UNISALESIANO Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium Curso de Psicologia Cintia Roberta Galvão Freire Lourdes Maria Neves Maria Virgínia Graciotin Costa ESTOU TE VENDO, ESTOU TE OUVINDO: Um estudo fenomenológico com pacientes soro positivos LINS – SP 2016 CINTIA ROBERTA GALVÃO FREIRE LOURDES MARIA NEVES MARIA VIRGÍNIA GRACIOTTIN COSTA ESTOU TE VENDO, ESTOU TE OUVINDO: Um estudo fenomenológico com pacientes soro positivos Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium, curso de Psicologia, sob a orientação do Prof. Me. Aguinaldo José da Silva Gomes e Orientação técnica da Profª. Ma. Jovira Maria Sarraceni. LINS – SP 2016 Freire, Cíntia Roberta Galvão; Neves, Lourdes Maria; Costa, Maria Virgínia Graciotin F933e Estou te vendo, estou te ouvindo: um estudo fenomenológico com pacientes soro positivos / Cintia Roberta Galvão Freire; Lourdes Maria Neves; Maria Virgínia Graciotin Costa. – – Lins, 2016. 75p. il. 31cm. Monografia apresentada ao Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – UNISALESIANO, Lins-SP, para graduação em Psicologia, 2016. Orientadores: Jovira Maria Sarraceni; Aguinaldo José da Silva Gomes 1. HIV. 2. AIDS. 3. Estigma. 4. Fenomenologia. I Título. CDU 159.9 CINTIA ROBERTA GALVÃO FREIRE MARIA VIRGÍNIA GRACIOTTIN COSTA LOURDES MARIA NEVES ESTOU TE VENDO, ESTOU TE OUVINDO: Um estudo fenomenológico com pacientes soropositivos Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium, para obtenção do título de Bacharel em Psicologia. Aprovado em: _____/_____/_____ Banca Examinadora: Prof. Orientador: Aguinaldo José da Silva Gomes Titulação: Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Assinatura: ________________________________ 1º Prof.: _______________________________________________________ Titulação: _____________________________________________________ Assinatura: ________________________________ 2º Prof.: _______________________________________________________ Titulação: _____________________________________________________ Assinatura: _______________________________ "Carecemos inteiramente de uma ciência racional do homem e da comunidade humana." Edmund Husserl Dedico esse trabalho ao meu pai (in memorian) que vibrou com a minha entrada na Universidade, mas que infelizmente não assistirá à conclusão. Entre todas as dificuldades e ambiguidades que existiam em nossa relação, ele desejava que alcançasse esse momento tão impar. Dedico, não somente esse trabalho, mas todo o meu carinho e amor, à minha família, aos meus filhos Sued Ricardo e Samuel Henrique, ao meu esposo Célio, à minha mãe, aos meus irmãos e também à minha querida Sogra. Cíntia Dedico esse trabalho primeiramente a Deus, a meus pais e minha irmã pelo apoio incondicional para a conclusão de minha graduação e a meus amigos, pelo apoio e carinho durante minha jornada. Maria A Deus, que não rejeitou as minhas preces para realizar este sonho, veio em meu auxilio e realizou os desejos do meu coração. Com esta preciosa bênção, veio ao meu encontro. Lourdes AGRADECIMENTOS Quero agradecer primeiramente a Deus por ter me amparado sempre, a minha sogra que me incentivou a voltar a estudar, a meu marido que, além do incentivo, me apoiou e acreditou em mim quando nem eu mesma acreditava, que segurou minha mão todas as vezes que eu pensei em desistir e compreendeu todas as renúncias que tivemos que fazer para que essa escolha se concretizasse e que, acima de tudo, me amou durante todas as crises que eu passei durante e por causa dessa escolha. Quero agradecer a minha mãe que cuidou dos meus filhos para que eu pudesse frequentar as aulas e os estágios, e aos filhos que sofreram com a minha ausência, mas que reconhecem essa nova mãe que me tornei. À direção e funcionários do NGA-27, que abriram as portas da instituição e nos acolheram de forma afetiva, em especial a Dra. Camila e a enfermeira Alessandra, que acreditaram no nosso trabalho e nos deram as condições para que fosse concluído. Aos participantes da pesquisa que se prontificaram e se dedicaram junto a nós. Aos professores do UNISALESIANO por esses cinco anos em que compartilharam conosco o seu conhecimento, com destaque especial para nossos orientadores. Cíntia AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente aos professores orientadores e a todos que contribuíram para a realização desse trabalho. Maria AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos meus pais, Sebastião e Aldomira (in memorian) pela minha existência. Agradeço aos meus filhos Diego e Bianca, por acreditarem em mim, e de maneira especial me iluminaram, levando-me a buscar mais conhecimento. Agradeço ao meu companheiro Luciano por ter me apoiado com amor, dedicação e colaboração para finalizar esta etapa. Também não posso deixar de agradecer aos meus familiares, aos amigos, em especial Juliana, Pedro, Cesar e Carol, por me amparar e auxiliar nas horas mais difíceis de todo o período acadêmico. Agradeço também a todos os professores que me acompanharam durante a minha graduação e durante a realização deste trabalho. Lourdes RESUMO O diagnóstico da AIDS traz consigo uma série de tormentas ao infectado e que afetam a sua relação com o mundo externo e também a forma como ele se enxerga no ambiente em que vive. É um ponto de partida para vivências de conflitos, novos sentidos, sofrimento de estigma e mudanças de identidade. O presente trabalho tem como tema a compreensão das vivências do HIV positivo em tratamento e está dividido em 3 partes. Primeiro, tratou-se genericamente sobre o tema HIV/AIDS, abordando aspectos relacionados ao histórico, às ações governamentais, aos tratamentos disponíveis, à adesão ao tratamento por parte dos infectados, às dificuldades de adesão ao tratamento, bem como o seu abandono, aos direitos garantidos aos soropositivos e às perspectivas em relação ao futuro, segundo a Organização Mundial de Saúde. Em seguida abordou-se o método. A técnica utilizada foi a fenomenologia existencial, buscando o sentido do ser. A terceira e ultima parte teve como base 3 entrevistas periódicas, realizadas com 3 indivíduos voluntários infectados com HIV, em tratamento acompanhado pelo NGA-27 de Lins/SP, órgão subordinado à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. O trabalho é concluído tendo como base a massa de dados coletada durante o período das entrevistas, as quais foram gravadas em áudio e transcritas para facilitar a análise. Pretendeuse discutir sobre o tratamento humanitário e as melhorias na vivência do soropositivo com a sociedade, a família e consigo mesmo, dando-lhe oportunidade de expressar seus sentimentos, aflições e angústias que o cercam, e de lidar melhor com os estigmas que sua condição traz. A partir do método fenomenológico, a pessoa portadora do vírus HIV, não se caracteriza apenas pela doença, afinal ela não pode ser vista apenas como ser biológico. Deve-se ver e ouvir a pessoa em sua totalidade como ser social, biológico e psicológico e levar em conta que sua identidade é sempre mutável e atemporal. Palavras-chave: HIV. AIDS. Estigma. Fenomenologia. ABSTRACT The diagnosis of AIDS brings with it a number of consequences for the infected person and affect their relationship with the outside world and also how he sees the environment in which he lives. It is a starting point for experiences of conflicts, new meanings, stigma of suffering and identity changes. This work is subject to understanding the experiences of HIV positive in treatment and is divided into 3 parts. First, it is generally discussed on HIV / AIDS theme, addressing issues related to the history, the government actions, the available treatments, the treatment adherence and its abandonment, the rights guaranteed to the HIV-positive and the outlook for the future, according to the World Health Organization (WHO). then it addresses the method. The used technique was the existential phenomenology, seeking the meaning of being. The third and last part was based on 3 periodic interviews conducted with three volunteers infected with HIV in treatment accompanied by NGA-27 Lins / SP, a part of the São Paulo health department. The work was completed based on the mass of data collected during the interviews, which were audio-recorded and transcribed to facilitate analysis. It was intended with this project, discuss about the humane treatment and the relationship improvement of the HIV-positive with the society, family and himself, giving to him the opportunity to express his feelings, sufferings and troubles that surround it, and the best deal with the stigma that his condition brings. From the phenomenological method, the person carrying the HIV virus is not only characterized by the disease, after all it cannot be seen only as a biological body. It is necessary to see and to hear the whole person as a social, biological and psychological element and take into account that their identity is always changeable and timeless. Keywords: HIV. AIDS. Stigma. Phenomenology. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS: Acquired Immunodeficiency Syndrome ALV: Associação de Luta pela Vida CAAE: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética CEP: Comitê de Ética em Pesquisa CF88: Constituição Federal de 1988 DST: Doenças Sexualmente Transmissíveis ENONG: Encontro Nacional de ONG/AIDS FGTS: Fundo de Garantia por Tempo de Serviço HIV: Human Immunodeficiency Virus INSS: Instituto Nacional do Seguro Social MS: Ministério da Saúde NGA-27: Núcleo de Gestão Assistencial de Lins/SP OMS: Organização Mundial de Saúde ONG: Organização Não-Governamental PRES: Previdência Social SIDA: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida TCLE: Termo de Consentimento Livre Esclarecido WHO: World Health Organization SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 14 CAPÍTULO I - HIV/AIDS............................................................................................. 16 1 HIV/AIDS - ABORDAGEM HISTÓRICA.................................................................. 16 1.1 A infecção pelo HIV .............................................................................................. 16 1.2 O Tratamento da AIDS ......................................................................................... 17 1.2.1 Problemas relativos à adesão ao tratamento ..................................................... 19 1.3 Os direitos dos soropositivos ................................................................................ 20 1.4 Efeitos psicológicos no infectado pelo HIV............................................................ 24 1.5 Estudos de casos e publicações sobre o assunto................................................. 25 1.5.1 Estigma e Coestigma......................................................................................... 25 1.5.2 Efeitos no âmbito familiar e social...................................................................... 28 CAPÍTULO II - MÉTODO FENOMENOLÓGICO ........................................................ 30 2 INTRODUÇÃO AO MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL ..................... 30 2. 1 Método Fenomenológico de Edmund Husserl...................................................... 30 2 .2 Método Fenomenológico-Existencial de Martin Heidegger................................... 32 2.3 Método fenomenológico na pesquisa científica.................................................... 35 2.4 A importância do método fenomenológico no trabalho científico........................... 38 CAPÍTULO III - METODOLOGIA DE PESQUISA ...................................................... 41 3 MÉTODO................................................................................................................ 41 3.1.1 A descoberta do HIV: questão de identidade e movimento ............................... 43 3.2 Estigma................................................................................................................. 46 3.3 A questão da morte e do morrer ........................................................................... 50 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 53 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 55 APÊNDICE ................................................................................................................. 57 ANEXOS .................................................................................................................... 71 14 INTRODUÇÃO A AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) traz consigo uma série de consequências para a vida dos indivíduos portadores dessa doença, principalmente as relacionadas com os estigmas inerentes a essa condição e também às relacionadas ao conceito de identidade, que se apresenta neste tema, como um atributo em constante mutação. Tal como a água se molda ao seu recipiente, o indivíduo infectado pelo HIV, molda-se ao ambiente, adaptando-se e assumindo identidades diferentes, conforme novos estímulos se apresentam ao seu ser. A sociedade, por meio de várias formas de categorização, acaba por atribuir características que por muitas vezes se tornam estigmas, que podem trazer sofrimento para as pessoas, principalmente quando essa categorização está relacionada a atributos negativos ou pejorativos (GOOFMAN, 1963). Dessa maneira, uma melhor compreensão do quadro de sofrimento dessas pessoas, pode possibilitar a ampliação de estratégias que melhorem as condições psicossociais, dando oportunidades que normalmente não são oferecidas no tratamento convencional, lançando um olhar humanista para a condição do HIV (Human Immunodeficiency Virus) positivo e proporcionando condições ao melhor acolhimento do indivíduo durante o tratamento, de forma a trazer ganhos, que além de estarem relacionados ao conforto e à segurança, assegurem condições para o não abandono ao tratamento. O presente estudo se mostra relevante para a área da Psicologia, com o enfoque na fenomenologia existencial, pelo fato de que propõe um olhar direcionado ao ser e particularmente, à sua narrativa de vida, que visa a compreensão do sujeito portador do vírus HIV, nos aspectos familiar, social e individual. A compreensão dos aspectos citados anteriormente, referentes ao paciente portador do HIV, é indispensável para uma melhor visão e um melhor entendimento da vida desse paciente em questão, onde o mesmo tem a oportunidade de expressar, através da fala, sua vivência construída temporalmente. Este trabalho apresenta-se organizado da seguinte forma: Capítulo I, que apresenta o tema HIV/AIDS, abordando o histórico, o 15 tratamento, problemas relacionados à adesão ao tratamento, políticas governamentais que foram implantadas de forma a suportar o indivíduo infectado. O Capítulo II, que apresenta a técnica a ser utilizada, a fenomenologia existencial. O Capítulo III, que apresenta a análise e a discussão acerca de entrevistas realizadas com três indivíduos infectados pelo HIV e que se voluntariaram de forma a expressar os seus sentimentos e suas opiniões sobre nove perguntas relacionadas ao tema. Finalmente, o trabalho tenta oferecer possibilidades de um novo olhar para pessoas que convivem com o vírus HIV. Através das entrevistas os pacientes terão um espaço de escuta para as dificuldades e conflitos que vivenciam depois da infecção, um momento onde possam falar de si, de como se sentem e de como enfrentam os preconceitos e desafios diários. Ao final do trabalho, espera-se compreender a pessoa com HIV através da abordagem fenomenológica, com a proposta de humanizar e melhorar a vida social, familiar e individual do paciente infectado pelo HIV, dando-lhe condições para enfrentar os conflitos, o preconceito, os efeitos do estigma, as dificuldades de seguir o tratamento e todo o sentimento carregado de negatividade que é característico de sua condição de paciente soro positivo em tratamento. 