Anexo I Paulo Pereira de Castro Apontamentos de História Antiga primeiro semestre 1975, DH-FFLCH-USP (anotações registradas por Francisco Murari Pires) HISTÓRIA DA GRÉCIA i. 4 de Março de 1975 Especialmente considerando-se a História grega entre os séculos VI e IV ªC. costuma-se distinguí-la nitidamente da História oriental, assim tomando por base que elas respeitem a faixas cronológicas independentes. Todavia, a História da Grécia na Idade do Bronze situa um paralelismo cronológico com a oriental, de modo que seu pleno significado só é alcançado quando quando estudada juntamente com aquela. História da Grécia da Idade do Bronze e a da Idade do Ferro tendem a serem consideradas em termos de ruptura entre uma e outra, o que decorreria não apenas da limitação das fontes, mas, sobretudo, de uma diferença dos problemas históricos a elas respeitantes. História da Grécia na Idade do Bronze deve antes ser entendida como História do Egeu na Idade do Bronze, de que a compreensão se constitui por meio do exâme do papel da área egéia como área intermediária entre os focos de desenvolvimento de civilização do Bronze no Médio Oriente e Europa central. Há, pois, que se correlacionar ambos esses âmbitos da História da Idade do Bronze, o oriental e o centro-europeu, articulando-os pela abordagem do papel intermediário desempenhado pelos povos do Egeu. A pobreza dos dados arqueológicos atinentes a essa problemática enseja uma prova de que a inter-relação entre essas áreas se fazia a nível não oficial, mas sim por meio da atuação de elementos mal colocados socialmente. Os palácios só eventualmente trazem atestados de um inter-relacionamento, o qual era realizado especialmente por elementos desgarrados, de cuja atuação resultaram indícios de “reservas” encontradas nas áreas da civilização do bronze centro-européia: espécie de esconderijos em que artesãos ou comerciantes ambulantes guardavam sua maleta em situação de perigo, contendo recipientes com produtos metalúrgicos em fase de elaboração, ferramentas de metalurgia, e produtos de troca correntes na Europa central e no Mediterrâneo oriental. Pela existência de tais elementos dedicados ao comércio inter-grupal constata-se que havia um sistema organizado de trocas culturais entre as civilizações constituintes da Idade do Bronze. Paralelamente a esses elementos ambulantes, através de indícios frágeis, conclui-se também a existência de “prospectores” minerais (seguramente, elementos das áreas civilizadas do Oriente destacados na Europa central). Embora seja pequeno o número de ocorrências documentais, tais elementos estão em correlação com a propagação de formas de objetos e técnicas metalúrgicas, assim desempenhando papel importante na difusão da cultura. Graças ao cotejo dos desenvolvimentos históricos dessas sociedades – a dos velhos centros de civilização oriental, de um lado, as áreas marginais na Europa balcânica e central, de outro – pode-se detetar a atuação de trocas culturais que afetaram a própria concepção orientadora da constituição das elites políticas e militares de ambas consoante o paralelismo evolutivo dos sistemas políticos e militares vigentes durante a Idade do Bronze em ambas as áreas. A expansão de sítios de colônias dos velhos impérios da Idade do Bronze (Egito e Mesopotâmia) apresenta sucessivas formas de realização que transparecem mesmo entre povos com que não se estabelece nenhuma relação precisa documentada. Até por volta de 2000 aC, durante a Antiga Idade do Bronze, os velhos impérios realizam sua complementação econômica através de uma relação unilateral com as áreas externas, promovendo campanhas de pilhagem nas quais o elemento local é simplesmente ignorado (só levado em conta quando oferece resistência). Tais campanhas levaram a um mecanismo militar que se baseia na utilização de povos bárbaros para o serviço de organização das caravanas necessárias àquelas expedições. O prolongamento dessa prática resultou numa sociedade especializada no sistema de caravanas associando o comércio a longa distância, a pecuária nômade e a estrutura militar. Já na Média Idade do Bronze (2000-1600) tem-se uma época em que esses elementos assumem importância crescente, assim surgindo como instâncias atuantes na história dos velhos impérios, gerando época de crises, de grande instabilidade para os impérios agrários do Oriente. O processo de superação dessas crises resultou, na Idade Recente do Bronze, em novo tipo de monarquia de base estritamente militar e supra-nacional, especialmente recorrendo a elementos recrutados fora das fronteiras. Os monarcas amparam-se uns aos outros, quase que constituindo uma classe de monarcas. Assim, o tratado egípcio-hitita prevê assistência recíproca e ação comum contra os casos de felonia em seus respectivos sistemas de vassalagem. Nesse tipo de monarquia o mercenário estrangeiro torna-se o sistema, e daí surge a crise em que entra em colapso a civilização do Bronze na área do Egeu. Constata-se na geografia desse mundo histórico o confronto de dois substratos étnicos diferentes: um, o mais antigo, anatólio-egeíco-asiânico e, dois, os de língua grega (indo-europeu). O primeiro é atestado na tradição grega e ilustrado pela toponímia: nomes terminados por _nda, _nthos, _ttos, _ssos, a evidênciar língua não grega que dominou em grande parte da Grécia. Tradicionalmente recorreu-se à explicação de tese invasionista para tal dualidade histórica na composição da população grega. O primeiro grupo precedeu os povos de língua indo-européia, com migrações feitas em períodos de tempo extensos, do Neolítico ao Médio Império do Bronze, momento em que começam a aparecer os indo-europeus. Concebida em termos, então, de oposição étnica, buscou-se, tomando por base constatações arqueológicas, analisar a constatação arqueológica de que uma civilização cretense de base egeo-anatólica foi a principal responsável pela expansão da civilização do Bronze no Egeu, mas que depois cedeu terreno à civilização micênica, que por sua vez representaria a ascensão do elemento indo-europeu. Tal oposição radical entre esses dois grupos, porém, tem sido criticada, pois, estudos lingüísticos reconhecem certo parentesco nas línguas do primeiro e do segundo grupo. Em vez, portanto, de renovação da população pelo aparecimento de hordas indoeuropéias, ter-se-ia a renovação da língua e da civilização na área do Egeu e da Grécia continental concomitante com a dinâmica das relações do Egeu com a civilização do Bronze no Oriente. Inicialmente tais relações se estabelecem através dos Balcãs (Vardar e Moldava), mas depois, terceira Idade do Bronze, a conexão se fez ao longo do Adriático-Norte da Itália. A formação dinâmica das populações gregas se dá, então, por meio de um sistema variado de relações com os povos do Oriente, embora não se exclua a existência de movimentos de migração, de modo que são antes aquelas relações que explicam estes movimentos, preferentemente a por eles serem explicadas. Assim pode-se pensar o período pré-helênico da história grega como desenvolvimento de um processo de formação dos povos de língua grega, e não de sua entrada como tais, como identidades linguísticas já prontas e constituídas, no horizonte histórico do mundo grego. Não há oposição radical entre pré-helenos e helenos, antes tratam-se de etnias aparentadas: dialetos gregos se constituem na área do mundo grego, em que se dá a correlação desses dialetos com outros orientais. As diferenciações linguístico-culturais constituem-se ao longo de eixos de atividade comercial, obscuramente realizada por elementos marginais, portadores de técnicas e promotores de comércio. A renovação dos antigos estratos lingüísticos resulta então na constituição dos dialetos gregos. Assim, os movimentos de invasão são explicados pelas correlações atuantes entre os povos, antes do que constituam eles a instância intelectiva que as explique. Os deslocamentos de população associados a esse processo decorrem de longas fases de contato, por que se firmam experiências prévias das áreas ocupadas. Também as invasões germânicas no Baixo Império romano mostram processo lento sem limite determinado, amplo e duradouro. ii. 11 de março de 1975 O desenvolvimento histórico da Grécia pré-helênica anterior ao século XII ªC. deve ser explicado em termos dos contatos culturais entre centros de comércio, antes do que por meio de mecanismos de invasões militares sucessivas. Estes últimos projetam a existência de uma nação indo-européia originalmente localizada pela Eurásia. Não houve tal nação. A idéia de sua suposta língua comum, o indo-europeu, da qual se ramificariam todos seus componentes constituintes, não é mais aceita. Pensa-se, antes, em um processo de indo-europeização de línguas diferentes em amplo âmbito geográfico. Assim, sem excluir a participação de movimentos coletivos, busca-se ressaltar que o processo de formação lingüística não decorre necessariamente de renovações populacionais, conhecendo-se alterações antropológicas raciais sem mudança de sistema lingüístico, e inversamente alterações lingüísticas não acompanhadas por mudanças físico-antropológicas. Os mecanismos invasionistas não são suficientes para explicar o mapa lingüístico. A perspectiva de compreensão da história da Grécia abre-se assim para entender o desenvolvimento local em correlação com a ambientação mais ampla ensejada pelos contatos com os povos vizinhos da área grega. O processo é marcado pela influência alternada de dois focos de irradiação cultural: as civilizações antigas do Próximo Oriente e a civilização do bronze na Europa central. A área do Egeu configura-se como foco de formação civilizatória, com as mudanças culturais nela ocorridas sendo em grande parte influenciadas pela atuação desses dois focos, mas também, por outro lado, similarmente atuando em ambas. Dadas as semelhanças culturais vigentes durante o Neolítico no Egeu, Ásia Menor e norte da Síria, sugeriu-se, para explicar o povoamento da área egéia, a ocorrência de um movimento invasionista de povos provenientes destas duas últimas áreas para aquela. As pesquisas arqueológicas na área do Egeu revelaram povoamentos anteriores ao Neolítico, com restos de ocupação paleolítica e sobretudo evidências também de neolítico pré-cerâmico. O recurso ao mecanismo invasionista não é necessário para se explicar o povoamento neolítico da região egéia, o que não implica afirmar que não tivessem havido invasões. Porém, dado que a Grécia continental, as ilhas do Egeu e o litoral da Ásia Menor apresentam desenvolvimentos de civilização neolítica autônomos, se bem que guardando traços em comum com a Síria e a Ásia Menor, tendeu-se, no quadro da explicação invasionista, a considerá-los como três focos culturais distintos de civilização neolítica. Melhor compreensão pode ser alcançada entendendo-se antes que o Egeu participa da mesma área cultural que envolve também a Ásia Menor e a Síria durante a civilização neolítica. De modo que as semelhanças culturais entre o Egeu e o norte da Síria possam ser vistos no panorama de interação dos elementos de contatos civilizatórios polarizados basicamente pelo comércio sistemático atuante nessa área, de que o ítem básico era a obsidiana, com ricas jazidas em Melos. A introdução da civilização do metal no Egeu está correlacionada com a atuação dos focos de civilização metalúrgica no Próximo Oriente, especialmente Síria e Egito. Há localidades neolíticas que conheceram, por processo de transição natural, estágios de produção do metal, sem que nelas se constatem interrupções de natureza arqueológica. Muitas outras localidades que também acusam a presença do metal constituem ocupações novas, e em algumas delas tem-se a eliminação de antigas ocupações neolíticas suplantadas pela civilização do metal. Assim, do surgimento da civilização do metal no Egeu têm-se vestígios de ruptura violenta em alguns casos ao lado de desenvolvimentos contínuos em outros. O mais significativo é que o desenvolvimento da civilização metalúrgica no Egeu comporta paralelismo com o das civilizações da Síria e Ásia Menor, de modo que as relações explicativas da homogeneidade cultural nessa ampla área explicam também a passagem egéica para a civilização do metal em termos das interações de contatos assim estabelecidos, o que necessariamente não exclui a intervenção de grupos que utilizam a violência para a ocupação. Ter-se-ia, portanto, uma área cultural com elevado gráu de homogeneidade até a introdução da civilização do metal, sempre renovada por constantes contatos, os quais podem pressupor trocas de população, ou pacífica ou violenta, de que não dispomos de informações suficientes para decidir qual delas fosse a predominante e eficiente. Em decorrência da propagação da civilização do metal no Egeu, ocorre uma diferenciação cultural na Grécia continental, constituindo-se uma fronteira entre o norte da Grécia e a Grécia central. O norte da Grécia resiste à propagação da cicivilização do metal, permanecendo neolítico, mas rompendo e reagindo contra a fase neolítica anterior, cujos centros são destruídos (sinais de incêndio atestados) dando lugar a estabelecimentos de novo tipo, fundamentalmente sedes fortificadas com organização militarizada da população. Já a Grécia central meridional mais as ilhas do Egeu desenvolvem a civilização dos metais. A Grécia setentrional, de fortes características militares mantêm, pelo que indicam os tipos de cerâmica, contatos predominantemente com as populações do Danúbio, antes do que com as da área do Egeu. Pensou-se em invasões do norte da Grécia por elementos provenientes da Europa central, porém, os dados do desenvolvimento neolítico na Tessália são coincidentes com os do neolítico da Europa central, a inviabilizar a suposição de anterioridade desta última. O desenvolvimento autônomo da cultura local pela mudança da orientação de seus contatos não pressupõe necessariamente um processo de invasão populacional. No bojo dessa mudança cultural ocorrida na civilização neolítica da Tessália, alguns historiadores entrevêm a predominância de um tipo matriarcal de organização social na primeira fase em que ela estava ligada ao Egeu, contra outra de tipo patriarcal na fase posterior. Tal tese, porém, tem sido mais recentemente contestada. No decorrer do segundo milênio constata-se, paralelamente ao desenvolvimento da civilização do metal, que os