Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos A EXPERIÊNCIA LITERÁRIA NA AULA DE LITERATURA Everson Nicolau de Almeida (UFLA) [email protected] Márcio Rogério de Oliveira Cano (UFLA) [email protected] RESUMO A presente comunicação constitui um relato dos resultados de um projeto desenvolvido na Escola Estadual Dora Matarazzo, no município de Lavras, localizado no sul de Minas Gerais. O referido projeto desenvolveu uma proposta que ensejava a remontagem do espaço das aulas, com o intuito de proporcionar ao sujeito que aprende uma experiência literária que os levassem a momentos de ludicidade e que ao mesmo tempo contribuísse para sua formação crítico-social, por meio da inserção de elementos da análise do discurso de linha francesa, mais especificamente a noção de paratopia, ancorada nos estudos de Maingueneau (1997, 2005, 2006, 2008). A partir do estudo do poema Navio Negreiro (Castro Alves), foi possível incentivar e promover momentos de exploração de diferentes práticas linguísticas (oralidade, leitura e produção textual). Além disso, foi possível trabalhar vários textos em suas modalidades (sons, gestos, imagens, palavras), o que contribuiu efetivamente para a melhoria da expressão dos alunos durante as discussões realizadas em sala de aula. Assim, trabalhando a experiência literária desses sujeitos com as multimodalidades da linguagem, a culminância do projeto desenvolvido rendeu à escola o primeiro lugar no Primeiro Festival da Poesia Encenada (I FEPEN), no ano de 2014, além de uma oportunidade singular de formação crítico-social desses alunos, como leitores de textos literários e cidadãos conscientes do seu papel na sociedade. Palavras-chave: Literatura. Aula. Análise do discurso. Oralidade. Leitura. 1. Introdução A discussão sobre o papel da aula de literatura nas escolas precisa ganhar espaço, pois a necessidade de aproximar o aluno do universo literário é de suma importância no processo de construção de conhecimento. Essa necessidade existe, pois o desenvolvimento do sujeito, por meio da aula de literatura, pode se dar de diversas maneiras, pelas quais podemos criar um processo de interação que possibilite ao aluno uma autêntica experiência literária. Assim, a remontagem dos espaços e das metodologias na abordagem dos conteúdos dessa disciplina podem contribuir para que se estabeleça o protagonismo do sujeito que aprende, colocando-o como agente nesse processo de construção de saberes. Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016 117 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Em muitas instituições de ensino, a aula de literatura se reserva à leitura de textos antigos, que não despertam o interesse dos alunos e além disso, a reprodução sistematizada dos conteúdos aprendidos torna as aulas ainda menos atrativas. Um dos fatores que observamos foi que a carga horária reservada para as aulas de literatura é mínima, pois a professora dispunha de uma aula semanal nos segundos e nos terceiros anos do ensino médio para trabalhar a disciplina. Com base nessa observação, analisamos e discutimos propostas que pudessem ultrapassar a esfera do ensino historicizado e que se aprofundasse em questões da experiência e das sensações, pois a literatura dentro da escola pode contribuir eficazmente para que o desenvolvimento do sujeito que aprende se dê tanto na esfera do conhecimento quanto na sua formação crítica como ser social. (CANO, 2014, p. 4) Um dos problemas enfrentados é a fragmentação dos conteúdos nas escolas, impedindo a interação dos diversos conteúdos e interferindo na relação entre os sujeitos e entre o sujeito e o conteúdo. Nessa perspectiva, a escola acaba primando pelas relações superficiais, deixando de lado a subjetividade e contribuindo para a mecanização do aprendizado. Para que essa situação ganhasse novos rumos, surgiu uma proposta maior de interação entre os conteúdos e de focalização do sujeito, proposta essa que veio de um longo processo de amadurecimento metodológico nas últimas décadas do século passado. Tal proposta de adequação dos conteúdos se ancorou na perspectiva sociointeracionista de Vigotsky (2008), pois a distância entre os sujeitos e o conteúdo se dava por meio de metodologias que empobrecem a capacidade de construção coletiva de conhecimento e proporciona o desenvolvimento do sujeito como agente nesse processo