PEDRO SANTANA LOPES PECADO ORIGINAL O CHOQUE CONSTITUCIONAL ENTRE BELÉM E SÃO BENTO PEDRO SANTANA LOPES 6 PECADO ORIGINAL ÍNDICE INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 I – A DEFINIÇÃO DO SISTEMA MISTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 II – A OPÇÃO DE PORTUGAL PELO SISTEMA MISTO . . . . . . . . . 73 III – CONSEQUÊNCIAS DO SISTEMA MISTO EM PORTUGAL . . . 117 IV – EXERCÍCIO DOS PRINCIPAIS PODERES PRESIDENCIAIS EM RETROSPETIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 ANEXO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267 BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269 7 PEDRO SANTANA LOPES 8 PECADO ORIGINAL I A DEFINIÇÃO DO SISTEMA MISTO 2VSULPHLURVVLVWHPDVGH*RYHUQRTXHVHSRGHPTXDOLÀFDUFRPR mistos surgiram em 1919, na República de Weimar e na Finlândia. )RUDPDVVLPLGHQWLÀFDGRVSRUDSUHVHQWDUHPXPDFRQÀJXUDomRLQVWLtucional estranha aos dois modelos tradicionais: o parlamentarismo e o presidencialismo. Estes países conjugaram a eleição do Presidente por sufrágio universal com a responsabilidade política do Governo perante o Parlamento, combinando características essenciais dos modelos clássicos22. Foi com Maurice Duverger que, em 1978, se iniciaram os primeiros estudos aprofundados sobre este «novo» sistema de Governo, no seu livro Échec au RoiGHGLFDGRjGHÀQLomRGRUHJLPHSROtWLFR vivido na V República Francesa. 'HDFRUGRFRPDGHÀQLomRRULJLQDOGH'XYHUJHUXPVLVWHPD GH*RYHUQRVHPLSUHVLGHQFLDOLVWDGHÀQHVHSRUWUrVFDUDFWHUtVWLFDV – Presidente eleito por sufrágio popular; 22 Pedro Santana Lopes, colaboração de Gonçalo Dinis Capitão, Os Sistemas de Governo Mistos e o Actual Sistema Português, págs. 39 e segs. 23 PEDRO SANTANA LOPES – autoridade constitucional considerável detida pelo Presidente; – existência de Primeiro-Ministro e Governo, com poderes H[HFXWLYRVVXMHLWRVjFRQÀDQoDGD$VVHPEOHLD Apesar de os seus conteúdos procurarem eliminar, em teoria, todos RVIRFRVSRVVtYHLVGHFRQÁLWRRVHPLSUHVLGHQFLDOLVPRDRFRQWUiULR dos sistemas presidencialistas, coloca junto a um Presidente, também eleito por sufrágio direto e universal, um Primeiro-Ministro, a quem se atribui poder executivo e que é responsável perante o Parlamento. E, ao contrário dos sistemas parlamentaristas, cria, acima de um Governo e de um Primeiro-Ministro, responsáveis perante a Assembleia, um Presidente legitimado da mesma forma e dotado de poderes reais. São duas perspetivas da mesma realidade. É bom que sejam enunciadas, para que possa ser realçado o risco de implosão que o sistema consagrou. Braga da Cruz salienta, em primeiro lugar, algumas características «parlamentaristas» dos sistemas semipresidencialistas: – Governo dependente do resultado de eleições legislativas; – responsabilidade do Governo perante o Parlamento, que se pronuncia sobre o seu programa e sobre o seu desemSHQKRDWUDYpVGHPRo}HVGHFRQÀDQoDHGHFHQVXUD – dualismo Governo/Parlamento. Em relação aos traços presidencialistas, o mesmo autor refere: – eleição direta do Presidente por sufrágio universal; – responsabilidade do Governo perante aquele; – e, regra geral, detenção de importantes poderes pelo Presidente (veto, dissolução do Parlamento, nomeações de relevo). (PVXPD%UDJDGD&UX]GHÀQHHVWDVIRUPDVGHHVWUXWXUDomRGD atividade governativa como «sistemas de dupla legitimidade directa e universal e de dupla responsabilidade para o Governo»23. 23 Manuel Braga da Cruz, Sumários de Sistemas Políticos e Eleitorais, UCP, Lisboa, 1997-1999. 24 PECADO ORIGINAL 1DYHUGDGHSRGHVHUDÀUPDGRTXHDRV©QRUPDLVªFRQÁLWRVHQWUH o poder legislativo e o poder executivo, existentes em qualquer sistema político, soma-se um outro foco de batalha, motivado pela luta SHORSRGHUH[HFXWLYRFRPRVHSRGHYHUQDÀJXUD Figura 1. Interações entre poderes legislativo e executivo – presidencialismo, parlamentarismo e semipresidencialismo. 2VVLVWHPDVPLVWRVRXVHPLSUHVLGHQFLDOLVWDVDJUDYDPDLQGHÀQLomR ao criar um poder executivo potencialmente bicéfalo: um Presidente eleito por sufrágio universal e direto e um Primeiro-Ministro constitucionalmente incumbido da direção política do Estado. 2SULQFLSDOGHVDÀRGHXPVLVWHPDSROtWLFRGHVWHJpQHURpDFULDção de um equilíbrio estável e dinâmico entre os seus principais componentes. Não existe um modelo hermético e único para o sistema semipresidencialista, pois o tipo de relações que se criam entre os corpos executivos e o corpo legislativo pode variar drasticamente24, como se observa nos exemplos que passo a citar. 24 «Systems of government: semi-presidential models», Democracy ReportingEULHÀQJSDper n.º 27, março de 2012. 