16 CAPÍTULO I HIV/AIDS 1 HIV/AIDS - ABORDAGEM HISTÓRICA No Brasil, os primeiros registros datam de 1980. Somente em 1982, a síndrome foi classificada. Inicialmente foi denominada doença dos 5 H, representando os homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e hookers (nome em inglês dado às profissionais do sexo). 1.1 A infecção pelo HIV Quando ocorre a infecção pelo vírus causador da AIDS, o sistema imunológico começa a ser atacado. E é na primeira fase, chamada de infecção aguda, que ocorre a incubação do HIV. Essa fase corresponde ao tempo decorrido da exposição ao vírus até o surgimento dos primeiros sinais da Síndrome. Esse período varia de 3 a 6 semanas, e o organismo leva de 30 a 60 dias após a infecção para produzir anticorpos anti-HIV. Os primeiros sintomas são muito parecidos com os de uma gripe, como febre e mal-estar. Por isso, a maioria dos casos passa despercebida. (BRASIL, 2016). A próxima fase é marcada pela forte interação entre as células de defesa e as constantes e rápidas mutações do vírus. Nessa fase, o organismo não enfraquece o suficiente para permitir novas doenças, pois os vírus amadurecem e morrem de forma equilibrada. Esse período, que pode durar muitos anos, é chamado período assintomático. A baixa imunidade permite o aparecimento de doenças oportunistas, que recebem esse nome por se aproveitarem da fraqueza do organismo. Com isso, atinge-se o estágio mais avançado da doença, a AIDS. Quem chega a essa fase, por não saber ou não seguir o tratamento indicado pelos médicos, pode sofrer de hepatites virais, tuberculose, pneumonia, toxoplasmose e alguns tipos de câncer. 17 As principais complicações da AIDS estão relacionadas com a presença de infecções que atingem principalmente os aparelhos respiratório, digestivo e o sistema nervoso central, podendo causar encefalites e meningites agudas ou crônicas (FOCACCIA, 2010). 1.2 O Tratamento da AIDS O acompanhamento médico da infecção pelo HIV é essencial, tanto para quem não apresenta sintomas e não toma remédios (fase assintomática), quanto para quem já exibe algum sinal da doença. O tratamento é feito com medicamentos chamados antirretrovirais. A partir desse momento, o maior problema enfrentado pelos infectados está relacionado à adesão ao tratamento (BRASIL, 2008). O início da terapia antirretroviral pode ser um dos momentos mais difíceis para quem vive com HIV, pois uma nova rotina deverá ser incorporada ao seu dia-a-dia. Os remédios podem fazê-lo lembrar a cada momento da própria soro-positividade. Tomar remédio implica perceber-se ou sentir-se doente, o que nem sempre ocorre com a pessoa assintomática. Situação contrária pode ocorrer com pacientes que ainda não possuem indicação clínico-laboratorial, mas querem iniciar seu tratamento imediatamente e ficam decepcionados ao saberem que ainda não está na hora (BRASIL, 2008). Essa nova situação merece uma abordagem da equipe interdisciplinar, a fim de facilitar a adesão adequada já nesse primeiro momento, entendendo que o tratamento não se limita à mera prescrição de medicamentos. Para promover a adesão não basta estar atento apenas aos aspectos biomédicos, mas também aos de caráter psicossocial. Há que se compreender o usuário dos serviços de saúde como sujeito de seu auto-cuidado e, junto com o profissional, ambos devem pensar em formas de lidar com a adesão ao tratamento em seu início. (BRASIL, 2008) No caso das gestantes, ao receberem este resultado indeterminado, as mulheres sentem-se angustiadas e confusas, mas, ainda neste momento, precisam tomar decisões acerca das opções profiláticas para seus bebês. Neste contexto de turbulência emocional, o acolhimento e o aconselhamento das gestantes são fundamentais para que elas se sintam amparadas em suas 18 necessidades emocionais, bem como instrumentalizadas em seu processo de tomada de decisão. O diálogo entre o profissional de saúde e a gestante tem como objetivo apontar caminhos para que a mulher tome decisões e encontre maneiras realistas de enfrentar seus problemas. Aconselhar não é o mesmo que dar conselhos ou dizer a essas mulheres o que devem fazer; o papel do aconselhador é o de ouvir as preocupações das gestantes, discutir questões e prover informações, bem como, suporte emocional. (OLIVEIRA, 2004). A má adesão ao tratamento acelera o processo de resistência do vírus aos medicamentos, por isso, toda e qualquer decisão sobre interrupção ou troca de medicamentos deve ser tomada com o consentimento do médico que faz o acompanhamento do soropositivo. É primordial, para o infectado, entender que a equipe de saúde deve ser vista como aliada, pois juntos podem chegar à melhor solução para cada caso. Se, no início da epidemia, os remédios caríssimos e pouco potentes eram restritos a alguns portadores do HIV, hoje, graças a uma política que investiu na fabricação nacional de antirretrovirais e em formar equipes de saúde, o tratamento tornou-se mais eficaz e acessível. No Brasil, em 2012, 217 mil pessoas podiam contar com medicamentos de última geração capazes de promover qualidade de vida às pessoas que vivem com HIV/AIDS. Outra vitória é o quadro de profissionais de diversas especialidades envolvidos no tratamento. Antes, apenas médicos; hoje, enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos e assistentes sociais. (AMORIM et al., 2012) De acordo com relatório divulgado em Dezembro de 2015, a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que quase 16 milhões de pessoas no mundo todo recebiam tratamento contra o HIV em meados de 2015, mais de 11 milhões delas no continente africano, onde só 11 mil pessoas recebiam tratamento no ano 2000 (BRASIL, 2016). O relatório, que foi apresentado em uma Conferência sobre a AIDS na África, acrescenta que o número de mortes causadas pelo HIV reduziu 42% desde 2004 - quando 2 milhões de pessoas morreram devido à doença - até 2014, ano no qual os falecimentos caíram para 1,2 milhões de pessoas (BRASIL, 2016). Os avanços na luta contra o vírus salvaram, desde o ano 2000 até meados de 2015, cerca de 7,8 milhões de vidas. A África é o local do mundo 19 onde as infecções mais se reduziram. As melhoras registradas desde o início do século são atribuídas a vários fatores pela OMS, que ressalta a importância dos programas nacionais para evitar a extensão do vírus (BRASIL, 2016). Dentre as medidas tomadas pelos governos, a OMS citou os tratamentos para evitar a transmissão do vírus de mães para filhos, assim como métodos mais recentes como a circuncisão masculina voluntária, uma cirurgia que reduz o risco de infecção entre os homens. Apesar do otimismo da mensagem, a OMS alerta a respeito dos grandes desafios que serão enfrentados pela comunidade internacional nos próximos cinco anos, um período no qual deverá ser estendido o atendimento aos portadores do vírus e as medidas para combatê-lo sejam intensificadas em grande escala. Segundo o relatório da OMS, o vírus HIV, causador da AIDS, pode ser erradicado em 15 anos, se os esforços para combatê-lo forem intensificados. Com a introdução da terapia antirretroviral, em 1996, a mortalidade e as infecções oportunistas foram reduzidas e houve aumento da sobrevida dos portadores de HIV/AIDS e melhora da qualidade de vida. Porém, embora tenham atribuído à AIDS caráter crônico, possibilitando a reinserção social, profissional e afetiva, o tratamento ainda representa grande desafio, principalmente no aspecto da adesão, uma vez que o uso dos medicamentos em níveis inferiores a 95% não é suficiente para manter a supressão da replicação viral (KOURROUSKI, 2008). 1.2.1 Problemas relativos à adesão ao tratamento A adesão ao tratamento ainda é um problema. A complexidade das questões associadas ao portador do HIV torna imprescindível a abordagem multidisciplinar. Em especial, quando o paciente é usuário de drogas. O acompanhamento impõe dificuldades extras. Nota-se que a maioria dos soropositivos luta para seguir sem falhas a terapia antirretroviral e que isso envolve inúmeros fatores, inclusive psicológicos. O Ministério da Saúde pretende disponibilizar em breve o esquema de único comprimido diário contra a AIDS, o que poderá contribuir para a adesão. Dirceu Greco, então diretor do Departamento de DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis), AIDS e 20 Hepatites Virais do MS ( Ministério da Saúde) em 2012 assinalou que “otimizar a adesão e a manutenção do tratamento e fortalecer estratégias de prevenção positiva, promovendo ações direcionadas ao estilo de vida e ao convívio com o HIV ao longo do tempo, são ações prioritárias para os próximos anos”. (AMORIM et al., 2012, p.6). Devido às situações de preconceito e discriminação que ainda são observadas em reações à soro positividade, pessoas com HIV/AIDS podem vivenciar isolamento e restrição dos relacionamentos sociais, com impacto negativo na manutenção e estruturação da rede de apoio. Os usuários sem apoio, ou mesmo com suporte insuficiente, de familiares, amigos e/ou pessoas afetivamente significativas, tendem a apresentar mais dificuldades de adesão. O apoio social se refere a ações que auxiliam pessoas no enfrentamento de dificuldades ou em contextos de estresse, havendo duas modalidades: afetivo-emocional e operacional ou instrumental. A primeira envolve ações como prover atenção, companhia e escuta. A segunda abarca ações concretas e operacionais do cotidiano, como auxílio em tarefas domésticas ou em aspectos práticos do próprio tratamento (acompanhar em uma consulta, buscar os medicamentos na unidade de dispensação, tomar conta dos filhos nos dias de comparecimento ao serviço de saúde). Ambos fazem com que a pessoa se sinta cuidada, pertencente a uma rede social. (BRASIL, 2008). 1.3 Os direitos dos soropositivos No Brasil, o tratamento para infectados com o vírus HIV é gratuito e totalmente custeado pelo Ministério da Saúde. Este é um direito garantido pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 1988, que em seu artigo 196, determina o seguinte: CF88 (Constituição Federal de 1988), Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticos sociais e econômicos que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário e serviços para promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988) O amparo legal para os infectados por HIV não se limita apenas a esta determinação da Constituição Federal. Há diversos desdobramentos para esta determinação, que tem caráter geral. Tais desdobramentos são encontrados na 21 legislação infraconstitucional, que compreende leis ordinárias, decretos, tratados internacionais, regulamentos e Instruções Normativas. Por exemplo, o portador do vírus tem o direito de manter em sigilo a sua condição sorológica no ambiente de trabalho, como também em exames admissionais, periódicos ou demissionais. Ninguém é obrigado a contar sua sorologia, senão em virtude da lei. A lei, por sua vez, só obriga a realização do teste nos casos de doação de sangue, órgãos e esperma. A exigência de exame para admissão, permanência ou demissão por razão da sorologia positiva para o HIV é ilegal e constitui ato de discriminação, passível de punição por parte da justiça do trabalho. Ao infectado pelo HIV é garantido o recebimento do Auxílio Doença. Esse benefício é concedido a qualquer cidadão brasileiro que seja segurado da Previdência Social e que não possa trabalhar por conta de doença ou acidente por mais de 15 dias consecutivos. A pessoa que vive com HIV/AIDS ou com hepatopatia grave terá direito ao benefício sem a necessidade de cumprir o prazo mínimo de contribuição para a Previdência Social e desde que tenha qualidade de segurado. O auxílio-doença deixa de ser pago quando o segurado recupera a capacidade laboral e retorna ao trabalho ou quando o benefício se transforma em aposentadoria por invalidez. (BRASIL, 2008) A concessão de auxílio-doença ocorrerá após comprovação da incapacidade em exame médico pericial da Previdência Social. Todo o procedimento administrativo relativo ao benefício, está regulado pelos artigos 274 a 287 da Instrução Normativa nº 45, de 6 de agosto de 2010, do Instituto Nacional de Seguro Social / Previdência Social (INSS/PRES). . Ainda no campo trabalhista, as pessoas que vivem com HIV/AIDS ou com hepatopatia grave têm direito à aposentadoria por invalidez. Para terem acesso ao benefício, precisam passar por perícia médica de dois em dois anos, sob pena de ter o benefício suspenso. A aposentadoria deixa de ser paga quando o segurado recupera a capacidade laboral e volta ao trabalho. Para ter direito ao benefício, o trabalhador tem que contribuir para a Previdência Social por no mínimo 12 meses. Todo o procedimento administrativo relativo ao benefício, está regulado pelos artigos 201 a 212 da Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 6 de agosto de 2010. 22 Ao trabalhador, portador do HIV, que tenha capacidade laboral, também é garantido o direito de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física e também o direito de sacar o montante mensal depositado pelo empregador em sua conta de FGTS, vinculada à Caixa Econômica Federal. Em 1989, profissionais da saúde e membros da sociedade civil criaram, com o apoio do Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da AIDS. O documento foi aprovado no Encontro Nacional de Organizações Não Governamentais (ENONG), em Porto Alegre/RS. Deste encontro, resultou o seguinte: I - Todas as pessoas têm direito à informação clara, exata, sobre a AIDS. II – Os portadores do vírus têm direito a informações específicas sobre sua condição. III - Todo portador do vírus da AIDS tem direito à assistência e ao tratamento, dados sem qualquer restrição, garantindo sua melhor qualidade de vida. IV - Nenhum portador do vírus será submetido a isolamento, quarentena ou qualquer tipo de discriminação. V - Ninguém tem o direito de restringir a liberdade ou os direitos das pessoas pelo único motivo de serem portadoras do HIV/AIDS, qualquer que seja sua raça, nacionalidade, religião, sexo ou orientação sexual. VI - Todo portador do vírus da AIDS tem direito à participação em todos os aspectos da vida social. Toda ação que visar a recusar aos portadores do HIV/AIDS um emprego, um alojamento, uma assistência ou a privá-los disso, ou que tenda a restringi-los à participação em atividades coletivas, escolares e militares, deve ser considerada discriminatória e ser punida por lei. VII - Todas as pessoas têm direito de receber sangue e hemoderivados, órgãos ou tecidos que tenham sido rigorosamente testados para o HIV. VIII - Ninguém poderá fazer referência à doença de alguém, passada ou futura, ou ao resultado de seus testes para o HIV/AIDS, sem o consentimento da pessoa envolvida. A privacidade do portador do vírus deverá ser assegurada por todos os serviços médicos e assistenciais. IX - Ninguém será submetido aos testes de HIV/AIDS compulsoriamente, em caso algum. Os testes de AIDS deverão ser 23 usados exclusivamente para fins diagnósticos, controle de transfusões e transplantes, estudos epidemiológicos e nunca qualquer tipo de controle de pessoas ou populações. Em todos os casos de testes, os interessados deverão ser informados. Os resultados deverão ser transmitidos por um profissional competente. X - Todo portador do vírus tem direito a comunicar apenas às pessoas que deseja seu estado de saúde e o resultado dos seus testes. XI - Toda pessoa com HIV/AIDS tem direito à continuação de sua vida civil, profissional, sexual e afetiva. Nenhuma ação poderá restringir seus direitos completos à cidadania. (BRASIL, 2008). Ainda relacionado ao tema, o Governo Federal publicou a Lei n.