, contrárias e diversas, quanto realizou vastos e meticulosos estudos experimentais de efeitos na saúde suscitados por influências medicamentosas artificiais. Note-se que os procedimentos hahnemannianos foram observacionais e experimentais, como o são os estudos contemporâneos. Valorizando a interação entre fatores endógenos, relacionados aos indivíduos ou às coletividades, e fatores exógenos ou circunstanciais, Hahnemann procurou compreender os fundamentos naturais em que a terapêutica com medicamentos pudesse se ordenar para ser simples e de fácil entendimento, além de suave e duradoura em seus efeitos. Suas conclusões contemplaram: ■ a paliação desenvolvida com a prática terapêutica Contraria Contrariis, segundo a qual a doença ressurge em contexto de cura mais difícil, seja como a doença anterior, porém mais forte, seja como doença complexa, com outro aspecto, porque, agora, combinada com os sintomas próprios ■ ■ da doença medicamentosa (isto é, por paliação, depois de um período mais ou menos longo de melhora, a doença ressurge mais refratária ao tratamento tão-logo se esgota a influência antagonista ou variada na intensidade dos antigos sintomas que retomam suas atividades com mais pujança ou variada na complexidade dos sintomas porque combinada com as manifestações sintomáticas despertadas artificialmente); a destruição suave e econômica da doença natural pelo medicamento semelhante ultradiluído; o desenvolvimento da saúde na cura de doenças crônicas, compreendendo a natureza dinâmica do organismo.1 Por intermédio do enfoque dinâmico da saúde, compreendeu-se que suas manifestações podem variá-la em aspectos externos, susceptíveis de serem categorizados em nosologias diversas.2,3 De acordo com essa compreensão, a saúde se comporta como uma díade que irradia, isto é, como uma essência que tende a permanecer, mas que também, dialeticamente, tende a se manifestar por meio de acidentes ou superficializações sintomáticas que variam ao longo do tempo. Assim, a saúde se atualiza como um princípio de transformismo orgânico conhecido na MH como Dynamis ou Principio Vital ou Energia Vital ou, ainda, Força Vital. Para a MH, uma mesma pessoa manifestando entidades nosológicas distintas, no mesmo momento ou ao longo de sua história biopatográfica, quase sempre superficializa na diversidade uma mesma essência mórbida.2,3 A Essência, irradiando-se, se reconduz em uma Tabela 1 - Tradição dos fundamentos hipocráticos da terapêutica medicamentosa Similia Similibus Curentur Contraria Contrariis Curentur Semelhança com a Totalidade sintomática essencial Antagonismo a sintomas isolados Díade representativa Dissociados Doença(s) em um indivíduo: Total (geral). Atualizações de uma mesma diátese Parciais (locais). Entidades clínicas independentes Medicamento que tende a: Simplicidade (único) Complexidade (vários) Grau de grandeza da dose: Pequenez infinitesimal Ponderável (dose grande) Tendência à paliação - + Experiência na saúde + - Experiência de “com-senso” + - Relação entre efeitos medicinais e sintomatologia: Indivíduo e circunstância: 304 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 A cultura homeopática de paz na saúde multiplicidade de manifestações categorizáveis, como causa que continua em seus efeitos, tal o modelo do sol irradiando-se. Por exemplo, de acordo com o caso clínico estudado, infecções urinárias (ITU) e abscessos mamários de repetição, numa mesma pessoa, quase sempre são aspectos distintos e irradiados de uma mesma suposição mórbida. Ou, ainda, ITU em uma época e abscessos mamários em outra ocasião, no mesmo indivíduo, podem ser manifestações distintas de uma mesma predisposição mórbida. É a essa suposição, diátese ou terreno mórbido que se dirige o intento curativo da MH. As experiências hahnemannianas foram feitas na saúde, quer dizer, em pessoa saudável, capaz de disponibilizar alterações de seu próprio modo de pensar e de sentir. Elas não se fizeram em pessoa doente, considerando-se que, segundo a MH, a propriedade medicinal que altera a saúde do indivíduo saudável é a mesma que altera a saúde do enfermo, levando-se em conta, ainda, que essa propriedade se notabiliza por sutis alterações do psiquismo de quem experimenta a dose medicamentosa infinitesimal. Elas são cuidadosamente anotadas elaborando-se registros chamados matérias médicas, que o PS utiliza na terapêutica. As matérias médicas, por sua vez, se otimizam pelos registros de pessoas saudáveis (que, tanto quanto possível, devem ser os próprios médicos) que usam o medicamento com fins de experimento, totalizando-se em síntese chamada memória sintética experimental (MSE). Exemplificando: a partir do estudo das disponibilizações do modo de pensar e de sentir de pessoas sadias em experiências puras de medicamentos infinitesimais é possível constatar uma diátese mórbida representada por sensibilidade à dor ou pesar. Este é o caso quando o medicamento é Sarsaparilla. É sabido que uma predisposição se reduz, contingentemente, em diferentes aspectos mórbidos que podem incluir ITU e abscessos mamários. Logo, para se usar a MH no tratamento de enfermidades que se manifestam por ITU ou abscessos mamários, em concomitância ou como substituições mórbidas da diátese representada pelo pesar ao longo da história biopatográfica do indivíduo, não é necessário que os que experimentam medicamentos na própria saúde desenvolvam essas representações mórbidas. Basta que a prova da dose ultradiluída do medicamento cujo poder medicinal se investiga resulte em matéria médica que registre sutis sofrimentos do psiquismo como sensibilidade à dor ou pesar, de acordo com o exemplo aqui adotado. Um medicamento que em provas na saúde desenvolve feridas de sensibilidade à dor ou pesar pode, homeopaticamente, ser usado no tratamento e cura de doenças que se manifestam com ITU ou abscessos mamários, entre outras possibilidades substitutivas, porque uma dessas variáveis se atualiza em outra a partir da essência que preside o transformismo aparente da saúde, se esta essência for representada pelo pesar simbólico. Conforme Hahnemann, a saúde corresponde ao fluxo desimpedido da vida2 e a doença a uma perturbação da Energia Vital1 que obstaculiza a saúde.4 Para a Homeopatia, as perturbações dinâmicas do Princípio Vital não têm como ser conhecidas diretamente1. Elas podem, entretanto, ser reconhecidas indiretamente pela experiência de consenso do próprio médico, que mede a grandeza da saúde por própria MSE. Pela MSE dialoga-se com a natureza individual em seu transformismo de saúde e remedeia-se a variação dinâmica por meio de um com-senso5: a sensação peculiar de doença radicada no discurso do outro evoca memória experimental semelhante do médico que experimentou o medicamento homeopático. A moderação de saúde, como semelhança supostamente presente, evoca saúde da díade médico-paciente no consenso que alforria o organismo de “re-sentimento”6, ou doença, havido por violência.7 O médico, como homeopata, para estar de acordo com a inclusão e com o consenso conversivo da fenomenologia, em sintonia com os fundamentos da universalidade, da equidade e da integralidade da saúde8, examina a perturbação de saúde na história de representação de doença. Suspendendo o juízo, para dialogar consensualmente com a “saúde que vem de lá”, o homeopata medeia a tensão orgânica, tomando a doença como uma espécie de violência simbólica (VS). Assim, a cultura homeopática pode ser tida como conversiva e de paz, baseada no serviço ou diálogo com a Natureza. Objetiva-se demonstrar, com base no relato de um caso clínico, como a MH pode ser valorizada como instrumento de auxílio na resolução de conflitos de saúde. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 305 A cultura homeopática de paz na saúde METODOLOGIA Estuda-se uma experiência clínica curativa porque ela é suficiente para demonstrar as habilidades de consenso da assimilação homeopática. Ela auxilia o entendimento do processo de “resubjetivação” (RS), ou cura, que minimiza a sensação de doença ou VS que se atualiza em doenças classificáveis ou em outras formas de violências, incluindo as iatrogênicas. A utilização da metodologia de assimilação ou de consenso baseada em MSE foi aplicada em um caso de representação de doença no ambulatório do Serviço Phýsis de Homeopatia do Instituto Mineiro de Homeopatia. Nunca me senti tão bem. O seio não infeccionou mais. É incrível que 30 anos depois a gente vai descobrir um jeito. Vendi até casa para pagar operações. Estou me sentindo bem comigo mesma. Não tive mais sonhos ruins. Nunca falei, mas separei-me porque o marido tentou estuprar uma pessoa. Não o denunciei, mas fiquei com culpa, guardando todo esse peso: ele poderia estuprar outra pessoa ou minha filha. Foi o maior peso que carreguei sem precisar, até que ele morreu. Nunca pude falar nisso. Estou aliviada. Eu já tinha tendência a infeccionar o seio e piorei. Conduta: aguardar e voltar ao ambulatório em caso de necessidade. O Caso RESULTADOS E DISCUSSÃO O caso clínico é de uma senhora de 51 anos, cabeleireira. Desde o quinto mês de gestação do primeiro filho, aos 21 anos, começou a manifestar mastite supurativa. Já se submeteu a 10 cirurgias e a várias drenagens. “Nenhum medico parou para me dar atenção e uma posição que seja resolutiva para o meu caso”. Foi portadora de ITU dos oito aos 30 anos, quando, por mioma, submeteu-se à histerectomia. O quadro sempre retorna no mesmo lugar, na mama esquerda. “Na direita não tenho mais porque fiz cirurgia que retirou os ductos”. “Depois das grandes tensões, vem infecção mais dolorida e duradoura”. “Se pudesse evitar doenças e problemas nos filhos eu os teria em mim”. “Perdi a mãe cedo e cuidei dos irmãos”. “Criei os filhos sem o pai deles”. “Já passei muita raiva e coisa difícil na vida”. “Pode acontecer tudo comigo que suporto, mas tenho pavor de dor, passo mal com dor”. “Já tive cólicas de rins, antes desmaiava de medo de doer, o resto agüento”. “Depois da morte do ex-marido passei a ter pesadelos em que ele pedia para cuidar dele, acordando apavorada por isso. Até hoje tenho pena dele porque ele chegou tão baixo”. A paciente foi medicada com uma dose sublingual de Sarsaparilla9,10 40 CH, uma gota em um papel. Três meses depois ela disse que se sentia “mais tranqüila, sem os pesadelos”. “Enxergo melhor que cada um cuida de sua própria vida” e que este é o caso dos filhos. “Vê a coisa mais clara, mais rapidamente”. A conduta foi aguardar. Quatro meses depois de sua segunda consulta: “emocionalmente tranqüila, a infecção não voltou”. 306 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 Este caso é exemplo de uma particular VS se atualizando, em que o organismo se manifestava incapaz, por si só, de realizar uma crise catártica resolutiva. Faltava-lhe saúde suficiente para manifestar brevidade à sensação de doença. A representação de doença que já acontecia desde os oito anos como ITU atualizou-se no desenvolvimento das mastites e do mioma, sendo que, curiosamente, a ITU deixou de existir depois da histerectomia. O exame da história revelou uma individualidade dialeticamente sensível à dor: incapaz de suportála fisicamente por um lado e, por outro, contraditoriamente, capaz de suportar a carga de pesados fardos simbólicos. A doença dinâmica revelou-se como mastite durante a primeira gravidez, comportamento que passou a se repetir apesar de vários tratamentos antagônicos de sintomatologia local, incluindo mastectomia parcial, com desenvolvimento vicário do quadro semelhante na mama contralateral. Apresentava distúrbio de função de sono manifestando pesadelos repetidos em que o ex-marido “lhe pedia ajuda”. Assim cursou a paliação. O exame hermenêutico da simbologia discursiva presente na história permitiu reconhecer por MSE uma disfunção sensorial do pesar, já que peso se reduz à dor (pesar) e à gravidez (gravidade) e se implica com suportabilidade e com pesadelo. Segundo a hermenêutica sonora11, que relaciona pezon a peso, a ferida do pesar se implica com o sofrimento mamário. Observa-se que pezon - mamilo em espanhol - refere-se à mama. A gravidez A cultura homeopática de paz na saúde a sobrecarregava em peso simbólico. Combinando essa ferida simbólica - a disfunção dialética do pesar (VS) - com manifestações urinárias e abscessos mamários, produz-se um quadro de representação de doença compatível com MSE de Sarsaparilla. Vale lembrar que urinar é descarregar porque a urina carreia escórias. O medicamento dinamizado foi prescrito em grandeza infinitesimal CH 40. A seguir, a paciente revelou a pertinaz ferida metafórica que a objetivou durante muitos anos: uma culpa ou peso na consciência, impondo-se a suportá-la sozinha. Após a única dose houve mudança curativa de atitude no enfrentamento de mundo - moderação da objetivação ou “re-subjetivação” (RS) - com minimização da disfunção dialética do pesar (VS) e pacificação na vida de relação. No transformismo da VS em violências específicas as ITU se tornaram repetitivas, a princípio. Depois se transformaram em abscessos mamários por paliação. Para a MH, contudo, essas representações naturais de doença protegeram a paciente do desenvolvimento de males psíquicos, mais graves e mais profundos1. Elas se radicaram na objetivação dialética do pesar (VS). Entende-se como objetivação dialética a manifestação de enfrentamentos imoderados - separatistas - tendente a dissociar a díade sujeito-ambiente. No dialético discurso dessa violência os indivíduos se objetivam fragmentariamente como sujeitos da separação: impondo-a ou sofrendo-a opressivamente diante de uma evocação circunstancial. Nesse caso, o símbolo se dissocia e seus pares essenciais se distanciam, como se circunstância temporal e indivíduo pudessem se separar e não se refletissem. Se o indivíduo sofre o discurso de mundo