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ISSN 0102-1788
Revista da Escola Superior de Guerra
Revista da Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro, Ano XVII, no 39, 2000
Revista da Escola Superior de Guerra
(Fortaleza de São João – Urca – Rio de Janeiro-RJ – Brasil – CEP: 22.291-190)
(Home Page http://www.esg.br)
Diretor-Presidente:
Editor Responsável:
César de Mello Lira
General-de-Divisão
Editoração Eletrônica:
Théo Espindola Basto
Ademir Pereira Palma
Diretor Vice-Presidente
Impressão:
Brigadeiro-Eng.
Jorlen Gráfica e Editora Ltda
Paulo Roberto Carvalho Ferro
Diretor- Secretário:
Tiragem:
Coronel Professor
1.000 Exemplares
Celso José Pires
Os conceitos expressos nos trabalhos
são de responsabilidade dos autores
e não definem uma orientação
institucional da Escola Superior de
Guerra.
Editoração:
Nossa Capa:
D es c o br i m en t o d o Br a si l 5 0 0
a n os – M i ssa
Divisão de Biblioteca, Intercâmbio e
Difusão – DBID
Revista da Escola Superior de Guerra – V.1, no (dez. 1983) – Rio de Janeiro:
ESG. Divisão de Documentação, 1983 – v.; 21,59cm – Semestral
ISSN 0102-1788
1. Segurança Nacional – Periódica. 2. Poder Nacional – Periódicos. 3.
Ciência Militar – Periódicos. I. Escola Superior de Guerra (Brasil).
Departamento de Estudos. Divisão de Documentação.
CDU – 32(81) (05)
CDU – 320.981
Índice
TESTEMUNHOS
VISITA DOMINISTRO DA DEFESA À ESG
7
Geraldo Magela da Cruz Quintão
DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E SOBERANIA
13
Sérgio Xavier Ferolla
PROGRAMA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA 2000
20
Théo Espíndola Bastos
O SÉCULO XXI PARA A ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
35
Oswaldo Muniz Oliva
AMAZÔNIA: VISÃO POLÍTICO-ESTRATÉGICA
43
Hernani Goulart Fortuna
A GEOPOLÍTICA BRASILEIRA – PREDECESSORES
E GEOPOLÍTICOS
58
Carlos de Meira Mattos
“E FEZ-SE A LUZ”
83
Luiz Sanctos Döring
DISCUSSÃO DA POLÍTICA PETROLÍFERA BRASILEIRA
99
Jaime Rotstein
A ESPECULAÇÃO E AS CRISES FINANCEIRAS
111
Francisco de Assis Grieco
EFICÁCIA PROVISÓRIA E DEFINITIVA DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS
122
Ives Gandra da Silva Martins
“ECHELON” X SEGURANÇA NACIONAL
133
Silvio Potengy
ALÉM DO MERCOSUL (UMA QUESTÃO DE ESTRATÉGIA) 138
Jayme Magrassi de Sá
A CRISE DO PARADIGMA DA MODERNIDADE
144
Marcos Oliveira
ORGANIZAÇÕES QUE APRENDEM O CAMINHO SEGURO 171
Jorge Calvário dos Santos
O ESTADO: UMA ENTIDADE IMPRESCINDÍVEL
Manuel Cambeses Júnior
195
NOVO ENFOQUE PARA OS ESTUDOS DA ESG XXI
198
Ivan Fialho
PRODUÇÃO: UMA VISÃO ECOLÓGICO-ECONÔMICA E
ALGUNS ASPECTOS SOCIOPSICOLÓGICOS
210
Gerardo José de Pontes Saraiva
A ESTRATÉGIA EMPRESARIAL NA SOCIEDADE DO
CONHECIMENTO
230
Júlio Sérgio Dolce e Clarissa Dolce Anderson
MEMÓRIAS
O PODER NACIONAL: SUAS LIMITAÇÕES DE ORDEM
INTERNA E EXTERNA – 1957
257
Luiz Leivas Bastian Pinto
HOMENAGEM
HOMENAGEM PÓSTUMA
Luís Paulo Macedo Carvalho
275
Testemunhos
VISITA DO MINISTRO DA DEFESA À ESG
26 de julho de 2000
Geraldo Magela da Cruz Quintão(*)
Palavras Iniciais
- Senhores Oficiais-Generais
- Senhoras e Senhores Membros dos Corpos Permanente e Administrativo (ou do Corpo de
Estagiários*)
- Senhores Convidados
- Exmº Sr. General BASTO, Comandante e Diretor de Estudos da ESG
Agradeço o honroso convite que me foi formulado para visitar a Escola Superior de Guerra
pela primeira vez, depois que assumi o cargo de Ministro da Defesa. Agradeço, também, as atenções e homenagens recebidas, as manifestações de boas-vindas e a oportunidade ímpar de dirigirlhes algumas palavras:
A mensagem que desejo deixar é, ao mesmo tempo, de reconhecimento, de confiança e de
esperança.
O Reconhecimento
Conheço bem a história desta cinqüentenária Instituição, hoje aqui relembrada pelo seu Comandante e Diretor de Estudos. Por toda parte do nosso País, encontramos sempre alguém com
vínculos com a ESG, diretamente por ela formado ou produto de suas laboriosas ADESG, presentes nas principais cidades brasileiras, resultando num poderoso bloco de cerca de 70.000 pessoas,
unidas pelo propósito de bem servir ao Brasil. Pessoalmente, vivi essa experiência e embora não
tenha concluído, por motivo de serviço, o Curso da ESG que iniciei em 1990, considero-me, orgulhosamente, parte desse grande universo. O General BASTO, gentilmente, assegurou a minha
rematrícula. Quem sabe um dia o meu retorno seja possível?...