º 12.984, em 2 de junho de 2002, que criminaliza condutas discriminatórias contra o Portador do HIV e o doente de AIDS, em razão da sua condição de portador ou de doente. Já o Estado de São Paulo, publicou a lei estadual 11.199, em 12 de Julho de 2002, que proíbe a discriminação aos portadores do vírus HIV ou às pessoas com AIDS. De acordo com o Ministério da Saúde (2008) ainda no campo dos direitos aos infectados por HIV e aos doentes de AIDS, merecem destaque as seguintes leis federais: Lei 7.649 de 25/10/1988. Obriga o cadastramento dos doadores e a realização de exames laboratoriais no sangue, visando prevenir a propagação de doenças; (BRASIL, 1988) Lei 7.670 de 08/09/1988. Estende aos portadores da SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida)/HIV benefícios referentes à licença para tratamento de Saúde, aposentadoria, reforma militar, FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e outros. (BRASIL, 1988) Lei 7.713 de 22/12/1988. Isenta em seu art. 6º, inc. XIV, o portador do vírus HIV de pagamento do imposto de renda sobre os proventos recebidos. (BRASIL, 1988) Lei 9.313 de 13/11/1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS. Diversas outras leis foram criadas e 24 regulamentadas, nas três esferas de poder, estendendo benefícios já existentes para portadores de outras patologias aos portadores de HIV e tornando efetivos os direitos fundamentais. (BRASIL, 1996). 1.4 Efeitos psicológicos no infectado pelo HIV Os pacientes com AIDS em tratamento no Brasil sofrem mais com problemas psicológicos ou sociais do que com a ação do vírus no organismo, mostra pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgada em 2009 pelo Departamento de DST e AIDS do Ministério da Saúde. A pesquisa "Percepção da qualidade de vida e do desempenho do sistema de saúde entre pacientes em terapia antirretroviral no Brasil", financiada pelo Governo Federal, foi realizada em 2008 com 1.260 pessoas que receberam tratamento antirretroviral para AIDS, dentro de um universo de 200 mil pessoas que faziam tratamento para a síndrome no Brasil na época da realização da pesquisa (BRASIL, 2008). Os dados mostram que 65% dos pacientes com AIDS em tratamento consideram sua saúde como boa ou ótima. No entanto, 33% dos pesquisados afirmaram ter tristeza ou depressão em grau intenso ou muito intenso. 47% disseram sentir preocupação ou ansiedade em grau intenso ou muito intenso (BRASIL, 2008). O índice de pessoas com AIDS que se sentiam bem de saúde era superior ao registrado pela população em geral - cerca de 55% consideravam a saúde boa ou ótima. Os dados da população em geral são da Pesquisa feita pela Organização Mundial de Saúde em 2003 (BRASIL, 2008). Uma abordagem que integre aspectos médicos e psicossociais é fundamental para o sucesso do tratamento de pessoas que vivem com HIV/AIDS. É o que acredita a psicóloga Elaine Seidl, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e coordenadora do Projeto ComVivência. Para ela, há momentos em que as questões psicossociais são mais urgentes do que as médicas. (AMORIM et al., 2012) Para isso, o profissional pode fazer uso de diversas abordagens, resumidas em individual ou em grupo. Essas duas modalidades principais podem se desdobrar em um leque de atividades: atendimento individual de orientação, aconselhamento focado em um tema específico, psicoterapia, 25 atendimento em grupo fechado com tempo delimitado, rodas de conversa, grupos de salas de espera, entre outros. Se, por um lado, ainda há forte associação entre AIDS e morte, embora os tratamentos médicos já tenham transformado esta realidade, por outro ainda persiste uma espécie de morte social. Esta morte simbólica é vivida pelo indivíduo através da redução de seus direitos como cidadão, incluindo dificuldades no trabalho, desemprego, discriminação e isolamento, dentre outros fatores. Isto é agravado pela forte associação da infecção a comportamentos não aceitos socialmente que ainda perdura, apesar da epidemia ter atingido níveis globais. (SEFFNER, 1995). Este estigma e discriminação relacionados ao HIV/AIDS podem ter um efeito perverso sobre a saúde do indivíduo e a prevenção da transmissão do vírus, pois são obstáculos a voluntariedade em se realizar o teste, ao processo de aceitação do diagnóstico e à busca por tratamento especializado. Além disso, há um grande temor de que a revelação do diagnóstico possa causar rejeição de outras pessoas, causando o isolamento. A depressão é considerada um dos sintomas mais prevalentes nesta população, sendo associada, em especial, ao impacto do diagnóstico, progressão da doença e repercussões psicossociais (CASTANHA et al., 2006) Desde 1996, com a divulgação oficial do tratamento combinado de antirretrovirais, a infecção pelo HIV/AIDS vem sendo tratada, cada vez mais, como uma condição crônica. Diante desse novo perfil, o desafio de profissionais da saúde tem sido promover o bem-estar e a qualidade de vida de pessoas que vivem com o vírus, a partir de intervenções que ofereçam benefícios nas áreas física, emocional e social. Essas intervenções vêm sendo desenvolvidas a partir de uma grande variedade de técnicas e são destinadas a diferentes populações que convivem com o vírus, como por exemplo, homens que fazem sexo com homens, mulheres, crianças e adolescentes. 1.5 Estudos de casos e publicações sobre o assunto 1.5.1 Estigma e Coestigma 26 Moreira et al. (2010), em artigo científico publicado na revista Mental, Fenomenologia do estigma em HIV/AIDS: "coestigma", realizaram um estudo fenomenológico em forma de entrevistas, com um universo de 30 pacientes de HIV/AIDS em tratamento em um hospital de Fortaleza/CE. As entrevistas ocorreram no período de 2 anos, em um total de 6 encontros. Observou-se o elevado grau de desistência desses pacientes durante o período em que as entrevistas ocorreram. Foram um total de 82 entrevistas, sendo em número de 30 a primeira parte, 28 a segunda, 12 a terceira, 6 a quarta, 3 a quinta e 3 a sexta. Notou-se o elevado grau de desistência/abandono durante o decorrer do tempo. Durante a apresentação da argumentação, apresenta-se o conceito de coestigma, como sendo o sentimento de rejeição experimentado por pessoas próximas aos infectados pelo HIV. Eles podem enfrentar distanciamento de vizinhos, colegas e amigos, quando revelada a existência do familiar soropositivo, gerando um sofrimento adicional ao doente, pela extensão do estigma às pessoas de seu convívio mais íntimo. (MOREIRA et al., 2010, p.121). Nesse aspecto, aborda-se o tema do controle da informação, quando o paciente e seus familiares mais próximos fazem uma seleção de quem pode ou não pode saber da sua condição de doente. Este aspecto está intimamente relacionado com o medo da rejeição por parte da sociedade, conflito que apresenta-se como um tormento diário e constante na vida dos pacientes. Não! Meus vizinhos, não! Só alguns, por exemplo: A agente de saúde, ela passou lá em casa pra fazer um cadastro, aí eu num ia negar, né Dra.?! Pra essas pessoas que trabalha na saúde eu num nego não! O posto lá do PSF sabe! O médico, eu trabalhei com ele lá na regional, no hospital do município! (...) Os vizinhos eu não contei não! (MOREIRA et al., 2010, p.123). Além disso, percebe-se também o receio de que a informação se espalhe. Ah, porque a mãe, a mãe já teve conversando com a D.C. (vizinha), né? Mas só que ela (D.C.) num tá nem aí pra vida dos outros. (...) A outra vizinha fala da vida de todo mundo. Aí a mãe fica logo com medo dela... contar pros outros. (MOREIRA et al., 2010, p.123). 27 Observa-se que, em muitos casos, o paciente mente sobre o seu estado clínico com medo do estigma. Diz, por exemplo, que tem câncer para desviar a atenção de seus vizinhos sobre suas rotineiras idas ao “médico” (hospital). O Paciente prefere esconder a doença pelo maior tempo possível, como forma de livrar-se de mais um problema, acessório a sua condição de infectado, que é a rejeição da sociedade. ...só sabem que eu tô assim em tratamento, aí às vezes comenta, eu num falo que eu tô com essa, esse problema, Dra.! Eu digo que tô me tratando, venho me tratando de prevenção de câncer... Assim, só falo essas coisas, sabe?! Nunca falo que tô com HIV com as minhas colegas... pros meus vizinhos... assim! (MOREIRA et al., 2010, p.124). O tema da coestigma e as formas como ela pode se apresentar, mostra que, a partir do diagnóstico, mudanças ocorrerão na estrutura familiar, desencadeando afastamentos e aproximações. De qualquer forma, o estudo mostra que é recorrente o medo do paciente em expor os seus familiares ao crivo dos julgamentos da sociedade frente ao problema. ... Porque eu sei que se isso vazar (o diagnóstico) e as pessoas ficarem falando, a minha filha vai sofrer. O meu filho que é um bebê, daqui a pouco vai crescer, vai ter amizade, vai sofrer também, né? Porque as pessoas... Têm muitas pessoas preconceituosas. (MOREIRA et al., 2010, p.125). O indivíduo tenta proteger os seus entes mais próximos, de forma a tentar evitar que os mesmos sofram os mesmos preconceitos vivenciados pelo portador do vírus. ... num, num é por mim não. É pelas minhas filhas. Porque a do meio ela diz assim: ‘mãe, não fica comentando muito não’. Ela fala assim. Não sei se é porque elas têm medo assim, do esposo delas saber... (MOREIRA et al., 2010, p.126). Desse estudo conclui-se que, após a desinformação, o estigma é o fator que mais provoca efeitos indiretos negativos tanto aos pacientes de HIV/AIDS quanto aos seus familiares próximos. Esta pesquisa expõe um sofrimento que 28 passa despercebido: o do familiar do estigmatizado, que por sua vez ocasiona sofrimento adicional ao próprio doente. 1.5.2 Efeitos no âmbito familiar e social Alves (2013) apresentou, como tese de Trabalho de Conclusão de Curso, Um estudo sobre autoatenção e itinerários terapêuticos. pela Universidade Federal de Roraima, Boa Vista/RR. O estudo foi realizado com 7 pessoas, sendo 2 mulheres, 4 homens e 1 transexual na faixa etária de 39 a 60 anos, que participam do grupo da ALV (Associação de Luta pela Vida) e que convivem com o HIV a pelo menos 1 ano. O estudo buscou abordar a experiência dos soropositivos com a vivência da doença. A pesquisa teve por base entrevistas com os participantes e as narrativas são analisadas e interpretadas através da perspectiva fenomenológica. Foi traçado o perfil sociocultural, profissional e religioso de todos os participantes e foram atribuídos nomes fictícios a cada um deles, buscando manter o sigilo das identidades. Em geral, os participantes do projeto respondiam bem ao tratamento e tinham bom relacionamento com os profissionais de saúde envolvidos. O estudo mostrou que, na maioria das histórias, nota-se que os laços familiares estão rompidos ou fragilizados. De outra parte, alguns sujeitos, no decorrer de suas histórias de vida, construíram novas redes familiares. O estudo não credita o rompimento e surgimento de novos laços familiares ao fato de a pessoa ser paciente do HIV/AIDS, deixando a entender que este fato está mais relacionado ao comportamento psicossocial dos indivíduos. Assim como outros estudos que abordam o mesmo tema, há uma abordagem do conceito do estigma e das consequências de ser paciente de HIV/AIDS no convívio social dos indivíduos. Talvez por ser uma amostra de pessoas com idade mais avançada, os resultados apresentam uma melhor aceitação da situação por parte dos indivíduos, quando comparados com pacientes mais jovens, sendo os conflitos apresentados de forma peculiar. (ALVES, 2013). 29 O estudo aponta para a necessidade de haver uma melhor formação dos profissionais de saúde envolvidos no tratamento de paciente com HIV, tendo em vista a diversidade de perfis e as diferentes formas de reposta ao tratamento por parte dos indivíduos, não somente abordando o lado médico mas também dando-se ênfase ao aspecto psicológico. O preconceito existente em torno da doença faz com que os portadores se tornem carregados de culpa diante do que não podem reverter - culpa que a família, amigos e a sociedade reforçam com cobranças, discriminação, isolamento e omissão. Dessa maneira, contrair o vírus HIV implica uma transgressão que favorece, por sua vez, uma estereotipia de acusações e culpa de caráter individualizado, cujos comportamentos são representados como ameaças à sociedade, por serem portadores de uma doença tão temida. Esses comportamentos seriam a consequência de um comportamento sancionado negativamente por certos grupos da sociedade como forma de punição moral. (CASTANHA et al., 2006). A prevalência de sintomas depressivos em pacientes com AIDS acaba requerendo a necessidade do preparo dos profissionais para diagnosticarem o fenômeno dentro de um contexto mais amplo que o de um caso clínico isolado. Evidencia-se assim a necessidade de se entender os fatores associados e os determinantes da depressão no contexto da AIDS, e, dessa maneira, incrementar estratégias de intervenção nos serviços de saúde que levem em consideração o fenômeno como um dos fatores que influenciam diretamente a vida de soropositivos, na adesão ao tratamento, nas suas relações pessoais e na qualidade de vida como um todo. 30 CAPÍTULO II MÉTODO FENOMENOLÓGICO 2 INTRODUÇÃO AO MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 2. 