25 PEDRO SANTANA LOPES Á u s t r i a , I s l â n d i a e I r l a n d a Embora a Constituição destes três países consagre o mesmo tipo de sistema político – misto ou semipresidencialista –, a evolução político-institucional tendeu para uma prática parlamentar, com os respetivos Chefes de Estado remetidos para um papel meramente simbólico. Este facto levaria Maurice Duverger26, em 1986, a excluir estes três sistemas da família semipresidencialista, denominando-os regimes «aparentemente semipresidencialistas», mas de essência parlamentar. Áustria Dos três sistemas em apreço, aquele em que o Presidente tem usado alguns dos seus poderes é o da Áustria. No entanto, isso aconteceu com maior nitidez durante o período em que nenhum dos maiores partidos conseguiu, por si só, uma maioria estável. Nessa situação, os vários Presidentes austríacos assumiram um SDSHOGHWHUPLQDQWHTXDQWRDRWLSRGHFROLJDomRDSHUÀOKDUWHQGR os Presidentes Körner e Schärf recusado a presença dos direitistas liberais da Federação de Independentes (atual Partido Libertário GD ÉXVWULD QR *RYHUQR ,QÁXHQFLDUDP HQWmR D IRUPDomR GH XPD JUDQGH FROLJDomR entre os partidos populista (Partido Popular Austríaco) e social-democrata (Partido Socialista da Áustria, atual Partido Social-Democrata da Áustria), que foi existindo, com curtos intervalos, até à obtenção de uma maioria monolítica, por parte dos últimos. A partir do momento em que essa maioria passou a existir no Parlamento, a intervenção do Chefe de Estado passou a ser a que 25 Esta parte do texto, reproduz, no essencial, o que escrevi em Os Sistemas de Governo Mistos e o Actual Sistema Português, no capítulo correspondente. 26 Maurice Duverger, «Le concept de régime semi-présidentiel», in Les Régimes Semi-Présidentiels, PUF, Paris, 1986. 26 PECADO ORIGINAL é própria de um sistema parlamentarista. Atualmente, a Presidência DXVWUtDFDpXPDIXQomRUHVHUYDGDSDUDRVSROtWLFRVHPÀPGHFDUUHLUD distinta, fruto da distribuição de lugares que, na Proporzdemokratie austríaca27VHRSHUDFRPRÀWRGHDVVHJXUDUXPDPDLRUHVWDELOLdade do sistema. A evolução que caracterizou o sistema semipresidencialista austríaco tem que ver com o facto de a alteração constitucional, fundaGRUDGDHOHLomRGLUHWDGR3UHVLGHQWHVHWHUÀFDGRDGHYHU©jGLUHLWDª do espetro político, no período entre guerras mundiais, quando se caminhava no sentido de propostas extremistas. $SyVRÀPGD,,*XHUUD0XQGLDODKHJHPRQLDSHUWHQFHX²DWp DRÀPGRVpFXORXX – ao Partido Social-Democrata (SPÖ). Foi com naturalidade que, em função da experiência de denominação nazi, se instalou um clima cultural avesso a protagonismos presidenciais, o que levaria, por exemplo, a que o SPÖ não indicasse o seu líder para o lugar, preferindo sempre indicar «um homem respeitável mas incapaz de aparecer com autoridade política suprema». Islândia Na Islândia não há, normalmente, desvios à prática parlamentarista, apesar de existir uma maior fragmentação do sistema partidário. Assim, o poder que o Presidente da República utiliza, com uma maior discricionariedade, é o da nomeação do Primeiro-Ministro, porque, de resto, o Presidente islandês faz uso reduzido das suas DWULEXLo}HVFRQVWLWXFLRQDLVRTXHOHYRX'XYHUJHUDDÀUPDUTXHR Presidente «atua, habitualmente, como um Chefe de Estado puramente parlamentarista»28. 27 Sobre o regime austríaco, consultar: Gerhard Lehmbruch, Proporzdemokratie Politisches 6\VWHPXQGSROLWLFKH.XOWXULQGHU6FKZHL]XQGLQgVWHUUHLFKTubinga, 1967; Kurt Steiner, Politics in Austria, Little Brown, Boston, 1972; Alexander Vodopivec, Wer Regiert in Österreich?, Verlag fün Geschichte und Politik, Viena, 1960; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 8.ª ed., 2009, pág. 18. 28 Maurice Duverger, «Le concept de régime semi-présidentiel», pág. 9. 27 PEDRO SANTANA LOPES Deste modo, estabeleceu-se uma prática curiosa neste país, exemplo do consenso básico que existe sobre as instituições islandesas: quando se atinge o termo do mandato presidencial, não aparece nenhum outro candidato para disputar o cargo. Considera-se automaticamente renovado o mandato do titular em funções. Irlanda Por sua vez, na Irlanda, o Presidente tem poucos poderes reais e só num caso tem poder discricionário: o de enviar projetos de lei DR6XSUHPR7ULEXQDOSDUDYHULÀFDomRGDVXDFRQVWLWXFLRQDOLGDGH 2VFDQGLGDWRVjFKHÀDGR(VWDGRVmRQRUPDOPHQWHHVFROKLGRV por acordo entre as duas principais forças políticas – Fianna Fail e Finn Gael –, o que determina ainda mais o papel discreto a que os primeiros magistrados da nação irlandesa se devem remeter. A questão essencial reside na tradição parlamentar que se gerou no país, que leva a que os cidadãos não aceitem