como um pesar, na condição de “separado” ele se queixa de sofrer o peso de viver nesse doloroso “mundo aí”. Nesse enfrentamento ele se posiciona ou como um “gigante endeusado” que desafia a capacidade de suportar ou como um “anão”, insuficiente diante das representações do metafórico pesar³. Considerando que a objetivação da díade sujeito - circunstância é um discurso de ferida simbólica ou VS, já em si uma predisposição; quando o caso for o pesar, a VS se traduzirá em outras violências pela vivência não integrada de mundo em que o indivíduo se dissocia de sua representação circunstancial como um peso, dor ou sobrecarga. A objetivação pode, contraditoriamente, caracterizar um “gigantismo” ou um “nanismo”. Quanto ao en- frentamento de pesos existenciais, que atualizam a simbólica e universal dor de viver nesse “mundo aí”, o indivíduo pode se julgar mais capaz. Com esse julgamento os outros são insuficientes nessa relação. Para esse “gigante ou mágico”, admitindose o “gigantismo” como expressão de “magnização”, não há peso que não possa ser suportado e o outro é incapaz de qualquer suportabilidade. Por outro lado, em “nanismo” metafórico diante de um pesar encontram-se relativas incapacidades para o enfrentamento moderado das cargas existenciais. A objetivação da díade sujeito-tempo, que expressa a vida do sujeito no mundo que ele é capaz de representar e reconhecer como própria medida, fraciona a comunicação de qualquer um com todo o outro, maximiza a relação dialética de um sobre (ou sob) o outro e amortece o autoconhecimento, a autarquia, a autonomia, a liberdade ou a saúde. A objetivação do discurso simbólico, que é a conversa da inseparável díade sujeito-circunstância, multiplica sentimentos como experiência de sentimentos ou “re-sentimento”5. O “re-sentimento” obstaculiza o fluxo da vida como doença. Então, o “re-sentimento” corresponde a uma violência simbólica que se atualiza em doenças por dinâmicas que reconduzem “gigantes e anões” como opressores e oprimidos. A cura homeopática do discurso simbólico ferido, no caso presente exemplificado pelo pesar, incluiu tanto a cura do abscesso de mama como, também, a “re-significação” do sujeito - sua postura de enfrentamento de mundo - considerando que a predisposição se manifesta de dentro para fora e que é demonstrada pela circunstância, porque o ambiente é individual e representação inseparável do sujeito. O outro concorre com a história individual de VS atualizada na clinica das doenças que admite conversão em suas manifestações e a MH faculta que se reconheça o símbolo ferido por experiência sensiva semelhante, configurada em MSE. Por MSE o homeopata se sente incluído na experiência mágica do outro, como uma semente diante de sua realização como árvore. A experiência terapêutica do PS fala, pois, de experiência de consenso, mediadora do conflito decorrente de VS. A Homeopatia compreende que a Natureza é dialética e se manifesta como um discurso da díade Natureza essencial – naturezas diversas e individuais. O discurso natural é uma irradiação que Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 307 A cultura homeopática de paz na saúde manifesta em leis a suposição de UMA LEI por um Princípio de Semelhança (PS) que lhe é comum. Nesse sentido, como díade semelhante, o PS é princípio constitutivo, comunicativo ou arché da diversidade12. A emanação da LEI configura uma experiência de Totalidade. A LEI intui a manifestação comunicativamente porque o PS é comum a toda realidade. A comunicação que é suposta na Totalidade ou organismo da LEI traduz-se pela intercomunicação conversiva do discurso orgânico. Daí que se compreende que uma manifestação da saúde pode ser convertida em outra. Para a MH, o Todo, apesar de não ser a LEI ou o UM, é como o UM e com ELE é comum: a Totalidade é a comunidade em que o UM Se reconduz por ordenação. O vitalismo homeopático considera o mundo como um Todo em comunhão, isto é, vivo e orgânico. A vida reconduz todas as coisas por semelhança por meio de um dialético dinamismo como uma conversa mágica. A magna conversa - ou conversão - organiza o Todo em continuum corporal, à semelhança da magia de uma semente simples - infinitesimal como os medicamentos homeopáticos - fazendo sua grande e complexa árvore por ordenação do terreno imanente.11 A tensa contradição que supõe o mundo diversificado é moderada pela díade semelhante. Deste modo, a conversão que intercomunica a Totalidade e traduz Sua variação pode ser compreendida como uma experiência hermenêutica de consenso. Logo, a LEI subjaz à tensão da contradição e da diversidade orgânica de mundo como intenção intuitiva e ordenadora que governa por meio do PS. Visto que o Todo é um discurso hermenêutico ou experiência de consenso, a vida manifesta a experiência como uma energia ou força, de vez que se configura em permanente transformismo.6 Essa Energia Vital se desdobra na “in-formação” do Todo. Para o vitalismo homeopático, pois, a Totalidade orgânica se fundamenta em uma ordenação que determina uma dinâmica formativa equivalente a uma potência hermenêutica, realizando todas as formas porque as supõe como informação conversiva13. Então, a saída dinâmica dessa potência é entendida como saúde: a manifestação da díade semelhante sujeito-circunstância. Compreendida em contexto emanativo de intenção ou de informação, a saúde manifesta a ordenação suposta e intuitiva em consenso de Totalidade ou continuum. A LEI que se continua em um 308 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 PS como intenção ou informação, que por Sua vez Se multiplica em princípios conversivos de contradição e de diversidade na tensão corporal, irradiaSe como um símbolo solar gerando e mantendo a vida. A LEI, regimentando-Se por leis orgânicas em continuum, traduz a compreensão pré-socrática de Phýsis. Se há LEI e leis, há Phýsis e phýsies14,15 Essa propriedade da Phýsis de Se duplicar manifesta Sua natureza de díade, de Ser em Si mesmo e de ser na relação. Tal a Dynamis: propriedade da Phýsis de Se colocar desdobrada “aí nesse mundo” vário, em diversidade semelhante e conversiva. A Phýsis Se impõe no diálogo mundano como informação. Logo, a Dynamis traduz a capacidade vocal e semelhante da Phýsis em verbalizar ou conjugar o Todo como Sua própria capa. A Natureza é um diálogo que manifesta o discurso dinâmico e corporal da Phýsis. Assim, há Saúde e saúdes. As saúdes em continuum manifestam a corrupção conversiva e dinâmica por representações orgânicas de contradição e de diversificação regidas pelo Princípio de Semelhança. Se a semelhança comunica e informa, a semelhança medeia e remedeia. CONCLUSÃO O auxílio da assimilação homeopática resulta em desobstaculização do livre fluxo da vida, ou promoção de saúde, facilitando a “re-subjetivação” no circuito dinâmico da violência que é fomentado por paliação. A assimilação homeopática ou experiência de consenso, ensejada por memória sintética experimental, pode contribuir para a construção da cultura de não-violência. REFERÊNCIAS 1. Hahnemann S. Organon da arte de curar. 6ª ed. São Paulo: Robe Editorial; 1996. 163p. 2. Hahnemann S. Doctrina y tratamiento homeopático de las enfermidades crónicas. Buenos Aires: Editorial Albatros; 1983. 3. Elizalde AM. Homeopatia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Luz Menescal; 2004. 4. Malta DC, Castro A, Silva MMA, Mascarenhas MDM, Neto OLM. 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São Paulo: Editora Homeopática Brasileira; 1998. v.2, p.1692-701. 11. Cruz ACG. Da Substituibilidade em Autopatogenesias que implica provadores e a propriedade medicinal por representação psíquica. “Memória em Homeopatia”. Belo Horizonte, 2007. [Citado em dez. 2007]. Disponível em: http://www.imh.com.br/default. asp?id=13&mnu=13 12. Cruz ACG. Transformismo saúde: tradição homeopática do UM. Belo Horizonte, 2006. [Citado em dez. 2007]. Disponível em http://www.imh.com.br/media/tradicao.pdf 13. Gouveia KF. A Experiência da Autopatogenesia: uma reflexão sob a perspectiva da Filosofia Contemporânea. 2006 [monografia]. Ouro Preto: Instituto Mineiro de Homeopatia. Ouro Preto; 2006. 67p. 14. Entralgo PL. La Medicina Hipocrática. Madrid: Alianza Universidad; 1987. Cap 2, p.43-110. 15. Beier M. O Símile hipocrático [dissertação]. Belo Horizonte: Instituto Mineiro de Homeopatia; 1997. 10. Vijnovsky B. Tratado de matéria medica homeopática. 2ª ed. São Paulo: Gráfica Editora Ltda; 1989. v.3, p.285-88. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S303-S309 309 ARTIGO ORIGINAL Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família Intersectoriality and Family Health Program Speech Ana Maria Ribeiro de Almeida1, Elza Machado de Melo2 RESUMO 1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública/DMPS/FM/UFMG 2 Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social. Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pùblica/DMPS/FM/UFMG O Programa Saúde da Família (PSF) é uma estratégia incentivada pelo governo brasileiro de construção da Atenção Básica de Saúde, em caráter substitutivo e, consequentemente, de construção de um novo modelo de atenção baseado nos pressupostos do Sistema Único de Saúde (SUS). Este artigo tem por objetivo discutir o tema da intersetorialidade e sua relação com o PSF - como ela é/deveria ser inserida no discurso e na prática desse programa – em face da sua importância no processo de mudança do modelo de atenção, centrado na promoção e no conceito ampliado de saúde: a intersetorialidade é considerada, atualmente, uma questão crucial, principalmente no Brasil, por ser um dos países de maior desigualdade social do mundo, enfrentando, por isso, inúmeros problemas sociais, econômicos, ambientais, educacionais, de infra-estrutura urbana, pobreza e de aumento alarmante da violência, gerando enormes desafios para a Saúde Pública. A intersetorialidade representaria, portanto, um mecanismo participativo essencial para se alcançarem melhores condições de vida para os brasileiros e, assim, conseguir atingir melhores níveis de saúde da população. Palavras-chave: Programa Saúde da Família. Atenção Básica à Saúde. Assistência Integral à Saúde. ABSTRACT The Family Health Program (PSF) is the strategy incouraged by the Brazilian Goverment for health care and reorientation of the primary care, based on the presuppositions of the Brazilian Public Health Health System. This article aims to revise the intersectoriality theme and how it is inserted in the speech of the PSF, in view of its importance in the care model change process starting from the health promotion and the new health concept. Nowadays it is considered a crucial point in this aspect, mainly because Brazil is one of the countries with the biggest social inequality in the world. As a result of this situation, the country face countless problems in the environmental, social, economic and educational field, urban infrastructure, poverty and startling violence increase which have caused enormous challenges to Public Health. Therefore, the development of the intersectorial practice is essencial in order to achieve better living conditions, and then get better health levels of the population. Key words: Health Family Program. Primary Health Care. Comprehensive Health Care. INTRODUÇÃO Falta Endereço para correspondência: @@@@@@@@@@@@@@ @@@@@@@@@@@@@@@@@ 310 Países que fortaleceram os serviços de atenção primária estão conseguindo avanços significativos em matéria de saúde, tanto no âmbito do próprio sistema como na qualidade de vida da população.1 No Brasil, sob a denominação de Revista Médica de Minas Gerais 2006; 16(4): 183-6 Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família Atenção Básica, prevê-se, nesse nível de atenção, uma abordagem que “considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sociocultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e o tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável”2. O Programa Saúde da Família (PSF) é a estratégia priorizada pelo governo brasileiro para reorientar o modelo de atenção em conformidade com os princípios do SUS e organizar, em caráter substitutivo, a Atenção Básica de Saúde. Em janeiro de 2000, a cobertura populacional do PSF era de 9,20%; em janeiro de 2007, a cobertura é de 46,42%, segundo o Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde. A intersetorialidade representa, hoje, questão chave para a consolidação do PSF como uma estratégia que de fato leve a uma mudança no modelo de Atenção à Saúde. Entendida como um processo de construção compartilhada por um amplo leque de atores sociais do Estado e da Sociedade Civil, portanto, participativo e democrático, visando a responder às necessidades de uma coletividade, mobilizando os setores necessários para isso e, principalmente, envolvendo a população em todo o percurso de produção da saúde, do diagnóstico da situação à avaliação das ações implantadas3, ela é decisiva no enfrentamento dos desafios de toda ordem colocados para a saúde pública: a violência, as doenças crônicas não transmissíveis, as doenças infecto-contagiosas, o envelhecimento da população, enfim, as questões de saúde próprias das sociedades modernas.3 A expansão do PSF em áreas de aglomerados urbanos e a urgência do enfrentamento dos problemas característicos desses espaços, tais como violência, drogas, alcoolismo, saúde mental, etc., pouco dados à abordagem exclusivamente individual e biológica, reforçam e priorizam esse enfoque. METODOLOGIA Foi realizado levantamento de artigos científicos referentes à relação entre intersetorialidade e PSF, em bancos de dados da BIREME e em livros, sites de interesse, como o da OPAS e do governo federal, a Revista do Conselho Nacional de Saúde e documentos oficiais. As palavras-chave utilizadas na pesquisa em banco de