1 Método Fenomenológico de Edmund Husserl De acordo com Zitkoski (1994) a fenomenologia começa a aparecer em 1900 através da obra Investigações Lógicas (1900) de Edmund Husserl. Para definir fenomenologia, é preciso saber a etimologia da palavra, seu sentido filosófico e sua constituição e proposta como método. A palavra fenomenologia deriva de duas palavras gregas: phainomenon (fenômeno) que significa brilhar, aparecer, mostrar-se; e logos, que significa discurso ou um dizer racional. Assim a fenomenologia então significa uma descrição dos fenômenos, um dizer racional do que se mostra nos fenômenos. O precursor da fenomenologia foi Edmund Husserl (1859-1938). Critico do psicologismo, diz que as ciências, inclusive a ciência da psicologia, não respondem aos problemas da existência, desejando a reformulação da psicologia moderna, pois esta desconsidera a natureza dos fenômenos psíquicos em suas investigações e formulações. Critica o método experimental com vários argumentos como, a pretensão de cientificidade plena, a importância em querer mensurar os fenômenos psíquicos e a de atribuir o seu objeto à natureza psicofísica. (ZITKOSKI, 1994). Para Husserl a filosofia e a psicologia devem estar juntas e devem proceder antes com o embasamento no comportamento metodológico precedente. Seu ideal era fazer da filosofia uma ciência. Este ideal faz surgir à fenomenologia husserliana. Seu método teve diversas fases de desenvolvimento e teve como ponto de partida as meditações cartesianas, nas quais encontra-se uma introdução a sua fenomenologia, e que a partir desta, resgata todas suas outras obras, como Investigações Lógicas (1900), A Ideia da Fenomenologia (1907), A Filosófica como Ciência de Rigor (1911) e Ideas I (1913), com o intuito de fazer nascer uma ciência absoluta e verdadeira. 31 As investigações filosóficas de Husserl começam “a partir de si próprio”. Isso quer dizer que nenhuma outra ciência é capaz de elucidar o caminho da ciência primária, as teorias formuladas pelas ciências universais acabam por julgar as coisas e assim Husserl critica esta forma, apontando que estas são incapazes de atingir a origem da objetividade que se busca. Segue uma ciência como idéia-fim, com objetivo de ultrapassar as ciências de fato, que tentam descobrir seus fundamentos e explicações para seus problemas, através de fatos (positivismo) e os aspectos naturais (naturalismo) e refere-se então aos significados atribuídos na subjetividade (ZITKOSKI, 1994). Deste modo, Husserl inicia sua fundamentação a partir das evidências, investigando o ato de julgar. Nas experiências vividas juntamente com sua consciência sobre as coisas tais como elas nos apresentam é que se dá o atributo de valor, ou seja, só se atribuiu juízo de algo, ou de alguma coisa, a partir das evidências, que são as experiências vividas que se apresentam. Além disto, a apodicidade citada por Husserl é quem faz critica à coisa, ao fato, o que dá uma certeza sobre a sua existência e autenticidade. Entendendo isto, pode-se desenvolver o método da epoché, que faz suspender todas as verdades da ciência e concepção de mundo existente, alterando a consciência natural e ingênua para a consciência transcendental. Esta não é negada como conhecimento já adquirido, mas vale como um simples fenômeno que eleva a uma pretensão da existência. Se já foi vivido e ainda se lembra deste vivido, não se terá consciência real, mas apenas uma consciência de sentido. Possui-se sentido a partir do momento que se tem a experiência, a percebe, se relembra e pensa de alguma maneira, aplica juízo de existência e de valor. Isto nos leva a concepção de mundo existencial, de cogitações e assim agora esta é a realidade da consciência, dando toda a fonte de sentido de base subjetiva e não mais do sentido já concebido exteriormente. (ZITKOSKI, 1994) Após algum tempo, Husserl percebe que pode se suspender mais algo da consciência, além da epoché e, a isto dá o nome de redução fenomenológica, que é a suspensão da sua própria existência. O eu é reduzido a sua própria dimensão transcendental. Assim se desfaz de todos os seus princípios e verdades mundanas já existentes para poder atingir apenas os fenômenos puros. 32 Assim, para Zitkoski (1994), Husserl segue em uma direção, a partir de duas etapas fenomenológicas. A primeira, sendo a explicitação das estruturas da consciência transcendental, com base na análise intencional. Descrever a consciência levando em conta suas estruturas gerais e a unificação intrínseca das mesmas na corrente intencional da vida consciente. Esta tarefa especifica segue um movimento metódico que pode ser indicado da seguinte forma: a consciência transcendental, que foi captada como resíduo fenomenológico após a epoché, é a fonte última de sentido que constitui toda e qualquer objetividade válida para a investigação fenomenológica. Como tal, a consciência retém em si mesma o mundo, com todas as realidades nele contidas a titulo de objetos intencionais. Mas por outro lado, o mundo continua sempre transcendendo a esfera imanente da consciência e esta também se encontra em contínuo movimento de dar sentido e constituir as realidades. Então, a função fenomenológica de captar e explicitar as estruturas da consciência transcendental só poderá realizar-se a partir da análise intencional. (ZITKOSKI, 1994, p. 54). A segunda, sendo a análise da constituição transcendental do eu e a repercussão no método fenomenológico ao orientar o campo de investigações à fenomenologia genética, da qual faz parte também a fenomenologia eidética. (Eidética vem da palavra eidos que significa “ideia”, é um método que se usa para chegar à essência dos fenômenos após a redução transcendental). (ZITKOSKI, 1994) Ao conceber a natureza própria da teoria do conhecimento fenomenológico-transcedental, Husserl chega a identificar a fenomenologia com um idealismo transcendental, onde todo e qualquer objeto imanente a uma consciência e, por outro lado, o conhecimento da constituição da consciência transcendental só é atingido a partir da correlação entre a consciência e o mundo constituído por ela. (ZITKOSKI, 1994, p. 79). Para Husserl a psicologia estaria então mais ligada à filosofia, por meio da fenomenologia. 2 .2 Método Fenomenológico-Existencial de Martin Heidegger Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, diferente de Husserl que queria mudar a visão da psicologia moderna, preocupava-se mais em destruir a subjetividade moderna que se embasava no ser-no-mundo. Seu interesse não estava na ideia do sujeito, nem em sua intencionalidade para as coisas. Ele ia 33 mais além desta intencionalidade. Delineia-se na ontologia através da busca da compreensão do estudo, pelo sentido do ser e as suas estruturas existenciais. O lugar que possui este sentido é o ser-aí. O aí é o mundo e para Heidegger o homem não pode, de jeito nenhum, separar-se do mundo, ou seja, homem e mundo são uma coisa só. Não pretende objetivar a existência humana, e sim pretende demonstrar através da metafísica, ciência e tecnologia que estas não permitem enxergar a gênese do ser-aí. Segue um caminho que na psicologia não existe psiquismo, objeto, substância ou o eu. Para ele qualquer formulação teórica deturpa a origem da existência. Por isso tem o intuito de se fazer ver sua origem. Questiona as condições ontológicas e se direciona ao ente que pode perguntar por alguma coisa. Faz uso da analítica existencial, através da fenomenologia e hermenêutica e assume uma postura antinatural, na qual supera a tendência tradicional e moderna (FEIJOO, 2011) Faz uso do Dasein, que possibilita, através do ente, compreender sua existência enquanto historicidade e finitude. Mas antes de analisar estas possibilidades o ser-aí não é nada. Ora, se o ser-aí não é nada, como analisar suas estruturas psíquicas? Assim, o ser-aí, adquire ser, apenas sendo, em seu desenvolvimento, através de sua duplicidade de ente. Ele existe no cotidiano e está sempre em busca do sentido de ser. É através de seu ser-aí que o ser procura o seu poder-ser. Muitas vezes o ser-aí está perdido no mundo e é a partir da sua existência como ser e mundo que se encontra e que ao mesmo tempo se busca em seu espaço existencial. Sua análise está exatamente no impróprio de existir. O ato de existir está sempre em movimento e é nisso que se encontra sua essência. Ser-aí é sempre meu, assim sendo sempre único, esta unicidade do ser está numa constante busca de ter e de ser, o que leva a sua própria responsabilidade de existir. Esta responsabilidade vem acompanhada do fenômeno do cuidado, o próprio ser cuida de si e sempre faz uso do tempo, que este se revela como horizonte de abertura que é a origem da compreensão do ser. Heidegger refere-se ao Dasein ou ao ser-no-mundo como modo de ser do homem, modo esse determinado pelas ‘meras’ possibilidades 34 de lida com aquilo que lhe vem ao encontro... referindo-se ao Dasein como o ente cuja essência é o existir. (FEIJOO, 2011, p.39). Para Heidegger o ser jamais alcança uma totalidade, permanece sempre sem conclusão. Este fenômeno é denominado circularidade hermenêutica (FEIJOO, 2011). Neste processo está o cotidiano do ser-aí entre o nascimento e a morte. Existe uma antecipação da morte e é nela que se encontra o cuidado, que precisa de tempo e conta com o tempo, tendo por conseguinte um horizonte de abertura. Assim o poder-ser do ser-aí se transforma no ser-para-a-morte, pois só ele traz a temporalidade do cuidado. O problema da morte está no fim que se manifesta no presente, encobrindo o seu poder-ser, o que faz com que a morte apareça como algo que não diz respeito ao ser-aí. A morte torna-se para nós, um fenômeno que temos e que nos faz desviar, esquecer quando a tememos, a enxergarmos num futuro muito mais longe, pelo simples fato de querer afastar-se deste fato. O temor tem papel determinante na construção da vida cotidiana, pois ele nos diz que há algo a se anunciar e a partir dele traçamos duas possibilidades: retomar a obediência, crenças ou rituais que nos previnem de que algo aconteça ou adquirir uma postura corajosa como enfrentamento. Ao antecipar a morte, escuta-se a angustia, que é um modo de fugir de si mesmo ao mesmo tempo em que a própria angustia se torna uma caracterização de liberdade. Em Sartre (1943/1997, p.89), encontramos uma expressão mais clara dessa situação, ele diz: “É na angustia que o homem toma consciência de sua liberdade, ou a angustia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angustia que em seu ser coloca-se a si mesmo em questão. (FEIJOO, 2011, p.47). A angústia aparece na indeterminação da existência, na qual o ser tenta obscurecer isto em seu cotidiano. A fuga do ser-aí é fugir do nada; a morte é o nada. Quando escuta a voz silenciosa dentro de si, o homem vai de encontro ao seu poder-ser, que o coloca de frente com sua singularidade no mundo. A fuga da morte faz o homem viver seu cotidiano sem pensar em sua singularidade, ocupando o seu tempo, essa sensação, de a todo o momento ocupar-se, pode levar o homem ao tédio e é esta a raiz de todos os males. 35 O tédio, também tonalidade afetiva fundamental, e, portanto, descerradora de mundo, desperta em nós uma total suspensão do horizonte do existir, um esvaziamento radical do tempo que ao suprimir-se, nenhuma possibilidade aparece como tal. Abate-se sobre a existência uma radical indiferença, um verdadeiro “tanto faz”, como descrito por Hermann Merwille em Bartoblit, (1853/2008) com a sua repetição incessante de um “prefiro não fazer”. E nessa ausência de determinações de sentidos, articulados no circulo hermenêutico em que nos encontramos, é que podem acabar por se abrir outras possibilidades. E, assim, abre-se um espaço para que a saída singular possa acontecer. (FEIJOO, 2011, p. 52) Heidegger então, frente a este todo, assume uma postura de diálogo clínico para poder aproximar-se desta angústia, deste temor e do tédio e não ir contra eles, como forma de tomar frente ao que se vivencia e enfrentá-los e não controlá-los e desprezá-los. 2.3 Método fenomenológico na pesquisa científica Para realizar uma pesquisa cientifica, faz-se necessário escolher os procedimentos e técnicas nos quais o investigador deseja averiguar sobre seu objeto de estudo. O método deve ser escolhido de acordo com o objetivo que se pretende alcançar. Para isso, deve-se seguir com rigor o percurso metodológico mais adequado à pesquisa. Ao escolher o método fenomenológico, tem-se para a pesquisa uma busca pelo sentido, uma busca de compreensão e uma forma de se realizar uma investigação. A partir deste método, são imprescindíveis as interrogações constantes. Para conseguir isto, o terapeuta deve ter como ponto de partida o ser no mundo, denominado Dasein, como o modo de ser do homem e como o ente cuja essência é existir. Se o investigador não souber o que é ser, não saberá como é o ser de algo. O tempo não para e consequentemente o existir do homem também não, assim, se instaura um horizonte de abertura. Este homem sempre irá se questionar, devido aos acontecimentos, e por isso sempre renovará seus saberes e modificará a si mesmo (CRITELLI, 2007). São necessários, em um processo de compreensão, o ver e o ouvir, como uma forma de um processo construtivo. Os saberes nos são dados e por isso algumas vezes somos levados a compreender de maneira impessoal e encoberta, pois o homem se esquece de que pode se interrogar pelo sentido das coisas e do existir e acaba dando para si uma resposta já dada. 36 O homem, no decorrer da vida, atribui a si significações coletivas, que são transmitidas através das relações sociais e da cultura em que vive. Isso se deve pois, antes do homem ser-no-mundo ele é ser-com-outros. Essas significações tem o nome de tradição. Esta pode mudar, mas sempre mantém suas características de organização estável e ingênua do mundo. Hoje o mundo, com a era da internet e do capitalismo, atribuiu-se uma diversidade de significados prévios, já que faltam referências estáveis para a compreensão. Assim, o homem, com a abertura de sentido, pode questionar a tradição e os significados que são dados a ele e então descobrir e ampliar todo o seu horizonte de compreensão. Mesmo com isto, o homem não para de abrir seu horizonte de sentido e por isso sempre se transforma devido ao seu ir-sendo e ao seu vir-a-ser no mundo. O investigador então se embasa na compreensão e no saber de como se investiga. (CRITELLI, 2007). Hans-George Gadamer (1990-2002), discípulo de Heidegger, explicita as noções de compreensão através da hermenêutica filosófica. Para ele, quando se quer compreender um texto, sempre se projeta algo, este algo nada mais é que a nossa compreensão prévia; associa-se ao ler o que já sabemos e temos como tradição e assim já se determina o que será lido.” Pode-se afirmar que a compreensão prévia de mundo constitui o ponto inicial a partir do qual o investigador busca apropriar-se de novas significações, ampliando seu horizonte de sentido” (NUNES, 2015, p. 33). Primeiramente é importante que o investigador saiba quais são as compreensões prévias do investigado que são explanadas através da história contada entre passado e presente, para que então possa abrir questionamentos que ampliem o horizonte de sentido. Neste meio surgirá uma alteridade, que é o “se deparar com o não-sabido”, que pode provocar em si, resistência e, em seguida, uma ruptura de sentido que confronta suas compreensões prévias com a verdade do outro. O importante da