esforços expansionistas dos centros de civilização metalúrgica mobilizaram o envolvimento de populações marginais bárbaras na ação de exploração e saque sistemático das riquezas naturais por extensas áreas, o que constituiu um incentivo para a militarização dos grupos tribais nelas sediados e desenvolvimento de sua economia a serviço das necessidades comerciais dos velhos impérios, especialmente no que respeita ao transporte de matérias primas, com esta atividade comercial, de seu lado, reciprocamente apoiada naquela forte organização militar. Associado a esse processo, pelo que podemos inferir por similaridade com as diferenciações ocorridas em relação ao Egito e à Mesopotâmia, dá-se o desenvolvimento das atividades pecuárias, com os povos nômades realizando concomitantemente pastoreio e comércio também na Grécia setentrional. O surgimento da populações de língua indo-européia na área asiática estaria assim correlacionado com esse processo de mobilização de populações por influência dos centros mesopotâmicos. O esboço de “fronteira” entre o norte da Grécia e a Grécia central pode também ser caracterizado em termos da existência de dois sistemas de intercomunicação comercial atuantes respectivamente na Grécia meridional e na Grécia central, com a primeira dessas áreas interagindo com as Cíclades e a segunda com Tróia e região dos estreitos, assim evidenciados pelos diferentes padrões de cerâmica que nelas se constata. Os contatos da Grécia central com Tróia faziam-se por mar, com pontos de apoio na costa trácia por necessidades da navegação. As colônias litorâneas da civilização do Bronze na Calcídica, que constituem pequenos pontos de apoio por meio de portos fortificados, sugerem que as relações entre a civilização do metal e a neolítica do norte da Grécia fossem violentas. Apesar, entretanto, desse padrão de violência, os centros calcídicos tornam-se foco de difusão civilizatório na área trácia, cuja influência alcança até o Épiro. Por volta de 2000 ªC ocorre toda uma série de modificações no Egeu que refletem transformações mais gerais abrangendo os velhos impérios do Próximo oriente, assim marcando o fim da Idade Antiga do Bronze e início da Média: no Egito, o fim do Antigo Império e, na Mesopotâmia, o fim da civilização suméria com o declínio da III Dinastia de Ur. A Média Idade do Bronze, por volta de 2000 a 1600, se caracteriza pelo desenvolvimento crítico tomado pelo relacionamento entre os velhos impérios e as populações bárbaras, tanto no Egito quanto na Mesopotâmia, levando às invasões de povos bárbaros pastores que serviam à expansão comercial na fase anterior a que estão associadas a modificações internas muito profundas na organização desses impérios, de que resultará a formação de Estados militarizados na Idade Recente do Bronze, cuja expressão mais alta é a realeza egípcia da XVIII à XX Dinastias. A ampliação da penetração dos povos de velha civilização nas áreas bárbaras está relacionado com esse processo e polarizou a organização de um vasto sistema de comércio a longa distância visando ao abastecimento de metais (estanho e cobre), com toda a Europa tendo grande participação nesse comércio. O Egeu, no decorrer da Média Idade do Bronze, conhece período de instabilização e agitação. Nele, Creta se destaca como centro de atuação civilizatória associada à concentração progressiva de sua população em Cnossos. O desenvolvimento da civilização em Creta é marcado pelo surgimento dos “grandes palácios”, assinalando a forte organização monárquica nela vigente. Essa polarização do desenvolvimento de Creta em função de suas interações na área do Egeu dá-se paralelamente ao período em que ocorrem sucessivas alterações culturais na Grécia central, as quais levaram à fusão dos elementos centro-meridionais com os setentrionais do continente grego. Por volta de 1900, rompe-se a “fronteira” que separava o norte da Grécia da central e meridional. Tróia sofre destruição violenta, dando lugar ao surgimento de Tróia VI. Tróia VI é marcada, ao que entendem certos autores, por um tipo de cerâmica conhecida como “miniana”, que também ocorreria na Grécia central, fato este, entretanto, contestado por outros. Alguns insistem que essa cerâmica, cuja confecção imita a dos artigos de cobre, pressupõe o desenvolvimento de uma civilização que não conhece a indústria dos metais, imitando-os, pois, de áreas vizinhas. Tal seria a civilização dos povos do norte da Grécia durante o Neolítico. Insistem também em que a fusão dos elementos do norte da Grécia com os da Grécia central decorreria de movimento de invasão maciça de povos da primeira sobre a segunda. Já outros autores apontam grandes semelhanças entre a cerâmica miniana e a de origem anatólia. Há traços de ruptura com a civilização do Bronze anterior, cuja arquitetura característica na área do Egeu-Anatólia apresentava um padrão de plantas retangulares, com cômodos, espécie de claustros, dispostos em redor de uma sala central. Os tetos planos em terraço são próprios de regiões secas. Já a nova arquitetura correlacionada com o surgimento da cerâmica miniana apresenta casas “absidais”: arredondamento das extremidades, sinais de postes formando uma linha central, e teto em duas águas. Tipo de construção, pois, correspondente à de “cobertura com palha”, própria de clima frio. Pela evolução deste padrão de casas absidais resultam casas retangulares apoiadas em sistema de estacas que pressupõem tetos do mesmo tipo. Nos dois casos, retangular e absidal, o fogão é localizado no centro da construção, num tipo primitivo de mégaron. Por entenderem que o mégaron pressuporia climas chuvosos, alguns autores supõem que fosse característico junto às populações nórdicas. Assim, pensam também que os templos gregos mais arcaicos, com forte inclinação do telhado, se prestariam ao melhor escoamento da neve. Daí a tese que explica tais mudanças devido a uma invasão de povos setentrionais. A arqueologia da Ásia Menor, entretanto, revela que o mégaron é característico mégaron é padrão característico na Anatólia desde o Bronze Antigo, assim abalando as convicções das teses de um invasionismo nórdico. A Média Idade do Bronze, que se extende até por volta de 1600, conhece sucessivas instalações violentas associadas à nova arquitetura, frequentemente correlacionada com o novo padrão de confecção cerâmica. Na Antiga Idade do Bronze, o sítio de Lerna constitui-se como centro de povoamento que se desenvolve por organização monárquica com concepção de Estado de tipo urbanizado, como o indicia a dita “Casa das Telhas”, cujas proporções assinalam a existência de Estado organizado com recursos próprios. Por fins da Média Idade do Bronze tem-se a destruição da Casa das Telhas, dando lugar ao aparecimento de um túmulo circular do mesmo tipo dos que se desenvolveram em Micenas, cuja riqueza assinala que sejam túmulos reais. Tradicionalmente a historiografia tem interpretado esse processo sucessivo de extensão da arquitetura absidal associada à cerâmica miníana como ativado por série de movimentos invasionistas. Primeiro, por inícios da Média Idade do Bronze (~1900), os jônios identificariam tais povos invasores; a seguir, por volta de 1700, os aqueus e eólios. Em Creta, a destruição dos grandes palácios por volta de 1700, causada por terremotos ao que entende a maioria dos arqueólogos, é também frequentemente atribuída por outros especialistas á uma invasão aquéia. Assim, as grandes alterações de povoamento ocorridas na Grécia da Média Idade do Bronze têm sido compreendidas em termos de uma série de destruições violentas resultantes dessa série de movimentos invasionistas, dando lugar a novas ocupações caracterizadas pela arquitetura absidal com mégaron primitivo associada à cerâmica miniana, e que seriam responsáveis pela conformação dos vários grupos dialetais que conhecemos da Grécia clássica. A arqueologia da Ásia menor, entretanto, revela que os traços culturais assim atribuídos ao fenômeno das invasões ocorrem, todavia, já caracteristicamente naquela área. De modo que, embora se possa admitir alguns contatos violentos sob a forma de grupos invasionistas, há que se pensar antes em termos do rompimento da antiga fronteira num processo de homogeneização cultural das áreas antes individuadas setoralmente. Por volta de 1600, Creta, sob a liderança de Cnossos, exerce marcada influência sobre toda a área do Egeu (ilhas e Grécia continental), a ponto de se pensar em um domínio político cretense sobre o mundo grego. Juntamente com tal presença cretense nas áreas gregas, desenvolve-se um intenso comércio da Grécia com a Europa central, o qual tem como principal foco de interesse a produção de metais centralizada na área do médio Danúbio e também em regiões mais remotas na península ibérica e ilhas britânicas. O âmbar, material precioso valorizado como talismã e que ocorre naturalmente em ricas jazidas na área do Báltico, conhece grande difusão na Europa e Grécia continental, então instaurando-se um grande eixo comercial que liga a área báltica ao Mediterrâneo. No decorrer da Idade Recente do Bronze constata-se um desenvolvimento inesperado em que áreas até então retardadas culturalmente assumem posição de grande iniciativa cultural, fenômeno este que pode estar correlacionado com o processo de formação da língua grega associado à mobilização humana envolvida nesse eixo comércial centrado no âmbar. Dado que grande série de elementos aproxima a língua grega da germânica, da celta e da umbro-sabélica em contraposição às formas mais arcaicas do sistema lingüístico indo-europeu (latim, hitita, indo-ariano), pode-se pensar que aquele fenômeno articulasse interações abrangendo a Grécia central, a civilização apenínica na Itália, populações proto-germânicas na Escandinávia, e povos celtas. A constituição do mosaico de dialetos gregos não se explicaria, portanto, como formas já diferenciadas trazidas de fora para a área da civilização grega por unidades invasoras, antes corresponderiam à propagação dos elementos de civilização da área grega para a Europa setentrional na constituição de elites relacionadas com o comércio de longa distância que moldaram bases populacionais em várias áreas. Há casos em que essas eleites foram absorvidas pela população local, consituindo quase uma regra nas áreas em que a escrita fixava a língua local (área semita, hurrita). Porém, no mundo bárbaro indo-europeu em que a língua não fora fixada pela escrita, o indo-europeu revelou-se a língua apropriada para a fixação dos elementos da cultura oral, iletrada, como língua de caráter sintético de eficiência mnemônica. O florescimento da civilização continental européia estaria assim associado aos fluxos comerciais que articulavam a civilização micênica com a Europa central na Idade Recente do Bronze. * A natureza predadora da economia micênica provê a explicação do porque ela se expandiu rapidamente em paralelo com o declínio da cretense, e também explica como as situações resultantes de sua própria expansão criaram as condições de seu fim. Nos arquivos da realeza hitita (século XIV ªC.), os reis hititas tratam os reis aqueus em pé de igualdade com os suzeranos do Egito e de Mitani. Segue-se fase em que os reis aqueus são vistos com desconfiança e consoantemente desconsiderados pelos hititas, dando lugar a relaçõe stensas entre eles. A Carta de Tawagalawa revela uma relação de intimidade entre as cortes hitita e aquéia, pressupondo o trânsito de elementos de uma para outra. Nela também pode-se perceber graves dificuldades no relacionamento entre os dois poderes no que respeita aos súditos hititas da Ásia Menor, dando lugar a situações conflitivas entre hititas e aqueus. As referências assinaladas nessa carta estão, assim, em plena concordância com o contexto histórico das relações que envolvem a realeza hitita com a egípcia, ambas preocupadas com a fidelidade de seus reis tribais vassalos, preocupações estas registradas no Tratado Egípcio-Hitita. Os anais egípcios de fins do século XIII fazem referência a uma confusa confederação de povos do mar, entre os quais são mencionados os aqueus, mais outros povos identificáveis como vassalos egípcios e hititas alistados dentre os contingentes que combateram em Qadesh (sherdenes). A ação dos povos do mar criou uma situação de anarquia na área do Egeu de sistemáticos efeitos destrutivos. Seu ataque ao Egito, de que a investida por terra fora a responsável pela queda da realeza hitita, deu-se em duas ocasiões, entretanto sendo pelos egípcios em ambas. Os egípcios recorreram à contratação de alguns elementos desses povos do mar: os peleset (filisteus) instalados na Palestina (analogamente aos confederados no Baixo Império romano), cuja realeza gozava da proteção egípcia. O movimento dos povos do mar marca a culminação do processo de indisciplina dessas realezas vassalas que constituiam parte importante da base militar das realezas egípcia e hitita. A queda de Tróia pode ser, portanto, entendida como um dos episódios dentre a série de ações anárquicas desses povos no âmbito egéico. Não há necessidade de se explicar esse fato em termos dos interesses mercantis gregos atuantes na passagem dos estreitos, tese esta abandonada uma vez que não se contataram em Micenas tais núcleos de interesses. A expansão micênica pelo Egeu e Mediterrâneo comportava justo um caráter anárquico e predatório, que não visava à colonização mercantil. Ainda mais, Tróia não controlava realmente os estreitos nem estava preocupada em exercer tal controle. A organização micênica revela uma estrutura militar bem primitiva da qual resultavam formas políticas muito instáveis. Pelos dados arqueológicos pode-se apreender o fundamento de historicidade suposto pelos mitos respeitantes às casas reais de Tebas e da Argólida, as quais teriam sossobrado após a tomada de Tróia (sessenta anos depois no caso da Beócia, oitenta no da Argólida), assim entrando em colapso a civilização micênica. Na tradição grega essa ruína aparece correlacionada com o mito do retorno dos Heráclidas. A crítica historiográfica moderna identifica nesse mito o movimento da invasão dória, que teria origem nórdica associada à movimentação geral dos ilírios no Adriático e traco-frígos na Ásia Menor, atestada para inícios da Idade do Ferro. A metalurgia do ferro era prática corrente no império hitita desde o século XIV, como o revela a correspondência