dados foram atenção primária, promoção de saúde, intersetorialidade, interdisciplinaridade e Programa Saúde da Família. Foram selecionados, entre vários, aqueles que melhor se adequavam ao objetivo desse trabalho. A leitura e análise desses textos foram balizadas por teorias mais amplas, em especial a Teoria da Ação Comunicativa4-6, que se tem mostrado um terreno bastante fecundo para o desenvolvimento do pensamento em saúde. Intersetorialidade e atenção primária Em 1978, a 1ª Conferência Internacional sobre Atenção Primária de Saúde em Alma-Ata7 reconhece a saúde como direito de todos e que seus determinantes são intersetoriais. Esse evento impulsionou a atenção primária em escala mundial - mais de 140 países aceitaram a Declaração de Alma Ata e sua postulação de que a atenção primária de saúde constitui o alicerce para se alcançarem níveis adequados de saúde para as populações. Esse papel cada vez mais se consolida, com o crescente reconhecimento da interação entre a Biologia e o ambiente social e físico. O desafio da atenção primária é entender e interpretar esta interação e compartilhar com os indivíduos, famílias e comunidade o esforço de mudança das suas circunstâncias de vida para maximizar seu potencial de saúde e de realização pessoal e social. Porém, na falta de apoio para habitação, educação, trabalho e outros programas sociais, esse objetivos não poderiam ser cumpridos e a saúde permaneceria ameaçada por esses seus determinantes1 - é íntima, pois, a relação entre atenção primária, promoção de saúde e intersetorialidade.8-9 Segundo Rouquayrol10, estudos epidemiológicos de promoção da saúde, em desenvolvimento, mostram que os sistemas de saúde, sensu stricto, devem estar articulados com outros setores de atendimento social e áreas de estudo que se preocupam com o bem-estar coletivo, levando-se em consideração que tarefas tão diversificadas exigem ações intersetoriais, com a efetiva participação comunitária, num esforço coletivo para a melhoria das condições de vida. Essa proposição de que o enfoque intersetorial é imprescindível para assegurar a sustentabilidade dos serviços de saúde aparece nos principais Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S310-S316 311 Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família planos e programas de organismos internacionais, como a OMS, desde 1961. Recomendações relacionadas à sua adoção têm sido feitas em diversos documentos e eventos oficiais: o Encontro sobre Ações Intersetoriais em Saúde, em 1986; a Carta de Ottawa, em 1986; a Declaração de Adelaide, em 1988; a Conferência de Sundsvall, em 1991; e de Santa Fé de Bogotá, em 1992; a Declaração de Jacarta sobre Promoção da Saúde no Século XXI, em 1997; e a Conferência Internacional sobre Ações Intersetoriais para Saúde, em 199711. Atualmente, esta temática tem lugar de destaque em encontros nacionais e internacionais de promoção de saúde, cidades saudáveis, desenvolvimento local e gestão pública. Na Região das Américas, as estratégias nacionais de atenção primária colocadas em marcha pelos diferentes países incluem o desenvolvimento de articulação intersetorial entre os componentes prioritários12. Mesmo quando se trata do planejamento dos currículos para escolas médicas, a intersetorialidade está presente como elemento necessário.13 Como campo em construção e em constante desenvolvimento, a promoção de saúde e, por conseqüência, a intersetorialidade têm-se consolidado como ponto de convergência para um conjunto de reflexões e práticas comprometidas com a superação do modelo biomédico e da medicalização dos problemas sociais e com a reorientação das práticas e serviços de saúde. Ambas envolvem necessariamente abordagens comunitárias e participativas, visando à consolidação do assim chamado “capital social” e do empoderamento dos sujeitos sociais.14 Intersetorialidade e SUS A VIII Conferência Nacional de Saúde em 1996 e posteriormente a Constituição Brasileira de 1988 definem a saúde como direito do cidadão e dever do Estado e institui um novo paradigma para a sua garantia: a múltipla determinação do processo saúde/doença e a inter-relação da política de saúde com as políticas de outras áreas sociais e com as políticas econômicas15. A saúde passa então a ser definida como resultado dos modos de organização social da produção e efeito da composição de múltiplos fatores 9 16 ; exige que o Estado assuma a responsabilidade por uma política de saúde in312 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S310-S316 tegrada às demais políticas sociais e econômicas; e ratifica, também, o engajamento do setor saúde por condições de vida mais dignas e pelo exercício pleno da cidadania.3 Reconhecida essa complexidade dos problemas coletivos da saúde, do ambiente e da qualidade de vida, somos levados a construir um outro modelo de compreensão e de atuação, necessariamente pautado pela interdisciplinaridade e intersetorialidade.17 Intersetorialidade e Programa Saúde da Família O PSF consiste de ações direcionadas aos indivíduos, às famílias e à comunidade, de forma contínua, personalizada e ativa. Enfatiza a promoção e a prevenção, sem prejuízo da reabilitação, e privilegia a intersetorialidade.18 Tem em sua lógica central a operacionalização de conceitos como a territorialização, vinculação, responsabilização e resolutividade com um olhar integral sobre o ambiente em suas dimensões físicas, socioculturais e biopsicossociais, nas quais estão inseridos os indivíduos e suas famílias.19 As ações de saúde devem ser centradas na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente, assim como na relação da equipe de saúde com as famílias, enfim, com a comunidade; para isso, a participação social e a ação intersetorial são duas categorias-chave. Para a melhoria da qualidade de vida da população, é necessária a articulação de saberes técnicos e populares, a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados.20 E para o desenvolvimento de uma cultura de trabalho intersetorial é preciso romper as barreiras que impedem a comunicação entre diferentes setores, o que exige vontade política e método.21 Para tanto, os profissionais devem seguir determinadas orientações: ■ conhecer os fatores (sociais, políticos, econômicos, ambientais, culturais, individuais) que determinam a qualidade de vida da comunidade adstrita; ■ entrar em articulação com outros setores da sociedade e movimentos sociais organizados, integrando ações para a qualidade de vida da comunidade; ■ estimular a participação da comunidade no planejamento e execução e avaliação das ações das Unidades de Saúde; Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família ■ ■ articular com a rede institucional local, ações integradas para a melhoria constante da qualidade de saúde da população; promover ações intersetoriais e parcerias com organizações formais e informais existentes na comunidade para o enfrentamento conjunto dos problemas identificados.16 Essas atribuições são reafirmadas na Portaria n° 648/GM de 28 de março de 2006 2, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da atenção básica para o Programa Saúde da Família e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). A portaria preconiza, como atribuições da equipe, o desenvolvimento de ações intersetoriais voltadas para a promoção de saúde, o apoio de estratégias de fortalecimento da gestão local, do controle social e a construção de cidadania. Além disso, as políticas federais e estaduais têm procurado estimular as ações intersetoriais na atenção básica por meio de programas e políticas específicas, por exemplo, na área de nutrição, saúde do idoso, saúde na escola, a Política de Promoção de Saúde, a Política Nacional de Redução de Acidentes e Violências. No que diz respeito à sua realização concreta, embora não seja um processo fácil, a intersetorialidade, vinculada ao setor de saúde, em particular ao PSF, é uma forma de gestão possível e muito eficiente em termos da promoção do desenvolvimento econômico e social22 que tem alcançado êxitos em vários municípios, como Campo Grande no estado de Mato Grosso do Sul,23 Camaragibe no estado de Pernambuco24, Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais25 e Curitiba, no Paraná26, entre outros, em termos de avanços da qualidade de vida de suas respectivas populações. Ao que tudo indica, novas experiências se multiplicarão, pois, a julgar pela fala do Ministro da Saúde, a intersetorialidade dará o tom das políticas públicas de saúde: “A saúde é, antes que biológica, uma produção social. Para que se alcancem melhores níveis de saúde é imprescindível que o Estado e a sociedade cada vez mais implementem ações intersetoriais”27. Não se pode esquecer, contudo, que o contexto dentro do qual o PSF emerge no país - ou reemerge, para utilizar termo mais exato - é de restrição e racionalização dos gastos em saúde e implementação de medidas de ajuste estrutural da economia e de reforma do Estado, que seguem a doutrina neoliberal fortemente presente na década de 90, em todo o mundo.28 Se, por um lado, o Programa incorpora as diretrizes do SUS, por exemplo, intersetorialidade, descentralização e co-responsabilização que, segundo nosso entendimento, traduzem mecanismos viabilizadores do compromisso com a saúde de todos, por outro, é pertinente reconhecer que outras diretrizes, como territorialização e priorização de grupos populacionais com mais alto risco de adoecer ou morrer29, muito se aproximam dos referenciais de origem da medicina de família, ligados à necessidade de controle ideológico ou, em termos mais recentes, das políticas focalizadoras, contrastantes com o princípio de universalização. A participação real dos atores sociais nos processos de tomada de decisão desenrolados nesse espaço será o divisor de águas entre as duas orientações, antes mencionadas30 e, sendo assim, tanto mais se reforça a exigência de indissociabilidade entre PSF, promoção de saúde e intersetorialidade. Se se tomar o modelo de democracia deliberativa proposto por Habermas,5 6 constituído necessariamente pela associação de dois complexos, a saber, o sistema representativo e a esfera publica, então se poderá entender o alcance dessas formulações. São as experiências cotidianas dos atores sociais com os diferentes sistemas, desenroladas no nível local, de dentro do seu mundo da vida, e tematizadas em interações cada vez mais amplas, que constituem o debate público acerca do objeto correspondente, capaz de dramatizar os problemas e necessidades até o ponto em que têm de ser tratados pelas instâncias institucionalizadas do complexo representativo e traduzidos em leis, políticas, programas e/ou projetos. Evidencia-se, assim, com clareza, a articulação, inerente ao processo democrático, entre micro e macroespaços e daí sua condição de divisor de águas entre as possíveis orientações do PSF. Se a instersetorialidade, como foi dito antes, permite o enfrentamento de problemas complexos pela ampliação, organização e sinergia dos recursos disponíveis, é ela mesma que, como processo compartilhado - a exigir permanente participação, diálogo e soluções negociadas, quesitos fundamentais para desempenhar o seu papel articulador de recursos - fortalece o processo democrático e por ambas as razões, obviamente indissociáveis entre si, torna-se imprescindível ao Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S310-S316 313 Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família Programa Saúde da Família. Por isso, mesmo quando se reconhece, com Mendes9 que, por ser espaço de hierarquia inferior, as possibilidades do esforço integrativo em nível local serão sempre limitadas e estarão na dependência das capacidades de condução de níveis superiores, é preciso lembrar, no mesmo instante, que essas são faces de uma mesma moeda: se o desafio da intersetorialidade ocorre, sem dúvida, em nível de gestão, sua operação se faz no território e na prática de atuação31. Ela fortalece uma “cultura do local” - que implica compreender em profundidade as várias dimensões de um microcontexto. A conquista de resultados por meio desse tipo de ação revela às pessoas e coletivos sua possibilidade de intervenção na realidade e contribui para que se constituam como sujeitos sociais,32 participantes do processo de formulação de programas e políticas, enfim, autores de direitos.33 Reitera-se o raciocínio anterior: lidando com essas duas dimensões, gestão coletiva e cultura local, a intersetorialidade constitui-se como estratégia potencialmente capaz de unificar micro e macroespaços e de propiciar a formulação de propostas de saúde que sejam, a um só tempo, participativas e eficazes. Muitos estudos corroboram essas análises. O Relatório do Nescon/Faculdade de Medicina/ UFMG, intitulado Promoção de Saúde no PSF34, confirma haver uma sinergia entre a estrutura do PSF e a promoção de Saúde. Para Ayres35, o Programa Saúde da Família dá nova base para articulações intersetoriais e promove a entrada de novos cenários, sujeitos e linguagens na cena da atenção. Outros estudos falam das potencialidades do PSF para acompanhar as políticas e ações na área habitacional, ambiental, de saneamento básico, intersetoriais, uma vez que “o espaço pode ser concebido como produtor de diferenciações sociais e epidemiológicas”36. Assim, a situação de saúde não seria um atributo dos grupos sociais nem das unidades espaciais em si, mas sim o resultado da relação de grupos sociais com seu território.36 O espaço local representa muito mais que uma superfície geográfica, tendo um perfil demográfico, epidemiológico, administrativo, tecnológico, político e social que o caracteriza e se expressa num território em permanente construção - o estabelecimento de uma base territorial é um passo básico para a caracterização da população e de seus problemas