A Confiança
O Brasil, a partir do lançamento de sua Política de Defesa Nacional, em 1996, passou a viver
um histórico momento com a mudança de sua estrutura de defesa, o que resultou na criação do
Ministério da Defesa, em junho de 1999. O advento do novo Ministério abre para a nossa Pátria,
tanto no âmbito interno como no internacional, novas e promissoras perspectivas. Na mensagem de
confiança que tenho divulgado, afirmo que ele chegou para somar, para conquistar novos espaços,
para unir as forças vivas desta Nação e, por meio dessa união de esforços, ajudar o Brasil a vencer
os desafios que tem pela frente.
Com efeito, como órgão central encarregado da formulação de diretrizes que correspondam
aos objetivos políticos do Estado ou do Governo, cabe ao Ministério da Defesa estabelecer as
grandes linhas da defesa brasileira, fundadas na Política de Defesa Nacional, as quais nortearão as
atividades das Forças Armadas nas primeiras décadas do século.
É de ressaltar-se que, dentre esses objetivos, prevê a Política de Defesa Nacional a integração
das “visões estratégicas de cunho social, econômico, militar e diplomático e que conte com o respaldo da Nação.”
Ora, a defesa nacional é, hoje, assunto de interesse de toda a sociedade, a trazer como conseqüência que o enfrentamento de novas contingências torna imprescindível a ação concertada entre
civis e militares.
Por isso, afirmo que esse esforço conjunto de civis e militares fará com que aquelas diretrizes, emanadas do Ministério da Defesa, possam ser dotadas de maior legitimidade e transparência,
dando reforço de credibilidade, nos planos interno e externo, ao Sistema de Defesa Nacional.
Falando objetivamente a respeito da ESG, não faz parte de nossos projetos violentar suas
tradições, mudar seu nome, retirá-la do Rio de Janeiro (a propósito: ainda agora conseguimos os
recursos necessários para concluir o refeitório da Escola) ou desviá-la de seu notável papel de unir
civis e militares nos debates de importantes temas nacionais.
A Esperança
O que pretendemos – e essa é a nossa esperança – é aproveitar o extraordinário potencial da
Escola, aprofundando seus estudos no campo da defesa. Hoje, algumas personalidades propõem a
criação no Brasil de um Instituto Nacional de Defesa. Não vejo essa necessidade, se temos a ESG.
Há muito tempo esta Instituição discute a integração das Forças Armadas, elaborou um projeto de
doutrina militar brasileira e vem desenvolvendo, com seus estagiários, exercícios na carta de emprego combinado de Forças, entre tantos trabalhos. Posso afirmar, com segurança, que a Escola
muito contribuiu para a mudança da estrutura de defesa brasileira e para a criação do Ministério da
Defesa.
O Projeto ESG
Assim sendo, com o propósito de situar a Escola diante da nova realidade – a existência do
Ministério da Defesa – e, também, oferecer-lhe as melhores condições para desempenhar o seu
relevante papel, com o prestígio e o reconhecimento nacional que marcaram a sua trajetória, estamos
empreendendo, com ampla participação das partes envolvidas – ESG e Ministério da Defesa – por
meio de grupos de trabalho constituídos pela Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais, os debates em torno da revisão curricular, como atividade-fim, e de suas necessidades
administrativas, como atividade-meio, com o ideário – como disse – de somar, de conquistar novos
espaços e fortalecer uma Instituição que já é grande. Com essa visão, desejo que a Escola permaneça como instituto de altos estudos, priorizando, porém, a Defesa Nacional. Sendo o campo de
Defesa altamente dependente de todos os campos do Poder Nacional, é indispensável que aqui
também se discutam as Políticas de Governo na busca de propostas substantivas para aperfeiçoálas. Além disso, a ESG participará diretamente dos projetos em andamento no Ministério da Defesa, como, de imediato, poderá contribuir para a revisão da Política de Defesa Nacional. No resgate
do prestígio da Escola, queremos dar ênfase à valorização de seus recursos humanos – precioso
patrimônio a preservar – estimulando e facilitando o seu aperfeiçoamento, envolvendo-os em conferências, seminários, simpósios e outros encontros de interesse para o Ministério e, adicionalmente, buscando uma forma justa de remuneração de seu trabalho. Quanto aos estagiários, é meu propósito que a ESG seja a principal fonte de pessoal especializado para atender as necessidades do
Ministério da Defesa. Estamos realizando gestões para que os concludentes do Curso de Política e
Estratégia da ESG recebam o título de Mestrado, recompensando, desse modo, o esforço daqueles
que, voluntariamente, vêm compor o seu Corpo de Estagiários. Estuda-se, também, a gerência pela
própria Escola do processo de seleção para a matrícula em seus Cursos.
A Visita aos Estados Unidos
Falei às senhoras e aos senhores que o advento do Ministério da Defesa abre para o Brasil
novas e promissoras perspectivas, tanto no âmbito interno como no internacional. Vou ilustrar essa
afirmação com algumas colocações que fiz em recente visita aos Estados Unidos da América, a
convite do Governo americano.
Diante de uma assistência seleta de autoridades ligadas à área de segurança, defesa e relações
exteriores, curiosa com a presença, pela primeira vez, de um Ministro da Defesa brasileiro em seu
país, discorri sobre a nossa visão quanto ao papel do novo Ministério no Brasil. Disse-lhes que,
mais do que uma simples medida de racionalização administrativa, de entrosamento das Forças
Armadas à estrutura ministerial civil do Governo, o Ministério da Defesa tornou possível a abordagem mais abrangente e multidisciplinar dos temas relacionados com a segurança e a defesa, exigindo o envolvimento dos demais órgãos do Governo, do Congresso e de outros setores da sociedade.
Destaquei a crescente complexidade das questões de segurança e defesa, que envolvem fatores
extra-estatais e transcendem fronteiras, perpassando muitas vezes o aspecto puramente militar.