trocada entre os reis hititas e os egípcios. Nela se entende que os hititas detinham o segredo da fabricação do ferro, segredo este talvez, ao que parecem supor certas lendas, associado às tribos da região ao sul do Cáucaso, os cálibes, que eram vassalas dos hititas, cujas técnicas metalúrgicas baseadas na têmpera desse metal dava resultados superiores à do bronze. O segredo da metalurgia do ferro ter-se-ia então propagado entre os hititas, com os filisteus, um dos constituintes dos povos do mar e que aparecem associados aos sherdenes, sendo os introdutores da metalurgia do ferro no sul da Síria. Com a desintegração do sistema imperial hitita terse-ia, por sua vez, propagado em âmbito maior o conhecimento da metalurgia do ferro. A tese histórica que correlaciona a difusão da metalurgia do ferro com a invasão dórica é, entretanto, bastante dúbia, uma vez que não só o surgimento dos primeiros artefatos de ferro Grécia constatado arqueologicamente se dá em época retardada relativamente ao daquele suposto fluxo invasionista, quanto ainda ocorre ele primeiramente na Ática, todavia, pelo que a tradição memorizou, poupada pelas invasões dórias. Pode-se antes entender o golpe mortal sofrido pelas velhas realezas da Idade do Bronze em correlação com a evolução do comércio de longa distância que as supria suas necessidades de materiais. Os velhos impérios estavam baseados em um sistema de realezas mercantís que asseguravam o fornecimento e acesso ás fontes de metais constituintes do bronze por meio do controle de rotas de comércio o qual se mantinha na dependência de vários elementos heterogêneos que sustentavam com seu apoio militar a vigência desse controle. Ao se libertarem do suprimento dos recursos da metalurgia do bronze pela difusão do segredo da metalurgia do ferro, os Estados vassalos afastam-se dos grandes impérios, dando lugar, especialmente no século XII, à rápida liquidação de tais impérios centralizados. Portanto, o surgimento da nova metalurgia do ferro, passível de ser desenvolvida em cada cantão com os recursos econômicos naturais do local, tornou desnecessário que os impérios mantivessem as rotas de comércio a longa distância [nos anos posteriores PC buscava superar essa formulação ...] Constatam-se, para o período imediatamente seguinte, certos aspectos de ruptura relativamente aos modos da civilização micênica, tais como a cessação de atividades edificadoras e a destruição de seus centros de poder. Porém, a pobreza de vida econômica bastante atenuada que então se instaura é suficiente para explicar essas rupturas, não sendo impositivo entender o processo com marcando um fim brusco e pleno da civilização micênica. Assim, o período pós-micênico, que se eextende até por volta de 950 ªC., guarda muitos aspectos presente na civilização anterior, assinalando assim uma sequência de continuidade. A tradição do pensamento histórico grego insistia na idéia de ruptura que a invasão dória marcava, entendendo que as formas posteriores à invasão divergissem opositivamente em relação às pré-dórias. Pelos dados revelados pela arqueologia, entretanto, a percepção de uma descontinuidade entre uma época e outra vem sendo bastante atenuada, podendo-se antes pensar em permanências de formas civilizatória em novos ambientes de atenuação da vida econômica e de sua correspondente compartimentação regional em economias de horizontes mais estreitos. Pode-se similarmente entender a permanência de um análogo tipo de organização social, com a histórias das cidades-estados gregas (póleis) compreendida a partir da civilização micênica. Assim, Jeanmaire, em sua obra Couroi et Courètes, sugere que a formação do Estado espartano pode ser entendida à luz de antecedentes micênicos, de modo que a história social de Esparta não seja necessariamente explicada em termos da superposição de estratos sociais invasores contra os estratos submetidos. A conformação de sedimentação social que caracteriza o Estado espartano se dá posteriormente à invasão dória, imbricada em um processo que culmina com a adoção das formas de infantaria pesada como base militar desse Estado. A invasão dória, portanto, não é a instância histórica responsável pela forma estratificadora que caracteriza a sociedade espartana. Qualquer que seja a importância da movimentação de povos no período préhelênico, não é necessário recorrer à inteligibilidade associada a esse fenômeno para explicar o desenvolvimento histórico ocorrido nesse período. A própria dinâmica interna desse processo já é suficiente. Gaetano de Sanctis pensava que o dialeto dório fosse também um dialeto dos aqueus. As diferenças dialetais gregas são bem pequenas. Portanto, não é necessário atribuir uma importância maior às invasões de grupos étnicos em épocas diferentes portando em si unidades dialetais já formadas, o que suporia, mais do que dialetos, verdadeiras línguas diferentes. O padrão de áreas de convivência de compartimentação regional na Grécia arcaica é suficiente para entendermos o mosaico de diferenças dialetais, sem que haja necessidade de recorrer à determinação ética por invasões de grupos dialetais. O processo de transição da civilização micênica para a da Grécia arcaica comporta uma base de memorização documental nos poemas homéricos. Reagindo contra a tese de que tais poemas constituiam, no seu conjunto, obras de ficção, mesmo que baseadas em lendas antigas, Forrer localizou nos arquivos hititas referências alusivas aos aqueus, que ele entendia como indicações de principados subsidiários, mas que mais atualmente são equacionadas com o próprio reino de Micenas. Também a arqueologia micênica revelou um paralelismo entre os teores referidos em lendas dinásticas e os dados materiais respeitantes às realezas dinásticas da tradição heróica. Uma vertente intelectiva tende a destacar progressivamente a compreensão e fidelidade do fundamento histórico dos poemas homéricos. Assim, por exemplo, pode-se entender o catálogo dos navios da Ilíada como uma espécie de fragmento de memória de época micênica, situada em torno do século XIII. Alguns autores, a assim afirmar a autenticidade de Homero, tendem então a “retocar” as idéias constituintes da invasão dória: dado que os dórios, ao que diz Homero, estavam estabelecidos já em Creta antes de ocuparem o Peloponeso, tais autores explicam essa indicação homérica como assinalando a rota seguida pelos dórios, interpretação esta que, todavia, acusa pontos fracos. Figuras lendárias, como Minos e Teseu, são, por sua vez, tidos atualmente como instâncias de memorização situadas num limiar de historicidade. Teseu, em particular, parece figurar versões de lendas carregadas de informação cultual. Na tradição que caracterizou a figura de Minos como “chefe da talassocracia cretense” pode-se ter uma memorização do império naval minóico de meados do século XIII, quando o sistema de dominação naval cretense se extendeu por regiões do Adriático e Tirreno. Tal extensão imperial ensejaria explicar a reunião de povos marítimos que constituíam os denominados povos do mar: ao lado dos adriáticos e filisteus, também os sherdenes a assim serem identificados com os sardos (Sardenha) e os shekelesh com os sículos. Assim se entenderia que, reunidos na costa líbica, o ponto continental mais próximo de Creta, um grupo de súditos de Minos possa ter-se constituído, quando da dissolução do império minóico, na ameaça para o império egípcio representada pelas notícias dos “povos do mar”. Constata-se paralelamente ao término da civilização micênica uma ruptura nos sistemas de escrita: desaparecimento da tradição de escrita silábica e posterior surgimento da alfabética. Tal ruptura se dá em correspondência com as diferentes características de organização social respectivamente em consonância com as estruturas econômicas vigentes em uma e outra época. A organização social da Idade do Bronze estava centrada pela economia ou do templo ou do palácio, cujas necessidades de controle contábil solicitaram a criação do sistema de escrita silábica. Com o desaparecimento dessa estruturação econômica a escrita silábica tornou-se inútil. É só com o amadurecimento da economia do ferro que o novo sistema promovendo elementos de economia individual criou novas necessidades de escrita de domínio mais simples e “portátil”, a qual não supusesse a presença de um corpo de escribas que a manejasse. A escrita alfabética responde justo a tais requisitos. iii. 18 de março de 1975 O desenvolvimento da cidade-estado em sua forma clássica parte do surgimento de formas fundamentais constituídas no decorrer do período obscuro (aproximadamente de 1100 a 700), pelo que a historiografia mais recente tende a reformular suas idéias sobre o fenômeno histórico da pólis grega nos termos dessa abordagem. Tradicionalmente associava-se a definição da cidade-estado pela existência da acrópole. Ora, nesse período a tendência é justo a do abandono da acrópole que caracterizava a sede palaciana da realeza micênica em locais elevados e fortificados, com os centros de poder deslocando-se para as áreas das aldeias de planície. Assim, uma das formas típicas de cidade-estado, a cidade-estado dórica (espartana), não apresenta uma acrópole como elemento essencial de sua definição e nem sequer se constitui em área de espaço “urbanizado”, antes supondo um agrupamento descontínuo de aldeias. O exemplo de cidade-estado que ensejou essa imagem conceitual que tem na acrópole seu emblema foi Atenas em que a antiga sede palaciana do período micêncio subsistiu associada á cidade de novo estilo. O deslocamento do poder outrora sediado na acrópole para as áreas de planície decorre principalmente do fato de que a base do poder não mais se concentra no sistema econômico do palácio real, passando agora a depender de uma aristocracia militar. Em alguns casos tal aristocracia guerreira encontra base econômica suficiente nas proximidades da antiga acrópole, como é o caso de Atenas, de acrópole próxima à planície do Cefiso. Juntamente com tal evolução tem-se uma tendência generalizada de decadência da realeza, fenômeno este que aparece memorizado nas tradições gregas de contaminação mítica pelas figurações de morte ritual do rei, impossibilitando separar-se as formas de origem ritual dos substratos de tradição histórica. A realeza na antigüidade era concebida como dotada de funcionalidade mágica, um ser eficiente para a devida realização das funções da ordem natural, assim capaz de atualizar forças e poderes ordenadores da natureza, de que resultava, em contrapartida, para o rei a fruição de privilégios econômicos decorrentes da suposta eficácia desses seus poderes mágicos. Ritualmente o rei atualiza sua função mágica por representações que simulam sua morte e ressurreição, assim simbolizando os cíclos da vida agrária. No culto de Osíris ou no de Adonis, o rei encarna e representa ritualmente justo a figura da divindade. Em Homero é dito que o rei Minos renovava seus poderes de nove em nove anos. As tradições gregas frequentemente figuram na emergência da pólis a abolição da realeza, retrato este que, entretanto, não condiz com os fatos da realidade histórica observada, os quais indiretamente apontam a evolução da sociedade levando a um processo gradual de enfraquecimento do poder régio, que, entretanto, em muitas cidades nunca chegou a seu término. A pólis espartana, em especial, supõe a instituição de uma realeza hereditária rígida, com a figura do rei mantendo sempre restos de sua primitiva força como comandante do exército. Na pólis ateniense o rei figura, ao cabo desse processo, como magistrado instituído de mandato anual por uma evolução gradativa de passagem das estruturas da velha realeza de época micênica para o cargo oficial das novas formas políades. O poder real, portanto, representa elemento de continuidade entre a antiga e a nova organização política, e graças a essa continuidade podemos compreender as conexões institucionais que perpassam do período micêncio para o da cidade-estado. Pelo que revelam os tabletes, a realeza de período micênico aparece concentrada em forma de poder palaciano, o qual tem por base uma função redistribuidora especialmente no que respeita à economia dos metais. O rei constitui seu tesouro de reservas econômicas por meio quer de procedimentos de pilhagem guerreira associados a sistemas comerciais de caravanas a seu serviço, quer por meio da cobrança de direitos senhoriais incidentes sobre os rendimentos organizados da produção agrária e artesanal das comunidades integradas em seu reino. A figura do rei polariza a ordenação dos organismos militar, comercial e agrário, assim atuando como centro redistribuidor de suprimentos às camadas guerreiras a seu serviço. Também os poemas homéricos retratam essa relação de subsistência que se instaura entre o rei e seus guerreiros, ali representada em termos dos favores, dos provimentos alimentares, e outras benesses com que o rei gratifica seus comandados e que configuram uma espécie de pensionato por que a realeza assegura sua base de poderío militar. Já o grosso da população produtiva aparece situada em função subalterna num tal sistema. Pelos que revelam os tabletes, o elemento agrário se define em uma relação de servidão para com o palácio real. A realeza central detém poderes sobre vários pontos fortificados no reino graças a um sistema de relações pessoais, com os reis locais sujeitos relações de vassalagem para com o rei principal, que são de alcance muito variado e diferindo consoante cada caso pessoal, não estando, pois, codificados num sistemas formal de hierarquias como acontece no período europeu medieval. A fase final da Idade do Bronze é marcada pela degenerescência militarizante dessa estruturação comandada pela realeza, ao que indiciam fortemente os tabletes e a arqueologia micênica em termos de ações violentas e destruições. Na cidade-estado grega tem-se a sobrevivência de elementos da instituição real que, entretanto, com a decadência da economia do bronze, tem sua função redistributiva praticamente terminada. Os direitos de senhorio sobre terras e pessoas são transferidas do rei para a nobreza, de base mais ou menos ampla, ao longo do período que se estende do século XII ao VIII, assim marcado pela ascensão social de uma série de famílias aristocráticas que absorvem em maior ou menor grau as antigas prerrogativas e primazias detidas