de interação. Com o sujeito no centro do ensino, a intenção é que ele possa passar por diversas situações, para que ele seja capaz de lançar seu olhar sobre o mundo, com base nas suas experiências. Por isso, cabe à escola proporcionar o desenvolvimento do sujeito, por meio de seus conteúdos relacionados e de acordo com as especificidades dos grupos, a fim de formar o cidadão crítico da sociedade em que vive. Diante dessa necessidade de criar condições para o desenvolvimento dos sujeitos, com base nas suas experiências, nos perguntamos sobre qual o papel da aula de literatura para a formação crítico-social dos alunos, por meio de um olhar mais voltado às suas experiências e ao seu contexto social. Parece-nos que aí se encontra uma contribuição rica da literatura na formação do sujeito. Por isso, questionamos: como a modificação do espaço das aulas e 118 Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos a metodologia no ensino podem contribuir para o processo de formação literária crítica do sujeito? 2. Contextualização Por muito tempo, o ensino de literatura esteve atrelado à ideia de leitura de livros clássicos, como método essencial para que os alunos falassem e escrevessem bem. Com isso, a escola se manteve presa aos conteúdos como peças centrais no processo de aprendizagem, por meio de uma leitura completamente direcionada, com um cânone a ser seguido, sem o qual não se poderia interpretar os livros sugeridos. Assim, a chamada ficha de leitura era a responsável por encaminhar a ótica sob a qual o livro deveria ser lido, descartando a experiência subjetiva do sujeito com a leitura. Com a necessidade de se estabelecer um estudo, no ensino médio, que se volte para o vestibular, o ensino da literatura, mais uma vez, perdeu seu foco, sendo reduzido ao estudo das correntes e das tendências literárias de modo sistematizado, por períodos, impossibilitando uma autêntica experiência literária, que proporcione ao aluno momentos de desenvolvimento das suas capacidades sensoriais, por meio da percepção artística e, ao mesmo tempo, que se posicione como sujeito agente no processo de construção do conhecimento. Um outro momento, já no fim do ensino médio, que promove a redução da literatura ao objetivismo é o vestibular. As leituras obrigatórias e a necessidade de perceber as características de época e de estilo nos livros é um agravante na realidade do ensino de literatura na escola, pois não permite um contato lúdico com a leitura. Assim, a necessidade de criação de espaços próprios para o contato lúdico com a literatura, aliada à percepção da importância da experiência literária, é de suma importância no ambiente escolar. Por isso, vale sempre ter em vista que o indivíduo constrói conhecimento, pois participa do seu processo de construção, com toda a bagagem adquirida ao longo de sua existência e, por isso, é também constituído por esse conhecimento. Deste modo, a criatividade do professor de literatura, bem como o seu senso crítico, deve se fazer presente, a fim de que as aulas sejam um lugar de encontro do sujeito consigo mesmo e com as situações que o cercam. Reconhecer a importância do espaço da literatura na constituição Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016 119 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos dos sujeitos é ter em vista o desenvolvimento do aluno por meio da experiência, sabendo que a necessidade de potencializar esse indivíduo é necessária para que o mundo seja percebido não só pelo viés científico, mas também pelos vieses filosófico, transcendental e artístico, colocando-o no lugar, chamado pela análise do discurso de linha francesa de paratópico, ou seja, dos discursos que dão sentido ao mundo. Por isso, a literatura, por fazer parte do leque das artes, possibilita colocar o sujeito nesse lugar, proporcionando uma visão do mundo menos superficial e mais experiencial, interna e subjetiva. (CANO, 2014) Sobre essa necessidade de articular os conhecimentos dos alunos, dialogando com a sua realidade e permitindo a construção conjunta de saberes, os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) dizem que o ensino de língua materna, bem como o de literatura devem ir (...) além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das características de determinado movimento literário. (...) o aluno deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competência que possam ser mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara, na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (BRASIL, 2002, p. 55) Com isso, na tentativa de entender a centralidade do sujeito no ensino, mais especificamente dentro da literatura, faz-se necessária a compreensão de como os sujeitos emergem dentro dos discursos, uma vez que cada lugar discursivo tem o seu modo de ocorrência específico. Para tanto, a prática escolar deve criar certas condições para que a produção possibilite o surgimento desse sujeito nas suas inúmeras atividades dentro do processo de construção do conhecimento. Maingueneau (2008, 2012) aponta para a existência de três lugares discursivos, nos quais se encontram os discursos paratópicos, os tópicos e os atópicos. De acordo com o autor, os discursos atópicos são aqueles que atravessam os diversos campos discursivos, pois se encontram à margem, ou seja, não têm aceitação na sociedade. Já os discursos tópicos são aqueles discursos que têm um território legitimado e podem circular livremente na sociedade. Por último, os discursos paratópicos são aqueles que atravessam os diversos territórios discursivos e têm uma função formadora de opinião, por meio da promoção de sentido diante dos fenômenos da vida e do mundo, ou seja, são discursos que se autoconstituem e se autolegitimam e que são aceitos pela sociedade. Nesse processo de emersão de um hiperenunciador, que é a principal característica dos discursos paratópicos, as instâncias derivadas dessa enunciação proporcionam ao sujeito a atribuição de um sentido à vida, com base na dimensão do absolu120 Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos to, utilizando-se da percepção e da recepção. Por isso, os discursos paratópicos são discursos como o literário, o bíblico, o filosófico e o científico. (MAINGUENEAU, 2008) Neste momento, tomamos somente a noção de discurso paratópico como base para a nossa experiência que se desenvolveu em sala de aula, visto que este é um ponto de suma importância para o desenvolvimento da ideia de experiência literária. Assim, a experiência literária se dá no sujeito e, portanto, é preciso compreender esse sujeito de maneira homogênea, seria descaracterizá-lo e privá-lo da sua subjetividade. Por isso, a noção de heterogeneidade desse sujeito é substancial, pois ele reproduz os diversos discursos do grupo social que ele representa e do lugar que ele ocupa na sociedade. Daí vem a primazia do sujeito no ensino, como agente em meio ao processo de construção do conhecimento, pois, inseridos os processos sociais e históricos, ele está se relacionando integralmente nessa teia de informações, percepções e recepções. Com base nos conceitos apresentados acima, queremos nos concentrar no ensino de literatura, como uma experiência paratópica para o aluno, proporcionando a ele uma experiência em que o sujeito ocupa um lugar que vê o mundo e atribui sentido a ele, para depois refletir e aprender com essa experiência. Por isso, a necessidade de que a experiência vivida por ele abra a possibilidade de encenar papéis distintos e de atribuir diversos sentidos à vida, como forma de participação no processo de construção de saberes e no respeito à subjetividade dos indivíduos. Para que isso ocorra, é preciso trabalhar de acordo com as especificidades dos grupos de estudantes, respeitando seu processo de aprendizagem até ali e, sobretudo, aproveitando essa carga de conhecimento, por meio do diálogo com toda a comunidade escolar. Desse modo, é possível realizar um projeto que envolva a sala de aula, a biblioteca, os espaços externos e as pessoas que fazem a escola. 3. Proposta e aplicação do projeto A fim de inserir no ambiente escolar, mais especificamente nas aulas de literatura, a noção de paratopia e de experiência literária, foi necessário que o diálogo acadêmico se convertesse em prática de ensino. Assim, várias discussões foram realizadas no âmbito do PIBID (Programa Institucional de Iniciação à Docência), como forma de garantir que todo o suporte teórico seria trabalhado em consonância com os PCN. Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016 121 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Respaldando-se na análise do discurso de linha francesa e trabalhando em sintonia com os PCN, o nosso projeto se desenvolveu na Escola Estadual Dora Matarazzo, onde as aulas foram divididas em dois momentos, para que a experiência literária se relacionasse com os fatos e passagens da vida dos alunos, de modo que a literatura não se encontrasse isolada, mas em constante relação com a identidade desses sujeitos. Por isso, em um primeiro momento, aconteceram os encontros na biblioteca, como forma de repensar o espaço que possuímos, fazendo com que esse ambiente seja mais usado pelo próprio aluno, e que ele perca o medo de ir até lá. O intuito de promover essas aulas na biblioteca era diversificar o lugar da aprendizagem, como forma de interação, que abandona a disposição linear e aloca-se em círculos, para que todos se vejam e interajam durante as discussões e trabalhos. Além disso, abrir a biblioteca para que os alunos se percebam nesse lugar, que muitas vezes é sucateado dentro das escolas, como depósito de materiais, de livros didáticos, além de ser uma sala reservada para castigos. Abrir a biblioteca é ao mesmo tempo abrir o espaço do lúdico e do literário, para que esse lugar possibilite a autêntica manifestação dos sujeitos nos processos de experiência e de criação, pois, [...] no microcosmo da sala de aula [...] talvez não sejamos nós, professores, o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, biblioteca de sala de aula, biblioteca escolar, frequência a bibliotecas públicas são algumas das formas para iniciar este circuito. (GERALDI, 1985, p. 87) Nesses encontros, utilizamos textos literários com o auxílio de músicas, vídeos, apresentação de slides e de outras formas de mídia, como forma de chamar a atenção dos estudantes para o mundo a sua volta, mostrando que a literatura dialoga com outras formas de expressão e de arte e que, por ser fruto da produção discursiva e estética, está mais próxima deles. Com isso, foi possível introduzir a noção de paratopia para dentro de suas realidades, possibilitando a leitura crítica do mundo em que vivem, com base nas diversas experiências aliadas à experiência literária. A relação dos textos literários com a realidade em que os alunos estão inseridos proporcionaram debates que, ao longo do tempo, se aperfeiçoaram, no sentido de análise do meio e argumentação sobre as observações realizadas. Exemplificaremos a seguir, com um trecho do poema O Navio Negreiro, de Castro Alves, algumas abordagens que conseguimos fazer com os alunos e explanaremos como a metodologia de ensino de literatura, pautada na centralidade do sujeito e na experiência literária, proporcionou a encenação desse mesmo poema no I FEPEN (Primeiro Festival da Poesia Encenada), promovido pela Academia Lavrense de Letras, no 122 Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos qual a Escola Estadual Dora Matarazzo foi a vencedora, alcançando o primeiro lugar na classificação final. Canto IV (recorte) Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! (ALVES, 1869, p. 3) Uma das reflexões feitas a partir desse trecho do poema de Castro Alves foi a atrocidade cometida contra os africanos, quando, impedidos de sua liberdade, foram trazidos ao Brasil como escravos. As contribuições dos alunos nas conversas sobre o processo de escravização dos africanos e da identidade dos negros no processo de construção da cultura e da economia brasileira foram de suma importância para compreender o papel social desempenhado pelos descendentes de escravos. Com maturidade singular, muitos alunos falaram das diversas faces do preconceito racial e associaram o racismo a outros tipos de preconceito, como o de classe social, o de gênero e o preconceito religioso. Nossa intenção não é fazer um relato dessas abordagens, mas é mostrar como as relações estabelecidas pelos alunos durante as nossas aulas estão associadas aos diversos fatores que compõem o processo discursivo de legitimação de alguns tipos de preconceito. Além disso, ensejamos apontar que a percepRevista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016 123 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos ção que se dá pela experiência literária possibilita a atribuição de sentido no espaço paratópico, no qual esses discursos podem ser abordados e resinificados de uma maneira que forme o sujeito em uma perspectiva crítica. Introduzido o poema O Navio Negreiro, tivemos a oportunidade de discutir vários