Disse-lhes que o Brasil pode ser considerado o articulador natural na América do Sul, sem qualquer
pretensão hegemônica, para promover a estabilidade e a cooperação regionais. Ressaltei que a
intenção do Brasil é estabelecer, com seus vizinhos sul-americanos, mecanismos de entendimento
no campo político-militar que afastem, definitivamente, a possibilidade de conflito armado no Continente, permitindo aos países a concentração de seus esforços no desenvolvimento econômico e
social. Lembrei que não se trata de formar alianças militares no sentido tradicional, ou de criar um
sistema de segurança coletiva na região – o que não significa que isso não possa ocorrer no futuro.
O que se pretende é promover o reforço do diálogo no nível da concepção das políticas de defesa,
dentro do marco democrático, facilitando o encaminhamento de soluções para outros problemas.
Ao abordar as preocupações comuns com o narcotráfico, fiz questão de enfatizar que a legislação
brasileira considera este problema como de natureza policial, a ser enfrentado por corporações
especializadas em combate ao crime, e não pelas Forças Armadas. Informei, por oportuno, a respeito das principais medidas que o Governo brasileiro alinhou em seu recente Plano Nacional de
Segurança Pública com relação ao combate ao tráfico de drogas. Pela atenção que a Amazônia
desperta entre os americanos, comuniquei aos presentes a reativação pelo Governo brasileiro do
Projeto Calha Norte e, também, a entrada em operação, em 2002, do sistema SIPAM / SIVAM,
destacando a contribuição desses programas à defesa e ao controle da região. Por último, transmitilhes a notícia sobre a consulta que estamos fazendo à sociedade civil, em exercício até agora inédito
no Brasil, para saber, de personalidades representativas de diferentes espectros da opinião pública,
o que o nosso País deve esperar de suas Forças Armadas no Século XXI.
Acredito que essa visita constitui um importante marco nas relações Brasil - Estados Unidos.
Ela abre espaços que, com criatividade e inteligência, devemos explorar.
Segurança e Defesa
Durante essa breve exposição, várias vezes me referi à segurança e defesa. O conceito que
tenho a respeito desses termos em nada difere do constante do manual “Fundamentos Doutrinários
da ESG”, que sintetiza, de forma objetiva, a diferença entre ambos: “Segurança é um estado, ao
passo que Defesa é um ato diretamente ligado a determinado tipo de ameaça, caracterizada ou
dimensionada”.
Portanto, como se conceitua em doutrina, a demonstrar que segurança e defesa se
interrelacionam, em dependência recíproca: “defesa é o conjunto de atos realizados para obter ou
resguardar a condição reconhecida como segurança”; e tendo-se por “segurança um estado ideal,
buscado permanentemente por meio de ações de defesa, no qual a sociedade não está submetida a
ameaças políticas, econômicas, militares ou psicossociais, não havendo, assim, obstáculos ao seu
progresso e ao bem estar.”
Palavras Finais
Senhoras e Senhores,
A atuação do Ministério da Defesa está direcionada para atender a sua ampla área de competências. Quando aceitei o desafio oferecido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso de ocupar
este destacado cargo, declarei a S. Exa que o considerava uma honra, um dever, uma missão a ser
cumprida com total dedicação, disponibilidade e lealdade.
Busquei apresentar uma visão de quão abrangentes são as nossas responsabilidades.
Estou ciente da magnitude dessa tarefa. É certo que, para a sua consecução, mister se faz uma
conjunção de esforços. Nesse sentido, somam-se o decisivo apoio do nosso Presidente, a compreensão do Congresso Nacional, a efetiva colaboração das outras áreas do Governo, a confiança e o
respaldo dos Comandantes de Forças e a participação de todos.
A nossa Escola Superior de Guerra está nessa composição de forças. Vamos precisar da total
participação dos senhores. Nesse sentido o canal de comunicação da ESG com o Ministério da
Defesa estará sempre aberto, favorecendo o diálogo e a troca de idéias com vistas ao nosso objetivo
comum: ajudar o Brasil a vencer os desafios que tem pela frente.
Tenho dito!
(*) Ministro da Defesa
DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E SOBERANIA
Sérgio Xavier Ferolla (*)
O quadro atual de incertezas quanto ao futuro, associado às elevadas taxas de desemprego e
violência, principalmente nos grandes centros urbanos, sugere profunda reflexão e análise sobre
modelos vitoriosos em passado recente e cujos resultados benéficos ainda podem ser mensurados
na indefinida e preocupante fase atual do desenvolvimento nacional.
O turbulento período porque passou o mundo nas décadas dos trinta e dos quarenta, culminando com a deflagração do 2o grande conflito mundial, que acabou por envolver nosso país, fez
com que alguns líderes militares do recém-criado Ministério da Aeronáutica, cuidassem com maior
ênfase da elaboração dos princípios doutrinários que deveriam reger o nascente Poder Aéreo e,
como decorrência, se preocupassem com a implantação de uma infra-estrutura logística e técnica,
capaz de permitir a operação eficiente da nova Organização, colhendo ensinamentos nas sofisticadas e poderosas Forças Aéreas que se defrontavam nos diversificados Teatros de Operações.
Vale lembrar que o Ministério da Aeronáutica, criado em 20 de janeiro de 1941, assumiu os
encargos da aviação civil e da infra-estrutura aeroportuária, até então aos cuidados do Ministério da
Viação e Obras Públicas, além de integrar a aviação militar e naval em uma estrutura homogênea,
a Força Aérea Brasileira. Surgiu assim o conceito singular de Poder Aéreo Unificado, englobando
a Aviação Civil, a Aviação Militar e a Infra-estrutura Aeronáutica, que por mais de meio século
proporcionou tantos benefícios aos país. O Brasil com suas dimensões continentais e seus parcos
recursos, há muito tem no avião uma prioridade em termos econômicos e de integração nacional.