pela realeza. É típico dos Estados dóricos a situação em que a cidade consiste de dois estratos sociais: a massa produtiva em função servil (hilotas, minóitas) e a classe guerreira que monopoliza os direitos de atuação política. As relações entre elas guardam aspectos obscuros, mas tanto em Esparta quanto em Creta não se trata de atribuição individual, mas sim coletiva de servo a senhor, de modo que todos são servos de todos os senhores. As referências antigas respeitantes à participação de cada elemento da classe guerreira na fruição dos bens comuns são muito indecisas, sugerindo que cada guerreiro detivesse lote de terra bem delimitado com os servos estatais nele trabalhando. Porém, a relação de direito coletivo entre senhor e servo se choca contra essa idéia de um lote de terra bem determinado detido pelo guerreiro, especialmente porque a figura do servo aparece vinculada à terra, com cada hilota possuindo residência e trabalho forçado numa localidade. A expressão usada pelos espartanos para referir essa participação de cada guerreiro na fruição da terra trabalhada pelos hilotas era dita archaia moira (quinhão primevo), e não klaros (lote). Cada espartíata não estava limitado apenas à fruição dos direitos da archaia moira, detendo outras propriedades. É questão controversa definir que a classe guerreira possuisse coletivamente a terra trabalhada pela classe servil. Alguns pensam que o klaros representasse a figura idealizada dessa participação enquanto a moira daria o nome institucional desse direito participativo. Os linguistas estabelecem que minóitas refere-se a minos enquanto designativo da realeza cretense, assim entendendo que minóita seja um homem do rei. A figura do minóita estaria, então, na origem da organização da servidão na pólis dórica, quando os poderes da realeza são usurpados pela aristocracia militar, com as terras do domínio real (temenos) passando a patrimônio comum da coletividade guerreira e os produtos de sua exploração sendo distribuidos como instância básica de sua manutenção, definindo-se assim o nexo fundamental entre classe senhorial e classe servil constituivo da pólis dórica. Outro elemento considerado típico na composição das cidades dóricas são os periecos (os que habitam as redondezas), categoria que figura uma espécie de semicidadão, não detendo direitos de atuação política no Estado espartano, mas gozando de autonomia local em seu distrito de estabelecimento, se bem que sob fisclaização de representante da cidade-estado central. Em geral estavam distribuídos pelas áreas mais pobres, montanhas e litoral, marcadas pela exigüidade de terras agrícolas, de modo que os periecos se definem caracteristicamente pela realização de funções artesanais, porém em nível econômico de auto-suficiência agrícola, com os elementos mais destacados da nobreza na cidade-estado detendo propriedades particulares ou domínios pessoais nas terras dos periecos. O modelo espartano de cidade-estado compõe-se, portanto, pela classe cidadã constituída pela elite guerreira dos espartíatas, mais a classe dos servos, e a classe dos periecos que detém direitos civis mas não políticos. Se comparada tal situação constituiva da cidade-estado dórica com a vigente na época da realeza micênica, a diferença fundamental seria apenas marcada pelas ascensão da classe guerreira, que outrora era dependente da figura do rei, mas que agora assume o controle dos domínios reais e a consoante fruição dos direitos sobre eles estabelecidos. Os periecos, por sua vez, guardam a mesma relação de vizinhança respeitante à área dominada anteriormente pela realeza. Consequentemente, não é necessário imaginar-se que a coletividade guerreira dos Estados dóricos seja assim estabelecida em decorrência da vinda de grupos invasores que alterassem ou destruissem os quadros sociais anteriormente vigentes. Trata-se do mesmo tipo de elemento guerreiro que, antes dependente do poder econômico da realeza, passa agora a assumir o controle das melhores terras agrárias antes detidas pelo rei, paralelamente reduzindo ou mesmo anulando seus poderes. A relação de servidão entre o elemento produtivo agrário e a realeza é mantida intata, sendo apenas transferida para o órgão coletivo dos guerreiros: permanece a mesma relação de subalternidade, só que agora a subordinação se dá para com a figura do Estado. Tal inteligibilidade explicativa do processo constitutivo da cidade dórica não implica que não houvessem invasões e mesmo violentas, assim favorecidas pelo contexto de fins da Idade do Bronze. A questão se coloca, entretanto, em termos de que tal processo de substituição da ordem sócio-econômica micênica pela políade não decorre do fenômeno das invasões, explicando-se já pela própria evolução interna do processo. É no âmbito no sistema das técnicas de guerra que se constitui o elemento diferencial fundante dessa passagem para a cidade-estado dórica, com a definição, por volta do século VIII, da tática de combate da falange hoplita. A falange hoplita antecedentes de época micênica, quando a arma de combate fundamental era figurada pelo carro de guerra: já então aparecem tropas auxiliares de lanceiros e seguramente rudimentos de infantaria que valem como tropas de apoio para os grupos de guerreiros de elite. Por volta do século XI a.C. os carros de combate caem de uso, aparecendo a seguir, na virada para o primeiro milênio, as primeiras documentações do emprego do cavalo montado em paralelo sincronismo entre o mundo grego e o assírio. Tal evolução ensejou a que, em fase intermediária até a plena afirmação da tática de falange, os guerreiros montados constituissem elemento importante na ação guerreira, pelo que se pode especialmente retrospectivamente extrapolar do fato de que as formas primevas de aristocracia militar na Grécia arcaica apareçam ligadas ao exercício da cavalaria, Dado que a documentação passa da tática do carro de guerra para a tática da falange, com a montaria na Idade do Bronze figurando antes uma espécie de esporte desprovida de recursos técnicos (arreios, estribo), é antes pela importância social do cavaleiro firmada na época arcaica que se infere, para a fase intermediária a ela antecedente, que o cavaleiro fosse importante na guerra. O enfrentamento por carros de guerra se realiza entre membros da alta aristocracia configurando combates singulares, que apenas contam com o apoio de tropas de cobertura. Trata-se essencialmente de disputas de predomínio entre elementos da aristocracia. Na falta de organização superior que se baseasse nessa disputa individual criou-se modalidade de prática guerreira para forçar aldeia vassala a pagar os direitos a ela imputados. As novas necessidades levam à criação de novos tipos combates armados, em que então a cavalaria montada apresenta eficácia de grande poder no controle sobre áreas mais amplas por um único elemento. Assim, a guerra que se dá agora contra grupos e comunidades enseja mudança em suas táticas de efetivação, levando à descoberta de inpvações técnicas e a alterações na organização social. O processo histórico poder, portanto, ser assim explicado em termos de sua evolução interna, sem que tal exclua a ocorrência de movimentos de invasões. Os organismos da cidade-estado formam-se assim a partir de aglomerações de guerreiros com tendência a expansão ou por meio de sinecismos (alianças entre cidades) ou do domínio de uma sobre outras. Os grandes movimentos de população constituem, portanto, um elemento de complicação nesse quadro histórico, configurando uma tendência para a constituição de organismos políticos em base local e particularista que evoluem para tendências expansionistas e aglomerativas. A simplicidade das estruturas sociais determinadas por essas relações básicas ganham matizes complicadores. Assim, os qualificativos do cidadão espartano revelam diferenças de direito de tratamento grandes, incluindo os espartíatas plenos, que tendem a constituir grupo mais minoritário, e, a seu lado, várias categorias de cidadãos com menores direitos. As famílias privilegiadas – assim os Heráclidas, de sangue real – compõem uma aristocracia que através do controle de posições eletivas mantêm privilégios de fato nunca expressamente reconhecidos. Em Esparta tem-se um pequeno número de famílias representado na Gerúsia. Embora os espartanos proclamassem sua origem dória e por ela baseassem seus privilégios de classe, encontram-se na alta aristocracia espartíata famílias “pré-dóricas” (de época micênica). Assim, os próprios Heráclidas não seriam dórios de origem, mas antes, pela lenda, “aqueus” de Argos. A importância do elemento dórico ganha destaque no século V durante a fase de aguda rivalidade entre Esparta e Atenas, com esta fundamentando seu direito ao domínio naval apresentado como direito sobre os jônios, e aquela sustentando os regimes oligárquicos a proclamar-se como líder das cidades dórias. A penetração dos dórios no Peloponeso, segundo a tradição grega, teria ocorrido oitenta anos após a Guerra de Tróia, datável assim por volta de 1100 ªC, com tal cronologia coincidindo, pois, com os abalos que marcaram o fim da Idade do Bronze. As tradições dizem de três grandes colunas dórias comandadas por três reis. Os estudos modernos, entretanto, apontam razões porque descartam essa tradição lendária. Assim, a entrada dos dórios em Argos precede as respectivas em outros pontos do Peloponeso, e embora a destruição de Micenas coincida com o fim da Idade do Bronze, a doricização não implicou a supressão de Micenas, que se reergue como acrópole de segunda natureza. É só após as Guerras Medas que Argos incorpora Micenas a seu Estado, como resultado final do processo em que os centros de poder baseados nas áreas de planície, assim Argos, suplanta os de pontos elevados, como Micenas. Ainda, a doricização de Argos, cidade já do reino micênico, não implicou em ruptura histórica: o Heraion atesta existência contínua desde meados da Idade do Bronze, por volta de 1725 ªC., até a fase de decadência do mundo grego, constituindo-se como centro de grande atividade religiosa e cultural no período obscuro. Sob sua inspiração elabora-se grande parte das lendas e mitos que retratam a época heróica, tais como as estórias de Héracles, dos Argonautas, as referentes às realezas micênicas. A poesia grega no período arcaico tem em Argos seu ponto de desenvolvimento mais importante, e é através de Argos e Creta, por inícios do século X, que se retoma a técnica da escrita, agora alfabética por empréstimo dos fenícios. O mito de Héracles configura uma oposição entre a figura do herói e a de Hera, dando-se as forças invasoras com identificadas com Héracles, cujo nome mesmo, que significa “honra de Hera”, aparecendo nas histórias sob permanente perseguição movida pela deusa. Tal contradição, que pelas tramas do mito é explicada em termos do “ciúme de Hera”, conforma uma representação do atrito entre elementos invasores contra continuidade da antiga cultura figurada por Hera. Também a evolução da arte cerâmica através do sub-micênico revela continuidade, sem bruscas rupturas, com tendência a uma progressiva estilização da ornamentação de que promove finalmente, na sua forma mais acentuada, o estilo geométrico, Assim, a renovação do estilo cerâmico não é um produto da cultura dos novos invasores. Ao tempo em que se dá a doricização de Argos, o resto do Peloponeso conhece um longo período de obscura transformação. A tradição referente à conquista da Messênia é frequentemente rejeitada pela crítica moderna que acusa seu caráter de lenda incosistente. A Messênia configura uma realidade histórica que não se enquadra plenamente no esquema típico do Estado dório, dado que nela a relação entre a aristocracia militar e os elementos agrários é mais branda do que o característico dos outros Estados dórios. Desse modo, a ruína da monarquia de Pilos não implicou a formação de uma aristocracia com poderes rigidamente definidos, aspecto este que talvez explique a razão histórica de ter sido a Messênia uma presa fácil para a expansão do Estado espartano. Paralelamente à invasão dórica, e mesmo com alguma antecedência, ocorre a penetração dos tessálios e beócios na Grécia central, dando lugar a um tipo de estruturação social semelhante ao dos Estados dórios, marcada pela sedimentação da sociedade entre classe guerreira que assume o domínio dos meios de produção e a classe agrária. Na Beócia os antigos centros fortificados de acrópole são sobrepujados pelas cidades agrárias de planície, sem implicar a destruição daqueles antigos centros. Assim, na Cadméia tem-se a acrópole fortificada que, mais tarde, se confundirá com Tebas. Orcomenos, dado pelas tradições como um antigo centro da Idade do Bronze, apenas perde sua capacidade de irradiação cultural e econômica. Já na Tessália, os reis praticamente se confundem com a aristocracia turbulenta. Nessa época se dá também a alteração no quadro de povoamento do Egeu, com a migração para as costas da Ásia Menor. Os gregos, particularmente as tradições referidas por Pausânias, caracterizavam essas migrações como constituídas por movimentos rápidos, de grandes levas, consequentes às Invasões Dórias, compostas, primeiro, pelas fugas dos jônios do norte do Peloponeso, mais eólios e depois também dórios. Pelo que revelam os dados arqueológicos, a colonização das costas jônias e eólicas da Ásia Menor se dá de forma contínua desde a Média Idade do Bronze. Assim, Mileto está já habitada desde por volta de 1400 ªC.. Pelo período final da Idade do bronze, tem-se uma intensificação dos movimentos migratórios para a Jônia, que teria sido antecedida, no entendimento de alguns autores, pela concentração intermediária na Ática atestada arqueologicamente. O processo migratório não se dá propriamente como movimentos de massas a curto prazo. A intensificação das migrações no decorrer do século X está associada a um processo mais amplo de reordenação do povoamento da Ásia Menor e norte da Síria voltado para o reestabelecimento de velhas rotas da Idade do Bronze que haviam sido interrompidas com a queda do reino hitita. Os frígios organizam-se como Estado intermediário entre os Estados das costas da Ásia menor e a os da alta Síria. Já na região armênia, Urartu se apresta para esse mesmo papel intermediário, associado ao renascimento do império assírio após a invasão aramaica que havia reduzido a