de saúde, bem como o dimensio314 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S310-S316 namento do impacto do sistema sobre os níveis de saúde dessa população e, também, para a criação de uma relação de responsabilidade entre os serviços de saúde e sua população.37 Por fim, ressalte-se que PSF e políticas intersetoriais, juntos, são capazes de produzir saúde individual e coletiva e por isso exercem papel central junto às políticas de combate à pobreza e à exclusão social, o que não é pouco, principalmente quando se sabe que a universalização da atenção básica - estratégia legítima e efetiva de descentralização da promoção e da assistência médico-sanitária e de ampliação do direito à saúde - ainda não está inteiramente garantida pelo poder público.38 Entende-se por todo o dito que a tarefa do setor saúde, além da construção de um sistema de boa qualidade, com acesso universal e com integralidade, amplia-se na direção de um papel articulador e integrador com outros setores, também determinantes das condições de vida e de saúde39. E, claro, essa articulação deve se dar em toda cadeia da formulação e gestão das políticas públicas e há muito para se fazer nesse sentido, mas não há dúvida de que, no setor de saúde, ganha-se, a cada dia, consciência das limitações da ação setorial. A compreensão da determinação social do processo saúde-doença, a percepção muito clara do impacto de ações não especificamente setoriais sobre a saúde - tais como saneamento básico e urbanização - e da impotência setorial diante de problemas como a morbidade e mortalidade por causas externas fazem com que ele esteja mais mobilizado para propor a ação e a articulação intersetoriais.32 Esse não é um processo fácil. A articulação intersetorial requer decisão política, o que implica romper com o antigo padrão de prestação de serviços, que reflete determinada estrutura de poder na qual imperam a fragmentação, setorialização e centralização.40 A sua consolidação envolve novas tecnologias de gestão, possibilita a otimização de recursos municipais para o melhoramento da qualidade de vida dos cidadãos e impõe alterações nas relações de poder tanto no nível individual quanto das instituições.11 Envolve, pois, a difícil tarefa de superar a tensão entre interesse individual e interesse coletivo, entre participação e complexidade, enfim, a delicada questão da democracia, que, em síntese, é pedra fundamental do SUS e de qualquer sistema de saúde que se vincule à idéia de cidadania. Pensar, pois, a prática da interseto- Reflexões sobre a intersetorialidade e sua relação com o Programa Saúde da Família rialidade implica perguntar pelas possibilidades reais do exercício da democracia, na nossa sociedade, discussão que, como é óbvio, este texto não comporta agora. A esse respeito, queremos apenas lembrar as palavras de Habermas:5 nunca desistimos da democracia, prova disso é que continuamos, incessantemente, a discuti-la, desejá-la e tê-la como objeto permanente de estudo. Ela é, pois, questão da “ordem do dia”. REFERÊNCIAS 1. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco, Difid, Ministério da Saúde; 2002. p.666, 675. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria 648/GM, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. 3. Campos GW, Barros RB, Castro AM. Avaliação de política nacional de promoção de saúde. Ciên Saúde Coletiva. 2004; 9(3):745-9. 4. 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O diagnóstico de uma das formas, quando relacionado ao trabalho, é perverso, tendo em vista que materiais e equipamentos que contêm látex como componente principal são utilizados de forma disseminada e em quantidade imensurável, portanto, estão presentes em postos de trabalho de todas as atividades, principalmente as relacionadas com o cuidado à saúde. No caso de luvas usadas em ambiente médicohospitalar, apenas nos Estados Unidos estima-se que sejam consumidos acima de 7 bilhões de pares por ano. Além do contato, luvas também propiciam a disseminação de proteína do látex no ambiente, por meio de aerodispersóis, o que favorece a inalação de partículas. O artigo discute, em primeiro lugar, a definição diagnóstica de acordo com as apresentações possíveis. A seguir, discute as conseqüências que implicam principalmente a retirada do trabalhador de seu ambiente de trabalho e a dificuldade de reinseri-lo em outra atividade, justamente por se tratar de mão-de-obra especializada em atividades específicas. 1 Professora Adjunta do Departamento de Medicina Preventiva e Social – Área Saúde e Trabalho – Faculdade de Medicina – Coordenadora do Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador – CREST/MG Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais 2 Médico do Trabalho – Coordenador Geral do Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador - SAST Pró-Reitoria de Recursos Humanos Universidade Federal de Minas Gerais. 3 Médico do Trabalho – Coordenador do Núcleo Pampulha do Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador – SAST Pro-Reitoria de Recursos Humanos Universidade Federal de Minas Gerais Palavras-chave: Luvas protetoras. Hipersensibilidade ao látex. Dermatites alérgicas de contato. Doenças profissionais. ABSTRACT The authors relate case of a female health care worker, who developed latex allergy. Adverse reaction to latex present under three types: irritant contact dermatitis, allergic contact dermatitis and immediate-type hypersensitivity (latex allergy). If work-related, diagnosing one of them is troublesome, because there is a great variety of equipment containing latex that are present in many work posts, where several activities are developed, mainly that related to health care. In the United States, it is stimated that about 7 billion gloves pairs are used per year. Besides contact, gloves propritiate latex protein dissemination in the environment, by forming powder, which contributes to inhalation of particles. The authors discuss, at first, the diagnosis definition, according to the possible presentation. After, they discuss the consequences that imply in removing the worker from his job and difficulty of to allocate him on other activity, just because he is a specialized worker. Key words: Gloves, Protective. Latex Hypersensitivity. Dermatitis, Allergic Contact. Occupational Diseases. INTRODUÇÃO Endereço para correspondência: A alergia ao látex foi descrita por um dermatologista em Massachusetts em 1933.1 Com o advento da epidemia da síndrome da deficiência imunológica ad- Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador Alameda Álvaro Celso, 175 – 7.º andar Santa Efigênia CEP 30130-100 Belo Horizonte – MG e-mail [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S317-S320 317 Reação adversa ao látex: relato de caso quirida na década de 80, do aumento do número de pacientes imunodeprimidos e da crescente adesão às medidas de proteção universal preconizadas pelos Centers of Disease Control and Prevention (CDC), observa-se disseminação do uso de luvas para procedimentos de assistência a pacientes. Este fato tem contribuído para o aumento do relato de casos de reações adversas ao látex entre profissionais de saúde.1-3 Luvas de látex têm sido amplamente utilizadas, pois mostram-se superiores às de vinil e de outros materiais, em termos de conforto, barreira de proteção, propriedades táteis, flexibilidade, elasticidade, e custo.2 Nos Estados Unidos, o National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH) estima a ocorrência de algum tipo de manifestação alérgica em 8 a 12% dos profissionais de saúde (percentual que pode ser mais alto entre aqueles envolvidos em procedimentos cirúrgicos), ao passo que a alergia ao látex no restante da população varia de 1 a 6%.1,4,5 Além dos profissionais de saúde, estão mais expostos ao risco de desenvolver alergia ao látex indivíduos que utilizam essas luvas em trabalho de limpeza, preparação de alimentos, os atópicos, pacientes expostos a vários procedimentos diagnósticos e terapêuticos no início da vida (particularmente os portadores de espinha bífida e anomalias urogenitais congênitas), aqueles com dermatites das mãos (por comprometimento da função de barreira da pele) e trabalhadores de indústrias que fabricam produtos de látex ou que utilizam, cotidianamente, equipamentos com este material.1,2,4,6,7 Este fato tem se constituído como importante problema para serviços de medicina do trabalho de instituições de saúde. Estima-se que 2 a 54% dos casos evoluem para a incapacidade total para o trabalho no setor.1,3 RELATO DE CASO Paciente de sexo feminino, 45 anos, leucoderma, após vários anos de trabalho como professora de 1º grau, foi admitida como técnica de enfermagem em hospital geral em 1995. A partir de então, apresentou prurido nasal, coriza e espirros, para o que recebeu o diagnóstico de rinite alérgica complicada por vários episódios de sinusite. Aproximadamente 18 meses depois, começou a apresentar prurido nas mãos, que se manifestava em minutos 318 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S317-S320 após a utilização de luvas de látex, o que motivou a utilização quase diária de anti-histamínicos. Passou a evitar luvas deste material substituindo-as por outras de plástico. Nesse mesmo período começou a apresentar, também, episódios de tosse, dispnéia e sibilos, que se manifestavam quase sempre após a jornada de trabalho, já em seu domicílio, e ocorriam quando da execução, pela paciente, de procedimentos que a colocavam em contato direto ou indireto com luvas ou outros materiais à base de látex. Diante desse quadro, a trabalhadora procurou alergologista, que solicitou IgE específica para látex, com o resultado de 3,15 KU/L (método: Imunocap – (VR:classe 0 < 0,35KU/L, classe 1= 0,35 a 0,70 KU/L, classe 3= 0,70 a 3,50KU/L, classe 4= 3,50 a 17,50 KU/L, classe 5= 50 a 100KU/L, classe 6= maior que 100 KU/L, classe 0 = negativo, classe de 1 a 6 = reagente) e realizou prick test que também apresentou resultado positivo ao látex. Foram observadas ainda manifestações alérgicas quando da ingestão de banana, vapores de tinta e massa plástica. A paciente foi encaminhada para o Serviço de Medicina do Trabalho do empregador que, diante das evidências clínico-ocupacionais e laboratoriais de sensibilização ao látex, sugeriu o afastamento definitivo de atividades e ambientes nos quais ocorresse exposição a esse material. A paciente foi remanejada para outro setor do hospital, onde exerce atividades em que não há exposição ao látex, e estava há 21 meses assintomática quando da redação deste artigo. DISCUSSÃO A prevalência de reações adversas ao látex no Brasil não é conhecida. Embora aproximadamente 2.000 plantas produzam esse material, mais de 99% do utilizado comercialmente é proveniente da Hevea brasilensis. O conteúdo de proteínas da borracha natural de látex varia de 1 a 8% e depende de características genéticas, químicas e metabólicas da árvore e dos processos de tratamento químico da borracha. Estes últimos podem implicar a adição de amônia, sulfato de sódio, tetrametiltiurano, mercaptobentiazol, tiouréias, que são retirados posteriormente no processo, mas que podem permanecer na borracha, em pequenas quantidades, como resíduos Reação adversa ao látex: relato de caso ou agregados à estrutura molecular do látex, ou seja, o processamento do látex altera a composição de suas proteínas, o que aumenta o seu potencial alergênico. A borracha de látex no estado natural possui de 150 a 250 polipeptídios, dos quais 60 demonstraram propriedades de se ligarem a IgE.7,8 Além da quantidade variável de alérgenos do látex, a adição de talco nas luvas, como lubrificante, contribui para a sensibilização, já que propicia dispersão de proteínas do látex, além de facilitar a pulverização das mesmas.1,4,6,9 Reações adversas ao látex podem se apresentar sob três formas: dermatite de contato irritante, dermatite de contato alérgica, reação sistêmica (Quadro 1). A sensibilização ao látex exige exposição repetitiva, por período estimado entre seis meses e 15 anos.4,9 A exposição aos antígenos pode se dar por via cutânea, mucosa, parenteral e inalatória.1,12 O quadro clínico mais comum é a dermatite de contato por irritação.1,4 Os quadros asmáticos podem ser subclínicos e não detectados, embora esse reconhecimento seja fundamental para impedir-se a evolução para hiperreatividade irreversível. O quadro alérgico mais grave é a anafilaxia, que ocorre mais comumente após a absorção mucosa do látex durante procedimentos médicos e odontológicos em indivíduos previamente sensibilizados.10 No caso em discussão, a paciente apresentou quadro clínico compatível com diagnóstico de reação adversa ao látex do tipo sistêmico, alergia ao látex, tendo em vista o relato de manifes- tações típicas relacionadas temporalmente com a exposição. Deve-se ressaltar a ocorrência de hipersensibilidade cruzada que envolve látex e determinados alimentos, entre os quais se citam abacate, castanha, banana, kiwi, papaia, melão, figo, abacaxi, pêssego e tomate.4, 11 Essas reações cruzadas provavelmente decorrem da existência de antígenos comuns como as enzimas quitinases, glucanases, lisozimas e papaína, sendo esse quadro conhecido como síndrome látex-fruta ou alergia ao látex fruta. Vários estudos têm demonstrado que aproximadamente metade dos pacientes alérgicos ao látex apresenta sintomas após a ingestão de alimentos que apresentam reação cruzada com o látex. São citadas ainda reações cruzadas com alguns pólens.1 A reação cruzada com banana também pode ser demonstrada pela história da paciente, portanto, admite-se também o diagnóstico de alergia látex-fruta. Apesar do relato de prurido nas mãos, o diagnóstico de dermatite alérgica de contato não pode ser firmado, tendo em vista que não houve relato de lesões