alteridade, e do conhecimento das compreensões prévias e da sua tradição, é desconstruir os seus saberes para poder interrogar e oferecer saberes novos para a ampliação do seu sentido de mundo e de si mesmo. Mas esta não é uma tarefa fácil, o investigador deve saber interpretar e explicitar suas expectativas diante do contato com a experiência que se investiga. Ou seja, é necessário primeiro refletir e explicitar o que é o 37 atendimento, quem vai atender, qual a experiência da qual vai se aproximar, e como é a relação entre terapeuta e cliente. (CRITELLI, 2007). A grande diferença ai está na própria investigação, ao querer investigar algo já se sabe qual o assunto a se questionar, porém a experiência nos trará as tradições e concepções prévias do tema exposto, e a partir delas poderá se indagar e fazer surgir uma abertura de horizonte para fazer nascer um sentido novo, diante do que se tinha para si mesmo. Já se fosse apenas uma terapia na qual não se sabe o que investiga teria que identificar um tema conforme o que apareceria no decorrer das sessões. (CRITELLI, 2007) Além do investigador se situar, ele deve também se deslocar das noções prévias que aparecem para buscar a compreensão. Para isto Gadamer aponta: Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sempre que se ponha a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias ou que a gente se ponha em alguma relação com elas. (GADAMER, 1997, p. 404 apud NUNES, 2015, p. 35). Por isso, investigador e investigado possuem horizontes de sentido diferentes e com isto pode-se abrir um horizonte de modo a fundi-los. É de extrema importância que o investigador se permita ser contrariado, pois ele também tem que abrir seu horizonte para que se transforme diante da experiência que se apresenta. Só deste modo, o que é conhecido previamente pode ser modificado. É necessário, desta forma, que o investigador também entre no foco da investigação e, por isso, a intervenção não pode ser prevista nem mesmo controlada por ele. Conclui-se que a pesquisa é muito mais complexa do que parece ser. De acordo com Dulce Maria Critelli (2007), em sua obra “Analítica do Sentido”, a partir de noção de compreensão pode-se ter um olhar melhor para as experiências. Ela divide o percurso metodológico em cinco fases. As duas primeiras se dão no desvelamento e na revelação de algo, que através da escuta, busca um sentido que pode estar oculto ou encoberto e, por isso, é necessário identificá-lo, através de questionamentos provocadores. Ou seja, fazer aparecer o fenômeno através da linguagem. 38 Só através da linguagem é que algo pode aparecer, e esta não está apenas na fala, mas também nos gestos, no olhar e na ação que encaminha para o sentido. Importante saber também que ao fazer aparecer algo, este também pode voltar a se encobrir, se ocultar. Isso se dá pelo fato de desentendimento do fato que aparece. A terceira etapa exposta é a de testemunho. O que se testemunha é o que constitui o mundo pelo simples fato de repetição de testemunhos, ou seja, o que se ouve diversas vezes ao ser, se instaura. A veracização, como sendo a quarta etapa, aparece no movimento existencial, ou seja, algo se torna verdade mediante os critérios que aparecem e autorizam as coisas a serem como é, o que acontece sempre aparecerá com outras pessoas, pois no decorrer da experiência o ser se revela com o outro e não sozinho o que marca a condição ontológica da coexistência. E a sua veracizidade se dá pelo o que o outro representa para si e sobre a realidade experienciada (CRITELLI, 2007). A última etapa, que é o movimento de realização, se diferencia por ser singular e não mais com o outro. Para tornar algo real é necessário que o ser pense e reflita sua experiência sozinho, isso porque só o próprio ser sabe o que sente. E só através do que se sente que pode se dar autenticidade a algo. Todas estas etapas que aqui foram explicadas não são usadas separadamente num processo de investigação existencial, não podem de maneira alguma, ser seguidas como critérios. Isto só ajuda o investigador a evidenciar os pressupostos que constituem o olhar e o ouvir, na perspectiva fenomenológica da interpretação do real (CRITELLI, 2007). 2.4 A importância do método fenomenológico no trabalho científico O método guia o investigador no caminho que o mesmo deve percorrer com sua pesquisa. Ele se norteará por um percurso metodológico que o auxilie no conteúdo abordado. Vale ressaltar a importância de ter o objeto de estudo claro, para constituir o percurso a ser realizado. Deve-se compreender que há uma gama enorme de possibilidades para realizar uma pesquisa cientifica. A escolha do método deve estar perfeitamente alinhada com os objetivos do estudo a ser realizado. (NUNES, 2015) 39 O presente trabalho conta com um elemento importante a ser abordado: a compreensão, elemento explorado por vários autores da fenomenologia existencial, autores que tiveram seus pensamentos a partir do precursor da abordagem teórica, Martin Heidegger. Seguindo o presente pensamento em relação à compreensão, não existe verdade absoluta que não possa ser questionada. Tendo isto em mente, permite-se que o homem se aprimore em relação a seus conhecimentos. As teorias são indispensáveis para que se torne inelegível o campo das experiências; são elas que nos ajudam na tarefa de configurações deste campo e sem elas estaríamos desamparados diante de uma proliferação de acontecimentos completamente fora do nosso manejo. Contudo, o reconhecimento deste papel para as teorias e mais, amplamente, o reconhecimento de que não há experiência sem pressupostos, não se pode confundir com o aferramento dogmático a um conjunto de crenças que resulte na própria impossibilidade de qualquer experiência nova (...) no caso da clinica, a principal função da teoria ou de qualquer outro modo de representação é o de abrir no concurso da prática o espaço da indecisão, do adiantamento da ação, espaço onde pode emergir uma nova compreensão, novas possibilidades de ver, ouvir e agir. (FIGUEIREDO; 1992, p. 21 apud NUNES, 2015, p.30) Através das relações sociais o homem entra em contato com o coletivo, que propicia uma gama de significações que foram constituídas previamente. Pode-se dizer que a tradição é esse conjunto de significações que o homem recebe pelos meios sociais. Segundo Arendt (2001), citada por Nunes (2015), a tradição começa a ser questionada e vista não mais como algo absoluto. O que é apresentado ao homem pode ser questionado por ele oportunizando ampliar a visão, horizontes que lhe é dado (CABRAL et al., 2009). Em uma investigação, o caminho a ser trilhado nem sempre esclarece tudo a ser dito, já que não há verdade absoluta na compreensão. O investigador, quem executa o trabalho a cerca da pesquisa a ser realizada, amplia seus saberes no campo em que ele atua para sua pesquisa. Cabe ainda ao executor da pesquisa desconstruir conceitos para se abrir para os novos saberes que a realização da pesquisa trás. É importante apresentar a ideia de 40 que desconstruindo conceitos, oportuniza-se reconstruí-los ao longo do percurso a ser realizado. (NUNES, 2015) Seguindo a linha de pensamento teórico exposto, a pesquisa cientifica realizada para com os pacientes soros positivos, através do relato de vida oral e norteado por questões interessantes ao trabalho experenciado, permite aos investigadores lançar um olhar sobre os relatos, que permitirá ampliar os conhecimentos adquiridos pela luz da abordagem fenomenológica existencial, tendo em vista a ideia de desconstruir os conceitos concebidos anteriormente sobre o paciente soropositivo. Desta forma, abre-se os horizontes para um novo saber, sem desconsiderar a tradição recebida, construída socialmente. Estabelecendo assim a proximidade necessária para com o sujeito, objeto da pesquisa. (NUNES, 2015) O relato de vida oral do paciente proporciona um contato para com o sujeito muito importante para a formação acadêmica, onde a visão teórica encontra claros objetivos e aplicações para o trabalho. Assim, obtêm-se compreensão sem buscar a verdade absoluta, mas a verdade que as falas revelam através da fenomenologia. 41 CAPÍTULO III METODOLOGIA DE PESQUISA 3 MÉTODO A presente pesquisa tem como referência uma investigação de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica. Para tanto, foram escolhidos 3 pacientes voluntários, com facilidade de comunicação e dispostos a expressar suas idéias e seus sentimentos a respeito do tema HIV/AIDS e sobre suas vivências durante o tratamento oferecido pelos órgãos públicos de saúde. Não se tratou de fixar faixa etária, condição social, profissão ou religiosidade para a seleção dos participantes, tão somente a sua disposição e facilidades para discorrer sobre suas vivências. O projeto de pesquisa, registrado na plataforma Brasil e identificado sob o número de CAAE (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética) 55498516.0.0000.5379, passou pela análise do CEP (Comitê de Ética em pesquisa) do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium e seguiu as orientações do parecer consubstanciado do CEP número 1.565.916, emitido em 30/05/2016 (Anexo A). Além disso, a utilização de informações colhidas durante as entrevistas no presente trabalho, recebem respaldo do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), assinado por todos os participantes antes do início das entrevistas e cujo modelo encontra-se no apêndice B. As entrevistas, realizadas e descritas no apêndice A, na íntegra, foram subdividas em duas temáticas a serem apresentadas na discussão e análise, focando nas principais falas do discurso de cada entrevistado. Na análise, as falas significativas aparecem através de nomes fictícios dos participantes: Márcia é uma mulher, de 45 anos, profissional da saúde, católica, de classe média, infectada há 18 anos. Descobriu que estava infectada após exames de pré-natal, realizados enquanto estava grávida do segundo filho. Ela afirma que foi infectada pelo seu marido. Carlos é um homem de 48 anos, aposentado, católico, de classe média, convive com o HIV há 18 anos. Afirma ter tido contato com o vírus durante o tratamento à base de derivados do sangue, para 42 hemofilia1. Sandra é uma mulher de 46 anos, católica, casada. Afirma ter contraído a doença há 8 anos, do marido. Foram realizados 3 encontros com cada participante, individualmente, em sala reservada do NGA-272 (Núcleo de Gestão Assistencial) de Lins/SP. Durante cada encontro, foram apresentadas 3 perguntas para cada participante, em um total de 9 perguntas. Aos participantes foi dada a oportunidade de expressar os seus sentimentos de forma livre, buscando o mínimo de intervenção por parte dos entrevistadores. Inicialmente as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente foram transcritas de forma a possibilitar uma análise de forma organizada. Ao analisar as entrevistas transcritas, com vistas às demandas da pesquisa, estabeleceu-se algumas categorias a partir da perspectiva do olhar fenomenológico-existencial, a saber: a descoberta do HIV como uma reconstrução de identidade, o estigma, temor e a angústia que fazem parte da vida cotidiana dos participantes. As entrevistas foram estruturadas e conduzidas de forma que os participantes respondessem às seguintes perguntas: Pergunta 1 - Como foi sua vida após o diagnóstico? Pergunta 2 - Você pode comentar sobre as mudanças que o diagnóstico trouxe à sua vida, em relação à questão social, pessoal e familiar? Pergunta 3 - Você considera que sofreu algum tipo de rejeição? Isso lhe trouxe algum tipo de mágoa? 1 A hemofilia é um distúrbio genético e hereditário que afeta a coagulação do sangue. O sangue é composto por várias substâncias, onde cada uma delas tem uma função. Algumas dessas substâncias são as proteínas denominadas fatores da coagulação, que ajudam a estancar as hemorragias quando ocorre o rompimento de vasos sanguíneos. 2 O NGA-27 de Lins é um órgão subordinado à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Oferece atendimento de especialidades ao público, através de consultas, encaminhamentos para exames e cirurgias, além de realizar distribuição de medicamentos. Possui também departamento exclusivo para diagnóstico e tratamento da AIDS, através de equipe multidisciplinar. 43 Pergunta 4 - Você poderia falar um pouco sobre o tratamento à base de retrovirais? Pergunta 5 - Você notou alguma mudança relacionada a sua qualidade de vida após ser diagnosticado com HIV? Pergunta 6 – Como você lidou com as mudanças que aconteceram após o diagnóstico, em termos de sentimentos, trabalho, família, rotina com a medicação. Como vocês se sentiu em relação a essas mudanças? Pergunta 7 – Você sentiu medo quando recebeu a notícia do diagnóstico? Como foram esses medos e o que você fez pra lidar com esses medos? Pergunta 8 – Você percebe que existe muito preconceito em relação ao tema AIDS/HIV? Você percebe esse preconceito em relação a você ou você percebe acontecendo apenas com os outros? Pergunta 9 – Você poderia falar um pouco sobre o seu conhecimento da doença, do diagnóstico e a suas vivências com tudo isso? 3.1 Análise e discussão 3.1.1 A descoberta do HIV: questão de identidade e movimento O ponto inicial das entrevistas foi falar sobre a descoberta do HIV. percebíamos envolvidas num passado presentificado por sentimentos que variavam entre a desesperança e a tentativa, agora, de encontrar motivação para seguir em frente. O avizinhamento de uma nova identidade revela em Sandra sua face mais trágica: No começo foi muito difícil pra mim. Pensei até em me matar. Tirar a vida [...] pra mim foi muito difícil. Eu fiquei com depressão. Eu cheguei a pesar 52 Kg, Então, pra mim parece 44 que meu mundo tinha acabado ali. Não tinha mais motivo pra viver. O sentimento de um mundo que se acaba nos remete às perspectivas que Heidegger traz em “Ser e Tempo” sobre a questão da identidade e que Feijoo (2015) retrata brilhantemente ao se referir ao ser-ai que marcado pela “fragilidade ontológica, busca a estabilidade do mundo, que se constitui em um apoio, suporte e tutela e nele assume uma identidade” (p.22). Tal identidade, seja lá qual for a sua condição, é mantida até que uma situação limite entre na articulação do ser-aí e mundo, rompendo com sentimentos sedimentados e abrindo espaço para o questionamento sobre a situação em que nos encontramos (FEIJOO, 2015). Nesse contexto, Sá (2015) revela que o movimento, em que as identidades se modificam, são mais importantes do que as próprias identidades que surgem. Trata-se, nesse movimento, que em situação limite algo se despedaça, como uma espécie de morte ou um mundo que se acaba como revela Sandra. Surge, a partir da dor de uma identidade perdida. uma nova condição, um novo lugar, uma nova identidade. Nesse sentido, “o conceito de identidade, [...], difere de um traço estático que define o ser, de caráter atemporal e arrelacional. Desse modo, não se pode definir com exatidão a identidade do negro, do gay, do médico ou do soropositivo.”