assuntos, como a questão da escravidão, da cultura africana, da contribuição dos negros para o sincretismo religioso e da vasta influência dos descendentes de escravos na música popular brasileira. Aí é que a literatura ganha força, por meio da proporção de uma autêntica experiência, que aborda o texto nas suas distintas e diversas modalidades e permite, no campo da paratopia, formar o indivíduo atento às capacidades formativas dos discursos que se materializam em obras literárias. Os pontos históricos que permeiam a composição do poema de Castro Alves, bem como a questão sociocultural da época foram entrelaçados com a própria experiência dos alunos, como sujeitos inseridos e conscientes do seu papel na sociedade e cidadãos atentos aos percursos históricos, uma vez que sua identidade atual é diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. (RIBEIRO, 1995, p. 19) Inspirados por essa diversidade de referências culturais e étnicas que desaguam na formação atual da cultura brasileira, caracterizada por ser multifacetada, após todas as discussões, o segundo momento das aulas era destinado à abordagem da literatura por uma perspectiva histórica, expondo as características das escolas literárias. Deste modo, propicia-se o contato do sujeito com o objeto pelo qual se dará a experiência literária, para depois entrar no ensino das características de estilo e de época. Com isso, a experiência literária não se exclui pela contextualização histórica dos discursos que norteavam as características e os estilos de época, mas aprimora o conhecimento dos indivíduos que também são seres sociais e históricos. Com o intuito de expandir os efeitos dessa experiência literária, fizemos aos alunos a proposta de encenação do poema O Navio Negreiro, para ser apresentado no Festival de Poesia Encenada, idealizado pela Academia Lavrense de Letras. Os alunos precisavam de um motivo que os levassem à essa participação, pois não gostariam de atuar na frente de uma plateia e de jurados que iriam examiná-los, pois se sentiam tímidos e 124 Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos inseguros diante da novidade. Daí, tivemos a ideia de retomar um ponto importante da discussão, que é o combate à discriminação. Esse protesto contra o preconceito seria feito de modo diferente, descartando a necessidade de passeatas ou cartazes que visariam a conscientização da população, mas encarnando, por meio do teatro, os próprios personagens dos navios negreiros. Assim, a justificativa para a nossa participação no festival foi um movimento muito forte de expressão artística: um protesto, por meio da arte, mais especificamente do teatro, contra os diferentes tipos de preconceitos que assolam a nossa sociedade. A montagem da apresentação se deu por meio de conversas e de encontros semanais, nas segundas e nas quartas-feiras, durante os meses de maio a setembro de 2014. Participaram desse projeto estudantes do segundo e do terceiro ano do ensino médio da escola. Assim, muitas ideias surgiram e a apresentação foi construída com a participação de todos, desde a seleção dos trechos a serem encenados, da elaboração das personagens, da montagem do cenário e do figurino e, por fim, a ideia que acreditamos ser a que mais contribuiu para a nossa apresentação: um grupo de alunos musicou trechos do poema e a instrumentalização musical se deu por tambores. Esse acréscimo foi de suma importância, pois resgatou todo o histórico de conversas na biblioteca da escola sobre as contribuições que os povos africanos trouxeram para a cultura brasileira, além de ser mais um elemento de expressão artística que dialoga com as experiências e com as capacidades dos alunos. As apresentações ocorreram nos dias 15, 16 e 17 de setembro de 2014 no próprio município de Lavras, sendo que a Escola Estadual Dora Matarazzo se apresentou nos dias 16 e 17, classificando-se para a final no primeiro dia de apresentação e alcançando o primeiro lugar na classificação no último dia das encenações teatrais. A nossa vitória gerou nos alunos uma autoconfiança que não era característica deles e o sentido de trabalho em grupo tomou uma dimensão singular em suas vidas, pois pela primeira vez, era aberto um espaço que permitia a expressão corporal e musical, a atuação teatral, possibilitada pelo desenvolvimento da capacidade oral durante as aulas na biblioteca