como eritema, descamação e vesiculação. A associação dos dois tipos de alergia ao látex é possível.1 A história ocupacional sugeriu fortemente o nexo com o trabalho, por ter o quadro clínico surgido após a paciente se tornar trabalhadora da saúde e por serem as manifestações subseqüentes a episódios de exposição ocupacional ao látex. Quadro 1 - Reações Adversas ao Látex Característica Irritante Alérgica Manifestação Local Local Sistêmica Reação Química Imunológica Imunológica Tipo Direta Retardado (tipo IV) Imediato (tipo I) Mecanismo Irritação Sensibilização mediada por linfócito T Formação de complexo IgE-látex Tempo 48-72 h 48-72 De imediato a horas após Eritema, prurido, edema, fissura, crostas, pápulas e liqüenificação. Dermatite eczematosa: eritema, descamação e vesiculação, liqüenificação. Pode se estender além da área de contato. Urticária, angioedema, sensação de ferroadas na pele, espirros, coriza e conjuntivite, anafilaxia. Clínico Patch test Demonstração de IgE látex específica Retirar causa e fatores que exacerbam Identificar causa e afastar, corticosteróides tópicos e sistêmicos Adrenalina Educação do paciente Sinais e sintomas Diagnóstico Tratamento Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S317-S320 319 Reação adversa ao látex: relato de caso Trabalhadores sensibilizados ao látex devem ser afastados definitivamente da exposição ao mesmo. Em algumas circunstâncias esse fato tem repercussões dramáticas sobre a vida profissional desses indivíduos, pois, significa a necessidade de reabilitação profissional e muitas vezes abandono da área de saúde. No caso apresentado, o remanejamento foi satisfatório, no entanto, nem sempre é possível adotar essa medida. A sensibilização ao látex e a prevenção do agravamento do quadro clínico nos trabalhadores sensibilizados podem ser evitados pela adoção das seguintes medidas: fornecimento de luvas de materiais alternativos quando existe pouco risco de contato com material infectado, uso de luvas de látex com menor teor de proteínas e não talcadas, identificação de áreas contaminadas com poeira de látex para limpeza mais freqüente (carpetes, dutos de ventilação, etc.), oferta de informação e treinamento para os trabalhadores da saúde. Deve-se ainda investigar a existência de sensibilização no exame admissional, detectar precocemente os sintomas e remover os sintomáticos de áreas com exposição ao látex, restringir o uso de loções e cremes oleosos nas mãos antes do uso das luvas (podem deteriorar o látex e facilitar a sensibilização) e orientar a lavação das mãos com água e sabão com posterior secagem, após retirada de luvas de látex.4 REFERÊNCIAS 1. Corwin AD. Latex allergy. 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Foram efetuados estudos numa clínica filantrópica e em um serviço de atendimento domiciliar público, onde foram acompanhados pacientes e familiares. Resultados mostraram que os entrevistados preferem essas modalidades de atenção em um hospital. A clínica oferecia atendimento integral ao paciente e tinha a preocupação de reproduzir um ambiente acolhedor. No atendimento domiciliar ressaltaram-se a sobrecarga do familiar cuidador e o peso financeiro sobre a família. Concluiu-se que ainda não há suporte do sistema de saúde suficiente para essas formas de atenção. A clínica foi fechada posteriormente por alegação de seu alto custo e a atenção domiciliar é restrita aos que podem arcar com o ônus do cuidado do paciente em casa. Para a formação médica, a experiência de convívio com essa realidade contribui para mostrar a importância dos aspectos psicossociais da interação com o paciente e dos valores humanistas e éticos da prática médica. 1 Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina,Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Projeto Cathivar 2 Acadêmica de Medicina da UFMG. Membro do Projeto Cathivar 3 Médica. Fundadora do Projeto Cathivar Palavras-chave: Cuidados paliativos. Doente terminal. Educação médica. ABSTRACT The Cathivar project develops community service and research activities on the themes of dying process and palliative care. It was created by medical students and aims at overcoming the difficulty of facing death and the dying process in our society. Qualitative studies are performed using the research-action strategy. Studies were carried out in a philanthropic clinic and in a public home care service, where both patients and family members were followed up. Results show that interviewees prefer to have these modalities of care in a hospital. The clinic offered integral assistance to the patient and had the preoccupation of producing a welcoming environment. In home care, family caregiver overload and financial burden on the family were highlighted. We concluded that there is not enough support from the public health system to this health care modality. The clinic was closed later on, under the allegation of its high costs and that home care is restricted to those who can afford it. As far as medical training is concerned, the experience of living with this reality contributes to show the importance of the psychosocial aspects of interaction with the patient and of the ethical and humanistic values of medical practice. Key words: Hospice care. Terminally Ill. Education, medical. Endereço para Correspondência: INTRODUÇÃO Há reconhecimento tácito de que a qualidade do contato humano necessário a qualquer atendimento ao paciente não corresponde ao avanço tecno- Faculdade de Medicina - Universidade Federal de Minas Gerais Av. Alfredo Balena 190, Santa Efigênia Belo Horizonte, MG – Brasil CEP: 30330-160 e-mail: [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S321-S326 321 Projeto Cathivar: o desafio de enfrentar a finitude humana lógico. A tecnologia biomédica, como mediadora dessas relações sociais, tende a centrar a atenção no diagnóstico, diminuindo o interesse pela experiência e subjetividade do paciente.1 Em decorrência dessa constatação, recomenda-se humanizar ou re-humanizar as relações entre profissional e usuário do serviço, objetivo expresso na Política Nacional de Saúde.2 Nesse contexto, renova-se o debate sobre a interação médico-paciente, valorizando a dimensão comunicativa e subjetiva dessa relação.3,4A idéia de humanizar as relações sociais adquire mais sentido quando se trata do paciente terminal. Para esse paciente que o discurso médico classifica como “fora de possibilidade terapêutica de cura”, os limites da intervenção eficaz para reversão do quadro se esgotaram5 e, para o tempo de sua sobrevivência, resta proporcionar-lhe a morte digna.6 Deve ser parte da tarefa dos homens, conforme afirma Elias7, tornar o fim dos seres humanos tão fácil e agradável para os outros quanto para nós mesmos. No entanto, na sociedade moderna predomina a sensação de incapacidade de dar ajuda e afeição aos moribundos. A morte não está mais justificada por sistemas de crenças sobrenaturais, que foram em grande parte substituídos por valores sem esteio na tradição ou na religião.8 Em conseqüência, a morte e sua imagem são empurradas para os bastidores da vida social.7 Mesmo os médicos e profissionais de saúde que convivem no dia-a-dia com a morte evitam discutir abertamente a questão e no momento em que o paciente recebe o rótulo “fora de possibilidade” tendem a se afastar dele.9 Há de se considerar também o despreparo do médico para lidar com essas questões, por carências de sua própria formação. O ensino médico em geral – o que é válido para os demais profissionais de saúde – não incentiva a reflexão sobre o tema da morte e tende a construir, desde o encontro do estudante com cadáveres, encarados como objetos de estudo na aula de anatomia, um processo de esvaziamento do conteúdo humanista do processo de morrer.10 A sensação de desconforto em relação aos moribundos está de tal forma presente na sociedade que a comunicação e a oferta de carinho e de afeto de que eles tanto necessitam tornam-se tarefa difícil, o que para os moribundos pode ser uma experiência amarga.7 Trata-se de um momento em que a pessoa se sente frágil, vendo deteriorar seu estado 322 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S321-S326 de saúde e de vida. De forma manifesta ou não, a pessoa nesse estágio passa a lidar com a questão da morte, principalmente por deparar com o desenlace de pacientes com quadros semelhantes nos locais onde são tratados.11 Alguns doentes encontram conforto em determinadas crenças como as religiosas e outros se sentem amedrontados, despreparados e revoltados com a vivência da expectativa da morte. O clássico estudo de KlüberRoss12 identifica diferentes sentimentos experimentados pelo doente terminal, que vão de negação e revolta até a aceitação da iminência da morte. O discurso médico qualifica de “paliativo” o cuidado dedicado ao paciente quando a doença não responde a intervenções com propósitos curativos. As prioridades passam a ser controle da dor e de outros sintomas e o suporte social e psíquico ao doente e à família a cargo de equipe multiprofissional.13,5 Esse momento representa, para o profissional médico, um desafio que, ao mesmo tempo, rompe a idéia de onipotência do saber técnico, expõe a finitude humana e demanda ações comunicativas e de afeto pelo doente e seus familiares. São questões que afetam os profissionais de saúde14, mas que também envolvem a sociedade como um todo. Por isso, a proposição de prestar cuidados paliativos se configura como um movimento que procura sensibilizar os profissionais de saúde e as pessoas comuns para a necessidade de mudança da mentalidade sobre o processo de morrer e do cuidado com o doente terminal.15 O projeto de pesquisa e extensão Cathivar se insere nesse contexto e pretende contribuir para acender o debate sobre o tema de cuidados paliativos na comunidade acadêmica da área da saúde. A posição de evidência da problemática do paciente terminal como situação limiar da condição humana significa navegar no sentido oposto aos valores sociais predominantes e atuar na direção da ampliação da atenção a esse paciente. A referência a cuidados paliativos traz à tona também a questão humanista dos direitos de assistência de qualidade às pessoas acometidas por doenças incuráveis que as tornam dependentes da família e excluídas do convívio social, na maioria das vezes sem amparo dos serviços públicos. A apresentação deste caso tem a intenção de divulgar uma experiência de junção dos objetivos de pesquisa, ensino e extensão por meio de um tema de difícil manejo, mas pertinente para a for- Projeto Cathivar: o desafio de enfrentar a finitude humana mação médica e dos demais profissionais de saúde. Há poucas referências a práticas similares em cursos médicos que abordem sistematicamente a questão da morte e do morrer, destacando-se a da Universidade de Harvard, implantada há mais de 10 anos, abrangendo cerca de um terço dos estudantes do período pré-clínico.16 Espera-se ainda chamar a atenção para o potencial da reflexão sobre o morrer e a morte como temática emblemática para demonstrar a importância dos valores humanistas na interação entre o profissional e o usuário do serviço de saúde nos diferentes cenários de prática. DESCRIÇÃO DO CASO O projeto Cathivar foi concebido em sala de aula da disciplina optativa “Sociologia Médica” do curso médico, em 2001. A proposta do curso era que os alunos escolhessem um tema de seu interesse, o qual seria trabalhado a partir de autores clássicos das ciências sociais. Os estudantes estavam então no quinto período do curso e uma das alunas vivenciava o contato com pacientes terminais numa clínica especializada de Belo Horizonte de prestação de cuidados em regime de internação para pacientes com câncer e AIDS. No relato de sua experiência, ela sensibilizou cinco colegas para elaborar um projeto sobre o tema. No final do semestre letivo, já havia um esboço do que se pretendia fazer. Terminada a disciplina, o grupo decidiu continuar o trabalho e efetivar o projeto. Seguiram-se contatos com a direção e o corpo técnico da Clínica Nossa Senhora da Conceição, onde a aluna estagiava, que se dispôs a abrir espaço para as atividades do grupo. Paralelamente, foram feitos os encaminhamentos necessários para caracterizar a proposta como projeto de pesquisa e extensão. O Cathivar se constituiu, assim, em projeto institucional da Faculdade de Medicina e passou a fazer parte do Programa de Humanização do Hospital das Clínicas da UFMG, o que se mantém até hoje. METODOLOGIA A metodologia para o desenvolvimento das atividades, desde o início, baseou-se no contato dos estudantes de medicina com pacientes em estado crítico, fora de possibilidade terapêutica de cura, com prognóstico de morte iminente ou com seqüelas que impediam a mobilidade, a comunicação, enfim, o convívio social. A estratégia de abordagem escolhida para o desenvolvimento das atividades foi a da pesquisa-ação, permitindo que, paralelamente à investigação, se estivesse agindo sobre a situação, no caso, dialogando com o paciente e a família ou prestando pequenos cuidados. Utilizaram-se roteiros semi-estruturados para as entrevistas realizadas num primeiro encontro agendado e de observação direta para os contatos posteriores com os pacientes. As entrevistas foram gravadas e as observações anotadas em caderno de campo. Por se tratar da relação de alunos da graduação com pacientes graves, eles atuavam sempre em duplas, sob supervisão da equipe local. Em relação à sua composição, o grupo se constituiu de estudantes voluntários de diferentes períodos da graduação em Medicina, cujo número foi estabelecido em função da possibilidade de acompanhamento da equipe do local e da disponibilidade de docentes para orientação das atividades. Em média, tem sido possível aceitar cerca de 12 estudantes por ano, mantendo-se