Da análise acurada dos fatores preponderantes para o sucesso da missão, destacou-se a
priorização para a formação de recursos humanos de alto nível, capazes de absorver não só os
conhecimentos tecnológicos que surgiam de forma acelerada no cenário internacional, bem como
buscar soluções adequadas ao contexto nacional, numa época em que o Brasil se caracterizava por
uma economia predomitantemente agrícola, sendo portanto altamente dependente dos produtos industrializados vindos do exterior.
Diante desse quadro, e com uma visão quase profética, os pioneiros da Aeronáutica conceberam um centro de pesquisas nucleado em torno de uma avançada escola de engenharia, baseados
nos conceitos que emergiam nos países industrialmente desenvolvidos, de forma a assegurar a
realização de um desenvolvimento auto-sustentado no setor aeronáutico e cujos frutos se estenderiam a médio prazo ao parque industrial brasileiro e às atividades da aviação civil.
Em 1949, nas instalações da Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Engenharia
– IME, no Rio de Janeiro, começavam as aulas para a primeira turma concursada, que já no ano
seguinte chegaria a São José dos Campos, para se integrar ao recém-criado ITA, Instituto Tecnológico
da Aeronáutica.
Em um país com uma infra-estrutura industrial mínima, incapaz de fabricar até bicicletas,
iniciava-se a formação de engenheiros aeronáuticos altamente qualificados, seguidos por novas
especializações em eletrônica, mecânica e infra-estrutura aeronáutica, dando início aos meritórios
trabalhos que granjearam o reconhecimento nacional, como um dos fenômenos indutores do moderno desenvolvimento tecnológico brasileiro.
Nos laboratórios isolados, instalados no Campus da nova Organização da Aeronáutico, tiveram início trabalhos pioneiros de prospecção tecnológica e aplicação de novas técnicas, estimulando o surgimento de pequenas indústrias, num modelo de círculos concêntricos, em que o núcleo
opera como matriz supridora de recursos humanos e suporte laboratorial para os novos empreendedores.
Esse ambiente de excelência profissional transformou a cidade de São José dos Campos e a
região vizinha, no Vale do Rio Paraíba, em um pólo privilegiado para o florescimento das chamadas tecnologias de ponta, sediando atualmente inúmeras indústrias, duas Universidades privadas,
Escolas Técnicas e de Engenharia e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, do Ministério da
Ciência e Tecnologia. 1)
Ao contrário do modelo predominantemente apregoado para nosso parque industrial, a experiência da Aeronáutica demonstra que um desenvolvimento científico e tecnológico autóctone, por
necessitar de maior período de maturação, exige persistência e confiança no futuro, mas é a única
forma de se assegurar o lançamento, pela indústria nacional, de produtos adequados ao mercado e
capazes de sobreviver no acirrado ambiente de competição nacional e internacional.
Em que pesem as distorções do momento, não há porém como fugir à evidência de que
variados segmentos da sociedade caminham em busca de uma atuação globalizada e que estamos
sendo inseridos nesse processo. Devemos, porém, buscar as estratégias de inserção definidas por
nós, que levem em conta as nossas realidades, nossas carências e nossas vantagens, nossos valores
e nossos ideais. Estratégias que, levando em conta nossa heterogeneidade, saibam, preservar nossa
unidade e reafirmar nossa soberania.
Se uma maior inserção de nossa sociedade na convivência internacional é um imperativo de
nossos dias, devemos fazê-lo segundo um modelo que, respeitando as nossas regras das boas relações internacionais, atenda a nossa necessidades e aspirações.
Não nos interessam modelos importados, por mais elaborados que se apresentem e qualquer
que seja a sua origem, uma vez que não atendam a um princípio fundamental – o interesse nacional.
O desenvolvimento de uma nação não se mede tão-somente pelas variáveis comuns das estatísticas econômicas, mas principalmente pela existência de um clima de liberdade de atendimento
às oportunidades para todos os cidadãos e pela capacidade de atendimento às necessidades de
alimentação, trabalho, saúde, educação e segurança de seu povo.
No Brasil, em particular, pelas políticas adotadas, é destacada a participação de empresas
transnacionais no parque industrial nacional. Dessa forma, raramente a inteligência nacional é chamada para geração de produtos destinados aos grandes mercados, popular e profissional; já que tais
1)
Cidadãos com nível universitário especializando-se em cursos técnicos em busca de uma chance de trabalho
(JN, 10 Set. 99)
empresas trabalham sob a direção de suas matrizes no país de origem, utilizando suas filiais, em
geral, para a produção de alguns materiais e componentes, seguindo uma estratégia de maximização
de lucros e interesses corporativos, de forma a otimizar as transações intra-empresas do mesmo
grupo.
Esse é um aspecto peculiar no atual contexto, observando-se mais uma internacionalização
nas transações, do que propriamente a tão propalada globalização, já que, fora dessa cadeia intraempresas, persistem os bloqueios e as dificuldades de atuação em certos mercados do hemisfério
norte, para produtos em que existem oportunidades de competir em condições vantajosas. Complementarmente, a sofisticação tecnológica e as preocupações com o meio ambiente, têm surgido
como argumento para dificultar o acesso competitivo aos referidos mercados, aumentando os óbices nos programas de exportação dos países ditos emergentes.
Assim, a abertura econômica indiscriminada, apregoada como panacéia por influentes segmentos de alguns países industrialmente desenvolvidos, tem propiciado a preponderância de um
vetor comercial/exportador com orientação norte-sul, com a redução do espaço até então ocupado
pelas empresas locais, devido as importações resultantes do processo desigual de competição, bem
como a diminuição da produção local de componentes e partes para os produtos ofertados pelas
empresas transnacionais, que na internacionalização das suas transações adotam predominantemente os pacotes CKD, em busca da otimização dos lucros e dos processos produtivos. 2)
Sob uma falsa ótica de modernidade, os Estados passam a não mais ter argumentos para
proteger as empresas locais, que para prosseguirem atuando, também se valem das vantagens da
importação sobre a produção local, passando a política industrial a ser orientada por interesses
alienígenas, nem sempre convergentes com os interesses nacionais.