. (GUIMARÃES et al., 2002, p. 78). Ou seja, a condição de soropositivo fará parte da sua existência, mas apenas isso não o define. O que o define é sua integralidade como ser no mundo e isto é totalmente mutável e se transforma a todo o momento através do tempo. O encontro inicial com essa dimensão de uma nova identidade revelou outros movimentos em que o entrevistado se valia de um horizonte anunciado antes como possibilidade de uma nova experiência. É o caso de Márcia que enxergou no nascimento do filho a possibilidade de ressignificação dessa mudança: [...]a princípio foi um pouco difícil a aceitação, mas depois eu precisava pensar no meu filho, que eu tava grávida e tal. Então, pra mim, não foi assim, foi complicado, mas ao mesmo tempo eu tinha o motivo pra ter o tratamento sabe? Procurar o tratamento por que eu queria bem ao meu filho né? [...] naquele 45 primeiro tempo a gente leva um choque, mas depois com tratamento com a orientação do doutor naquela época era o doutor, doutor J., o ginecologista né? a orientação dele e fui muito bem recebida aqui pelo pessoal né? Que faz o acompanhamento com a gente desde a época. Márcia reafirma seus sentimentos em relação ao novo papel: [...]eu tive uma fase pequena pra ter medo porque eu tava grávida..., eu precisava de força de um sentimento bom pra passar pra ele. Então o medo em si não me afetou muito não. A gravidez me ajudou a superar o medo né? porque eu precisava de força pra cuidar do bebê. Então eu tinha que ter a confiança de que ele iria nascer bem. Então eu comecei o tratamento já na gravidez e medo mesmo eu não tive não. Eu tive mais medo de que ele tivesse sido contaminado, de ser positivo e tudo. Mas depois que ele nasceu, vi que nasceu saudável. Fez o primeiro exame que sempre dá positivo porque ainda tem sangue né? Anticorpos meus no organismo dele mas a partir do segundo exame já deu negativo. Então o que me tranquilizou mais foi isso né? Ai já segui o tratamento certinho pra que ele não tivesse a doença. Sá (2015) tece considerações importantes sobre essa atmosfera, considerando que ao sermos ameaçados num cotidiano de significações que é abalado por um acontecimento que emerge como imprevisto e carente de sentido, isso, não poucas vezes, nos remete à condição de desabrigo existencial. O mesmo autor afirma que tal ameaça é mais insuportável quando a existência é mais restrita e rigidamente estruturada, não havendo “flexibilidade para lidar com aquilo que surge como diferente” (SÁ, 2015, p.58). Nesse contexto é significativo considerar que a identidade materna de Márcia lhe servia como mote fundamental para lidar com tais acontecimentos, um existir que ganhava amplitude na experiência de ser mãe. Nesse caso o movimento encontrou a flexibilidade necessária do ser diante da experiência de 46 desabrigo existencial que surge com a descoberta do HIV. Tal flexibilidade parecia surgir no horizonte de possibilidades maternais. Carlos, por sua vez, revela um lugar cuja identidade forjada na realidade de ser hemofílico lhe remetia a um espaço conhecido: [...] eu já vinha num histórico de hemofilia... tinha um brado na dor, tinha um brado no sofrimento, tinha uma vida em hospital, ...sou técnico em enfermagem...trabalhei dezenove anos na enfermagem, então é, pra mim o impacto foi bem menor. Carlos já havia gritado e sofrido, a dor lhe parecia conhecida ao ponto de identificá-la com outras dores e outros sofrimentos. Ele falava de algo corriqueiro, desenhava um cotidiano na impessoalidade, fuga do mistério num projeto3 impróprio. Carlos parecia escolher ficar no mesmo lugar, renunciava ao movimento encontrando guarida na identidade que lhe proporcionava segurança. Não se trata, porém, de um descaminho, pois não nos referimos a um verdadeiro eu a ser alcançado, “ser si-mesmo em um sentido próprio ou impróprio (como no caso de Carlos) diz respeito apenas ao grau de aprisionamento ou de liberdade em relação às nossas identificações” (SÁ, 2015, p. 52). 3.2 Estigma Um grande problema que o paciente de HIV enfrenta é o estigma. O estigma é uma construção social legitimada pelo outro que envolve normas, códigos e comportamentos de um grupo que gera um padrão de normalidade. Caso alguém saia deste padrão, então enfrenta o isolamento, rejeição e acusação. (MOREIRA, 2010). Antigamente, os portadores de HIV eram vistos como homossexuais, pois ganha na década de 1980 o nome de “câncer gay”, os hemofílicos, os usuários de drogas e as prostitutas eram os que se chamavam de grupo de 3 Segundo Feijoo (2011) Projeto é igual ao sentido temporal da projeção do ser-aí. “A vida é um projeto, já que se parte de um estar lançado, projetando-nos para algumas possibilidades e excluindo outras. No entanto, sempre desvelando possibilidades” (p.40). 47 risco, por isso o estigma em torno do HIV é muito presente ainda e é o que acaba provocando o temor. Isso se apresenta na fala de Carlos, como no caso em que um familiar não aceita o diagnóstico e quando se explicita a falta de ética no sigilo dos próprios profissionais da saúde. [...] na família tem sempre alguém assim com um pé atrás em relação a gente. Eu não quis comentar mas uma das pessoas que ficou bem contra, assim, explicitamente contra foi a irmã dela. Então assim, um dia eu cheguei com duas barras de ferro pronto pra fazer uma besteira. [...] é um grande hospital mas na verdade tem gente que trabalha lá dentro que saiu com a notícia antes de a gente saber. Então foi uma falta de ética muito grande. Eles expuseram a gente sem a gente saber...então quando nós chegamos em casa, aí já começou as pancadarias. Aí eu falei, Opa, peraí. Não é assim também, como é que você sabe, antes da gente? Nós estamos sabendo hoje. “Não mas já vai fazer alguns dias que eu tô sabendo”. Opa! então vamos descobrir quem foi que falou. Então, na época, um funcionário foi mandado embora por justa causa por falta de ética. Isso demonstra que a preocupação na divulgação da doença é pelo fato do afastamento da sociedade, assim como também da própria família. Em outro momento, Carlos ainda fala sobre como vê o preconceito. Eu sei que existe o preconceito assim, as vezes até na cara você vê o preconceito das pessoas. Existe o preconceito velado. "Olha cuidado com ele que ele é HIV positivo". Como se o HIV fosse uma coisa altamente contagiosa que só é de tocar na gente ia pegar, ou algo parecido. [...] Então assim, é o preconceito existe? Existe. Mas é na cabeça de gente tola. 48 Idiotice e burrice existe na cabeça de todos. O preconceito não deixa de ser uma idiotice, uma tolice também. Márcia relata que caso se abata por conta do preconceito consigo mesma, o tratamento acaba sendo desprezado. Eu não tenho esse preconceito comigo mesmo. “Eu tenho essa doença, eu vou morrer...” se você tiver esse isso na cabeça você acaba definhando e não faz o tratamento direito e acaba se deixando levar por uma doença que hoje é tratável. E, em outro momento Márcia relata sobre seus filhos. [...] Os dois sabem, os dois meninos sabem que a gente é positivo e não muda muito a relação entre eles não. Neste momento fica claro que para o soropositivo, é muito importante que a família saiba e apóie, porém há em sua fala que “não muda muito”. Já Sandra relata o preconceito como um medo de ser rejeitada pela sociedade. E também sobre o estereótipo de pessoa saudável e pessoa com HIV. Porque o medo vem assim: Ah, se eu for fazer uma unha a pessoa vai me menosprezar. As pessoas se perguntam, será que tem? será que não tem? assim, por me ver bem né? [...] Às vezes eu até chego a falar com as pessoas, que eu acho assim, que deve...que me dá aquela autoridade pra que eu esteja falando assim né...confiança. As pessoas falam, “não acredito. Você, um mulherão desses?” Tem a maneira de conversar, a maneira de se expressar...hoje as pessoas tem dúvida. Isso demonstra que a sociedade especula sobre o ter ou não ter a doença, e Sandra segue falando: 49 [...] sabe, a cidade é pequena e eu tive que contar com várias pessoas porque como que eu não ia contar né? ah...o que tá acontecendo? o que não tá? Então Guaiçara inteira...Hoje não. Hoje eu me adaptei melhor, hoje as pessoas assim, tem dúvidas. Depois que eu comecei a tomar o medicamento o pessoal fala assim, imagina, você tá mentindo. A questão do preconceito enfrentado pelos participantes dá-se através do estigma. Para compreender como a sociedade estigmatiza, primeiramente é necessário entender a atitude como uma junção dos fatos reais que acontecem no mundo com os nossos valores. Em seguida os estereótipos que são as atitudes sobre a compreensão dos grupos. Sendo este estereótipo negativo, então ele é chamado de estigma. O preconceito vem a partir do momento que eu atribuo um valor negativo sobre um grupo e a discriminação é o comportamento que resulta do preconceito no qual se acredita e concorda. (MOREIRA, 2010). Por isso o estigma cria uma identidade negativa, pois a vivência da pessoa muda a partir do contexto social que é o outro e também muda sua identidade. Pode-se notar que em ambos os casos há um enfrentamento do estigma. O temor na vida cotidiana prevê o anúncio de algo, que pode ter duas possibilidades: uma é retornar à crença, obediência ou rituais, que nos previne de que algo aconteça (Feijoo, 2011); desta forma o homem não muda seus conceitos e mesmo com um novo conhecimento, continua com suas crenças e não amplia a crenças novas. Como não aceitar para si a doença, para que o outro não saiba e assim não sofrer o estigma de um portador de HIV, deste modo o portador de HIV não vivencia algo novo. A outra possibilidade é adquirir uma postura de enfrentamento do estigma que é como se apresentou nos relatos citados, enfrentando os estereótipos e preconceitos que existem e, em tais condições, revelam o apoio dos profissionais de saúde: 50 Sandra: É assim, todos me tratam muito bem às vezes eu venho colher sangue de 3 em 3 meses. Eu não tenho o que falar. Márcia: [...] a orientação dele (médico) e fui muito bem recebida aqui pelo pessoal [...]. (Grifo Nosso) Graças a Deus aqui no NGA tem uma equipe assim com capacidade fantástica de resolver as coisas pra gente. E sempre que precisa, a gente quer alguma coisa...Não, vamos fazer...Se precisar chama a gente...a.... a Dra. C. é fantástica. Não tem uma pessoa, uma médica com o nível de capacidade igual ao dela não. Pelo menos aqui em nossa cidade a gente não encontra outra pessoa igual a ela não. Tudo o que a gente pede ela consegue resolver, dá atestado, dá remédio de outro setor que precisa. Com ela não tem meia nem não. Ou vai ou racha. Ela falou pra mim assim, você tá proibido de morrer, ela falou, você tá proibido porque, tudo o que você passou...se você morrer nós vamos te dissecar, cortar pedaço por pedaço pra ver o que é que você tem dentro...porque você é um Leão, um vencedor...graças a Deus a vida é bem mais branda, a gente tem o apoio de muita gente. Isso que é importante. 3.3 A questão da morte e do morrer Segundo Feijoo (2011), o problema da morte está no fim que se manifesta no presente, encobrindo o seu poder-ser, o que faz com que a morte apareça como algo que não diz respeito ao ser-aí. A morte é um modo de ser que a vida assume, basta estar vivo para morrer, assumindo então um caráter ontológico. A morte é uma certeza, geradora de angústia, que no seu aspecto ontológico refere-se a uma abertura para a consciência de que somos lançados no mundo, mas que existimos para o fim. O medo da morte faz com que o homem se refugie numa existência inautêntica como uma fuga da angústia da morte, e é na própria angústia que a 51 mortalidade se revela autenticamente, significando uma liberdade em relação a ela. Na inautenticidade nos inclinamos a aliviar o medo da morte, porém cai num caráter impessoal, ou seja, todo mundo morre, mas ele não percebe que está também para a morte, atribuindo a morte ao público, mas não para si. Mesmo com os avanços da medicina em relação ao HIV, o diagnóstico da doença acaba por tornar a morte um lugar de espreita. Márcia fala sobre a morte e seu discurso ainda revela seu projeto de olhar a morte distante, trata-se de um sentido temporal em que se encontra na impessoalidade do existir apartado da indeterminação do ser-ai: [...] o diagnóstico veio ressaltar uma coisa. Que a gente está aqui nessa vida pra viver de acordo com aquilo que a gente acredita. O diagnóstico em si, não mudou muito a minha vida não. O tratamento tem uma rotina de fazer exames, de tomar a medicação certinho [...]. Márcia se apóia no mundo técnico e suas possibilidades, revela, aí, o lugar que lhe parece ser o único, restringe seu olhar a partir de suas necessidades e encontra guarida no avanço da medicina. Carlos também não olha para sua finitude que parece encoberta pela morte do outro. É nessa impessoalidade, condição existencial ontológica, que encontra a morte como um fenômeno que precisa “desviar, esquecer e afastar” como afirma Feijoo (2011, p. 41). Em tais condições a morte é um fenômeno que vem ao nosso encontro num futuro longínquo. [...]você sabe que a pessoa [que] trabalha nesse ramo não tem medo né [...] Quantas vezes eu já não embalei defunto e coloquei no caixão? Então eu não fiquei com medo. A morte pra mim é a coisa mais natural do mundo. A gente nasce, cresce, vira homem e uma hora morre. Então é, eu não senti esse pavor. “Ah eu vou morrer, eu vou morrer”, não. Eu não vou morrer. Eu vou morrer quando chegar a hora certa (grifo nosso). 52 Enquanto Carlos pode ver a morte do outro na realidade em que vive no trabalho, tem a mesma como distante, “eu não vou morrer” afirma ele diante da morte e segue seu discurso em relação à morte dos outros, ou seja, no modo impessoal, onde, “tomada onticamente4 é sempre da ordem do inexperenciável” (FEIJOO, 2011, p. 41) : [...] Eu acredito que muita gente morre de HIV hoje? Acho que sim. Mas assim, se tiver, se a pessoa que tiver infectada tiver um pouquinho de noção do que nós temos aqui no Brasil, ela não morre tão fácil mais não. Cuidando bem, tratando bem, não chega a morrer não (grifo nosso). Sandra, que diante do diagnóstico, revelava a morte como caminho para se livrar da dor, agora, em razão do tratamento, encontra novamente o lugar comum em relação à própria morte: [...] Eu ainda acredito que eu vou ser curada. Eu acredito que eu não tenho mais nada. Então hoje 90% que eu sentia antes eu acredito que eu vou ser curada. 4 Ôntico no heideggerianismo, diz-se do que se relaciona ao ente, o existente múltiplo e concreto, em oposição ao ontológico, que se refere à essência ou natureza geral de cada particularidade existente. 