nada as formas do antigo império. A idéia de que a Ática tenha ficado incólume diante dessas grandes transformações ocorridas na área do Egeu é apenas aparente. Pelo contrário, em Atenas tem-se somente um retardamento desse processo evolutivo, o qual possibilitou que a influência do comércio renascente tenha apoiado e incentivado a emergências de novas soluções abertas e consumadas pela obra de Sólon. iv. A Formação da Cidade-Estado na Época Arcaica: Esparta e Atenas 1 de abril de 1974 A instituição das cidades dóricas não precisa ser explicada em termos de um processo invasionista dório, ganhando plena inteligibilidade histórica pensando-se a permanência das relações que permeavam as estruturas agrárias da época micênica. O desaparecimento da economia de palácio da Idade do Bronze e a sua substituição por uma economia natural baseada nos recursos agrários locais ensejou o deslocamento dos centros de força dos palácios para as áreas de planície, assim marcado, na Argólida, pela decadência de Micenas e Tirinto contra a ascensão de Argos. O caso de Atenas apresenta uma ligeira variante em relação a Esparta, e é justamente por seu desenvolvimento mercantil o processo histórico daquela cidade arcaica se diferencia do modelo espartano. Na constituição da cidade espartana caracteriza-se pela existência de um núcelo de cidaddãos que detém a exclusividade dos direitos de atuação política, e cuja subsistência é baseada no trabalho de classe de definição servil. Já os periecos constituem população com direito civil, porém sem autodeterminação política. Esparta é originariamente composta por cinco aldeamentos que reúnem os cidadãos espartíatas. Já a Lacedemônia denomina o território todo, englobando Esparta mais áreas de periecos, marcando a herança da velha realeza micênica. Assim, a ascensão da cidade-estado espartana se dá em detrimento da antiga realeza. As tradições gregas sobre a origem de Esparta figuram-na como uma comunidade de indivíduos livres, e que só em época, não muito bem determinada, veio a adotar o tipo de constituição dórica a partir das reformas de Licurgo. A historicidade de Licurgo, entretanto, é duvidosa, tratando-se antes de figura de caráter ou lendário ou mítico. É no século V que tem início a formação de tradições lendárias a seu respeito. Já nas referências mais antigas que são feitas de Esparta, o nome de Licurgo não aparece. Pelo que registram as tradições, o grupo privilegiado de cidadãos que originariamente formava Esparta sofreu acréscimos no decorrer da época arcaica pela extensão dos direitos espartíatas a outros setores, em decorrência do desenvolvimento da tática de combate baseada nas forças de infantaria, assim forçando a nobreza de cavaleiros a repartir seus privilégios com os grupos de infantes. A Primeira Guerra Messênia, motivada pela necessidade do Estado espartano conquistar mais terras de estatuto servil, supõe já um quadro ampliado de cidadãos ensejando a expansão territorial por necessidade de desafogar a pressão social interna. Assim justamente se constata pelo fato de que essa guerra coincide, tanto cronologicamente quanto pelas tradições memorizadas, com a fundação de Tarento, a única colônia de origem espartana. O corpo de espartíatas está congregado em cinco aldeamentos, cujo ponto de reunião se situa em plena área rural, de modo que Esparta não apresenta características propriamente urbanísticas. A reunião dos cidadãos é denominada apella, sendo convocada pelos reis mais gerontes (“velhos, anciãos”), os quais constituem resquício do antigo conselho de anciãos. Dado que géras significa também dom ou presente honorífico, os gerontes marcam uma definição aristocrática, referindo, pois, anciães de certas linhagens da sociedade espartana. O colegiado de 28 gerontes mais os 2 reis compõe a Gerousia. As tradições antigas fazem referências a uma reforma que teria modificado uma primitiva situação supostamente mais democrática nas relações existentes entre a Gerousia e a apella. Trata-se do que os antigos chamavam de Grande Retra, lei formulada por pronunciamento oracular, mas que constituem antes reproduções de encomendas dos solicitantes do oráculo. O texto apresenta um caráter compósito em que o sentido disposto na primeira redação é alterado por uma intercalação de frase posterior, a qual dizia que ‘se opovo se manifestasse tortuosamente, os gerontes interromperiam a sessão’. Daí a idéia de que com essa reforma ter-se-iam limitado os direitos de decisão da assembléia popular, mais amplos anteriormente. Ora, as assembléias de guerreiros dos povos arcaicos se constituem apenas para que os mesmos recebam ordens de comando, não tendo, pois, funções deliberativas. Assim sendo, não há razões para se pensar em uma fase primitiva mais democrática da apella, com a disposição da Grande Retra apenas provendo somente uma correção contra as veleidades da apella. A função do rei no Estado espartano carcateriza-se como uma limitação dos poderes da realeza de época homérica, porém, mesmo assim, ainda dotados de poderes singularmente bem amplos, ao passo que em outras cidades aristocráticas a realeza foi quase que completamente neutralizada. O rei espartano detém o comando militar, não sofrendo limitações quando em campanha; conserva funções sacerdotais; possui domínios particulares nas terras dos periecos; e é distinguido honroificamente com ‘a dupla porção” (reminiscência do período de economia natural) Para a limitação do poder real instituiu-se em Esparta a magistratura do eforato. Nos formalismos de ordem ritual preservados pelo Estado espartano para o exercício das funções públicas, um distinguia a troca de juramentos prestados pelos reis e éforos por ocasião da lua nova, com aqueles se comprometendo perante estes a cumprir as leis. Uma parte da historiografia moderna entende o eforato como a inserção de um elemento democrático no Estado espartano, configurando uma espécie de representantes populares com os cinco éforos correspondendo aos cinco aldeamentos, de modo a assimilar o éforo à imagem do tribuno da plebe em Roma. Já outra vertente historiográfica vê no eforato antes uma manifestação aristocrática em harmonia com a Gerousia. O rigor da estratificação social que o esquema das cidades dórias pressupõe não impediu o florescimento cultural ao longo dos séculos VIII e VII, tanto no Peloponeso quanto em Creta. Em Esparta, a arte sofre, entretanto, uma brusca interrupção no decorrer do século VI, assim atestada arqueologicamente com o desaparecimentos de seus objetos de arte após meados do século. Tal crise no desenvolvimento da cultura espartana está associada ao arroxamento das condições políticas em Esparta, quando a disciplina militar característica da vida quotidiana se intensifica e plenifica justo por essa época. Na tradição tal fato é correlacionado em particular com o éforo Quílon e, em termos mais gerais, com as dificuldades enfrentadas pelo Estado espartano na II Guerra Messênia, com a sublevação dos messênios conluiando várias cidades do Peloponeso e instaurando uma crise em Esparta. A inovação que a tradição atribui a Quílon não é exclusiva de Esparta, antes ocorre generalizadamente no decorrer do século VI na Grécia, quando se firma a primazia da tática de combate baseada na infantaria finalizada com a falange hoplita. Paralelamente, o pitagorismo pode ser entendido como a projeção em nível elevado de uma tendência social de mesmo tipo, configurando mentalidade ascética e coletivista que se opõe a qualquer tipo de abertura social. É então que os privilégios da coletividade de espartíatas são afirmados ao máximo, ao mesmo tempo em que praticamente tende-se a negar e mesmo suprimir os direitos do indivíduo, assim dando lugar a um coletivismo extremado, de que os éforos, no decorrer da história espartana, aparecem sistematicamente como os agentes defensores. É essa configuração de coletivismo extremado que, desde o século V, é vista na Grécia como um modelo perfeito de Estado, com a coletividade assim rigidamente aparelhada e destinada à defesa do Estado. A evolução do sistema, entretanto, revela uma rápida redução numérica da coletividade espartíata que se transforma em simples oligarquia: estima-se que no século III não haviam mais do que por volta de 900 cidadãos espartanos. A ética coletivista que nega o direito individual viu-se acompanhada pelo desistímulo da vida familiar, estagnando o crescimento das famílias, e acentuando os fatores de crise interna, pois o núcleo aristocrático concentrado em torno da Gerousia tem seus privilégios ampliados em conexão com os processos de concentração de propriedades por meio da figura de mulheres herdeiras que canalizavam boa parte das propriedades privadas. A educação espartana está voltada para a preparação da cidadania, com adestramento especialmente na arte militar, dos 7 aos 30 anos. As fontes antigas confrontam óticas tanto pró como contra Esparta. Especialmente são destacadas as figuras dos grandes comandantes. A cultura é predominantemente de tipo oral. A Educação de Ciro escrita por Xenofonte retrata aproximadamente os ideais dessa educação. A Formação do Estado Ateniense O Estado da Ática comporta uma dimensão territorial singular, abrangendo cerca de dois mil quilometros quadrados, o que é excepcional em termos de cidades-estados gregas. Também singularmente as tradições lendárias não memorizaram notícias de invasões de seu território que marcassem uma ruptura com o período anterior da civilização micênica. Pelo contrário, os atenienses diziam-se autóctones, assim certamente representados com intenções polemizantes em relação aos espartanos vistos como invasores dórios. A historiografia moderna entende, entretanto, a formação da população da Ática por um processo de invasão jônia. A Ática comporta em comum com as cidades de identidade jônia um sistema de divisão tribal em quatro unidades e que constituiu sua base de organização política até as reformas de Clístenes em fins do século VI, com a única diferença de que uma ou outra cidade jônia por vezes acresce uma tribo de elementos locais incorporados à cidade. Os nomes das quatro tribos correspondem aos nomes dos quatro filhos de Íon na tradição ateniense. Plutarco, na Vida de Sólon, os refere come identificando antes quatro grupos ocupacionais, todavia, as etimologias em que seu relato se baseiam são equivocadas, acertando apenas a que vincula hopleteshoplitas (ainda assim, hoples no sentido de armamento é de desenvolvimento tardio, não sendo atestado em Homero). No artigo de Ramsay (Pisidian wolf-priests and Phrygian goat-priests and Old Ionian Tribes, Journal of Hellenic Studies) acusam-se os erros da etimologia plutarquiana, porém acolhe-se sua idéia básica, uma vez que os povos não gregos da Ásia Menor, com traços da mesma divisão tribal jônia e cujos nomes de tribos têm correspondência com termos gregos. Por essas correlações, a tribo dos geleontes são definidos entre os povos não gregos pelo exercício da função real, conhecendo-se uma inscrição na Ática em que é nomeado Zeus Geleon; os aigicoreis, aproximado de dióscuros, respeitam aos jovens guerreiros (portadores) de égide, designativo do escudo de Atena; argadeis marca uma referência a argos (campo arado); e hopletes, cujo sentido primitivo refere-se a objeto artesanal. Ter-se-ia então: a tribo real associada a Zeus, a tribo aristocrática mais sacerdotes associada a Atenas, a tribo dos agricultores e a tribo dos artítices. Por sua vez, Jeanmaire refere uma antiga tradição da Ática que associava as quatro tribos com quatro divindades: Dias, Athenai, Posidones, Hephaistos. No período histórico, entretanto, desaparece qualquer traço de diferenciação por qualificação profissional entre as quatro tribos, o que, por sua vez, não implica que elas não tivessem suas origens como grupos funcionais, mas certamente atestando sua total absorção pela função militar. No sistema de divisão tribal ateniense a relação entre as tribos e as frátrias são algo obscuras, especialmente porque a principal fonte documental sobre a primitiva constituição da Ática, A Constituição de Atenas de Aristóteles, chegou até nós desprovida do texto dos primeiros capítulos, de que restam apenas poucos fragmentos em lexicógrafos de época alexandrina. Por estes fragmentos se diz que cada tribo dividia-se em 3 frátrias, o que constitui informe um tanto estranho, pois, nos lexicógrafos a frátria e identificada à trithys, ao passo que Aristóteles mesmo refere-se separadamente a uma e a outra, dando a tritía como terça parte da tribo. Boa parte da documentação antiga em que a historiografia moderna baseia suas considerações acerca das frátrias da Ática respeita a textos do século IV, quando, com o desenvolvimento da apropriação mercantilista do solo, criam-se condições de direito acirradas, particularmente ensejando o maior desenvolvimento da oratória judicial grega, cuja temáticas frequentemente fazem referências às frátrias. Também do século IV data a inscrição da frátria dos Demotionidas. Por essa documentação constata-se uma renovação da funcionalidade institucional da frátria em conexão com essas novas necessidades históricas. Pelo que indiciam os textos homéricos, entretanto, a frátria e a tribo configuramse como unidades de organização militar correlatas já para a época micênica. Assim, ao que apontam os conselhos dados por Nestor no Canto II da Ilíada, o exército é ordenado respeitando a composição em tribos e frátrias. Ainda pelo que revela o dito de Nestor, a frátria se define como instância de qualificação civil para o indivíduo, de modo que se nomeia a figura dos “desgarrados sociais” como afratoi (“os sem frátria”). Similarmente, as tradições respeitantes ao mito de Íon na Ática confirmam essa definição militar associada à divisão tribal, pois, diz-se que Íon veio para a Ática para exercer o comando das forças do país, sendo, assim, seu primeiro polemarca. Também a instituição do culto de Apolo Patroon, enquanto modalidade de culto comum a todas as frátrias, era atribuída, ao que afirmam as tradições, a Íon. Todos esses informes apontam, portanto, claramente uma correlação existente entre a ordenação da função militar e a divisão da população em tribos e frátrias. Com a desagregação da economia da Idade do Bronze, a organização militar baseada na divisão em tribos e frátrias com sua centralização nos palácios