Boa parcela dessas empresas, quando muito, investem na aquisição das informações
tecnológicas ainda disponíveis no exterior, bem como na aquisição de máquinas e equipamentos
para os novos processos que lhes são fornecidos, sobrevivendo assim por pequenos ciclos, já que
adquirem o “Know-how”, mas dificilmente o “know-how”, quase sempre restrito aos laboratórios
das grandes organizações.
Uma das conseqüências desse ciclo pernicioso, no qual a maximização dos lucros é o objetivo primordial, é o desestímulo à inteligência nacional, principalmente nos setores da tecnologia e
da indústria. 3)
Como alternativa possível, nesse complexo ambiente que o mundo nos apresenta, resta-nos
priorizar aqueles setores ainda sob controle nacional e buscar investir em segmentos estratégicos,
que de forma direta e ou indireta gerarão subsídios para a participação da tecnologia e da empresa
brasileira em produtos mais elaborados, além de maximizar os incentivos aos laboratórios dos
Institutos de Pesquisa e das Universidades, com vistas ao aumento da produção científica doméstica.
2)
Até a crise do real, dentro do quadro de utopia forjado pelo Governo Federal para fins eleitoreiros, a indústria automobilística importava em média 70% dos componentes dos automóveis ditos nacionais. Com a desvalorização do real, as importações
passaram a onerar significativamente os custos de produção, havendo em conseqüência uma busca de fornecedores na indústria
de autopeças brasileiras, que haviam sido praticamente desativadas, em virtude da política indiscriminada de importações, resultante do modelo neoliberal implementado pelo Governo.
3)
A indústria aeronáutica é um exemplo de sucesso no Brasil, tendo sido a EMBRAER, em 1999, a empresa campeã de
exportações, superando inclusive a Vale do Rio Doce.
Uma empresa ainda nacional (tenho sérias preocupações quanto ao seu futuro), conseqüência de uma visão de longo prazo dos
pioneiros da Aeronáutica, em particular do Marechal Casimiro Montenegro, que iniciaram a formação de recursos humanos
altamente qualificados em aeronáutica e eletrônica, no ITA, na década de 50, quando da indústria nacional não era capacitada a
fabricar bicicletas. Vinte anos depois, surgia a EMBRAER, com o avião Bandeirante projetado no CTA e que passou a operar em
todos os Continentes e, principalmente, nos EEUU.
Possuindo uma razoável capacitação científica, tecnológica, industrial e empresarial, além de
um significativo mercado interno, aspira nosso país a um desenvolvimento auto-sustentado em
determinados setores, o que só terá viabilidade se priorizadas, especialmente, estratégias de acesso
aos novos conhecimentos, e a aquisição facilitada de componentes, equipamentos e máquinas de
geração avançada.
As modernas indústrias serão preponderantemente indústrias do conhecimento, uma vez que
a característica principal das novas tecnologias é sua elevada densidade de ciência, desenvolvida e
aplicada de imediato nos laboratórios e, de forma quase simultânea, transferida para os processos e
produtos industriais.
Microeletrônica, robótica, biotecnologias, química fina, novos materiais e energia, são os
destaques principais dessa onda inovadora, que, certamente, acarretará mudanças ainda mais significativas na divisão internacional do trabalho. O novo patamar tecnológico tornará cada vez mais
vulneráveis as economias que apoiam sua estrutura produtiva e a competitividade de seus produtos
na mão-de-obra barata e pouco qualificada, nos insumos tradicionais, nos recursos naturais abundantes e, principalmente, na importação pura e simples de informações tecnológicas, para a satisfação de mercados consumidores predominantemente externos, cada vez mais exigentes, competitivos e restritivos.
Dentro desse quadro de profundas transformações, inserem-se ainda componentes políticos e
comerciais, que, cada vez mais, ampliarão o “GAP” entre os países industrialmente desenvolvidos
e aqueles que lutam para emergir da humilhante e difícil situação de simples economias periféricas. O Brasil, por suas características especiais entre os países em desenvolvimento, é um dos alvos
principais do ímpeto disciplinador que vêm demonstrando os países industrialmente desenvolvidos, como forma de assegurar a atual situação de hegemonia nos mercados.
Para obter sustentar uma posição de destaque nessa nova etapa que se descortina, o Brasil
deverá dedicar grande esforço na preparação de recursos humanos capacitados ao atendimento das
futuras exigências do parque industrial, bem como investir maciçamente em desenvolvimentos
tecnológicos, de forma a acompanhar a grande corrida que já se iniciou, gerando tecnologias próprias ou se capacitando a adaptar e, se possível, simplificar as tecnologias importadas, tornando-as
mais acessíveis e compatíveis com os recursos e os processos produtivos existentes em um país em
fase de desenvolvimento.
Que a remoção dos óbices que entravam ou retardam o desenvolvimento do nosso país, seja
atingida de forma definitiva e em curto espaço de tempo, pela utilização de uma energia de poder
avassalador, a energia humana, que altamente qualificada e motivada pela vontade nacional em
busca do progresso e da justiça social colocarão o Brasil na posição de destaque que faz jus no
conserto nas nações.
(*) Ten.-Brig.-do-Ar e Ministro-Presidente do Superior Tribunal Militar e ExComandante da Escola Superior de Guerra
PROGRAMA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA 2000
Théo Espindola Basto(*)
“Ao chefe não cabe ter medo das idéias, nem mesmo das idéias novas. É preciso, isto sim,
não perder tempo, empreendê-las e realizá-las até o fim”. (Marechal Castello Branco)
Ao assumir o comando da Escola Superior de Guerra em 17 de dezembro de 1999, percebi
que se aproximava um ano de extrema importância para a cinqüentenária Escola. Percepção essa
que vem se confirmando a cada dia.