permanência de aproximadamente dois anos para cada participante. RESULTADOS E DISCUSSÃO O primeiro trabalho do Cathivar, na Clínica Nossa Senhora da Conceição, durou cerca de três anos, de 2001 a 2003. Foram acompanhados oito pacientes internados que, após a entrevista inicial, recebiam visitas semanais, quando eram observados. Os alunos participaram também de eventos promovidos por grupos solidários aos pacientes e de reuniões clínicas da equipe multidisciplinar para discussão dos casos. Sete dos pacientes faleceram no período. Na Clínica, os alunos entraram em contato com um perfil de paciente pobre, quando não miserável, semi-analfabeto, sem emprego, família desestruturada, muitos deles usuários de drogas injetáveis, passando sua vida em condições de alto risco social. O modelo de atenção da clínica se baseava no modelo hospice, que abriga pacientes que necessitam de cuidados paliativos para controle da dor e de outros sintomas da doença e oferece suRev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S321-S326 323 Projeto Cathivar: o desafio de enfrentar a finitude humana porte psíquico e social para ele e sua família.17 O modelo de organização do espaço e das relações sociais procurava reproduzir um ambiente domiciliar a partir de recursos bastante simples e pouco onerosos: aquário de peixes, sala de visitas e sofá no corredor para encontro entre pacientes, familiares e profissionais; uso de diferentes cores nas paredes; uso de roupas comuns do dia-a-dia trazidas ou doadas; participação dos pacientes em pequenas tarefas e incentivo a interações sociais com profissionais, familiares e amigos. Grande parte dos doentes que chegava à clínica já tinha passado por diferentes percalços da assistência pública à saúde e só ali recebeu acolhimento. Os internos relataram sentir mais liberdade do que em um hospital porque podiam circular pelos vários ambientes, sentar-se para conversar no sofá da sala conhecida como “fumódromo”, tomar sol, conhecer outras pessoas e participar de reuniões de grupos de solidariedade aos pacientes. Chegaram a declarar sentirem-se mais confortáveis na clínica do que em casa, devido, principalmente, a suas precárias condições de vida, que dificultavam a própria subsistência. Os pacientes participantes da pesquisa pareciam não compreender bem o que acontecia com eles desde o diagnóstico da doença “fatal”. A maioria deles negava a perspectiva da morte ou acreditava ainda haver possibilidade de evitá-la. Quando falavam dela, era indiretamente, sem se deter no tema. Alguns deles, com câncer ou AIDS, evitavam falar da doença que os acometia mesmo quando reconheciam a iminência da morte. Pareciam sentir neles mesmos o estigma dessas doenças.18 Surgiam de maneira recorrente em suas falas menções a sinais físicos da doença: a fraqueza, o cansaço, a magreza, a sensação de incapacidade. Por vezes demonstravam preocupação com a questão estética; sentiam até mesmo certa vergonha de seu corpo e do estado de magreza. As reações frente à progressão da doença eram semelhantes às definidas por Klüber-Ross12 para os pacientes terminais: negação, raiva, barganha, interiorização e aceitação, embora essas fases não fossem tão uniformes nem obedecessem à sequência como foram apresentadas pela autora, o que já havia sido mostrado em estudo anterior.19 A presença dos alunos significou um pequeno alento durante sua estadia na clínica. Conforme os próprios pacientes disseram, podiam conversar so324 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S321-S326 bre vários assuntos, relembrar momentos alegres e tristes da vida, falar da família, dos amigos e dos companheiros da clínica. Afinal, tinham alguém disposto a escutá-los e, talvez, por causa da condição dos pesquisadores, jovens e estudantes ainda, a interação social podia se dar mais naturalmente. Essa impressão foi corroborada pelas observações da equipe de cuidados do local. Dos nove pacientes que participaram da pesquisa, sete morreram durante o seguimento dos casos. Na segunda etapa, iniciada em 2004, o grupo acompanhou pacientes do Programa de Atendimento Hospitalar do Hospital das Clínicas da UFMG. Na ocasião, realizaram-se visitas domiciliares, numa média de três para cada um dos nove casos seguidos, dentro da mesma metodologia de pesquisa-ação. Os primeiros contatos na casa do paciente aconteciam juntamente com um profissional da equipe do serviço, quando eram agendados os retornos e as entrevistas com os cuidadores do doente e outros membros da família. Nessa etapa, a figura central não foi propriamente o paciente, à medida que todos os doentes selecionados para a pesquisa portavam doenças incapacitantes, com comprometimento da fala e da mobilidade; estavam em estado passivo de apenas receber atenção e cuidado. Naquele momento, o grupo Cathivar conviveu com a experiência do paciente acamado e dependente e as repercussões de sua situação sobre a família, em especial sobre o “cuidador”, em geral a mulher – esposa ou mãe.20 Os estudantes puderam perceber o peso dos encargos do papel de cuidador, que vão da higiene pessoal do familiar à administração de medicamentos e realização de procedimentos especializados. O tempo e a responsabilidade exigidos para essas tarefas trazem para o cuidador uma série de constrangimentos em relação à vida social e ao equilíbrio emocional.21 A relação dos familiares com a equipe de atendimento domiciliar, conforme se observou, tendia a assumir caráter de dependência. A família percebia o atendimento em casa como muito melhor para o paciente, quando comparavam com o tratamento no hospital, porque em casa, eles alegavam, o paciente recebe mais carinho e afeto. Os aspectos negativos percebidos referiam-se aos encargos financeiros e pessoais com o doente em casa, aspecto ressaltado em outros estudos nacionais.21,22 Projeto Cathivar: o desafio de enfrentar a finitude humana Durante as visitas realizadas pelos alunos, os familiares revelaram satisfação pela possibilidade de falar com outras pessoas sobre a situação do enfermo e sobre as dificuldades que enfrentavam. Constatar que existiam pessoas interessadas no caso, para eles, já era um fato importante, mesmo porque visitas de parentes e amigos se tornavam cada vez mais escassas, refletindo a dificuldade de se enfrentar a degeneração do corpo e da capacidade de sociabilidade das pessoas.7 A parte de pesquisa de campo com pacientes do serviço de atendimento domiciliar terminou no inicio de 2006 e durante o resto do ano os alunos novatos do projeto Cathivar acompanharam a equipe de cuidados do hospital em suas visitas clínicas, de orientação e, quando acontecia a morte do paciente, a visita de luto. Cada caso era discutido em reuniões científicas e relatado por escrito. Esta fase serviu de treinamento e formação da equipe renovada. Em seqüência, no próximo ano o projeto deverá atuar no Hospital Universitário Risoleta Tolentino Neves, em Venda Nova – Belo Horizonte. A expectativa é acompanhar doentes e idosos dependentes de cuidados básicos ou aqueles em fase terminal durante sua permanência no hospital e os desdobramentos do caso após a alta. A finalidade é demonstrar o imperativo de se oferecer suporte adequado a famílias de baixa condição socioeconômica com doentes dependentes e provocar reflexão sobre a questão hospitalização versus desospitalização na perspectiva humanista e não como mera racionalização de custos financeiros. COMENTÁRIOS FINAIS A atuação do Cathivar em diferentes formatos institucionais considerados exemplares nas propostas de humanização de assistência a pacientes terminais ou dependentes crônicos proporcionou a oportunidade de que, durante o acompanhamento dos casos, fossem exercidas conjuntamente ações comunicativas de alento e de aprendizado. Ainda possibilitou que se percebessem vantagens, contradições e limites de cada uma das duas modalidades. Sem dúvida, o exemplo da Clínica representa o modelo “ideal”, o mais justo para a população excluída por suas precárias condições de vida. Apesar do êxito dessa experiência, reconhe- cida internacionalmente, a Clínica, serviço de caráter filantrópico, um oásis no conjunto da atenção à saúde de serviços especializados no país, encerrou recentemente suas atividades por problemas financeiros. Seu fechamento mostra o descaso do poder público com o bem-estar do cidadão e significou um golpe profundo para os que reivindicam o tratamento e morte digna para todos. O atendimento domiciliar, por sua vez, permite efetivamente mais convivência dos familiares com o parente doente, mas acarreta ônus financeiro e desgaste psicológico e social para a família e particularmente para o cuidador, que acaba cumprindo obrigações, em princípio, do Estado. Além disso, não é um serviço acessível à população carente porque exige um mínimo de recursos financeiros e condições favoráveis da habitação para cuidar do doente em casa. As modalidades de assistência fora dos muros do hospital para o doente para quem o emprego da tecnologia médica não tem mais eficácia técnica, como as expostas neste trabalho, representam mais aproximação com a visão humanista. O problema é que, na nossa sociedade, o poder regulamentador intervém para fazer viver, aumentando o tempo de vida, deixando a morte de lado, relegada ao domínio do privado, do particular.22 O movimento de cuidados paliativos busca retirar a questão dos bastidores da vida social e articular sentimentos coletivos que reivindiquem a prestação de cuidados para uma morte digna como um direto do cidadão e dever do Estado. Do ponto de vista da formação médica, a exposição do estudante aos dilemas como os vividos pelos doentes e familiares atendidos pela clínica e pelo atendimento domiciliar os desperta para a realidade da condição humana, questionando valores que sustentam a onipotência do saber médico. A interação estudante/paciente/familiares, por sua vez, propicia troca de impressões entre os participantes do projeto, suprindo anseios e rompendo barreiras individuais de expressão do estudante e conferindo oportunidade aos pacientes de serem confortados. A experiência com situações extremas entre a vida e a morte pode ainda surtir efeito mobilizador do aprendizado de atitudes éticas que, apesar de ser objetivo priorizado no currículo dos cursos de Medicina, não está contemplado com atividades práticas desafiantes, como a vivenciada pelo grupo do projeto Cathivar. Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S321-S326 325 Projeto Cathivar: o desafio de enfrentar a finitude humana REFERÊNCIAS 1. 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RELATO DE CASO Cefaléia termossensível: relato de caso relacionado ao trabalho Climate-related migraine: occupational case report Claudia Vasques Chiavegatto1; Ana Beatriz Araújo Neves1; Marcela Sousa Nascimento1; Andréa Maria Silveira 2 RESUMO A cefaléia é um problema de saúde muito prevalente em todo o mundo, com conseqüências importantes não só para os indivíduos afetados, mas para a sociedade em geral. A importância econômica da enxaqueca pode ser evidenciada pelo seu pico de prevalência, 25 a 55 anos, faixa em que se encontra a maior parte da população economicamente ativa. O caso apresentado é de importância por alertar para a possibilidade de nexo com o trabalho para uma doença não reconhecida clássica e oficialmente reconhecida como tal, o que influencia sobremaneira os desdobramentos do caso, especialmente para o paciente, a empresa e a Previdência Social. São discutidas questões como a importância da anamnese ocupacional e do diário de atividades; a dificuldade do estabelecimento do nexo causal e a importância e dificuldades da reabilitação profissional. 1 Residente em Medicina do Trabalho. HC-UFMG. Professora Adjunta do Departamento de Medicina Preventiva e Social – Área Saúde e Trabalho – Faculdade de Medicina da UFMG. Coordenadora do Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador – CEREST/MG. Hospital das Clínicas da UFMG. 2 Palavras-chave: Cefaléia. Transtornos de enxaqueca. Condições de trabalho. Saúde do trabalhador. ABSTRACT Headache is a prevalent problem throughout the world, and its consequences are important to both individual and society levels. Migraine occurs more commonly among economically active patients (25-55 years old) having thus an additional importance. Among the various causes of migraine lies the influence of climate. In this case report not also this factor was identified as the precipitating one, but was considered as related to work. The case is of great importance to underline the possibility of considering the occupational nexus for some diseases which are not officially recognized as related to work. We discuss the importance of occupational anamnesis and the diary of activities; the problems one has to face to establish the relation with work and the importance and difficulties of Brazil’s Social Security System in providing professional rehabilitation. Key words: Headache. Migraine disorders. Working conditions. Occupational health. INTRODUÇÃO O propósito deste artigo é chamar a atenção para o papel de agentes presentes nos ambientes ou condições de trabalho no desencadeamento de enxaquecas, no caso em questão o papel da exposição ao sol nesses quadros. A cefaléia constitui um sintoma freqüentemente encontrado na prática clínica, com prevalência variável ao longo da vida, mas superior a 90% em grande parte dos estudos. A etiologia das cefaléias pode ser dividida em dois grandes sub- Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador – CEREST/MG. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço para Correspondência: Alameda Álvaro Celso, 175/7º andar – Santa Efigênia – Belo Horizonte/MG. E-mail: [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S327-S332 327 Cefaléia termossensível: relato de caso relacionado ao trabalho grupos: cefaléias primárias, cujas causas são muitas vezes desconhecidas, ou secundárias (afecções cerebrais como o AVC, meningite, tumores, etc.). Os tipos mais comuns de cefaléia primária são a tensional, a enxaqueca, a cefaléia em salvas e as neuralgias do trigêmeo e do glossofaríngeo, cada qual com características próprias que permitem ao profissional treinado diagnosticar sem muitas dificuldades. A enxaqueca ou migrânea, segundo a classificação da International Headache Association1, é uma cefaléia recorrente que se manifesta por crises que duram entre quatro e 72 horas. Caracteristicamente, é uma dor pulsátil, geralmente unilateral, de intensidade moderada a alta e acompanhada de náuseas e/ou vômitos, fotofobia, fonofobia e osmofobia, podendo ou não ser precedida por aura e que não foi atribuída a outras causas. Apesar de menos freqüente que a cefaléia tensional, a enxaqueca é a maior responsável pela busca por atendimento médico entre as cefaléias.2 A história familiar é importante e deve ser investigada. Familiares de enxaquecosos têm risco quase duas vezes mais alto de apresentar a mesma desordem.3,4 A etiofisiopatologia das enxaquecas não é totalmente conhecida, mas investigações revelam que seriam distúrbios bioeletroquímicos cerebrais de possíveis causas genéticas e que envolveriam a ativação de nociceptores meníngeos e vasculares combinada com alterações na modulação central da dor, alterações serotoninérgicas, desordens plaquetárias e da barreira hematoencefálica, alimentos, alergias e fatores psicológicos.3-6 A enxaqueca é mais prevalente no sexo masculino durante a puberdade, mas a partir da adolescência sua freqüência aumenta rapidamente no sexo feminino, tornando-se mais elevada nesse grupo. A prevalência parece ser maior na raça branca, entre populações de menos poder aquisitivo e residente nas Américas.2,4 A importância econômica da enxaqueca pode ser evidenciada pelo seu pico de prevalência, 25 a 55 anos, faixa em que se encontra a população economicamente ativa2. Estudos americanos estimam que a enxaqueca é responsável pela perda anual de cerca de 150 milhões de dias de trabalho e de 13 bilhões de dólares para as empresas.4,7 De acordo com Silberstein4, os gastos médicos excedem um bilhão de dólares anuais nos Estados Unidos. No Brasil, Bigal et al.8, em estudo realizado em 328 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S327-S332 1.890 trabalhadores de um Hospital Universitário, detectaram prevalência de 30,4% de enxaqueca com importantes impactos sobre a qualidade de vida e atividades cotidianas dos trabalhadores. Outro estudo realizado por Vincent et al.9 em 993 empregados de uma empresa do setor petroquímico, ressaltou prevalência de cefaléia, em um período de 30 dias, de 49,9%. Destas, 5,5% preenchiam critérios da International Headache Association da época para enxaqueca. Dos trabalhadores atingidos pela cefaléia, 10% relataram dor forte o suficente para comprometer o desempenho ocupacional, o que os pesquisadores estimaram ter resultado em 538,75 horas não trabalhadas no período, ao custo de R$ 145,64 por funcionário. Extrapoladas para um ano, as perdas da empresa em decorrência da enxaqueca seriam da ordem de R$ 144.682,39. DESCRIÇÃO DO CASO Paciente do sexo feminino, 30 anos, leucoderma, estudante de Administração e trabalhando como carteira (entregando correspondência em domicílios e empresas) há quatro anos e sete meses, jornada externa de 13 às 18 horas, acompanhada no Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador de Minas Gerais desde janeiro de 2006. Relata que em setembro de 2004, ao final da jornada de trabalho, apresentou forte cefaléia em regiões frontal e temporais, tipo pulsátil e com aura. A dor se iniciou de forma branda por volta das 14 horas e se tornou insuportável por volta das 16 horas, sendo acompanhada por náusea e vômitos. Foi levada a um pronto-atendimento por colegas de trabalho, onde foi medicada e liberada após período de observação. Apresentou recorrência do quadro na semana seguinte ao final da jornada de trabalho. Não se recorda de episódios pregressos de cefaléia, exceto por uma crise de intensidade moderada e autolimitada ocorrida na única ocasião em que foi à praia, em 2000. História familiar positiva para enxaqueca (irmã). Avaliada por neurologista, este, após análise de diário de atividades, diagnosticou cefaléia termossensível, solicitando à empresa a mudança de função, sem sucesso. Com a permanência no posto de trabalho, as crises se tornaram mais freqüentes, apesar da instituição de tratamento medicamentoso, atingindo a média de 20 por mês, poupando Cefaléia termossensível: relato de caso relacionado ao trabalho finais de semana. Em agosto de 2005, foram-lhe fornecidos equipamentos de proteção individual (EPI): sombrinha, óculos escuros, boné e protetor solar, com melhora parcial das crises. Foi afastada do trabalho em outubro de 2005, tendo a última crise ocorrido em dezembro daquele mesmo ano. Em janeiro de 2006, recebeu alta previdenciária e, com o retorno às atividades laborativas, apresentou recidiva da cefaléia. Desenvolveu hipotimia relacionada ao receio do agravamento do seu quadro clínico. Com a piora progressiva, foi novamente afastada em fevereiro de 2006 e encaminhada à reabilitação profissional. A Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) foi emitida em 06/07/2006 pelo sindicato de sua categoria. Desde o novo afastamento apresentou apenas uma crise, na ocasião em que se expôs ao sol em um clube. Ainda não teve o reconhecimento da previdência social da relação de sua doença com o trabalho, mas está sendo reabilitada pelo empregador para assumir a função de atendente comercial, apresentando melhora da hipotimia. DISCUSSÃO Entre os fatores precipitantes das crises de enxaqueca, destaca-se a influência do clima, como no caso apresentado. Estudos demonstram grande variação (de 30 a 78%) no número de pacientes que relacionam o clima ao desencadeamento de crises de cefaléia.10 Vijayan et al.11, em 1980, e Leursalikmschy12, em 2002, enfatizam que 30 e 47% dos enxaquecosos, respectivamente, têm crises precipitadas por exposição ao sol e alterações no clima. Prince et al.7, em estudo prospectivo com dois anos de duração, compararam a incidência de enxaqueca com alterações meteorológicas e concluíram que a temperatura e a umidade estão estatisticamente associadas a essa desordem. Grande parte dos participantes destacou o clima como fator desencadeante das crises, entretanto, essa percepção não demonstrou relação significativa com as medidas das temperaturas. Salvesen e Bekkelund10 estudaram por dois anos a influência sobre a população do Norte da Noruega dos longos invernos e verões polares, quando noite e dia têm duração de seis meses, concluindo ser a enxaqueca significativamente mais incidente e intensa durante o verão. Chabriat et al.13 estudaram os fatores desencadeantes de cefaléia em pacientes com e sem enxaqueca, encontrando como mais freqüentes em ambos os grupos a fadiga, distúrbios de sono, estresse, alimentos e menstruação. O clima (calor/ frio) e a exposição solar foram citados por mais de 10% dos participantes em ambos os grupos. Entre os portadores de enxaqueca, o clima figurou entre os cinco principais fatores desencadeantes de crises, estando também associado a crises de mais intensidade. A identificação dos fatores desencadeantes de enxaqueca é de grande importância para o paciente, uma vez que permite melhorar sua qualidade de vida, sem a imposição de restrições desnecessárias, e possibilita o uso profilático de analgésicos no caso de eventual exposição ao fator identificado.7 O diário de atividades nos casos de enxaqueca é uma ferramenta útil para a determinação dos fatores precipitantes. Quando da orientação do paciente em relação à elaboração desse diário, deve o médico-assistente destacar a importância da observação e relato de exposições a agentes presentes no trabalho. As informações contidas no diário devem ser complementadas e detalhadas na anamnese ocupacional, o que permitirá acurado diagnóstico e a suspeição da relação com o trabalho. A confirmação do nexo entre as crises de enxaqueca e o trabalho é possível quando: o diário e a anamnese ocupacional mostram o surgimento dos sintomas seguindo-se ao período de exposição a agentes presentes no ambiente de trabalho, quando da ausência de sintomas nos períodos de afastamento dessa exposição ou quando de exposições protegidas. A relação entre o desencadeamento da cefaléia e condições e ambientes de trabalho ainda é pouco estudada. A maior parte das investigações em coletivos de trabalhadores, incluindo as poucas realizadas no Brasil8,9, tendem a destacar os prejuízos decorrentes das faltas ao trabalho, da queda de produtividade e de qualidade de vida nos indivíduos vitimizados, dando pouco destaque ao estudo de fatores ocupacionais envolvidos na precipitação dessas crises. Tal fato é curioso, pois parte dos agentes identificados pela literatura como desencadeantes de crises pode ser facilmente encontrada em ambientes de trabalho, locais onde a exposição aos mesmos Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S327-S332 329 Cefaléia termossensível: relato de caso relacionado ao trabalho tende a ser mais sistemática, prolongada e extensa do que em outros ambientes e situações. Entre os fatores desencadeantes mais citados e freqüentemente encontrados nos ambientes de trabalho, estão: o estresse, a privação do sono, o ruído, os odores fortes e o calor.12 A despeito disto e da grande prevalência de enxaquecas, relatos de casos e estudos epidemiológicos que explorem a relação enxaqueca–trabalho são praticamente inexistentes. Mesmo estudos que tratam da cefaléia provocada pelo calor, frio ou mudanças súbitas de temperatura discutem os quadros clínicos sempre com referência a mudanças climáticas no ambiente como um todo, mas não em relação à exposição a variações de temperaturas ou temperaturas extremas nos ambientes de trabalho. Parte do problema reside no diagnóstico incorreto das cefaléias. Estudo realizado no Brasil evidencia as dificuldades dos médicos não neurologistas em caracterizar corretamente esse quadro clínico.14 O fato do médico na atenção primária ser aquele que mais freqüentemente recebe casos de cefaléia15, associado à pouca ênfase dada nos cursos médicos que formaram esses profissionais à investigação sistemática da relação saúde-doença, faz com que pacientes portadores de enxaquecas precipitadas ou agravadas pelo trabalho não tenham seu diagnóstico realizado corretamente. Essa situação gera conseqüências danosas no que diz respeito ao tratamento, pois pode implicar a manutenção da exposição aos fatores de risco precipitantes das crises. A situação dificulta, ainda, o acesso do paciente a direitos previdenciários, como benefícios de afastamento do trabalho para tratamento, e à reabilitação profissional que permita o aprendizado para o exercício de outras atividades laborais em condições e ambientes que não comprometam seu estado de saúde. É ainda importante lembrar que nenhuma forma de cefaléia aparece na lista de doenças relacionadas ao trabalho publicada pelo Ministério da Saúde16 e adotada pelo Ministério da Previdência Social. Entretanto, essa ausência não constitui impedimento absoluto ao reconhecimento de enxaquecas precipitadas por agentes presentes nos ambientes de trabalho como doença relacionada ao trabalho, uma vez que existem indícios epidemiológicos ou clínico-ocupacionais sólidos da relação das mesmas com o trabalho. 330 Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S327-S332 No caso apresentado, apesar da evidente relação entre o agente identificado como desencadeador das crises – o sol – e a atividade desenvolvida – carteira, de ter sido emitida a CAT e de ter sido reconhecida pela perícia médica da Previdência Social a incapacidade da paciente para o trabalho, o benefício que a trabalhadora recebia do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) durante o afastamento de suas atividades laborativas foi qualificado como um auxílio-doença previdenciário comum (B-31), destinado a doenças sem relação com o trabalho, o que atesta as dificuldades do órgão segurador em lidar com casos desta natureza. Cabe ainda ressaltar as atuais dificuldades do INSS em prover a reabilitação profissional aos pacientes vítimas de doenças passíveis de agravamento no exercício de sua atual ocupação. No caso relatado, a paciente permaneceu aproximadamente um ano e seis meses afastada do trabalho em gozo de benefício previdenciário, aguardando inserção em programa do INSS de reabilitação profissional, apesar de ser portadora de uma doença compatível com diversas outras atividades profissionais e outros postos de trabalho existentes na própria empresa empregadora. Esta situação não é incomum na prática diária e custa milhões aos cofres públicos. Foi apenas a partir da iniciativa da empresa empregadora que a reabilitação pôde ocorrer, representando para a paciente uma importante melhora do ponto de vista psicossocial. Para fins práticos e de alerta aos médicos, principalmente os envolvidos na atenção básica, ressalta-se a necessidade do diagnóstico criterioso das cefaléias, do qual deve constar pesquisa de fatores presentes nas condições de trabalho que possam precipitar ou agravar as crises, permitindo o afastamento dos fatores de risco, mais sucesso no tratamento medicamentosos e acesso a direitos de natureza trabalhista e previdenciária. REFERÊNCIAS 1. Headache Classification Subcommittee of International Headache Society. The Internacional Classification of Headache Disorders. Cephalalgia. 2004; 24(1, Suppl.1): 1-150 2. Lipton R, Bigal M. The epidemiology of migrane. Am J Med. 2005; 118(suppl. 