fortificados entra também em decadência, com as áreas agrícolas tornando-se agora as bases do poder. Em conexão com esse fenômeno tem-se a formação da divisão regional característica da Ática em três regiões – pédion (planície), parália (praia) e diácria (montanha; antes região montanhosa, cujo centro na Ática é a planície de Maratona, cujas terras agrárias ensejam sua definição como centro de poder) - substitui, então, a anterior ordenação configurada pelos doze núcleos fortificados de época micênica. A divisão regional da Ática se constitui então como nova base para a ordenação da divisão em tribos e trítias, esta sendo definida como a terça parte de uma tribo em cada uma das três regiões. A cada tribo se refere, pois, uma participação em cada uma das três regiões, de modo que a divisão em tribos afetasse cada pequena localidade da Ática. As frátrias é que estavam divididas em tribos, ao contrário do que dizem as tradições de época tardia: elas não são divisões das tribos, e sim estas é que são divisões daquelas. Cada frátria estava, pois, dividida em quatro tribos. Dado que são doze frátrias, cada uma dividida em quatro tribos, têm-se quarenta e oito unidade definidas como naucrarias. O caráter militar das tribos e das frátrias aparece, então, igualmente nas naucrarias, já que estas definem a circunscrição local de provimento de forças guerreiras (um navio, dois cavalos, tributos e infantes). Assim se estabelece uma relação precisa entre a antiga divisão da Ática em doze frátrias (correspondente aos doze pontos fortificados de época micênica) e a recente divisão em trítias (correspondente à recente divisão regional tríplice), com a parte de cada tribo numa frátria constituindo uma naucraria. O surgimento das trítias se dá, pois, em consequência da divisão regional, com cada trítia reunindo as quatro naucrarias de uma tribo numa determinada região, de modo que cada tribo se divide em três trítias (uma trítia para cada uma das três regiões), e cada uma das trítias comporta as quatro naucrarias correspondentes a cada tribo. A cada tribo corresponde um rei da tribo (phylobasileus), consituindo, pois, quatro reis de tribo, os quais têm sob seu comando os cfefes de naucraria. Não se têm notícias que possam precisar em que data surgiram os doze reis de tribo. As tradições “míticas” da Ática dizem que doze reinos foram unificados por Teseu, assim firmando a instituição conhecida pelo nome de sinecismo, por cuja festividade ritual posteriormente se celebrava a unificação da Ática. O que daria uma data plausível para a instituição dos reis de tribo. A supressão dos centros de poder fortificado local pelos centros de poder sediados nas regiões constituem o elemento mais importante da formação do Estado ático na época arcaica. Especialmente os ocupantes do pédion provêm diretamente do séquito armado real, assim definindo os denominados eupátridas. Um fragmento de Filocoro diz que os eupátridas eram os que tinham sido criados junto às famílias reais. O fato de os eupátridas serem tidos como exclusivos da planície não implica, entretanto, quas outras duas classes de cidadãos (os georgoi e os demiourgoi) sejam próprias da soutras duas regiões, pois também nestas tem-se a formação de uma aristocracia paralela à dos eupátridas, configurando-se, assim, uma série de grandes famílias que proclamam pretensões de parentesco remoto ilustre, quer com os grandes reis heróicos da Ática quer mesmo com os deuses. As lutas sociais que ocorrem na Ática no decorrer do período arcaico são lutas que envolvem as três regiões. Uma das tradições respeitantes a essas lutas diz do golpe de força com que Cílon, um eupátrida apoiado militarmente por seu sogro Teágenes (tirano de Mégara), empreendeu a ocupação da Acrópóle de Atenas, tentativa, entretanto, frustrada pelo cerco que lhe foi movido pelas forças atenienses congregadas em torno do arconte Megacles, de família Alcmeônida sediada na parália. A repressão que se seguiu levando ao massacre dos Cilonidas provocou, entretanto, uma reação contra os Alcmeônidas, dando lugar a seu julgamento por uma corte de trezentos membros, então escolhidos por critério de nobreza (aristínden), por cuja sentença decretou-se o banimento e exílio dos Alcmeônidas por acusação de sacrilégio contra as divindades. Tal episódio marca o princípio de uma longa rivalidade entre os elementos aristocráticos da parália, liderados pelos Alcmeônidas, e os elementos aristocráticos do pédion, comandados pelos eupátridas. Justamente o caráter do golpe militar de Cílon se revela por ter sua base de apoio nos elementos da planície, assim reiterado pelo critério de escolha por nobreza (aristínden) do tribunal de trezentos componentes (escolha entre eupátridas). Teágenes, o sogro de Cílon, aparece nas tradições como o “tirano” que particularmente promoveu os interesses do “povo” de Mégara. Deve-se entender tal denominação como indicativa do grupo de guerreiros da planície semelhante ao dos eupátridas na Ática. Teógnis de Mégara figura elemento da aristocracia militar que propugna uma espécie de companheirismo igualitário no seio da casta guerreira, contra cuja “tirania” se revoltam os elementos mais ricos de Mégara levando à supressão da tirania. Trata-se, pois, também no caso de Teógnis da classe guerreira de privilegiamento aristocrático, de modo que Cílon intentou reproduzir na Ática o tipo de golpe militar exitoso de seu sogro em Mégara. Porém, na Ática o elemento mercantil constituia base de poder importante desde o século X, o qual resistiu à pretensão de domínio exclusivo por parte dos eupátridas, o que, pelo contrário, não ocorreu no Peloponeso e Lacedemônia que conheceu fraco desenvolvimento do setor mercantil. Sólon surge precisamente nesse momento de grande luta entre “o povo” e “os ricos”. O sol radiante despontava no horizonte despertando o dia. A matinal claridade dourada ilumina o templo de Apolo em Delfos, pelo brilho avivando as cenas gloriosas que o adornam. O consulente oracular que lá chega as atenta maravilhado: Héracles por foice dourada a degolar a Hidra de Lerna; Belerofonte montado no Pégaso a liquidar Quimera de tríplice corpo; batalha dos Gigantes por Pallas a brandir a égide contra Encelado, mais o raio de Zeus que fulmina o feroz Mimas, e ainda Dioniso com tirsos de hera a abater um outro.1 Ali logo cedo se vê um jovem servidor do templo a limpar as entradas de Febo com ramos de louro, adornando-as com solenes grinaldas. Borrifa o chão com gotas de água viva, fonte Castália. Varre o altar do deus, tudo purifica e torna reluzente. Afasta, afugenta todas as aves de vôos altaneiros, pretensiosas por pousar nas cornijas e telhados adornados de ouro. Zelos primorosos movem incansavel executante de auspiciosas tarefas dedicadas ao deus.2 Eternamente grato, o templo era toda sua sua vida. Fora ali, naquelas mesmas entradas, abandonado recém nascido. "Desconhecidos" quem fossem pai e mãe! A sacerdotisa o recolhera. Ao abrigo do sacro recinto fora criado. Tudo devia ao templo de Apolo. O deus lhe valia por pai, a sacerdotisa por mãe.3 Uma mulher de lá se aproxima, toda nobreza transparente de figura e aspectos. Lágrimas correm-lhe as faces, olhos semicerrados. O jovem inquire o porque da tristeza, que angústia a aflige? Ela esclarece: presenças apolíneas reavivam-lhe memória de antigo infortúnio.4 Pouco revela a respeito, apenas deixando escapar, atormentada pela lembrança associada ao antro sagrado de Apolo nas encostas setentrionais da acrópole rochosa de Atenas (grutas chamadas "Longas": Makrai), uma alusão a uma coisa vergonhosa ali ocorrida. Pelo que deplora a condição feminina: "Ó pobres mulheres! Ó ultraje dos deuses! Que havemos de fazer? Onde é que iremos buscar justiça, se somos destruídos pelas injustiças daqueles a que estamos submetidos"?5 Mais não diz, se cala. Quem era? De que terra vinha? Por qual estirpe nascera? Ela mesma o diz: "O meu nome é Creúsa: nasci de "Erecteu/Erictônio, gerado da terra, recolhido por Atena e dado para criar às filhas de Cécrops (Agláurides), e minha terra pátria é a cidade dos Atenienses". Prestigiosa proveniência por cidade ilustre e nobres pais. Xuto, nascido de Éolo, filho de Zeus, a desposara. Ele a acompanhava na visita a Delfos. Lá vinham consultar o deus inquietos por causa de falta de descendência, longo casamento estéril, nada de filhos! 6 Ao ensejo dessa visita, Creúsa intermediava outra inquirição a pedido de uma amiga. Respeitava à história vergonhosa antes aludida. Essa amiga unira-se, justo naquelas grutas escondidas do sol, a Febo parindo um filho, segredo que só ela conhecia. A ocultar a desonra perante os homens de uma donzela violentada, ultraje de núpcias amargas, expusera a criança como presa para as aves e alimento sangrento das feras. Talvez estivesse morta, pois lá retornando várias vezes, eis que a criança desaparecera, sem deixar vestígio algum, nem uma gota de sangue. Assim, inquiria o deus porque deslindasse o mistério desse desaparecimento, que paradeiro tivera o menino? Se ainda vivo, teria aproximadamente a mesma idade do jovem Lóxias. Histórias de filhos enjeitados ao nascer porque comungavam solidários sofrimentos a 1 Eurípides, Íon 83- 87, 184-217. Eurípides, Íon 78-82 e 102-183. 3 Eurípides, Íon: 34-52, 77-80, 102-151, 308-325, 684. 4 Eurípides, Íon 238-247. 5 Eurípides, Íon 253-254. 6 Eurípides, Íon: 65-67 e 513. 2 mãe daquela criança de outrora e o jovem sobrevivente em Delfos, agora servo de Apolo7. Entrementes, eis que chega ao templo de Febo também Xuto. Vinha confiante, já algo alegre pela primeira revelação por palavras do oráculo Trofônio garantindo-lhe que o casal régio de Atenas "não voltaria do santuário para casa sem filhos"! 8 Então, já consumados todos os ritos e gestos propiciatórios mais augúrios para que a raça antiga de Erecteu obtivesse claros oráculos da bela descendência há tanto tempo desejada 9, Xuto adentra o templo a ouvir a verdade sagrada que a Pítia pronunciasse, na trípode soleníssima sentada a cantar, para os Helenos, os gritos proféticos que, com inspiração estrondosa, Apolo fizesse ressoar10. Quando de lá sai, depara o jovem servo, precipita-se sobre ele esfuziante de alegria porque o abraçasse e beijasse como criatura que lhe fosse a mais cara e amada de todas. O jovem recua espantado, confuso ao ver-se se frente à investida ou de louco delirante ou de estrangeiro de grosseiros desvairios. Espanto ainda maior quando Xuto o adverte a que desistisse de repúdios agressivos: "Se me matares, serás o assassino de teu pai". Nesses termos o rei de Atenas traduzia em corolário o oráculo que lhe fora revelado. O entendera perfeitamente, palavras claras e inequívocas com que o deus o instruira: "aquele que estiver no teu caminho ao saires do templo, é esse o teu filho". Confissões de histórias humanas banais persuadem ambos do fato daquela concepção e paternidade: loucuras de amores em tempos de juventude quando Xuto viera a Delfos, então acolhido em noite de embriaguês amorosa junto a Mênades celebrantes de Dioniso. Fora a que ele engravidara quem posteriormente depusera a criança à entrada do templo. Tudo se explicava porque pai e filho se (re)conhecessem.11 E o pai nomeou o filho em consagração daquele encontro: Íon12. Mas a Creúsa a história de todo esse imbroglio não agradou nem um pouco, pelo contrário, enfureceu. Confessou agora a plena veracidade daquela história vergonhosa a que antes aludira escamoteada. Era ela própria quem fora vítima dos amores de Apolo, a ele unida contra a vontade, atrelada em infeliz casamento. O deus a surpreendera quando colhia, entretenimento de virgem inocente, flores de açafrão a tecer grinaldas. Fascínio de aparência sedutora imantado por cabelos cintilantes de dourado. Logo a toma vigorosamente arrastando-a para o leito na gruta, a fruir os prazeres de Cípris. Por pudor, virtude porque mulheres são estimadas, ela ocultara obscuros amores, calara ritos conjugais. Parida a criança, a mãe, apavorada, saiu oculta pela escuridão da noite, e abandonou o menino lá mesmo onde fora presa de união desventurada, a gruta das rochas de Cécrops conhecida por "Longa". Lá o deixara ainda esperançosa de que o Deus, zeloso pai, salvasse o próprio filho. Não, agora se cientificava do destino infausto: deus infame, pai insensível. Desgraçada mãe que dera sepultura a infortunado filho envolto em manto de morte, deixado às feras, levado por aves de rapina. Então reagindo à ruína de uma mãe violentada pelo Deus mais desonra de esposa traída pelo marido, Creúsa canalizou o furor em contrapartida vingativa de seus infortúnios: matar o filho ilegítimo de Xuto, gerado escravo, opróbrio maior que lhe redobrava a desgraça. Tramou astucioso desígnio assassino virtualizando a perda do herói. 7 Eurípides, Íon 289-361 e 494-509. Eurípides, Íon 409. 9 Eurípides, Íon 470-471. 10 Eurípides, Íon 91-93. 11 Eurípides, Íon 516-562. 12 Eurípides, Íon 662-663. 