O século XX foi pródigo na busca de soluções para os conflitos humanos; igualmente na
deflagração deles.
Após a I Guerra Mundial verificou-se que a defesa das nações deveria se basear em estudos
profundos das causas e efeitos dos conflitos e que não diziam respeito tão somente aos militares,
deveriam ser conduzidos por civis e militares, reunidos em institutos de altos estudos.
Um especialista francês em estudos político-estratégicos, Jean Essig, no trabalho “Os
aspectos civis e militares da Defesa Nacional”, atribui à França a primazia na criação de um
Instituto de Altos Estudos, Ecole de Hautes Etudes, 1936. Entretanto, segundo documento recente do National War College, a precedência é do Reino Unido com o Imperial War College, 1927,
mais tarde Royal College of Defense Studies, em Londres.
Não consideramos o Industrial College, nos Estados Unidos da América,
fundado em 1924, como o mais antigo instituto, por ter sido destinado exclusivamente ao estudo da economia de guerra, após a amarga experiência dos norte-americanos na Guerra de 1914.
Após o fim da II Guerra Mundial, proliferaram os centros de estudos político-estratégicos:
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National War College, EUA, 1946;
National Defense College, Canadá, 1947;
Centro Alti Stude Militari, Itália, 1949;
Escola Superior de Guerra, Brasil, 1949;
Escuela de Defensa Nacional, Argentina, 1950;
National Defense College, Japão, 1952.
Além desses, criaram-se até o ano de 1960, outros congêneres: URSS,
Colômbia, Peru, Romênia, Iugoslávia, Noruega, Grécia, Holanda, Suécia, Turquia,
Tailândia, Coréia do Sul e Índia.
A Lei No 785, de 20 de agosto de 1949, que criou a Escola Superior de Guerra (ESG) foi
sancionada pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra e referendada por todos os dez ministros da época.
Determina que ela funcione como centro permanente de estudos e pesquisas para “desenvolver e
consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para o planejamento da segurança nacional”. Considera, também, que todos os oficiais das Forças Armadas,
igualmente os servidores civis ou militares, quando em serviço na Escola, como no exercício efetivo dos cargos, sem prejuízo para suas respectivas carreiras. Assegura, ainda, aos integrantes da
Junta Consultiva integrada por “eminentes personalidades, civis ou militares, do ensino superior,
ou de notável projeção na vida pública do País”, que sua colaboração seja considerada serviço
relevante prestado à Nação.
Nos seus 50 anos, a Escola transitou por significativos fatos históricos, adequando-se, em
alguns momentos, contudo mantendo-se fiel às finalidades a ela atribuídas:
desenvolver um método de análise para o estudo dos problemas nacionais;
criar o hábito de trabalho em conjunto entre civis e militares da mais alta responsabilidade;
discutir e defender conceitos amplos e objetivos sobre segurança nacional.
A Escola Superior de Guerra de Hoje
Após cinqüenta anos considerada como um órgão da Presidência da República e subordinada
diretamente ao Ministro Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, a ESG passa à subordinação
do Ministério da Defesa, ano de 1999.
Neste período, entre civis e militares, foram 2 640 diplomados na ESG e cerca de 67 000 nos
Ciclos de Estudos Políticos das Associações dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
A Escola se estrutura pelos seguintes órgãos:
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Direção;
Junta Consultiva;
Departamento de Estudos;
Departamento de Administração.
O Comandante dispõe, como órgãos de assessoramento:
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Corpo de Conselheiros;
Corpo de Conferencistas Especiais;
Centro de Estudos Estratégicos;
Assessoria de Controle.
O Departamento de Estudos coordena as atividades de nove divisões:
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Assuntos Políticos;
Assuntos Econômicos;
Assuntos Psicossociais;
Assuntos Militares;
Assuntos Científicos e Tecnológicos;
Assuntos Internacionais;
Assuntos de Inteligência;
Assuntos de Logística e Mobilização.
· Apoio ao Departamento de Estudos.
A Escola conta com o apoio das Divisões de Planejamento, Pesquisa e Doutrina, Avaliação, Simulação e Jogos Estratégicos, Extensão, Publicações, Comunicação Social e da Divisão
de Biblioteca, Intercâmbio e Difusão.
Atualmente, freqüentam os diversos cursos oferecidos pela Escola, 150 estagiários, assim
distribuídos:
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Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia, 76;
Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia Militar, 13;
Curso Superior de Inteligência Estratégica, 13; todos com a duração de quarenta semanas;
Curso Intensivo de Mobilização Nacional, 35;duração de dezessete semanas;
Curso Especial de Altos Estudos de Política e Estratégia,13.
Este destinado a estrangeiros e nacionais e com a duração de vinte semanas. Está no seu
quinto ano de funcionamento. Diplomaram-se, além de quatro brasileiros, oficiais dos seguintes
países:
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Argentina, três;
Colômbia, dois;
Equador, cinco;
Estados Unidos da América, um;
Guatemala, dois;
México, três;
Paraguai, um;
Peru, oito;
Portugal, um;
Suriname, um;
Uruguai, três;
Venezuela, nove.
No corrente ano, estão freqüentando este Curso, uma brasileira e doze militares, a saber:
quatro venezuelanos, três peruanos, e um de cada país, respectivamente Argentina, Equador, México, Rússia e Uruguai.
Além dos Cursos regulares, a ESG tem participado dos Ciclos da ADESG e vem desenvolvendo Ciclos de Debates no seu Centro de Estudos Estratégicos. Neste Centro, realizamos importantes debates: a ESG e o futuro; a economia brasileira; estratégia brasileira; política de defesa
nacional e integração sul-americana. Temas capitais para o País.