que o Presidente assuma uma intervenção crítica na política irlandesa. O mesmo, aliás, se passa nos outros dois Estados que, juntamente com a Irlanda, apresentámos como exemplos de evolução parlamentar de sistemas semipresidencialistas. Duverger diz que «essas práticas são a consequência, mais do que a causa, do apagamento dos Presidentes». Nos casos da Irlanda e da Islândia, o destaque dado ao método de eleição do Presidente foi tributário da necessidade histórica de DÀUPDUDUHDOLGDGHGDLQGHSHQGrQFLDIDFHjVDQWHULRUHVSRWrQFLDV coloniais – Inglaterra e Dinamarca, respetivamente –, com o cariz simbólico que comporta a instituição assim concebida. R e p ú b l i c a d e We i m a r e F i n l â n d i a Um, já desaparecido, e outro, o mais antigo dos semipresidencialismos, são exemplos elucidativos de como um mesmo sistema 28 PECADO ORIGINAL SRGH DVVXPLU QR GHFXUVR GD VXD HYROXomR YiULDV FRQÀJXUDo}HV resultantes da prática institucional. República de Weimar A Constituição de Weimar surgiu, na Alemanha, num momento de revolta doméstica e ameaça exterior. Após um curto período de guerra civil, o Partido Social-Democrata, juntamente com as forças militares, colaborou no estabelecimento de uma república democrática parlamentar. Achou-se necessária a existência de um Presidente poderoso, para fazer face tanto às ameaças internas como às ameaoDVH[WHUQDV$5HS~EOLFDGH:HLPDUFRQVDJURXDÀJXUDGRFKDQceler, Chefe do Governo, politicamente responsável, quer perante o Reichstag, quer perante o Presidente, eleito por sufrágio direto e universal. O Presidente, dotado da competência de dissolução da Câmara, tinha também, entre outros, o poder de demissão do chanceler, já implicitamente referido. Carl Schmitt considera que o sistema weimariano encerra uma união das quatro subespécies do parlamentarismo: presidencial, de Parlamento, de premier e de gabinete. Normalmente, o regime weimariano29 é apresentado como tendo conhecido duas grandes fases: entre 1919 e 1930, uma fase parlamentarista e, a partir de 1930, um período caracterizado por uma maior intervenção do Presidente Hindenburg, que culminou com a implantação da ditadura nazi. No entanto, a realidade foi mais complexa. O uso circunstancial de poderes presidenciais, em alturas conturbadas, levou Duverger a ver nas suas prerrogativas uma espécie de «FRQVWLWXLomRGHUHVHUYD», mais do que se poderia pensar, se tivéssemos apenas a leitura linear do seu texto. No primeiro decénio do regime, o Presidente Ebert viu-se forçado a intervir, tendo dissolvido o Reichstag por duas vezes 29 Sobre a evolução do regime de Weimar, consultar: Jean-Luc Parodi, «Effets et non-effets de l’élection présidentielle», in Élire un Président, PUF, Paris, 1980, pág. 12; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo I, págs. 173 e segs. 29 PEDRO SANTANA LOPES e expedido muitas ordenanças, nomeando chanceleres não originários do Parlamento. Os primeiros cinco anos da presidência de Hindenburg coincidiram com uma fase de prosperidade da econoPLDDOHPmTXHDMXGRXDGLPLQXLURVFRQÁLWRVSROtWLFRV$5HS~EOLFD de Weimar conheceu períodos de relativa estabilidade dos executivos, que chegaram a suplantar os da III República Francesa. E, isto, apesar de o regime ser caracterizado por um sistema partidário e «polarizado»: o número de partidos excedia três ou quatro Caso de «pluralismo moderado»), existia um elevado índice de polarização em ambos os extremos, havia uma posição antissistémica à esquerda e à direita, como existia inequivocamente um centro político, apesar de fragmentado, que, quando estava ocupado, LPSHGLDDFHQWUDOL]DomRHGLÀFXOWDYDDVDOWHUQDWLYDVSHUPLWLQGRDSHnas alterações periféricas. Esta ordem, que ia sendo conseguida apesar da existência desses fatores pouco propiciadores de estabilidade e desenvolvimento, foi alterada em função da crise económica mundial dos anos trinta. A situação gerada exigia a adoção de medidas enérgicas, só passíveis de êxito se apoiadas por uma maioria estável, o que se tornava impossível. A grande fragmentação partidária levou a uma enorme imobilidade legislativa, o que encorajou Hindenburg, a partir de 1930, a acentuar o pendor presidencialista. Não conseguindo evitar toda a evolução posterior que é conhecida, a República entrou em colapso, culminando na tomada total do poder por Hitler, o que, até à data, condicionou a política alemã do pós-guerra, mormente ao nível de aversão a qualquer experiência mais plebiscitária de democracia, que, alegadamente, terá franqueado as portas ao regime nazi. O regime de Weimar constituiu um bom exemplo dos cambiantes que pode gerar a evolução de um sistema misto. O mesmo, embora com aspetos diferentes, tem acontecido com a experiência ÀQODQGHVDFRPRH[SRUHLHPVHJXLGD 30 PECADO ORIGINAL Finlândia Nas primeiras décadas da sua materialização, a Finlândia conheceu uma curiosa alternância entre Presidentes fortes e fracos, como resultado das manobras dos partidos políticos, ditadas pelos interesses em cada momento. Contudo, desde 1945, foi-se assistindo a um crescendo de concentração de poderes nas mãos do Chefe de Estado e a extensão dos mandatos presidenciais tornou-se curiosa. 