8 Avança agora a concepção euripidiana do mito de Íon a desencadear os rumos do desfecho trágico. Eis que a trama elabora vicissitudes episódicas algo dúbias em termos das conceitualizações aristotélicas, tanto pelos modos inferiores dos reconhecimentos dependentes de objetos indiciadores (no cesto em que fora deposto menino envolto em panos com adornos de serpentes douradas13) e outros recursos da arte14, com direito inclusive a deux ex machina no final, como sobretudo pela deficiência no que respeita à incorreta catarse, dado que o filósofo recomendasse por qual apropriada mudança de fortuna estigmatizante da condição humana em figuração heróica fosse suscitado medo e compaixão (a queda das alturas da grandiosidade próspera para o chão do infortúnio ruinoso), todavia invertida na tragédia de Eurípides que maneja final feliz15. E integra também quais motivos e temas fossem mais ao gosto de histórias romanescas16: desvios conjugais de aventuras amorosas, rancores de cônjuge traído, madrasta vingativa a perseguir enteado, agregado palaciano que agencia cizanias17, astuciosos desígnios assassinos frustrados porque na última hora são denunciados pelo sacrifício de pombinha incauta que bicou o líquido venenoso18. Pelo recurso do deus ex machina que encerra a peça (epifania de Atena ao alto do templo), a inteligência do dramaturgo oferece, por um lado, argumentos persuasivos porque se dissipem quais equívocos, dúvidas ou suspeitas tornassem incrédula a história19. Por outro, celebra a ideologia ateniense que cataliza seu discurso apresentando-a por palavra divina de teor oracular que teleologiza o futuro glorioso da cidade ensejado por essa etiologia jônica de sua origem heróica. Então diz a genealogia prestigiosa porque a cidade principiara por linhagem régia: por Íon que ascendera ao trono de Erecteu em Atenas, nasceriam quatro filhos de um só tronco a nomear a terra e os povos da região distribuídos em tribos. O primeiro será Géleon; depois em segundo lugar virão os hopletes e os Argades e, do nome da minha égide, os Egicores. E filhos que deles nascerão, quando chegar o tempo marcado pelo destino, haverão de estabelecer-se como colonos nas cidades insulares das Ciclades e na terra seca junto ao mar, fato que dará força ao meu país. Depois habitarão, de ambos os lados dos estreitos, as planícies dos dois continentes, da ásia e da Europa. Chamados Jônios, em homenagem ao nome deste, alcançarão a glória. Para ti e para Xuto nascerá uma descendência comum: Doro, a partir de quem será celebrada a cidade dória, na terra de Pélops; o segundo filho, Aqueu, que será reii da terra junto ao mar de Ríon, e, por ter sido nomeado por ele, distinguir-se-á o povo que terá o seu nome.20 Ao enquadrar a representação trágica da história de Íon pela tópica narrativa memorizadora do mito do herói enquanto imaginário figurativo da instituição do poder, o discurso euripidiano acerta (ou concerta) os dilemas e impasses ideológicos intrigados pela projeção da identidade jônia do Estado ateniense. Especialmente porque Creúsa 13 Eurípides, Íon 25-27. Confira-se: Poética 16. 15 Owen [Euripides, 2003: xvii]. 16 Já referido pelos comentários de Owen [Euripides, 2003: 17]. 17 Eurípides, Íon 735-1047. 18 Eurípides, Íon 985-1061 e 1111-1229. 19 Eurípides, Íon 1553-1570. 20 Eurípides, Íon 1575-1594. 14 desposara Xuto, "cidadão não ateniense" (nem jônio propriamente), aninhara-se na ancestral linhagem de Atenas um rei "estrangeiro"21. Por um lado, a concepção euripidiana harmoniza a identidade jônia com a prestigiosa autoctonia ateniense articulando-as genealogicamente em uma mesma linhagem régia que as integra. Pois, de Deucálion e Pirra nasceu Helen, de quem se dava também por pai Zeus. Helen, que reinava na região da Phthia entre os rios Peneus e Asopus, por sua vez unido à ninfa Orseis, gerou Dorus, Xuto e Éolo. Renomeou então os habitantes do país: de Graikoi como eram conhecidos, passaram a ser chamados pelo seu próprio patronímico, Helenos. Dividiram-se entre eles os reinos. Xuto, expulso da Tessália, foi ter em Atenas, e por Creúsa, sua esposa, nasceram Aqueu e Íon, dos quais descendem os Aqueus e os Jônios. Dorus reinou na área do Parnassus e dele descendem os Dórios. Éolo por sua vez reinou pela região da Tessália, de que provêm os Eólios. Assim se memorizava por etiologia mítica os nexos étnicos congregadores dos antigos helênicos em uma entidade cultural diferenciada, constituindo quais fossem suas predominantes identidades afins: jônios, dórios, eólios e aqueus.22 Por Íon, pois, os atenienses derivavam sua pertinência étnica como jônios. Anteriormente, os primevos habitantes da Ática, genericamente referidos por pelasgos, eram qualificados pelos patronímicos dos reis: cranaidas por Cranaus; depois, cecropidas por Cécrops; então foram chamados atenienses, quando do reinado de Erecteu; por fim, desde que Íon os comandara na guerra contra Elêusis, ficaram conhecidos como jônios.23 Desviada pela hierogamia ateniense de Apolo a paternidade alienígena de Íon dado por filho de Xuto então (des)entendida como apenas segredo (dis)simulador de filiação24, Eurípides articula o nexo genealógico que liga Íon, por sua mãe Creúsa filha de Erecteu/Erictônio, a Cécrops no princípio da linhagem, o rei nascido do chão da terra ática semeado pelo esperma divino da ejaculação de Hefesto descartada pela virgem Atena por ele perseguida com intentos de cópula. Identidade jônia, pois, de consequente homogeneidade étnica "autóctone" de que o "povo de Atenas" especialmente se ufanava. E também a (des)qualificação não ateniense de Xuto -- "aqueu filho de Éolo rebento de Zeus", entretanto (patronímico) "colonizador da terra (jônia) da Ásia"25 - era assimilada pela tópica canonizada do padrão em termos de figurações virtuosas que o heroicizavam. Ele viera a Atenas como "aliado em socorro dos descendentes des Cécrops na guerra contra os Calcodôntidas, senhores da Eubéia", e tão primorosamente desempenhara o comando a causar da destruição do inimigo que, por recompensa em "dote de guerra e prêmio de lança", ganhou o trono de Atenas desposando Creúsa.26 A divisão tribal jônia arcaica (proposta por Paulo Pereira de Castro27) 21 Eurípides, Íon 290. Os teores desses dilemas e impasses comparecem na tragédia de Eurípides conformando sua trama ideológica: 22 Apolodoro, Biblioteca 1.7.2-3; Pausanias VII.1.2; Hesíodo, Catálogo das Mulheres 4. Confira-se: Strabo, Geography VIII.7.1, p. 383. 23 Heródoto, Histórias VII.44.2 e 94. 24 "Pois o deus dará a Xuto, quando ele entrar neste templo, o seu próprio filho: dirá que nasceu dele, de modo a que, entrando em casa da mãe, o filho seja reconhecido por Creúsa, o casamento com Lóxias permaneça secreto e o rapaz fique com o que lhe é devido" (Eurípides, Íon 69-73) 25 Eurípides, Íon 75-76. 26 Eurípides, Íon: 57-65, 289-298. 27 Apontamentos anotados na aula de 1 de abril de 1975. Afirmada a pureza da origem heróica de Íon condicionada por paternidade divina apolínea, correspondentemente o mito euripidiano acertava também a glória ateniense de sua obra fundadora. Pois, pelos nomes dos filhos de Íon - Geléon, Aigicoreus, Argades e Hopleis - identificavam-se as quatro tribos - Geleontes, Aigikoreis, Argadeis e Hopletes, também características das cidades jônias28 -, que estruturavam a organização estatal da Ática em tempos arcaicos, vigente até as reformas de Clístenes por fins do século VI29. Plutarco, todavia, anota na Vida de Sólon30 uma tradição em que se dizia que tais denominações tribais tinham por origem não os nomes dos filhos de Íon, sendo antes derivadas das distinções de classes ocupacionais em que a sociedade ateniense estava primordialmente dividida: os Hoplitai comporiam a tribo dos guerreiros (de "hópla": armas); os Ergádeis, a dos artesãos (de "érgon": obra, trabalho); os Geléontes, a dos agricultores (de "ge": terra); os Aigikoreis, a dos pastores (de "aix": cabra). Estrabão31 registra tradição similar: quando Íon se estabeleceu em Atenas, ordenou o regime (politeía) dividindo inicialmente a população em quatro tribos, logo seguindo-se a compratimentação em quatro modos de vida: os agricultores, os artesãos, os sacerdotes e os guardas. Todavia, ao que comenta a crítica moderna, a tradição mencionada por Plutarco apresenta formas nominais para designar as tribos discordantes das comumente atestadas em outros textos, sobretudo ao dar Ergadeis em vez de Argadeis, além de basear-se em etimologias equivocadas. Ambas as tradições têm ainda contra si o fato de que, nas inscrições antigas, as quatro tribos são mencionadas segundo uma ordem fixa (Geleontes, Argadeis, Aigikoreis e Hopletes), a qual não condiz com aquelas identificações ocupacionais em termos de sua escala de prestígio social, pois estariam situando a função guerreira (por elas identificada com a tribo dos Hopletes), altamente estimada e gozando primazia entre os antigos, apenas em último lugar nessa ordem de enunciação. Há que se considerar também a eventual contaminação de tais tradições pelas concepções filosóficas do século IV a.C., as quais teorizavam semelhantes recomendações quanto à segmentação sócio-ocupacional que a constituição da pólis ideal exigiria. Platão32, ao narrar a conversa outrora mantida por Sólon com os sacerdotes de Sais quando de sua viagem ao Egito, e cuja memória fora preservada pela família de Crítias aparentada ao célebre legislador, afirmma que a dissociação dos egípcios em distintas segmentações ocupacionais - sacerdotes, artesãos, pastorescaçadores-agricultores e guerreiros - fora imitada da ordenação social primitivamente existente em Atenas. Paulo Pereira de Castro, ao elaborar sua percepção da história de Atenas na época arcaica de sua fundação estatal, argumenta que33 "no período histórico, entretanto, desaparece qualquer traço de diferenciação por qualificação profissional entre as quatro 28 Atestadas em Mileto, Delos, Teos e Cízico (How e Wells, Heródoto V.66; CAH 1954 v. III: 576 e 584). 29 Heródoto, Histórias V.66. 30 Plutarco, Sólon 23.4. 31 Strabo, Geography VIII.7.3, p. 383. 32 Platão, Timeu 24 e Crítias 110). 33 O longo desenvolvimento dos sete prágrafos que que agora se seguem vai entre aspas a assinalar a transcrição dos dizeres de Paulo Pereira de Castro registrados em nossos apontamentos de aula (1 de abril de 1975). tribos, o que, por sua vez, não implica que elas não tivessem suas origens como grupos funcionais, mas certamente atestando sua total absorção pela função militar. No sistema de divisão tribal ateniense a relação entre as tribos e as frátrias são algo obscuras, especialmente porque a principal fonte documental sobre a primitiva constituição da Ática, A Constituição de Atenas de Aristóteles, chegou até nós desprovida do texto dos primeiros capítulos, de que restam apenas poucos fragmentos em lexicógrafos de época alexandrina. Por estes fragmentos se diz que cada tribo dividia-se em 3 frátrias34, o que constitui informe um tanto estranho, pois, nos lexicógrafos a frátria é identificada à trithys (trítia), ao passo que Aristóteles mesmo refere-se separadamente a uma e a outra, dando a tritía como terça parte da tribo. Boa parte da documentação antiga em que a historiografia moderna baseia suas considerações acerca das frátrias da Ática respeita a textos do século IV, quando, com o desenvolvimento da apropriação mercantilista do solo, criam-se condições de direito acirradas, particularmente ensejando o maior desenvolvimento da oratória judicial grega, cuja temáticas frequentemente fazem referências às frátrias. Também do século IV data a inscrição da frátria dos Demotionidas. Por essa documentação constata-se uma renovação da funcionalidade institucional da frátria em conexão com as novas necessidades históricas. Pelo que indiciam os textos homéricos, entretanto, a frátria e a tribo configuramse como unidades de organização militar correlatas já para a época micênica. Assim, ao que apontam os conselhos dados por Nestor no Canto II da Ilíada35, o exército é ordenado respeitando a composição em tribos e frátrias. Ainda pelo que revela o dito de Nestor, a frátria se define como instância de qualificação civil para o indivíduo, de modo que se nomeia a figura dos “desgarrados sociais” como afratoi (“os sem frátria”)36. Similarmente, as tradições respeitantes ao mito de Íon na Ática confirmam essa definição militar associada à divisão tribal, pois, diz-se que Íon veio para a Ática para exercer o comando das forças do país, sendo, assim, seu primeiro polemarca37. Também a instituição do culto de Apolo Patroon, enquanto modalidade de culto comum 34 "Gennetai: outrora, anteriormente à organização tribal instituída por Clístenes, o povo ateniense estava segmentado em lavradores e artesãos. E havia quatro tribos, e cada uma das tribos compunha-se de três partes chamadas fatrias e trítias; cada uma destas congregava trinta famílias, e cada família possuia trinta homens que tinham sido dispostos para as famílias e eram chamados gennetai. Era dentre as famílias que se sorteavam os sacerdotes correspondentes, como é o caso dos Eumólpidas, dos Cérices e dos Eteobutadas. Assim o relata Aristóteles na Athenaíon Politeía afirmando: eles estavam repartidos em quatro tribos a imitar as estações do ano, e cada uma das triibos estava dividida em três partes a fim de que resultassem no todo doze partes, à semelhança dos meses do ano, as quais eram chamadas fatrias e trítias. Em cada fatria estavam dispostas trinta famílias, à semelhhança dos dias do mês, e a família possuia trinta homens" (Athenaíon Politeía fr 3: Aristótes, 1995: 135-137) 35 "Separa os guerreiros por tribos, por fratrias, Agamêmnon, para que a fratria ajude a fratria, e a tribo a tribo" (Ilíada, II.360-368). 36 " não tem fratria, nem lei, aquele que ama a guerra intestina capaz de gelar de pavor" (Homero, Ilíada IX.63-64). 37 "Em segundo sobreveio a instituição da polemarquia, por causa de alguns basileuus mostrarem-se delicados para os afazeres guerreiros (por isso mesmo, em uma necessidade premente, recorreram a Íon) (Athenaíon Politeía III.2: Aristóteles, 1995: 19). a todas as frátrias, era atribuída, ao que afirmam as tradições, a Íon 38. Todos esses informes apontam, portanto, claramente uma correlação existente entre a ordenação da função militar e a divisão da população em tribos e frátrias. Com a desagregação da economia da Idade do Bronze, a organização militar baseada na divisão em tribos e frátrias com sua centralização nos palácios fortificados entra também em decadência, com as áreas agrícolas tornando-se agora as bases do poder. Em conexão com esse fenômeno tem-se a formação da divisão regional característica da Ática em três regiões – pédion (planície), parália (praia) e diácria (montanha; antes região montanhosa, cujo centro na Ática é a planície de Maratona, cujas terras agrárias ensejam sua definição como centro de poder) - a qual substitui, então, a anterior ordenação configurada pelos doze núcleos fortificados de época micênica. A divisão regional da Ática se constitui como nova base para a ordenação da divisão em tribos e trítias, esta unidade sendo definida como a terça parte de uma tribo em cada uma das três regiões. A cada tribo é referida, pois, uma participação em cada uma das três regiões, de modo que a divisão em tribos afetasse cada pequena localidade da Ática. As frátrias é que estavam divididas em tribos, ao contrário do que dizem as tradições de época tardia: elas não são divisões das tribos, e sim estas é que são divisões daquelas. Cada frátria estava, pois, dividida em quatro tribos. Dado que são doze frátrias, cada uma dividida em quatro tribos, têm-se quarenta e oito unidade definidas como naucrarias. O caráter militar das tribos e das frátrias aparece, então, igualmente nas naucrarias, já que estas definem a circunscrição local de provimento de forças guerreiras (um navio, dois cavalos, tributos e infantes). Assim se estabelece uma relação precisa entre a antiga divisão da Ática em doze frátrias (correspondente aos doze pontos fortificados de época micênica) e a recente divisão em trítias (correspondente à recente divisão regional tríplice), com a parte de cada tribo numa frátria constituindo uma naucraria. O surgimento das trítias se dá, pois, em consequência da divisão regional, com cada trítia reunindo as quatro naucrarias de uma tribo numa determinada região, de modo que cada tribo se divide em três trítias (uma trítia para cada uma das três regiões), e cada uma das trítias comporta as quatro naucrarias correspondentes a cada tribo. A cada tribo corresponde um rei da tribo (phylobasileus), consituindo, pois, quatro reis de tribo, os quais têm sob seu comando os cfefes de naucraria. Não se têm notícias que possam precisar em que data surgiram os doze reis de tribo. As tradições míticas da Ática dizem que doze reinos foram unificados por Teseu, assim firmando a instituição conhecida pelo nome de sinecismo, por cuja festividade ritual posteriormente se celebrava a unificação da Ática. O que daria uma data plausível para a instituição dos reis de tribo". Já uma informação preservada por um lexicógrafo tardio (Póllux39) refere que inicialmente, no reinado de Cécrops, os nomes das tribos eram: Kekropis, Autochthon, 38 "Apolo Patroos (Ancestral), o Pítio. Constitui uma das denminações do deus, o qual tem ainda muitas outras. Os atenienses reverenciam em comum Apolo Patroos desde Íon, pois foii quando do seu estabelecimento na Ática, como afirma Aristóteles, que os atenienses foram chammados de jônios e deram a Apolo o epíteto de Ancestral" (Athenaíon Politeía fr. 1: Aristóteles, 1995: 19). 