e nos ensaios. A construção conjunta da apresentação também repercutiu de uma forma surpreendente, pois gerou por parte dos alunos um sentido de pertença que garantiu a qualidade do nosso trabalho como um processo de formação crítica e social por meio da literatura. Por fim, diante da exposição do nosso trabalho, acreditamos que as palavras do professor Antônio Cândido são profícuas para expressar o Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016 125 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos sentimento que nos norteou ao longo do nosso projeto e os efeitos da nossa atuação no PIBID, pois sempre tivemos a noção de que (...) a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável. (CÂNDIDO, 1995 p. 191) 4. Considerações finais Com base nas primeiras percepções sobre as aulas de literatura na Escola Estadual Dora Matarazzo, nos atentamos à necessidade de promover encontros que permitissem aos alunos uma autêntica experiência literária. Para que isso fosse possível, introduzimos elementos lúdicos e discursivos nas aulas reservadas ao PIBID, para que pudéssemos desenvolver, em conjunto com os alunos, uma metodologia pautada na experiência literária dos sujeitos, valorizando-os como indivíduos ativos no processo de construção de conhecimento. Assim, o nosso trabalho foi possibilitado pela inserção do conceito de discurso paratópico, da análise do discurso de linha francesa, apresentado como os discursos que dão sentido à vida. A abordagem do conceito de discurso paratópico se deu no âmbito da experiência literária, que desenvolve as potencialidades dos sujeitos, apontando para a capacidade de formação crítico-social por meio da arte. Deste modo, o trabalho com a literatura não foi feito de maneira isolada, mas, utilizou-se das multimodalidades textuais e artísticas para alcançar os sujeitos e formá-los dentro de uma perspectiva que os centraliza e os redimensiona no espaço das aulas. A contribuição dessa nova abordagem foi a participação efetiva dos alunos durante as leituras e discussões promovidas na biblioteca da escola, resultando na proposta de encenação d’O Navio Negreiro, que contou com a colaboração de todos os alunos, desde o planejamento da peça teatral até a sua apresentação. Essa participação gerou um sentido de pertença nesses indivíduos, que viram na literatura e no teatro uma oportunidade singular de expressar suas emoções e capacidades artísticas, além de serem formados, crítica e socialmente, como agentes no processo de ensino-aprendizagem, e conscientes do seu papel dentro da história e da sociedade. 126 Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Castro [Antônio Frederico de]. O navio negreiro. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000068.pdf> Acesso em: 22-01-2015. BRASIL, Secretaria de Educação Básica. PCN: ensino médio. Brasília: MEC/SEMT, 2002. CANDIDO, A. O direito à literatura. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades,1995. CANO, Márcio Rogério de Oliveira; SILVA, Luciana Soares. O ensino de literatura: uma experiência paratópica. [No prelo] CEREJA, William Roberto. O ensino de literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo: Atual, 2005. GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância de divulgação. Campinas: ALB/Mercado de Letras, 1998. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad.: Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005. ______. Cenas da enunciação. Organização: Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola, 2008. ______. Discurso literário. Trad.: Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006. ______. Doze conceitos em análise do discurso. Org.: Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez Souza-e-Silva. Trad.: Adail Sobral et alii. São Paulo: Parábola, 2010a. ______. Gênese dos discursos. Trad.: Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2007. ______. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Trad.: Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1997. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2005. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido de Brasil. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Martins Fontes: São Paulo, 2008. Revista Philologus, Ano 22, N° 64 Supl.: Anais do VIII SINEFIL. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2016 127