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho se propôs a discutir alguns aspectos da experiência de pessoas portadoras do vírus HIV, sob a ótica das lentes fenomenológicaexistencial e como uma proposta de humanização através desta abordagem. Tão logo se pode perceber que uma visão ôntica levaria o assunto HIV a uma análise que se limitaria à doença. Buscamos ultrapassar os lugares comuns a fim de olhar numa perspectiva que compreendemos ser mais humana. O olhar fenomenológico-existencial nos proporcionou tal condição, visto possibilitar, através de suas lentes, a oportunidade de sair das prescrições do mundo já dado e seguir por caminhos em que a experiência pode falar por si. Ao olharmos o ser como um todo, percebemos o movimento de identidade. O ser que descobre uma doença, como no caso do HIV, modificase, molda-se à nova realidade que se impõe. Isto é muito mais importante do que a própria identidade que se faz surgir. A partir da identidade que foi perdida, surgem novas identidades, a cada vivência nova que se apresenta. Quando a identidade não se movimenta, ela assim o faz devido ao simples fato de já se ter vivenciado uma identidade parecida anteriormente e, por questão de segurança, prefere não se modificar. O que de fato nos revela que, situações novas de vivência acabam por nos conduzir inicialmente ao questionamento e, em momento posterior, ao movimento de identidade. O estigma traz estragos indiretos, tanto ao soropositivo como às pessoas de seu convívio. O preconceito é muito presente e os limites que rondam o estigma são muito maiores do que parecem, para quem olha uma primeira vez. É notório que o compartilhamento do estigma é delineado de forma simbólica ou concreta, ocorrendo acusação, rejeição e isolamento, fazendo com que o paciente sofra e, por vezes, possa até prejudicar seu próprio tratamento. Quando o estigma aparece é tão difícil, que às vezes o portador de HIV deseja a própria morte para se livrar da própria dor, mas a visão ontológica nos explica o porquê de mudarmos o rumo. Muda-se o rumo por readquirir a visão 54 comum, e então joga-se a morte para muito mais longe e consequentemente adapta-se ao tratamento, mudando mais uma vez então, a identidade. Conclui-se que, a partir do método fenomenológico, a pessoa portadora do vírus HIV não se caracteriza apenas pela doença, afinal ela não pode ser vista apenas como ser biológico. Deve-se ver e ouvir a pessoa em sua totalidade como ser social, biológico e psicológico e levar em conta que sua identidade é sempre mutável e atemporal. Vislumbramos que tal experiência ofereça ao leitor possibilidades de um novo olhar para pessoas que convivem com o vírus HIV e, ainda mais, acreditamos que os caminhos aqui percorridos sirvam para novos trabalhos sobre o tema, ampliando as possibilidades de atuação da Psicologia na saúde pública. 55 REFERÊNCIAS ALVES, A. Convivendo com a infecção do HIV e a AIDS em Boa Vista (RR). Um estudo sobre autoatenção e itinerários terapêuticos. Tese Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2013. AMORIM, B. et al. AIDS 30 Anos. Revista Saber Viver, Ano 13, N. 50. São Paulo, 2012. BRASIL, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e AIDS. Direitos Humanos e HIV/AIDS: avanços e perspectivas para o enfrentamento da epidemia no Brasil. Brasília, 2008. BRASIL, Ministério da Saúde. Manual de adesão ao tratamento para pessoas com HIV e AIDS. Série A. Normas e Manuais Técnicos. Serie Manuais n.84. 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EDIPUCRS, Porto Alegre, 1994. 57 APÊNDICE 58 APÊNDICE A - Transcrição das Entrevistas PACIENTE 1 Sexo: Feminino Nome fictício: Márcia Idade: 45 anos PRIMEIRO ENCONTRO Pergunta 1 - Como que foi sua vida no pós diagnóstico? Na verdade eu descobri na gravidez do meu menino né? em 98. A princípio eu fiquei assustada né? Inclusive o diagnóstico veio, eu tava internada. Mas depois eu sentei, conversei com meu marido e então, agente, por ter um pouco de orientação e a gente ser técnico de enfermagem e tal, a gente procurou o tratamento, procurou a orientação do ginecologista e foi encaminhado aqui pro hospital, aqui pro NGA, pra continuar o tratamento por aqui né? Então, a princípio foi um pouco difícil a aceitação mas depois eu precisava pensar no meu filho, que eu tava grávida e tal. Então, pra mim, não foi assim..foi complicado mas, ao mesmo tempo eu tinha o motivo pra ter o tratamento sabe? ...procurar o tratamento por que eu queria bem ao meu filho né? ...pra mim foi tranquilo até. Só naquele primeiro tempo a gente leva um choque, mas depois com tratamento...com a orientação do doutor...naquela época era o doutor...doutor J. o ginecologista né? a orientação dele e fui muito bem recebida aqui pelo pessoal né?..que faz o acompanhamento coma gente desde a época. Isso desde...isso já faz mais de 18 anos, que ele fez 18 anos ontem. Pergunta 2 - Você pode falar um pouquinho sobre as mudanças que o diagnóstico acarretou na sua vida? No modo geral assim, na questão social, pessoal com você mesmo, na sua família. Olha, a mudança mais...é...difícil pra mim foi a mudança de setor de serviço pra trabalhar. Porque eu tava grávida, trabalhava na enfermagem, não podia ter contato de risco com o paciente..então eu precisava de um...a mudança assim...por ter que sair da enfermagem e ir pra outro setor por causa do 59 doença em si, por causa do risco de contaminação, por causa da preocupação com o Bebê e tal...e eu mudei de setor de trabalho né? eu saí da enfermagem , onde eu sempre amei trabalhar, e eu fui pra farmácia. Inclusive eu tô na farmácia desde quando eu fiquei grávida dele né. Então já faz 18 anos que eu tô na farmácia. Então a mudança principal social minha foi essa. De mudar de setor de serviço. Pergunta 3 - E assim com a família, com os amigos, você acha que você teve alguma rejeição? Isso te magoou de uma certa forma? Durante a gravidez eu tive um certo assim...receio de contar pras pessoas e tio...tive um pouco de rejeição por parte de algumas pessoas..mas eu acho assim..que eu tenho uma cabeça boa e até aberta pra aceitar. Primeiro a gente tem que aceitar a agente (aceitação própria) depois o que os outros pensam, o que os outros deixam de pensar ...é mais uma questão de você ver o olhar seu...meu né no caso, a aceitação assim, dos outros, não interfere muito. Primeiro, porque eu tenho que primeiro pensar em mim, na condição minha de tratamento...hoje em dia tem o tratamento de graça e tal...é uma coisa assim, que...a aceitação primeiro tem que vir de mim. Então e veio né , no caso. Agora os outros eu não me importo muito no que os outros pensam ou deixam de pensar. Eu cuido de mim, cuido da minha casa, cuido do meu marido, dos meus filhos, normal, sabe? Os dois sabem, os dois meninos sabem que a gente é positivo e ....não muda muito a relação entre eles não. SEGUNDO ENCONTRO Pergunta 4 - Poderia falar em relação ao tratamento, ao coquetel de retroviral? Olha, nunca tive problema, por que a aceitação...eu, desde o começo, eu tomo a mesma medicação até hoje...então desde o princípio até hoje eu tomo a mesma medicação porque faz um efeito positivo né? a carga viral está baixa desde a época em que eu tive o L. né? depois que eu tive o L. na gestação eu ja comecei a tomar o coquetel e depois do parto eu já comecei a tomar a medicação que eu tinha que tomar, ele tomou também, durante 6 meses, a medicação que tinha que tomar e...não tem reação alguma no meu organismo...No meu organismo não teve efeito colateral nenhum, nunca fez. 60 Então, a carga viral tá baixa faz quase 18 anos já e eu...e o CD4, que é a imunidade tá alta, então o mais importante é estar bem Pergunta 5 - V. em relação a sua qualidade de vida, você consegue mantêla, de antes de você fazer a sua descoberta e pra agora, pós diagnóstico, você consegue manter então um padrão de vida? Consigo sim...eu acho que, independente de ser positivo ou não, a minha vida não mudou muito não, porque a gente procura a aceitação e a gente procura viver como a gente sempre viveu. a gente sempre viveu bem sabe, assim, adquirindo coisas pessoais, amizades...Eu não mudei muito depois de descobrir não...porque a agente tem que batalhar por aquilo que a gente acredita e que...que fazendo o tratamento, certinho, cuidando, um cuidando do outro...No caso, eu cuidando do meu marido e ele cuidando de mim, não interfere muito nisso não...na vida social sabe? O mais importante é um ter o companheirismo com o outro e a gente continuar tendo...é ...conseguindo...trabalhando...eu continuo trabalhando desde a época e não interfere muito não. Pergunta 6 – Como que foi pra vocês as mudanças que aconteceram no diagnóstico, como que foi em termos de sentimentos, mudança de setor de trabalho, mudança na família, a rotina com a medicação...como vocês se sentiram com isso? A parte sentimental a gente leva numa boa né?. A gente tem uma cabeça boa. Sempre tive uma cabeça aberta pras coisas né? Mas a parte de trabalho foi mais complicado. Porque eu sempre amei trabalhar na enfermagem. E mudar de setor, não ter mais contato com o paciente, aquilo que eu estudei pra ser e não fazer, no começo foi difícil mas depois eu me acostumei. Trabalhando a 18 anos na enfermagem...Eu não perdi o contato com o pessoal da enfermagem com os amigos, não perdi o vinculo na empresa mas foi na arte de trabalho foi difícil mas agora não agora eu levo numa boa. TERCEIRO ENCONTRO Pergunta 7 – Quando vocês receberam o diagnóstico vocês sentiram medo? Como que foram esses medos e como vocês fizeram pra lidar com esses medos? 61 Olha eu tive uma fase pequena pra ter medo porque eu tava grávida do Lucas, eu precisava de força de um sentimento bom pra passar pra ele. Então o medo em si não me afetou muito não. A gravidez me ajudou a supera o medo né? porque eu precisava de força pra cuidar do bebê. Então eu tinha que ter a confiança de que ele iria nascer bem. Então eu comecei o tratamento já na gravidez e medo mesmo eu não tive não.Eu tive mais medo de que ele tivesse sido contaminado, de ser positivo e tudo. Mas depois que ele nasceu, vi que nasceu saudável. Fez o primeiro exame que sempre dá positivo porque ainda tem sangue né?. Anticorpos meus no organismo dele mas a partir do segundo exame já deu negativo. Então o que me tranquilizou mais foi isso né?... Ai já segui o tratamento certinho pra que ele não tivesse a doença. Pergunta 8 – Você percebe que existe muito preconceito em relação ao tema AIDS/HIVV? Você percebe esse preconceito em relação a você ou você percebe acontecendo apenas com os outros? Olha, eu sempre coloquei na minha cabeça que o preconceito pior é o que a gente sente em relação a gente mesmo. Então se eu não tenho preconceito em relação Amim mesmo, eu não me importo quanto aos que os outros pensam. Mas eu sei que existe, em partes da família, de ambas as partes, as pessoas tem preconceito, tem um pouco de medo. Mas eu acho que primeiro eu tenho que aceitar minha condição pra depois relevar o que os outros vão pensar. Eu tenho que me aceitar primeiro pra depois pensar que os outros me aceitem. Eu me aceitando, eu não me importo muito no que é que os outros pensam. Pergunta 9 – Queria que você falasse agora sobre o seu conhecimento de diagnóstico, de doença, a sua vivência com tudo isso. Que você lidou e venceu tudo isso Eu já conhecia um pouco da doença e já tinha visto casos na família e tal então pra mim eu acho que o diagnostico veio ressaltar uma coisa. Que a gente está aqui nessa vida pra viver de acordo com aquilo que a gente acredita. O diagnóstico em si, não mudou muito a minha vida não. O tratamento tem uma rotina de fazer exames, de tomar a medicação certinho. Não é muito difícil. Porque a gente tem aqui em Lins um tratamento muito bom. Aliás, no Brasil a gente tem um tratamento muito bom em relação a outros lugares. Eu continuo levando a minha vida, cuidando dos meus filhos, cuidando da minha casa, trabalhando então pra mim é uma coisa que eu levo numa boa. Eu não tenho 62 esse preconceito comigo mesmo. “Eu tenho essa doença, eu vou morrer...” se você tiver esse isso na cabeça você acaba definhando e não faz o tratamento direito e acaba se deixando levar por uma doença que hoje é tratável. Então pra mim não muda muito o meu modo de ver não. Mas eu sei que pra muitas pessoas é difícil porque a aceitação da família é difícil, é complicado mas não no meu caso porque os meus 2 filhos sabem que nos somos HIV positivo e eles aceitam numa boa e vivem, convivem com nós de uma forma assim carinhosa. Eu tenho um carinho deles da mesma forma que se eu não fosse positivo, entende? PACIENTE 2 Sexo: Masculino Nome fictício: Carlos Idade: 48 anos PRIMEIRO ENCONTRO Pergunta 1 - Poderia falar um pouco sobre sua vivência depois do diagnóstico , no seu fator pessoal? Nisso é...a gente é muito cúmplice nisso. é...não sei se você sabe mas eu também sou hemofílico...e foi eu que passei pra ela...não sabia da...Ela ficou grávida...casamos e em seguida ela ficou grávida. Em seguida não!..uns 2 anos depois ficou grávida do...um ano depois ficou grávida do L. E ela tinha um deslocamento de mandíbula...e ela ficou internada no G. Dr. J. pediu uma série de exames, e dentre eles estava o exame de HIV. E ele falou assim ó...chamou ela primeiro no quarto e falou... Dr. J e Dr. E. falou assim: Olha infelizmente eu tenho uma notícia não muito boa não...seu exame de HIV deu positivo. Foi um trauma na hora, ficamos revoltados.eu venho mais revoltado ainda porque tinha quase que certeza que fui eu que havia transmitido pra ela mas é...ai em seguida começou o tratamento...ela começou a tomar o AZT de forma bem acentuada por causa da gravidez...e não podia parar...todo dia..tomava de 4 em 4 horas...mas isso na verdade fez unir mais a gente...não distanciou a gente...foi um fator a mais pra nos aproximar. Quando o Dr. J. falou isso pra nós eu falei assim...eu acho que foi eu...tenho quase que certeza porque a hemofilia...não sei se vocês sabem mas eu tenho que ta tomando uma 63 dosagem de remédio direto e uma dose dessas deve ter um bendito de um vírus que me infectou. Então eu já perdi já 2 irmãos a 20 e tantos anos atrás por hemofilia...e ficaram muito doentes e um deles deu toxoplasmose...e faleceram os 2 no mesmo ano...e eu fiquei. Mas não afetou...fala assim que o tratamento...o diagnóstico, o tratamento e a continuação da vida não afetou muito não...não modificou muito não...por que eu já vinha num histórico de hemofilia...tinha um brado na dor, tinha um brado no sofrimento..tinha uma vida em hospital,que eu também sou técnico em enfermagem...trabalhei 19 anos na enfermagem..então, é...pra mim o impacto foi bem menor. Pergunta 2 - Quais as mudanças que acarretou o diagnóstico? Praticamente você já falou tudo né? mas falando assim..na família, no social.. Pra falar a verdade, na família tem sempre alguém assim com um pé a atrás em relação a gente. Eu não quis comentar mas uma das pessoas que ficou bem contra, assim..explicitamente contra foi a irmã dela. Então assim, um dia eu cheguei com duas barras de ferro pronto pra fazer uma besteira...lá na casa do pai dela...por causa da irmã ela abortou um menino...o nosso menino ele nasceu de 8 meses. Ela ficava falando...porque não contava...porque não contava...porque na verdade, o G. é um grande hospital mas na verdade tem gente que trabalha lá dentro que saiu com a notícia antes de a gente saber. Então foi uma falta de ética muito grande. Eles expuseram a gente sem a gente saber...então quando nós chegamos em casa aí já começou as pancadarias. Aí eu