39 Pollux, VIII.109. Akataia e Paralia; mais tade, no reinado de Canau, foram alterados em Kranais, Atthis, Mesogaia e Diakris; por fim, na época de Erictônio, passaram a Dias, Athenais, Poseidonias e Hefaistias. Por esta última identificação denominadora associavam-se às quatro tribos correspondentes divindades cultuais. compor a tragédia Íon enquadrando-a pelos cânones narrativos do mito de herói Pela tópica das memórias narrativas que motivam a composição do Íon, o discurso euripidiano promove imaginário de representação trágica que reitera a ideologia celebradora da identidade jônia de Atenas. como figuração do poder Pelas motivações mithistóricas que ativam a figuração etiológica da identidade jônia de Atenas ateniense compostas pelo Íon de Eurípides, a ativação do padrão heróico de representação do poder régio A divisão tribal jônia arcaica (por Paulo Pereira de Castro) William Mitchell Ramsay40, baseando-se em dados referentes a povos não gregos da Ásia Menor com traços da mesma divisão tribal jônia e cujas denominações teriam correspondência com termos gregos, ponderou que os Aigikoreis estavam associados na Ática a cerimônias cultuais em honra de Zeus Geleon. Em consonância com esse dado, associou duas outras tribos a duas outras divindades, propondo vincular os Argadeis ao culto de Poseidon e os Hopletes ao de Hefesto. Ter-se-ia, desse modo, na tribo dos Geleontes a primazia régia associada à atividade guerreira, sob a proteção de ZeusGeleon; na tribo dos Aigikoreis a ordem sacerdotal dedicada às atividades cultuais sob a proteção de Atena-Cabra, portadores da égide; na tribo dos Argadeis, a categoria social dedicada às atividades agrárias sob a proteção de Poseidon, primitivamente concebido como divindade ctônica, carater este particularmente lembrado por suas vinculações com os terremotos; e na tribo dos Hopletes, o grupo artesanal sob a proteção de Hefesto. Em precisa concordância, portanto, com as últimas denominações referidas pelo informe lexicográfico de Póllux. Por essas correlações, a tribo dos geleontes são definidos entre os povos não gregos pelo exercício da função real, conhecendo-se uma inscrição na Ática em que é nomeado Zeus Geleon; os aigicoreis, aproximado de dióscuros, respeitam aos jovens guerreiros (portadores) de égide, designativo do escudo de Atena; argadeis marca uma referência a argos (campo arado); e hopletes, cujo sentido primitivo refere-se a objeto artesanal. os aigicoreis, aproximado de dióscuros, respeitam aos jovens guerreiros (portadores) de égide, designativo do escudo de Atena; argadeis marca uma referência a argos (campo arado); e hopletes, cujo sentido primitivo refere-se a objeto artesanal. Ter-se-ia então: a tribo real associada a Zeus, a tribo aristocrática mais sacerdotes associada a Atenas, a tribo dos agricultores e a tribo dos artífices. Por sua vez, Jeanmaire refere uma antiga tradição da Ática que associava as quatro tribos com quatro divindades: Dias, Athenai, Posidones, Hephaistos. No período histórico, entretanto, desaparece qualquer traço de diferenciação por qualificação profissional entre as quatro tribos, o que, por sua vez, não implica que elas não tivessem suas origens como grupos funcionais, mas certamente atestando sua total absorção pela função militar. 40 Ramsay (1920: 197-202). Aristóteles, por notícia recolhida na Athenaíon Politeía41, atribuía ao episódio da vinda guerreira e estabelecimento de Íon com seus comandados em Atenas a origem dessa divisão tribal quádrupla, com a concomitante instituição dos quatro philobasileis (reis tribais) à frente de cada uma delas. A Guerra de Elêusis Pelos cânones de desempenhos retóricos com que os oradores atenienses, por meados do séc. IV, exaltavam os feitos heróicos de seus ancestrais porque proclamassem as mais nobres pretensões hegemônicas de sua cidade no mundo grego por tantas provas quer de virtuosa retidão na defesa dos ideais de piedosa justiça quer de primorosa bravura guerreira em prol da causa comum da liberdade helênica, assinala-se a memória de uma guerra travada contra os trácios, um desses povos bárbaros que, discursivamente associados aos persas e aos citas, eram então por eles estigmatizados por imagens de acendrada natureza despótica tão mais terrível quão aliada a considerável poderío de agressão.42 Tal guerra ocorrera nos primórdios da história da cidade, em tempos heróicos, quando os atenienses eram ainda governados por reis. Era então o reinado de Erecteu na Ática. Figura de ancestralidade mítica que, em par com Cécrope, um seu antecessor, projetava através da linhagem régia o especial reclamo da autoctonia ateniense: ambos seres saidos do chão, paridos da terra fecunda.43 Primeiro Cécrope, de natureza ctônia mais primitiva conformada por composição corpórea dual, hibridismo de figura inferior serpentina com superior humana. Depois, Erecteu, já evoluído por corpo apenas humano44, mas também por princípio com destino régio ainda associado à serpente: nem bem nascido, a Deusa, Atena, o recolhera do regaço térreo, e o encerrara oculto em um cesto, lá bem guardado e defendido por serpente deposta a seu lado. As histórias míticas projetavam, por esses termos míticos, a sagrada identidade política ancestral ateniense lembrando a intervenção da graça de sua especial divindade políade. Mas narrativas míticas que guardavam também a memória de como, além da terra (geratriz), cuidara do herói outra mãe, esta segunda entretanto virgem, de modo a bem resguardar-se o fato mítico da modalidade precípua de seu ser divino! Modo ambíguo de narrar uma diluída memória mítica de gênese do herói por hierogamia procriadora, episódio inaugural de sua história que assinala já um princípio de fundamentação do poder régio. Consoantemente também atribuição de um pai divino do herói, Hefesto, apropriada figura de amante frustrado de uma figura de deusa de virgindade renitente: bem a perseguira ávido de cópula, mas ela furtou seu corpo à penetração do macho, cujo esperma ejaculado desceu suas coxas, terminando esparramado ao chão. Assim 41 Aristóteles, Athenaíon Politeía XLI.2. Isócrates, Panegírico, IV.66-70; Panatenaico, XII.188-198; Platão, Menexeno, 239b; [Demóstenes], Epitáfio, LX.6-8. Confiram-se os comentários de Parker (Myths ... , p. 204) 43 Homero, Ilíada, II.547-9; Eurípides, Íon, 20-6; 267-74; 999-1005; 1427-9 ((verificar)) 44 Parker, Myths ..., p. 193. 42 humedeceu o solo térreo, de que germinou Erecteu.45 E história mítica tanto mais apropriada quanto associava especiais divindades patronas das artes, Atena e Hefesto, como princípios divinos do destino tecnológico-artesanal de Atenas.46 Mas, paralelo ao pai divino, os mitos da realeza heróica memorizam também seu duplo humano, Pandíon, assim complicando e confundindo os enredos míticos pelo acúmulo de figuras régias nas crônicas das listas reais atenienses.47 Então, no reinado de Erecteu em Atenas, sobreveio a Guerra com Elêusis. A memorização narrativa do episódio não explicitou mais detidamente as razões específicas do confronto bélico entre os dois reinos.48 Apenas Isócrates tece vaga alusão a uma reiterada disputa de posse, lembrando associações com o tema mítico do confronto entre Atena e Poseídon, divindades antagônicas a reclamarem o estatuto políade sobre Atenas: diz-se que Eumolpo, dado por filho do deus, viera, no comando das forças de Elêusis, apoderar-se do reino que por direito lhe cabia, pois proclamava a prioridade do título de posse paterna, primeva relativamente à usurpação perpetrada pela deusa.49 Os aspectos privilegiados pela memorização do acontecimento celebravam antes os feitos virtuosos então consumados, a projetarem tanto exemplos da dedicação cívica modelar porque se distinguiam os heróis ancestrais atenienses. Assim já no Erecteu de Eurípides, por volta da penúltima década do séc. V50, canta-se a grandeza de alma e espírito público da família real de Atenas, toda ela concorde a submeter seus interesses e cuidados pessoais ao primado dos ideais públicos que justamente impõem o dever de sacrifício. Erecteu, rei piedoso a zelar o bem de seu país, face à ameaça daquela guerra ruinosa, dirigira consulta ao oráculo inquerindo-o a via da salvação. O deus lhe respondera que a condição de princípio da vitória requeria o sacrifício de uma filha. Praxítea, a rainha, mais a filha então eleita, em harmonia com a deliberação régia, acataram reverentes a ordem divina. Por laços de estreita solidariedade fraterna, as duas outras filhas do rei reiteraram mais honrosos sacrifícios, compartilhando assim a glória do feito.51 Travado o combate, Erecteu matou em duelo Eumolpo. Tal era a tradição consagrada em Atenas a exaltar a obra guerreira de seu rei: junto ao templo de Atena, no plaino entre o Erecteíon e os Propileus, duas grandes estátuas de bronze fixavam a imagem de seu confronto.52 Tradição, entretanto, contestada por Pausânias, que as contemplara lá na Acrópole: tradições melhores, argüiu o erudito viajante, identificavam antes Imarado, filho de Eumolpo, como o opositor morto por Erecteu. Eliminação do adversário maior, ou mesmo de seu filho, feito bélico que bem distinguia a fama heróica de Erecteu em Atenas, a elegê-lo como um dos dez epônimos consagrados pela reforma 45 Apolodoro, Biblioteca, III.14.6 ((verificar)) Parker, Myths ..., p. 194. 47 Apolodoro, Biblioteca, III.15. ((Mármore Pário, 28ss; Eusébio, Crônica; Higino, Fábula 48; Ovídio, Metamorfoses, VI.675)) 48 Tucídides, A Guerra dos Peloponésios e Atenienses, II.15; Apolodoro, Biblioteca, III.15; Pausânias, Descrição da Grécia, I.5; I.27; IX.9. 49 Panatenaico, 193. 50 Para a estimativa de datação e conjecturas de reconstituição do presumível enredo trágico dessa peça perdida de Eurípides, veja-se Parker, Myths ..., pp. 202-3). 51 Eurípides, Íon, 275-8; Licurgo, Contra Leócrates, 98-101; Plutarco, Moralia, 310d; Apolodoro, Biblioteca, III.15. 52 Pausânias, Descrição da Grécia, I.27; Apolodoro, Biblioteca, III.15. 46 da divisão tribal clistênica de fins do séc. VI.53 Mas Eumolpo era filho de Poseídon, e a vingança do deus não se fez tardar: os golpes do tridente marinho alcançaram Erecteu, então tragado pelo solo.54 Distinção, entretanto, de morte do herói por ação divina que justamente o sacraliza: Erecteu é associado cultualmente com aquele deus, com os atenienses dispondo oficialmente um sacerdote de Poseídon Erecteu, e a este ofertando condizentes sacrifícios55 E lá ao local decisivo do combate costumavam conduzir procissões nas Cirofórias, liderados pelo sacerdote de Poseídon Erecteu em par com a sacerdotisa de Atenas Polias.56Memórias de discursos etiológicos que, narrando os episódios da guerra de Erecteu contra Eumolpo, também arrazoam os princípios míticos conformadores da ordem sacra institucional de Atenas. Mas, nessa guerra, a vitória ateniense fora assegurada mormmente pelo concurso do apoio bélico de outra figura, igualmente heróica, da história da realeza na Ática: Íon, a quem os atenienses convocaram para comandar suas tropas naquele empreendimento guerreiro.57 E as tradições que memorizaram mais especialmente este auxílio de poder beligerante externo contam os fatos por outras valorizações respeitantes às virtudes da realeza. compor a tragédia Íon enquadrando-a pelos cânones narrativos do mito de herói Pela tópica das memórias narrativas que motivam a composição do Íon, o discurso euripidiano promove imaginário de representação trágica que reitera a ideologia celebradora da identidade jônia de Atenas. como figuração do poder Pelas motivações mithistóricas que ativam a figuração etiológica da identidade jônia de Atenas ateniense compostas pelo Íon de Eurípides, a ativação do padrão heróico de representação do poder régio por elas identifficadas. ordenação atestada entre os egípcios no que respeita em seus cursos ministrados na década de 1970 propôs uma interpretação da época arcaica da História da Grécia Antiga singularmente original e inovadora, tanto a qualificá-la como uma leitura heterodoxa. 53 Pausânias, Descrição da GréciaI.5. Uma outra tradição, também registrada por Pausânias (Descrição da Grécia, II.14), afirma que a guerra entre Atenas e Elêusis, antes mesmo de ser efetivamente travada no campo de combate, terminara por um tratado, não deixando claro se, entretanto, concluído após o duelo entre Erecteu e Imarado. 54 Eurípides, Íon, 281-2; Apolodoro, Biblioteca, III.15. 55 Hesíquio, s.v. Erechtheús; [Plutarco], Vida dos Dez Oradores, Licurgo, 30. ((verificar)) 56 Burkert, Homo Necans, pp. 143-9. ((verificar)) 57 Pausânias, Descrição da Grécia, I.31; II.14; VII.5