1): 3S-10S. Cefaléia termossensível: relato de caso relacionado ao trabalho 3. Vincent M. Fisiopatologia da enxaqueca. Arq Neuropsiquiatr. 1998; 56(4): 841-51. 4. Silberstein S. Migraine. Lancet. 2004 Jan 31; 363: 381-91. 5. Krymchantowski AV, Moreira Filho PF. 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Para efeito de categorização dos artigos, considera-se: a) Artigo Original: trabalhos que desenvolvam crítica e criação sobre a ciência, tecnologia e arte da medicina, biologia e matérias afins que contribuam para a evolução do conhecimento humano sobre o homem e a natureza. b) Educação Continuada: trabalhos que apresentam síntese atualizada do conhecimento disponível sobre medicina, biologia e matérias afins, buscando esclarecer, organizar, normatizar, simplificar abordagem dos vários problemas que afetam o conhecimento humano sobre o homem e a natureza. c) Atualização Terapêutica: trabalhos que apresentam síntese atualizada do conhecimento disponível sobre a terapêutica em medicina, biologia e matérias afins, buscando esclarecer, organizar, normatizar, simplificar a abordagem sobre os vários processos utilizados na recuperação do ser humano de situações que alteram suas relações saúde doença. d) Relato de Caso: trabalhos que apresentam a experiência médica, biológica ou de matérias afins em função da discussão do raciocínio, lógica, ética, abordagem, tática, estratégia, modo, alerta de problemas usuais ou não, que ressaltam sua importância na atuação prática e mostrem caminhos, conduta e comportamento para sua solução. e) Educação Médica: trabalhos que apresentam avaliação, análise, estudo, relato, inferência sobre a experiência didático-pedagógica e filosófica, sobre os processos de educação em medicina, biologia e matérias afins. f) História da Medicina: trabalhos que revelam o estudo crítico, filosófico, jornalístico, descritivo, comparativo ou não sobre o desenvolvimento, ao longo do tempo, dos fatos que contribuíram para a história humana relacionada à medicina, biologia e matérias afins. g) Cartas aos Editores: correspondências de leitores comentando, discutindo ou criticando artigos publicados na revista. Recomenda-se o tamanho máximo de 1000 palavras, incluindo referências bibliográficas. Sempre que possível, uma resposta dos autores ou editores será publicada junto com a carta. 3. Os trabalhos para publicação devem ter até 16 páginas de texto, incluindo ilustrações e referências, exceto os artigos da seção “Relato de Caso” que devem ter até 8 páginas. A RMMG reserva-se o direito de recusar artigos acima desses limites. 4. Os trabalhos recebidos serão analisados pelo Corpo Científico da RMMG ( Editor Geral, Editores Associados, Conselho Editorial e Consultores Ad Hoc). Um trabalho submetido é primeiramente protocolado e analisado quanto a sua apresentação e normas, estando estas em conformidade, o trabalho é repassado aos Editores Associados que indicarão dois revisores da especialidade correspondente. Os revisores são sempre de instituições diferentes da instituição de origem do artigo e são cegos quanto à identidade dos autores e local de origem do trabalho. Após receber ambos os pareceres, os Editores Associados os avalia e decide pela aceitação do artigo, pela recusa ou pela devolução aos autores com as sugestões de modificações. Um manuscrito pode retornar várias vezes aos autores para esclarecimentos mas cada versão é sempre analisada pelo Editores Associados e/ou Editor Geral, que detém o poder da decisão final, podendo a qualquer momento ter sua aceitação ou recusa determinada. 5. Os trabalhos devem ser digitados utilizando a seguinte configuração: margens: esquerda e superior de 3 cm e direita e inferior de 2 cm; tamanho de papel formato A4 (21 cm x 29,7 cm); espaço entrelinhas de 1,5 cm, fonte Arial ou Times New Roman, tamanho 12. A primeira página deve conter: título do trabalho, título em inglês, nome(s) completo(s) do(s) autor(es), sua(s) titulação(ões) e afiliação(ões), indicação da instituição onde o trabalho foi desenvolvido, indicação do autor correspondente com endereço completo, fax, e-mail, telefone e a indicação da categoria do artigo, conforme item 2.1. A segunda página deve conter o título do trabalho em português e inglês, o resumo, as palavras-chave, o summary e as key words. A partir da terceira página apresenta-se o conteúdo do trabalho. 6. Para os trabalhos resultados de pesquisas envolvendo seres humanos, deverá ser encaminhado uma cópia do parecer de aprovação emitido pelo Comitê de Ética reconhecido pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), segundo as normas da Resolução do Conselho Nacional de Saúde – CNS/196/96, e para os manuscritos que envolveram apoio financeiro, este deve estar explicito claramente no texto e declarados na carta de submissão a ausência de qualquer interesse pessoal, comercial, acadêmico, político ou financeiro na publicação do mesmo. 7. Os trabalhos devem ser enviados para o endereço eletrônico (e-mail: [email protected]), anexando o original e suas respectivas ilustrações, anexos e apêndices; Parecer do Comitê de Ética, quando houver; e a correspondência de submissão do manuscrito, dirigida ao Editor Geral, indicando a sua originalidade, a não submissão a outras revistas, as responsabilidades de autoria, a transferência dos direitos autorais para a revista em caso de aceitação e declaração de que não foi omitido qualquer ligação ou acordo de financiamento entre o(s) autor(es) e companhias que possam ter interesse na publicação do artigo. 8. Para efeito de normalização, serão adotados os “Requerimentos do Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas” (International Committee of Medical Journal Editors – ICMJE) (Estilo Vancouver) disponível em:<http://www.icmje.org/>. 9. Todo trabalho deverá ter a seguinte estrutura e ordem: a) Primeira página: título; título em inglês; nome(s) completo do(s) autor(es), acompanhado(s) de seu(s) respectivos(s) título(s) e afiliação(coes); citação da instituição onde o trabalho foi realizado; endereço para correspondência; indicação da categoria do artigo. b) Segunda página: Título; título em inglês; resumo (em formato semiestruturado para os artigos originais)* do trabalho em português, sem exceder o limite de 250 palavras; Palavras-chave (três a dez), de acordo com o DECS Descritores em Ciências da Saúde da BIREME (http:// decs.bvs.br/); Summary (resumo em língua inglesa), consistindo na correta versão do resumo para aquela língua; Key words (palavraschave em língua inglesa) de acordo com a lista Medical Subject Headings (MeSH) do PUBMED) da National Library of Medicine (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?db=mesh); c) Terceira página: TEXTO: Introdução, Material ou Casuística e Método ou Descrição do Caso, Resultados, Discussão e/ou Comentários (quando couber) e Conclusões; d) Agradecimentos (opcional); e) Referências como especificado no item 11 dessas normas; *Nota: O resumo no formato semi-estruturado deverá ser adotado para os artigos da categoria “artigos originais”, compreendendo, obrigatoriamente, as seguintes partes, cada uma das quais devidamente indicada pelo subtítulo respectivo: Objetivos; Métodos; Resultados; Conclusões. 10. As ilustrações devem ser colocadas imediatamente após a referência a elas. Dentro de cada categoria deverão ser numeradas seqüencialmente durante o texto. Exemplo: (Tabela 1, Figura 1). Cada ilustração deve ter um título e a fonte de onde foi extraída. Cabeçalhos e legendas devem ser suficientemente claros e compreensíveis sem necessidade de consulta ao texto. As referências às ilustrações no texto deverão ser mencionadas entre parênteses, indicando a categoria e o número da tabela ou figura. Ex: (Tab. 1, Fig.1). As fotografias deverão ser enviadas em aquivos anexos, e não devem ser incorporadas no editor de texto; podem ser em cores e deverão estar no formato JPG, em alta resolução (300 dpi) e medir, no mínimo, 10cm de largura (para uma coluna) e 20cm de largura (para duas colunas). Devem ser nomeadas, possuir legendas e indicação de sua localização no texto. 11. As referências são numeradas consecutivamente, na ordem em que são mencionadas pela primeira vez no texto. Devem ser apresentadas de acordo com as normas do Comitê Internacional de Editores De Revistas Médicas, disponível em:< http://www.nlm.nih.gov/bsd/ uniform_requirements.html> Os títulos das revistas são abreviados de acordo com o “Journals Database” do PUBMED, disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?db=journals>. As referências no texto devem ser citadas mediante número arábico sobrescrito, após a pontuação, quando for o caso, correspondendo às referências no final do artigo. Nas referências, citar como abaixo: 11.1.ARTIGOS DE PERIÓDICOS a) Artigo padrão de revista científica Incluir o nome de todos os autores (último sobrenome, em caixa baixa, seguido da primeira letra dos demais nomes e sobrenomes, quando são até seis. Mais de seis autores indicar os seis primeiros seguidos de et al. You CH, Lee HY, Chey RY, Menguy R. Electrogastrografic study of patients with unexplained nausea, bloating and vomiting. Gastroenterology. 1980; 79:3114. Viana MB, Giugliani R, Leite VH, Barth ML, Lekhwani C, Slade CM, et al. Very low levels of high density lipoprotein cholesterol in four sibs of a family with non-neuropathic Niemann-Pick disease and sea-blue histiocytosis. J Med Genet. 1990 Aug; 27(8):499-504. b) Autor corporativo: The Royal Marsden Hospital BoneMarrow Transplantation Team. Failure os syngeneic bonemarrow graft in post hepatitis marrow aplasia. Lancet. 1977; 2:2424. c) Sem autoria (entrar pelo título): Coffee drinking and cancer of the pancreas (Editorial). BMJ. 1981; 283:6289. d) Suplemento de revista: Mastri AR. Neuropathy of diabetic neurogenic bladder. Ann Intern Méd. 1980; 92 (2 pt 2): 3168. Frumin AM, Nussabaum J, Esposito M. Functional asplenia: demonstration of esplenic activity by bone marrow sean (resumem). Blood. 1979; 54 (supl 1): 26. 11.2. LIVROS E OUTRAS MONOGRAFIAS a) Autor(es) pessoa física: Eisen HN. Immunology: an introduction to molecular and cellular principles of the immune response. 5th ed. New York: Harper and How; 1974. b) Editor, compilador, coordenador como autor: Dausset J, Colombanij D, editors. Histocompatibility testing 1972. Copenhague: Munksgaard; 1973.128p. c) Autor(es) institucional: Royal Adelaide Hospital; University of Adelaide, Department of Clinical Nursing. Compendium of nursing research and practice development, 1999-2000. Adelaide (Australia): Adelaide University; 2001. 11.2.1. Capítulo de livro: Weinstein L, Swartz MN. Pathogenic properties of invading microorganisms. In: Sodeman WA Jr, Sodeman WA, editors. Pathologic physiology: mechanisms of diseases. Philadelphia: WB Saunders; 1974. p.457-72. 11.2.2. Trabalhos apresentados em congressos, seminários, reuniões etc.: Blank D, Grassi PR, Schlindwein RS, Mello JL, Eckert GE. The growing threat of injury and violence against youths in southern Brazil. Abstracts of the Second World Conference on Injury Control; 1993 May 2023; Atlanda, USA. Atlanda: CDC; 1993. p.1378. 11.3 DISSERTAÇÕES E TESES Caims RB. Infrared spectroscopic studies of solid oxigens [Tesis]. Berkeley (Ca): University of California; 1965. Borkowski MM. Infant sleep and feeding: a telephone survey of Hispanic Americans [dissertation]. Mount Pleasant (MI): Central Michigan University; 2002. 11.4. ARTIGO DE JORNAL (não científico) Shaffer RA. Advances in chemistry are starting to unlock musteiries of the brain: discoveries could help cure alcoholism and insomnia, explain mental illnes. How the messengers work. Wall Street Journal, 1977; ago. 12:1 (col. 1). 10 (cl. 1). 11.5. ARTIGO DE REVISTA (não científica) Roueche B. Annals of Medicine: the Santa Claus culture. The New Yorker, 1971; sep. 4: 6681. 12. Agradecimentos devem constar de parágrafo à parte, colocado antes das referências bibliográficas, após as key words. 13. As medidas de comprimento, altura, peso e volume devem ser expressas em unidades do sistema métrico decimal (metro, quilo, litro) ou seus múltiplos e submúltiplos. As temperaturas em graus Celsius. Os valores de pressão arterial em milímetros de mercúrio. Abreviaturas e símbolos devem obedecer padrões internacionais. Ao empregar pela primeira vez uma abreviatura, esta deve ser precedida do termo ou expressão completos, salvo se se tratar de uma unidade de medida comum. 14. Lista de checagem: recomenda-se que os autores utilizem a lista de checagem abaixo para certificarem-se de que toda a documentação está sendo enviada. Não é necessário enviar a lista. • Carta de submissão assinada (assinatura digital) por todos os autores • O manuscrito em arquivo .doc, contendo: • Página de rosto com todas as informações solicitadas • Resumo em português, com palavras chaves • Texto contendo: introdução, métodos, resultados e discussão • Resumo em inglês e palavras chave Summary/Keywords • Referências no estilo Vancover numeradas por ordem de aparecimento das citações no texto • Citações numeradas por ordem de aparecimento no texto com algarismos arábicos • Tabelas numeradas por ordem de aparecimento • Gráficos numerados por ordem de aparecimento • Legenda das figuras 15. Os casos omissos serão resolvidos pela Comissão Editorial. 16. O Conselho Editorial e RMMG não se responsabilizam pelas opiniões emitidas nos artigos. 17. Em casos de não aprovação de artigos, os autores serão comunicados por escrito. Os artigos reprovados não serão devolvidos. 18. Os artigos devem ser enviados para: Revista Médica de Minas Gerais Av. Alfredo Balena, 190 Prédio da Faculdade de Medicina, sala 12 30130-100 • Belo Horizonte • MG Fone/Fax: (31) 3409-9796 E-mail: [email protected] [email protected] Rev Med Minas Gerais 2007; 17(1/2 Supl 4): S332