23UHVLGHQWH3DDVLNLYLÀFRXQRSRGHUGH]DQRV2VHXVXFHVVRU Kekkonen, exerceu funções durante 25, tendo sido eleito, a partir do sufrágio de 1968, de forma triunfalmente consensual, obtendo uma votação na Câmara no sentido do aumento dos poderes presidenciais. Com Kekkonen, o Chefe de Estado da Finlândia passou a participar assiduamente na governação e ora instigou os partidos à formação de Governos amplamente maioritários, ora sustentou fórmulas minoritárias, «autorizadas» pelo Parlamento. Desse modo, a YLGDSROtWLFDÀQODQGHVDDOWHUQRXHQWUHSHUtRGRVGHPDLRULQWHUYHQção presidencial e fases em que o Chefe de Estado se «protegia» do desgaste decorrente do comprometimento com o quotidiano da governação. O sistema partidário da Finlândia30 é também um exemplo de pluralismo extremo, embora a evolução do sistema político e, concretamente, a intervenção de Kekkonen tenham contribuído para integrar a oposição antissistema. 0DXULFH'XYHUJHUFKDPRXDRFDVRÀQODQGrVHjH[SHULrQFLDGH Weimar «balanced Presidency and Government», procurando traGX]LUDRVFLODomRTXHVHWHPYHULÀFDGR²RXVHYHULÀFRX²TXDQWR à detenção do poder no seio do Executivo bicéfalo. 6REUHRVLVWHPDSDUWLGiULRÀQODQGrVFRQVXOWDU*LRYDQQL6DUWRUL©(XURSHDQSROLtical parties – the case of polarized pluralism», in Joseph LaPalombara e Myron Weiner, Political Parties and Political Development, Princeton University Press, Princeton, 1966, em que equipara a Finlândia a Israel, como exemplos da utilidade da existência de mais de quatro partidos para a correta tradução da polarização de uma sociedade que conheceu um sistema atomizado. 30 31 PEDRO SANTANA LOPES Com a reforma constitucional de 2000, o sistema parlamentarizou-se. O Presidente da República, eleito por seis anos, passou a ter poderes exclusivamente na política externa e na política de defesa, podendo também nomear altos funcionários31. Citando Giovanni Sartori (1994), a Finlândia entrou, após 2000, na lista dos «semipresidencialismos aparentes». A V República Francesa $OJXpP GLVVH TXH ©D HVWUXWXUD GR SRGHU IUDQFrV ÀFD DOJXres entre o sistema parlamentar britânico e o sistema presidencial americano»326HDDÀUPDomRpFRUUHWDVRERSRQWRGHYLVWD dos princípios, o caráter vago de que se reveste pode ser aponWDGR FRPR UHÁH[R GR DELVPR TXH H[LVWH HQWUH R FRQWH~GR GD Constituição e a prática institucional da República instaurada sob a égide de De Gaulle. Tudo se torna complexo quando um sistema é criado por causa, pelo interesse, ou à medida de alguém. Foi o que ocorreu com Charles de Gaulle na V República Francesa, onde, logo de início, se desenhou a tendência para a concentração de poderes no Chefe de Estado. 1RTXDGURTXH0DXULFH'XYHUJHUHVWDEHOHFHFRPSDUDQGRDGHÀnição constitucional dos poderes presidenciais nos sete sistemas semipresidencialistas instaurados, a França aparece em sexto lugar, QDFODVVLÀFDomRSRURUGHPGHFUHVFHQWHGDLPSRUWkQFLDFRQVWLWXFLRnal desses poderes, e em primeiro, quanto ao relevo que assumem na prática (tabela 1). 31 André Freire e António Costa Pinto, O Poder Presidencial em Portugal – Os Dilemas do Poder dos Presidentes da República Portuguesa, Dom Quixote, Alfragide, 2010. 32 The Economist, «Outdoing the White House», 2-7 de janeiro de 1979. 32 PECADO ORIGINAL P ODER P ODER PRESIDENCIAL CONSTITUCIONAL PRESIDENCIAL REAL 1.º Finlândia 1.º França 2.º Islândia 2.º Finlândia 3.º República de Weimar 3.º República de Weimar 4.º Portugal 4.º Portugal 5.º Áustria 5.º Áustria 6.º França 6.º Irlanda 7.º Irlanda 7.