O I Ciclo de Extensão, ano 2000, de 10 a 21 de julho, abordou: “A Globalização e o Brasil
Contemporâneo”. Realizado em horário após o expediente, constou de cinco conferências, três
painéis e de diversos trabalhos em grupo.A presença de mais de 150 participantes, confirmou a
importância desse evento. O II Ciclo de Extensão desenvolveu, nos mesmos moldes, o tema: “Poder Nacional e Segurança Hemisférica-Defesa Sul-Americana”.
No campo das relações internacionais, a ESG ocupa uma importante posição, particularmente no âmbito ibero-americano. Após a Primeira Reunião de Diretores de Colégios de Defesa IberoAmericanos realizada na Espanha, ano 1999, a segunda, prevista para Buenos Aires, em 2000, foi
postergada para o próximo ano, com sede no Rio de Janeiro, sob os auspícios da ESG.
Este ano recebemos as visitas do National War College, dos Estados Unidos da América, da
Academia Nacional de Estudos Políticos e Estratégicos do Chile, do Instituto Real Superior de
Defesa da Bélgica e dos Cursos Superiores das Forças Armadas de Portugal.
Para que possamos refletir sobre a conjuntura atual, procurarei explicitar, objetivamente, os
principais problemas com que a Escola se defronta, atualmente.
A ESG subordinada, durante cinqüenta anos, ao Ministro-Chefe do Estado-Maior das Forças
Armadas passa à subordinação do Secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do
Ministério da Defesa; em conseqüência, seu comandante passa aser um oficial-general de “três
estrelas”. Anteriormente, o comandante, um general de “quatro estrelas”, dispunha como
subcomandante de um Vice-Almirante (General-de-Divisão ou Major-Brigadeiro), com hierarquia
superior aos oficiais-generais de “duas estrelas” que são selecionados para o Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. No corrente ano, o Subcomandante e Diretor do Departamento de
Estudos é mais moderno que o chefe da turma de estagiários.
Para assessorar o Comandante, o atual Regulamento, Art 29, prevê, como Assistentes do
Comando, um oficial-general de cada Força e um Ministro de 2 ª Classe do Ministério de Relações
Exteriores. Dos três Assistentes, apenas um pertence ao Corpo Permanente, um Contra-Almirante.
A Aeronáutica é representada por um Brigadeiro-do-Ar estagiário e o Exército por um Coronel,
interinamente. Desde 1992, a Escola não recebe o concurso de um diplomata, presença importante
para quem estuda a inserção internacional do Brasil e os reflexos da conjuntura mundial na política
nacional.
O processo de seleção dos estagiários mostrou-se rigoroso desde o início. O primeiro Regulamento da Escola definia que seriam admitidos no Corpo de Estagiários “oficiais das Forças Armadas de comprovada experiência e aptidão e civis de notável competência e de atuação relevante
na orientação e execução da política nacional”. Outros institutos estrangeiros de Altos Estudos, da
mesma forma, admitiam o ingresso de civis, porém os restringiam a funcionários do Estado. A ESG
desde as origens, sábia e democraticamente, abriu seus quadros a civis dos setores público e privado.
A seleção rigorosa é o marco inicial para o alto nível dos futuros trabalhos. Reflete o prestígio
da Escola. É impositivo, pois, que a demanda de candidatos supere a oferta de vagas. O que ocorre
desde 1996 é o inverso, considerando-se o ano de 1998, como a exceção, em que tivemos mais de
um candidato por vaga.
É importante a participação de estagiários oriundos das mais diversas regiões, para assegurar
uma representatividade nacional nos estudos e trabalhos a serem realizados. Atualmente, existe
uma concentração na área Sudeste onde 67 % dos estagiários provêm dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
A atual duração do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia de 40 semanas, correspondente a um ano letivo, tem sido considerado, por algumas organizações e empresas, fator restritivo
à indicação de seus funcionários ou empregados. São aspectos que devem ser considerados. Significa custos para quem faz a indicação e traz reflexos negativos sobre a produtividade, pela ausência
prolongada. Tempo e dinheiro são os vetores mais relevantes da visão empresarial dos nossos dias.
Neste ano, apresentaram-se questionamentos sobre o ônus das cessões de servidores públicos
postos à disposição da Escola. O ônus pela permanência dos mesmos seria do Ministério da Defesa.
Considerou-se, suponho, que por estarem no mesmo nível, um Ministério não deveria custear as
despesas do outro.
A dotação de recursos orçamentários é outro ponto de preocupação para o Comando. Faz-se
a previsão de recursos para realizarem-se os cursos da Escola. Ora, sabe-se que um Instituto de
Altos Estudos deve instituir seminários, ciclos de debates e pesquisas que impõem necessidades
financeiras de relativo vulto. As dotações vêm, desde 1997, sofrendo cortes que interferem negativamente nas atividades curriculares; o que dizer das outras, em particular de estudos estratégicos e
de pesquisas?
O Programa ESG 2000
Baseados nestas reflexões focalizamos em cinco, os principais problemas com que, atualmente, a ESG se defronta. São eles:
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desatualização em face da nova conjuntura;
possibilidade de perda de significativo acervo cultural;
perda de status da Escola;
existência de uma estrutura interna inadequada;
exigüidade de recursos orçamentários.
Pretendemos, então, esboçar as idéias iniciais sob a forma de cinco Projetos, reunidos no
“Programa ESG 2000” e que orientam as atividades de atualização da Escola, neste período
letivo. Ressalte-se que as atividades da ESG não sofrem solução de continuidade, ao contrário
são intensificadas para alcançar, em curto tempo, as metas fixadas. Eis os projetos:
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Modernização do Ensino;
Modernização e Racionalização Administrativa;
Fundação;
Patrimônio Cultural;
Imagem da ESG.
a)
Projeto Modernização do Ensino
O Regulamento da ESG, aprovado pelo Decreto No 2.090, de 09 de dezembro de 1996,
deverá ser atualizado no corrente ano.