falei, Opa, peraí. Não é assim também...como é que você sabe, antes da gente? Nós estamos sabendo hoje. (Não mas já vai fazer alguns dias que eu tô sabendo). Opa! então vamos descobrir quem foi que falou. Então, na época, um funcionário foi mandado embora por justa causa por falta de ética. Chegamos no Dr. J. e falos, Dr. J., olha...aconteceu isso, isso e isso. ele falou: Eu já to sabendo, as providencias já estão sendo tomadas. E realmente tomaram as providências...alguns funcionários foram mandados embora por justa causa. Um foi até recontratado depois mas a falta de ética foi ....ainda mais ela sabendo que eu trabalhava em uma área do hospital, a irmã dela trabalhava...a gente tinha uma noção de ética muito grande...as coisas que acontecem no hospital você não pode levar conversa pra fora e o contrário (levar conversa pra dentro) também. Isso foi muito chocante...mas isso foi 64 superado e graças a Deus...nosso menino já ta com 18 anos já. Não tem nada, Dr. E. já viu ele ao contrário e não encontrou vírus nenhum, nenhum, nenhum...então é assim a gente tá...se tiver que sobrar alguma coisa vai sobrar pra mim e pra ela. Acho que mais pra mim porque eu sou hemofílico. Também não sei se vai sobrar porque eu não tenho culpa também. eu fui uma vítima também. Porque hemofilia, queira ou não tem que ta tomando esse bendito remédio pro resto da vida. A gente vai uma vez por mês a Marília buscar esse fator 8 e eu tenho que ta tomando constantemente. Eu tenho que tomar 3 vezes por semana e não tem jeito. Tenho que aceitar. Eu fico o dia inteiro com dor, acordo com dor, vou deitar com dor, durmo com dor. Então a dor é uma parte assim que não me afeta mais porque assim é ombro, joelho, tornozelo, cotovelo...então ela não me afeta muito não. Pergunta 3 - Em relação ao remédio, ao tratamento então você praticamente falou que você tá bem né? É eu tinha né, quando eu fazia tratamento com o Dr. C. e passou uns remédios pra mim...fazia um efeito muito tóxico e muito forte. eu tinha alucinações, não conseguia dormir, ficava agitado. No inicio aí eu vim aqui, e foi até desagradável que falou assim: Ele já passou e ele faz o que ele quiser da vida dele. Aí eu não ia ficar naquela situação e ai eu suspendo a medicação eu mesmo. Aí no outro mês ele ajustou a medicação, mudou a medicação. Aí deu certo..ai...mas isso já faz 18 anos que ta indetectável. A minha eu acho que ta 50. mas quando eu comecei tava 300 milhões. Tava altíssima. ai ficou um bom tempo indetectável. Aí eu tive uma baixa de imunidade porque eu peguei uma TB (tuberculose). Aí aumentou a queda da imunidade aí fez com que aumentasse o numero de vírus. Mas isso aí é... a doutora disse que ninguém mais morre por causa disso. SEGUNDO ENCONTRO Pergunta 4 - Poderia falar um pouco em relação à qualidade de vida (antes e agora) no tratamento? É assim...em relação às dores é...da hemofilia, não mudaram muito não. Continuo com as mesmas dores, constante. Contra...contra o HIV também não senti grandes diferenças. Porque eu nunca tive assim uma infecção séria que 65 me deixasse internado...nada grave a não ser a TB que foi um tratamento domiciliar que foi curado. mas não afetou grande coisa na minha vida não. Continuo fazendo as mesmas coisas que antes. Lógico que agora com uma certa dose de precaução em relação a outras pessoas porque a gente sabe que esse vírus é meio...meio encardidinho. Uma hora ele tá num ambiente outra hora fala que não tá. Então a gente fica meio receoso assim com certas coisas...mas eu...graças a Deus nunca aconteceu nenhum acidente, nunca machuquei pessoas, nunca...e a vida, continua do mesmo jeito. O que muda talvez, com a idade, a gente vai perdendo o sentido da vida porque eu já to com 48 anos...então com o tempo as coisas tendem a ir diminuindo com a idade...a força física vai diminuindo, num processo natural, o que acontece com todo mundo. Mas até agora eu tô...com algumas exceções da perna e do ombro, é...tranquilo, não mudou muito não...é...graças a Deus aqui no NGA tem uma equipe assim com capacidade fantástica de resolver as coisas pra gente. É...sempre que precisa, a gente quer alguma coisa...Não, vamos fazer...Se precisar chama a gente...a Dra. C. é fantástica. Não tem uma pessoa, uma médica com o nível de capacidade igual a ela não. Pelo menos aqui em nossa cidade a gente não encontra outra pessoa igual a ela não. Tudo o que a gente pede ela consegue resolver, dá atestado, dá remédio de outro setor que precisa. Com ela não tem meia nem não. Ou vai ou racha. Ela falou pra mim assim..você tá proibido de morrer. ela falou..você tá proibido porque...tudo o que você passou...se você morrer nós vamos te dissecar..cortar pedaço por pedaço pra ver o que é que você tem dentro...porque você é um Leão, um vencedor...graças a Deus a vida é bem mais branda, a gente tem o apoio de muita gente. Isso que é importante. Eu acredito que muita gente morre de HIV hoje? Acho que sim. Mas assim, se tiver...se a pessoa que tiver infectada tiver um pouquinho de noção do que nós temos aqui no Brasil...ela não morre tão fácil mais não. Cuidando bem, tratando bem, não chega a morrer não. Pergunta 5 - Como que foi pra você o acolhimento da equipe desde quando que você teve o diagnóstico até os dias de hoje. Como que é formada essa equipe, com enfermeiro, técnico, psicólogo, nutricionista, médico? Como é pra você e qual é a sua visão em relação a equipe? 66 Eu acho que se melhorar estraga. São profissionais super capacitados. Lógico que a gente já tem 18 anos nessa vida. Não seria natural se não tivéssemos intercalços nesse meio tempo aí. Pela minha doença primária que é a hemofilia, eu tive alguns desacertos que o Dr. C., as vezes não compreendeu, ou fez que não compreendeu mas ele acha que sabia. Então teve alguns percalços entre eu e ele que eu cheguei uma vez a até abandonar o uso da medicação por que estava fazendo muito mal. Ele não quis me atender porque achava que já tinha feito a parte dele. mas isso são percalços de um longo tratamento que já faz 18 anos. Mas em relação a equipe, não tem o que falar. Dra. C. veio de uma luz divina que veio pra ajudar. Então assim, o que ela precisar eu com certeza largo o que eu to fazendo e vou ajudar. Por que não é só eu e a verônica que ela cuida. Ela cuida de uns e cuida de outros. Então se todos tiverem essa bandeira de defende-la de qualquer forma, de qualquer coisa que venha estar no caminho dela pra ela poder permanecer aqui com a gente eu tenho o prazer de fazer. Assim como já fiz e se precisar eu vou fazer de novo. Não desmerecendo o que o Dr. C. fez mas que ela é muito superior a ele, com certeza é. Em relação ao restante da equipe, a A., C., o pessoal não tem o que falar. Todos tiveram uns percalços ai em relação a medicação da prefeitura. Cheguei até uma vez a ir com um gravador na prefeitura. O menino disse que era culpa do pessoal do NGA que não mandava a papelada pra lá. EU cheguei aqui e provei que u tava certo. Então nesses desajustes nós temos que tirar a pedra do caminho pra que a coisa flua normalmente. Então eu não tenho o que falar da equipe. Porque ela deu o suporte pra nós e vai continuar dando até que Deus queira a que a gente saia desse mundo. Pergunta 6 - Como foi pra você as mudanças que ocorreram com o diagnóstico, com trabalho, família? Em relação ao meu trabalho, quando, assim que eu descobri que ela teve o L., eu já tava num processo de aposentadoria, então assim eu não senti muito em relação a parte do profissional de enfermagem, porque eu também sou técnico em enfermagem. Então eu não senti muito porque eu já tava num processo em que iria aposentar logo por causa das sequelas da hemofilia. Mas, é, senti também, fiquei meio abatido, porque era uma coisa que desconfiava mas não tinha certeza, então assim o diagnóstico veio assim na hora em que ela tava 67 grávida e fez aquela série de exames. Então teve aquele terror na época, mas superou-se. Graças a Deus, superou. TERCEIRO ENCONTRO Pergunta 7 - Quais foram os medos que você teve, e como você fez pra lidar com esses medos? Eu também não tive muito medo não. É, porque, você sabe que a pessoa trabalha nesse ramo não tem medo né? Você tem medo de depois, sei lá, morrer amanhã ou depois? não. até porque você já vivenciou a morte milhares e milhares de vezes. Quantas vezes eu já não embalei defunto e coloquei no caixão? Então eu não fiquei com medo. A morte pra mim é a coisa mais natural do mundo. A gente nasce, cresce, vira homem e uma hora morre. Então é...eu não senti esse pavor...ah eu vou morrer, eu vou morrer...não. Eu não vou morrer. Eu vou morrer quando chegar a hora certa. Então, medo, medo mesmo eu não tive não. Pergunta 8 - Você percebe que existe um preconceito, mesmo que velado. Você sofreu preconceito? e como você lidou com o preconceito? Eu sei que existe o preconceito assim, as vezes até na cara você vê o preconceito das pessoas. Existe o preconceito velado. "Olha cuidado com ele que ele é HIV positivo". Como se o HIV fosse uma coisa altamente contagiosa que só é de tocar na gente ia pegar, ou algo parecido. E a medicina tá ai pra provar que não é bem assim. Tanto que nossos 2 filhos nenhum dos 2 tem. Dr. E. virou os 2 pelo avesso e não achou HIV nenhum. Então assim, é o preconceito existe? Existe. Mas é na cabeça de gente tola. Idiotice e burrice existe na cabeça de todos. O preconceito não deixa de ser uma idiotice, uma tolice também. Por que você pega assim de forma...a não ser que você esteja disposto a transmitir, você não vai contaminar ninguém. Então, acho que em relação ao preconceito mais é isso. Pergunta 9 - O que é que você gostaria de falar sobre o tratamento, sobre o diagnóstico, sobre a doença, de como foi pra você tudo isso, o que você já sabia antes, como você enfrentou tudo isso? 68 É eu também já tinha, já sabia do HIV, já tinha perdido alguns amigos que morreram por ser HIV positivo. A outra pergunta é...o diagnóstico. Quando foi diagnosticado mesmo.."Olha, ela tá com HIV" Eu...soube-se dela primeiro pra depois saber do meu. Então começou a fazer o tratamento. È foi um terror porque ela tava grávida, a gente não sabia o que fazer, como agir, é...Dr. J. foi muito competente pra isso. Eu perguntei, Dr. o senhor vai abandonar o caso por ser um HIV positivo? ai ele disse: " de jeito nenhum, eu sou um profissional e nós vamos cuidar direitinho, vamos fazer a coisa certa, do jeito que tem que ser". Ele foi muito profissional nessa parte, muito capacitado nessa parte. Surgiu algumas coisas aí no meio desse intervalo aí que a coisa vazou do hospital sema gente saber. E ele também foi muito profissional. Eu falei "Dr. deixa eu perguntar uma coisa. A coisa vazou sem a gente ficar sabendo." Ele falou, "eu já sei e também já to tomando as providencias". Algumas pessoas foram demitidas por justa causa, outras readmitidas, não sei mas deu fuá naquele G. terrível. Então o diagnóstico foi isso, mas assim, tudo dentro de uma...na expectativa de uma doença que era praticamente incurável na época. Ai veio aí o pessoal do NGA. O pessoal foi...no inicio foi meio terrível, por que pra tomar tanto remédio...minha carga viral na época tava altíssima. Tava 300 milhões. Primeiro CD4 e CD8 que eu fiz...e carga viral tava totalmente descontrolada. Hoje já faz 10 12 anos que já ta dando indetectável. Pra nós é...o medo os 50, 50 e pouquinho por causa da hemofilia e de outras complicações que eu tenho né? Mas, até hoje tá tranquilo, não tenho o que reclamar. Fora que a gente tem um aparato da Dra. C. que é excepcional né?. Tudo o que a gente precisa...nós vamos fazer...você não pode morrer...você vai cuidar, você vai fazer isso...então o suporte por trás na Dra. C. é excepcional. Dentre as médicas que eu conheço ela á a melhor pra cuidar desse tipo de coisa...é ela. então é isso. PACIENTE 3 Sexo: Feminino Nome fictício: Sandra Idade: 46 anos PRIMEIRO ENCONTRO 69 Pergunta 1 - Como foi a sua vivência no pós-diagnóstico? No começo foi muito difícil pra mim. Pensei até em me matar. Tirar a vida. Por que assim, eu não esperava eu sempre fui trabalhadeira meus filhos são pequenos. Faz 8 anos que eu contraí a doença, que eu descobri né? Eu tinha minha mãe, meu pai, eles estavam vivos. pra mim foi muito difícil, eu fiquei com depressão, eu cheguei a pesar 52 Kg, Então, pra mim parece que meu mundo tinha acabado ali. Não tinha mais motivo pra viver. Pergunta 2 - E você percebe, depois do diagnóstico, mudanças que acarretaram no campo social, familiar, pessoal? Bom, assim no começo parece que todo mundo sabia né? sabe, a cidade é pequena e eu tive que contar com várias pessoas porque como que eu não ia contar né? ah...o que tá acontecendo? o que não tá? Então Guaiçara inteira...Hoje não. Hoje eu me adaptei melhor, hoje as pessoas assim, tem dúvidas. Depois que eu comecei a tomar o medicamento o pessoal fala assim, imagina, você tá mentindo. Então, no começo foi muito difícil pra mim Pergunta 3 - E, em relação ao tratamento, de maneira geral, como é a sua relação com o tratamento? Hoje é como se eu tivesse uma diabetes ou um medicamento que você tem assim, uma alergia que você não pode ficar sem o medicamento. SEGUNDO ENCONTRO Pergunta 4 - Em relação a sua qualidade de vida, você acredita que consegue manter o mesmo padrão, mantendo a medicação? Hoje sim, depois que você começa a tomar o medicamento e acostuma, hoje não tem mais dificuldade Pergunta 5 - Que mudanças você acredita que ocorreram com o diagnóstico? Olha, as mudanças assim de melhor você fala? Eu ainda acredito que eu vou ser curada. Eu acredito que eu não tenho mais nada. Então hoje 90% que eu sentia antes eu acredito que eu vou ser curada 70 Pergunta 6 - Que medos que você teve em relação a doença e como que você lidou com eles? O medo foi com a população mesmo. Com algumas pessoas. Porque o medo vem assim...ah se eu for fazer uma unha a pessoa vai me menosprezar. Assim...é uma situação assim que é desagradável né?. Assim, nem tanto pelo, porque ainda existe preconceito. Ainda existe. Hoje eu acredito que seja menos mas, naquela época...eu acredito que era mais. TERCEIRO ENCONTRO Pergunta 7 - Você ainda percebe preconceito e como você lida com ele? Como eu te falei, hoje as pessoas tem dúvida. As pessoas se perguntam, será que tem? será que não tem? assim, por me ver bem né? eu me sinto bem, bem mesmo como o medicamento. As vezes eu até chego a falar com as pessoas, que eu acho assim, que deve...que me dá aquela autoridade pra que eu esteja falando assim né?...confiança. As pessoas falam...não acredito. Você, um mulherão desses? Tem a maneira de conversar, a maneira de se expressar...hoje as pessoas tem dúvida. Pergunta 8 - Tem alguma coisa que você queira comentar que não foi abordada? Não Pergunta 9 - E o acolhimento da equipe, aqui do NGA? Nossa, é maravilhoso, não tem o que falar. É assim... todos me tratam muito bem. as vezes eu venho colher sangue de 3 em 3 meses. Eu não tenho o que falar. 71 ANEXOS 72 ANEXO A - Termo de Consentimento Livre Esclarecido 73 ANEXO B - Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética 74 75