º Islândia Tabela 1. Tabela de Maurice Duverger dos poderes presidenciais, constitucionais e reais33. A Constituição, adotada em 1958, estabelecia a eleição do Presidente da República por um colégio eleitoral restrito mas, logo em 1962, o general De Gaulle fez votar uma alteração à Lei Fundamental – para muitos, irregular, face ao texto constitucional –, que consagrou a eleição do Presidente por sufrágio direto e universal. O Presidente de França era eleito por sete anos, podendo ser reeOHLWRLQGHÀQLGDPHQWHQRPHDYDR3ULPHLUR0LQLVWURHVRESURSRVWD deste, os outros membros do Governo; podia dissolver a Assembleia Nacional; presidia ao Conselho de Ministros; recorria ao referendo a solicitação do Governo ou das duas Câmaras (em deliberação conjunta); expedia decretos; requeria novo exame parlamentar das leis que lhe eram submetidas; nomeava membros do Tribunal Constitucional e tinha poderes de codecisão em matéria diplomática e de nomeação de altos funcionários. Desde 2000, o Presidente é eleito por cinco anos. Apesar de a Constituição de 1958 conceder consideráveis poderes ao Primeiro-Ministro, o Presidente está, de facto, no topo da estrutura política de França. Na verdade, o artigo 20.º estatui que «o Governo 33 Maurice DuvergereFKHFDX5RL Albin Michel, Paris, 1978, pág. 179. 33 PEDRO SANTANA LOPES deve determinar e dirigir a política da Nação», acrescentando o artigo 21.º que «o Primeiro-Ministro deve dirigir a ação do Governo». O que tem acontecido é que nenhum Primeiro-Ministro ousou GHVDÀDUDSULPD]LDGRVVXFHVVLYRV3UHVLGHQWHVHDVVXDVOHLWXUDVGD Constituição. De tal modo tem sido essa a tendência, que a posição de subalternidade dos Chefes de Governo já levou a que fossem equiparados a «diretores do gabinete do Presidente da República». Esta expressão é atribuída a De Gaulle, numa obra sobre as suas relações com Pompidou, tendo também sido utilizada por René Capitant34. Toda esta realidade teve origem na natural ascendência de que o general De Gaulle usufruía na vida política francesa e que lhe permitiu vencer as primeiras eleições presidenciais, depois da revisão constitucional de 1962. Entre 1958 e 1962, De Gaulle conseguira impor a sua governação apesar de ainda não dispor de uma maioria sólida na Assembleia Nacional, o que só veio a alcançar QRVXIUiJLRGHSRVWHULRUjUHYLVmRFRQVWLWXFLRQDOHDRÀP da crise argelina. $SURSyVLWRGDLQÁXrQFLDFUHVFHQWHGH'H*DXOOHQD95HS~EOLFD DÀUPD0DUFHOR&DHWDQR©$EUHYHWUHFKRVHYHULÀFRXTXHDIRUWHH prestigiosa personalidade do Chefe do Estado passava a dominar a política francesa, subalternizando o Parlamento, minimizando a acção dos partidos políticos e convertendo o Governo em mero executor do pensamento presidencial. Assim, a ideia inicial de que poderiam coexistir um sistema parlamentarista e um forte Executivo em breve se mostrou lograda. […]. O Presidente da República […] forçou a um fortalecimento da autoridade pessoal de De Gaulle […]. O presidencialismo foi-se, pois, acentuando35.» 34 René Capitant, «L’aménagement du pouvoir exécutif et la question du chef de l’État (La distinction du chef de l’État et du chef du gouvernement dans la Constitution française de 1958)», in Écrits Constitutionnels, CNRS, Paris, 1982. 35 Marcelo Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 4.ª ed., 1963, pág. 98. 34 PECADO ORIGINAL A partir desse momento, como assinala Duverger, estavam lançadas «as bases institucionais e políticas» do ascendente presidencial sobre a vida política francesa. Às condições que se reuniram e que permitiram o ascendente presidencial, há que acrescentar a racionalização das formas de dependência do Governo em relação ao Parlamento: o Executivo não é obrigado a solicitar a aprovação do seu programa pelo Parlamento e qualquer moção de censura, para ser aprovada, tem de reunir a maioria absoluta de votos favoráveis. Em conclusão, a V República36, principalmente depois de 1962, estabeleceu um Executivo forte e um Parlamento fraco, reação natural à situação contrária que vigorara nas duas anteriores Repúblicas e que tanta instabilidade governativa originara. Fator importante foi também a mutação sofrida pelo sistema SDUWLGiULR LQÁXHQFLDGD SHOR QRYR VLVWHPD HOHLWRUDO TXH GH XPD situação de pluralismo extremo, transitou para uma forma moderada de pluralismo. Esse facto, aliado à polarização do sistema e à absoluta disciplina de voto das várias forças políticas representaGDVQR3DUODPHQWRWHPH[HUFLGRXPDJUDQGHLQÁXrQFLDQDUHODWLYD estabilidade governativa que se tem feito sentir. Tem sido muito estudada esta experiência de caráter inédito entre os sistemas, já de si nada clássicos, semipresidencialistas. 9iULRVWrPVLGRRVTXDOLÀFDWLYRVDWULEXtGRVDRVLVWHPDGH*RYHUQR francês: «monarquia presidencial» (Duverger)37, «Parlamento frenado» (Loewenstein)38, «presidência imperial» (E. N. Suleiman)39, 36 Sobre a V República e as relações dos poderes legislativo/executivo, consultar: Jean-Luc Parodi, Les Rapports entre le Législatif et l’Exécutif sous la Cinquième République, Armand Colin, Paris, 1972. 37 Maurice Duverger, La Monarchie Républicaine, Editions Robert Laffont, Paris, 1974, pág. 41. 38 Karl Loewenstein, Teoria de la Constitucion, Editorial Ariel, Barcelona, 1990, pág. 115. 39 Richard Rose e Ezra N. Suleiman, Presidents and Prime Ministers, AEI Studies 281, 1980, pág. 103. 35 PEDRO SANTANA LOPES «presidencialismo» (Marcelo Caetano), ou «parlamentar de corretivo presidencial» (Colliard)40. Sobre as diferentes interpretações do sistema de Governo em França, Gomes Canotilho e Vital Moreira sintetizam da seguinte forma no seu livro Os Poderes do Presidente da República: «Há autores que vêem no regime da V República uma expressão deformada do regime presidencialista – é o caso, por exemplo, de Claude Leclercq41. Outros preferem pôr em relevo os traços parlamentaULVWDVGRUHJLPHFRQVWLWXFLRQDOTXDOLÀFDQGRRFRPRXPDYDULDQWH do sistema parlamentarista, nomeadamente de “parlamentarismo dualista” – como é o caso de Bernard Chantebout42 e de René Capitant43. Há ainda quem veja nele um tertium genus inominável, nem parlamentarista nem presidencialista – como é o caso de Jacques Robert44. Finalmente, muitos outros renunciam a uma caracterização conceitual unitária, preferindo falar de “regime misto”45.» 2VTXDOLÀFDWLYRVGHSHQGHPGDSHUVSHWLYDPDLVIRUPDOLVWDRX mais funcionalista, que se adote na análise. Quem opta pela segunda não pode deixar de constatar o evidente e quase absoluto ascendente do Presidente sobre a vida política francesa. Jean Charlot já o considerou como «o mais poderoso Executivo do mundo ocidental»46. 40 Jean-Claude Colliard, Les Régimes Parlementaires Contemporains, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, Paris, 1978, pág. 280. 41 'URLW&RQVWLWXWLRQQHOHW,QVWLWXLWLRQV3ROLWLTXHV, Paris, 3.ª ed., 1981, págs. 327 e segs. ©XPUHJLPHSUHVLGHQFLDOLVWDGHIRUPDGRHLPSHUIHLWRDVVD]HVSHFtÀFRHLQpGLWRªOr-se na pág. 334). 42 Droit Constitutionnel et Science Politique, Paris, 1982, pág. 493. 43 René Capitant, «L’aménagement du pouvoir exécutif et la question du chef de l’État (La distinction du chef de l’État et du chef du gouvernement dans la Constitution française de 1958)», pág. 394. 44 «Le président de la République en France: ni parlementaire ni présidentiel?», in Jean-Louis Seurin, La Présidence en France et aux États-Unis, Paris, 1986, págs. 333 e segs. 45 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Os Poderes do Presidente da República, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, págs. 13-15. 46 Jean Charlot, The Gaullist Phenomenon, Allen and Unwin, Londres, 1971, pág. 416. 36 PECADO ORIGINAL 1DPHVPDOLQKDRXWURVFRPR(16XOHLPDQWrPDÀUPDGR que o Presidente francês, «em comparação com o dos Estados Unidos, goza de mais poder político substancial e está sujeito a PHQRVOLPLWHVª6XOHLPDQDÀUPDDLQGDTXH©&RQVWLWXFLRQDOPHQWH pelo menos, o Presidente de França age com menos limitações do que o seu correspondente nos Estados Unidos. Não tem de se preocupar com lobbies do Congresso, com comités do Congresso ou com lobbies privados; além disso, a relativa docilidade da imprensa protege-o […] e ajuda-o a aumentar o seu poder.» Ao mesmo tempo, a relação com os media consagra a opinião pública como nova forma determinante do xadrez político francês, chegando-se ao que Alain Minc chamou «monarquia electiva, temperada com sondagens»47. Na ausência de contrapoderes e de corpos intermédios, o Presidente francês pode, sob este prisma, bastar-se com o «barómetro» mensal. Alain Minc48 avança mesmo com o diagnóstico de um «peroQLVPRPHGLiWLFRªHPERUDQmRHVSHFLÀFDPHQWHVREUHDUHDOLGDGH gaulesa. Segundo Suleiman, o controlo sobre o Governo é assegurado pelo poder de nomear o Primeiro-Ministro e os Ministros, com a vantagem de não ter de se envolver numa perpétua campanha eleitoral. «É eleito por sete anos49 e só precisa de uma reeleição para se manter no poder por quase uma geração.» No entanto, Suleiman não deixa de recordar que o Presidente francês «[…] no exercício do seu poder, está limitado, em parte, pela Constituição, que estabelece um Executivo dualista, e pelo sistema político». Numa perspetiva funcionalista, é uma análise que merece a nossa concordância. É óbvio que ao Presidente francês podem deparar-se obstáculos, dos quais haverá a destacar, para lá das 47 Alain Minc, O Choque dos Media, Quetzal, Lisboa, 1994, pág. 141. Alain Minc, A Embriaguez Democrática, Difel, Algés, 1995, pág. 83. 49 Atualmente, são cinco anos. 48 37 PEDRO SANTANA LOPES QDWXUDLVGLÀFXOGDGHVTXHXPDRSRVLomRVHPSUHOHYDQWDDR&KHIHGR Executivo, os que resultam da necessidade de ir mantendo o ascendente sobre a maioria que o apoia, de que fará igualmente parte um Primeiro-Ministro, cuja «obediência» terá de assegurar. Mas, voltando à comparação com os EUA, a diferente natureza do sistema partidário, as distinções quanto ao regime da disciplina de voto e os respetivos modos de funcionamento explicam que o Presidente francês possa ter uma ação executiva mais facilitada. Poder-se-á dizer que, enquanto o Presidente norte-americano, para além do combate eleitoral, tem de lutar quotidianamente para exercer o poder, ao Chefe de Estado francês basta conquistar o poder para ter condições para executar a sua vontade política. Além disso, a estrutura do poder dualista em França permite ao Presidente, quando o entender conveniente, manter-se mais afastado das tarefas da governação, evitando o desgaste que elas naturalmente implicam. 'RH[SRVWRSRGHFRQÀUPDUVHDGLYHUVLGDGHGHSUiWLFDVLQVWLtucionais que os sistemas semipresidencialistas permitem. Uma das mais insólitas, ou complexas, é o sistema de Governo inscrito na Constituição Portuguesa. O sistema de Governo português 2 VLVWHPD SRUWXJXrV WHP PHUHFLGR YiULDV TXDOLÀFDo}HV (VWD pluralidade é ainda mais compreensível se considerarmos que, em 1976, o sistema integrava, para além dos órgãos próprios de uma democracia, um órgão de soberania composto por militares, ao qual estavam atribuídas incumbências de Conselho do Presidente da República, de garante do regular funcionamento das instituições GHPRFUiWLFDVHGRFXPSULPHQWRGD&RQVWLWXLomRHGDÀGHOLGDGH ao espírito da Revolução de 25 de Abril de 1974 e, ainda, de único órgão com competência legislativa em matéria militar. 38 PECADO ORIGINAL Em 1980, procedi à descrição das posições que a doutrina adotava50 sobre o sistema de Governo inaugurado em 1976. Aqui recupero algumas dessas considerações que as sucessivas revisões constitucionais haveriam de alterar sem resolver o impasse das duas legitimidades democráticas. A generalidade dos autores, seja ao abrigo de uma perspetiva IRUPDOVHMDVHJXQGRFULWpULRVIXQFLRQDOLVWDVFODVVLÀFDRVLVWHPDGH 1976 como semipresidencialista. Na primeira abordagem formal, podiam considerar-se, por exemplo, Jorge Miranda, Marcelo Rebelo de Sousa, Maurice Duverger e Luiz Sanchez Agesta51. Entre os que seguem uma lógica funcionalista, adotando a mesma designação, destacaram-se Diogo Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires – que realçou a forte componente presidencialista do sistema –, André Thomashausen e Emídio da Veiga Domingos, embora este último combinasse os critérios formais com uma abordagem funcionalista52. Como breve referência, lembre-se que, entre os autores que não adotaram essa designação, se encontram posições diversas, como a de Jean-Claude Colliard, que designa o sistema português de 1976, RÀQODQGrVHRGD95HS~EOLFD)UDQFHVDFRPR©SDUODPHQWDUFRP corretivo presidencial»53. Marcelo Caetano destacou o papel do Conselho da Revolução, considerando que «o regime institucionalizado na Lei Fundamental 50 Pedro Santana Lopes e José Manuel Durão Barroso, Sistema de Governo e Sistema Partidário. Jorge Miranda, $&RQVWLWXLomRGH²)RUPDomR(VWUXWXUD3ULQFtSLRV)XQGDPHQWDLV Lisboa, 1978; Marcelo Rebelo de Sousa, «O sistema de governo português», in Estudos VREUHD&RQVWLWXLomRLisboa, 1978; Maurice Duverger, Échec au Roi; Luiz Sanchez Agesta, &XUVRGH'HUHFKR&RQVWLWXFLRQDO&RPSDUDGR Madrid, 1976. 52 Diogo Freitas do Amaral, «Presidencialismo ou parlamentarismo», Expresso, 10 de dezembro de 1977; Francisco Lucas Pires, «Presidencialismo, semipresidencialismo ou regime de partidos», Democracia e Liberdade, n.º 1, Lisboa, 1976; André Thomashausen, «Constituição e realidade constitucional», Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1977; Emídio da Veiga Domingos, 3RUWXJDO3ROtWLFR$QiOLVHGDV,QVWLWXLo}HV, Edições Rolim, Lisboa, 1980. 53 Jean-Claude Colliard, Les Régimes Parlementaires Contemporains, pág. 280. 51 39 PEDRO SANTANA LOPES de 1976 consagra uma ditadura daquele órgão militar»54. Já Vital 0RUHLUDH*RPHV&DQRWLOKRTXDOLÀFDUDPLQLFLDOPHQWHRVLVtema como «parlamentarismo racionalizado»55. eSUHFLVDPHQWHSHODFRQÀJXUDomRGRVLVWHPDGH*RYHUQRIUDQcês que os dois constitucionalistas de Coimbra – Gomes Canotilho e Vital Moreira – abrem hostilidades onomásticas e semânticas. Na sua ótica, chamar semipresidencialista ao nosso regime é uma remissão para o sistema gaulês, de que apresentam grandes diferenças. Desde logo, consideram o Primeiro-Ministro francês, diversamente do homólogo português, como «uma espécie de chefe do estado-maior do Presidente», ou, dito de outro modo, «é o Presidente quem governa por interposto primeiro-ministro». Ao Chefe de Estado gaulês, incumbem, entre outras, as prerrogativas de presidir ao Conselho de Ministros, a reserva em matéria de política externa, a entrada em funções do Governo por sua nomeação sem necessidade de apresentação perante o Parlamento, o recurso ao referendo, mesmo contra a vontade do Parlamento, e amplos poderes de exceção. (VWDV DÀUPDo}HV VmR FRUURERUDGDV SHOD QHJDWLYD SRU -RUJH Miranda, que relembra que, no Portugal da Constituição democrática, o Presidente só pode presidir ao Conselho de Ministros a convite do Primeiro-Ministro e que a sua eleição está limitada a dois mandatos consecutivos, com a duração de cinco anos cada, ao contrário dos sete anos do Chefe de Estado francês, nessa altura. Esse fosso tornou-se mais pronunciado depois da revisão de 198256. Jean-Luc Parodi usa a expressão «sistemas de dualidade do Executivo»57, e José Miguel Júdice fala de «dualismo de tipo Marcelo Caetano, &RQVWLWXLo}HV3RUWXJXHVDV, Verbo, Lisboa, 1978, págs. 148 e segs. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, &RQVWLWXLomRGD5HS~EOLFD3RUWXJXHVD$QRWDGD, Coimbra Editora, Coimbra, 1978. 56 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 8.ª ed., 2009. 57 Jean-Luc Parodi, «Effets et non-effets de l’élection présidentielle», pág. 11. 54 55 40 PECADO ORIGINAL weimariano»58. Pedro Soares Martinez não atribui qualquer quaOLÀFDomRH[SUHVVDHPERUDGLJDTXHRVLVWHPDGH*RYHUQRSRUWXguês não é nem presidencialista nem próprio de uma democracia parlamentar59. As variadas posições sobre o atual sistema português denunciam a profunda complexidade do modelo pós-revolucionário. Sendo um sistema misto ou semipresidencialista, procurava conciliar a lógica parlamentar e a lógica presidencial, ou seja, conjugar a eleição presidencial por sufrágio universal e direto com a responsabilidade do Governo perante a Assembleia da República. Contudo, o texto constitucional de 1976 não se limitava a estabelecer essa síntese heterodoxa: à luz da Constituição de Weimar, determinou também a plena responsabilidade política do Governo em relação ao Presidente da República. Assim, pela enunciação dos dois elementos – o modo de eleição e o poder de exoneração do Primeiro-Ministro –, pode depreender-se a acentuada heterodoxia do sistema estreado pela democracia de Abril e o especial estatuto que nele detém o Presidente da República. De facto, o texto constitucional de 1976 atribuía ao Chefe de Estado português uma gama considerável de poderes: – nomear o Primeiro-Ministro, tendo como únicos limites a prévia audição do Conselho da Revolução e dos partidos e a obrigação de ter em conta os resultados eleitorais, não se determinando, porém, se os das legislativas, se os das presidenciais; – exonerar discricionariamente o Chefe do Governo e dissolver a Assembleia da República, se, para o efeito, obtivesse parecer favorável do Conselho da Revolução; 58 José Miguel Júdice, «Relações entre órgãos de soberania», Futuro Presente, n.º 1, Lisboa, 1980. 59 Pedro Soares Martinez, &RPHQWiULRVj&RQVWLWXLomR3RUWXJXHVDGH, Verbo, Lisboa, 1978. 41 PEDRO SANTANA LOPES – presidir ao Conselho da Revolução, que detinha importantes competências; – assistir ao Conselho de Ministros, quando solicitado pelo Primeiro-Ministro; – dissolver ou suspender os órgãos das Regiões Autónomas, ouvindo, sempre, o Conselho da Revolução; – vetar, por motivos políticos ou com fundamentos jurídicos, os diplomas do Governo e da Assembleia da República; – nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Presidente do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República e os Ministros da República para as Regiões Autónomas; – exercer o cargo de Comandante Supremo das Forças Armadas; declarar o estado de sítio ou o estado de emergência; – indultar e comutar penas; – nomear os embaixadores sob proposta do Governo; – acreditar os representantes diplomáticos estrangeiros e UDWLÀFDURVWUDWDGRVLQWHUQDFLRQDLV Era igualmente o Presidente da República quem tinha competência para declarar a guerra e fazer a paz. Toda esta plêiade de poderes presidenciais era combinada com outros elementos: – Uma DFHQWXDGD UDFLRQDOL]DomR GD YHUWHQWH SDUODPHQWDU GR VLVtema, quando se estabelecia que o programa do Governo se considerava aprovado na Assembleia da República, se não fosse aprovada uma moção de rejeição por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções; ou quando se exigia a aprovação de duas moções de censura, com 30 dias de intervalo, por maioria absoluta dos Deputados, para efetivar a demissão do Governo. – $WULEXLomRGHLPSRUWDQWHVFRPSHWrQFLDVDR&RQVHOKRGD5HYROXomR, limitadoras do estatuto de outros órgãos de soberania, QRPHDGDPHQWHDVTXHRWRUQDPRyUJmRÀVFDOL]DGRUGR 42