Os trabalhos conduzidos na Escola pelos gerentes de Projeto estão em sintonia com os desenvolvidos no Ministério da Defesa.
Por serem fundamentais para um Instituto de Altos Estudos, as atividades de pesquisa, extensão, intercâmbio e difusão, estão mantidas.
Entendemos que o enfoque da Defesa não pode prescindir da visão abrangente da Segurança.
Enquanto aquela é um ato contra ameaças, esta um estado, o grau relativo de garantia da salvaguarda e consecução dos objetivos que a nação estabelece para si. Considerando-se que Defesa e Segurança são duas faces da mesma moeda, pode-se afirmar que ambas coexistem num conceito ou no
outro. A criação do Ministério da Defesa demonstra nítida diretriz governamental pela Defesa.
A cada conjuntura uma prioridade. Nos tempos atuais, nos parece ser a hora de acrescer ao
binômio Defesa e Desenvolvi-mento (Segurança e Desenvolvimento) uma terceira dimensão que
envolve o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade e a igualdade de oportunidades: a
Justiça Social. Ao estabelecer para a ESG como base para seus estudos o trinômio – Defesa, Desenvolvimento e Justiça Social – estaremos em consonância com o espírito de nossa Carta Magna,
expresso no seu preâmbulo.
O Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE) deverá ser atualizado pelo enfoque
da Defesa, mantendo a moldura nacional e internacional, de Segurança, Desenvolvi-mento e Justiça Social, que proporcionarão, a partir de uma acurada avaliação conjuntural, a formulação de
Concepções Política e Estratégica Nacionais, norteadoras do estabelecimento da Política de Defesa
Nacional. Quanto à duração do Curso torna-se prudente maior racionalização do tempo de estudo
presencial. As facilidades do ensino à distância permitirão que o Período Básico seja transmitido,
com oportunidade e permanente interação estagiário-Escola, via internet. A fase conjuntural seria
conduzida na Escola. Para os militares, atendendo às necessidades do Ministério da Defesa, realizar-se-ia um Estágio de Aplicações Militares em Estratégias Militar e de Guerra. Serão elaborados
estudos que possibilitem aos diplomados obter o suporte legal do nível de Pós-Graduação.
Passamos, em seguida, a detalhar os objetivos do CAEPE.
Habilitar civis e militares para o exercício das funções de direção e assessoramento de alto
nível, especialmente nos órgãos responsáveis pela formulação e acompanhamento da Política de
Defesa Nacional e das estratégias de Defesa decorrentes. Contribuir para o aprimoramento do planejamento da segurança e do desenvolvimento nacionais e das ações que visem à justiça social.
O atual Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia Militares (CAEPEM) será substituído
pelo Curso de Estado-Maior Combinado (CEMC), voltado inteiramente para os assuntos de Defesa. Destinado a militares que forem designados para o Ministério da Defesa, Comandos de Forças,
Grandes Comandos Combinados e Estados-Maiores de Forças internacionais. O Curso será
estruturado e conduzido por instrutores das Forças, contando com o apoio da Escola. Será um
magnífico instrumento para avaliação e pesquisas do interesse do Estado-Maior de Defesa.
O CEMC deverá habilitar oficiais superiores das Forças Armadas, com o Curso de EstadoMaior, para o exercício de funções de direção e assessoria no Ministério da Defesa, Estados-Maiores das Forças, Grandes Comandos Combinados e Forças internacionais, em cargos responsáveis
pelo planejamento estratégico e pelo planejamento de operações combinadas .
O Curso Especial de Altos Estudos de Política e Estratégia (CEAEPE) será mantido nos
moldes atuais. São vinte semanas de duração e a realização de duas viagens pelo Brasil. Seus
objetivos continuarão a ser os de proporcionar a civis e militares, nacionais e estrangeiros, conhecimentos para o exercício de funções em órgãos responsáveis pela formulação de políticas, estratégias e planejamentos de governo, contribuir para o incremento do intercâmbio com as nações amigas e difundir as bases do planejamento estratégico preconizadas pela ESG.
O Curso Superior de Inteligência Estratégica (CSIE) mantém os objetivos atuais: habilitar
civis e militares para o exercício de funções de direção e assessoria superior em Inteligência Estratégica, nos órgãos responsáveis pela formulação e acompanhamento da Política Nacional e pelo
planejamento da obtenção e análise de conhecimentos decorrentes.
O Curso Intensivo de Mobilização Nacional (CIMN) mantém seus objetivos: preparar recursos humanos para operar o Sistema Nacional de Mobilização e difundir uma mentalidade voltada
para as necessidades do País nesta área.
Curso de Atualização da ESG (CAESG) deverá valer-se das facilidades do tele-ensino e
incrementar a interação com os diplomados, por intermédio de um “site” da Escola e a disponibilidade de consulta diária. Seus objetivos serão mantidos.
Canais de comunicação ágeis podem e devem ser estabelecidos entre os recém-criados órgãos do Ministério da Defesa e os Cursos, Departamentos e Divisões da ESG.
Exemplifico algumas dessas ligações: a Secretaria de Política e Estratégia e Assuntos Internacionais, por intermédio de seu Departamento de Política e Estratégia com o Curso de Altos
Estudos de Política e Estratégia; o Departamento de Inteligência Estratégica com o Curso Superior
de Inteligência Estratégica; o Departamento de Assuntos Internacionais com a Divisão de Assuntos
Internacionais. Dentro do mesmo raciocínio, a Secretaria de Logística e Mobilização com o Curso
Intensivo de Mobilização Nacional; seu Departamento de Ciência e Tecnologia com a Divisão de
Assuntos Científicos e Tecnológicos. O Estado-Maior de Defesa conta com um excelente “centro
de operações” na ESG. Seus cursos – CAEPE e CEMC, nas áreas político-estratégicas – e os
CEAEPE, CIMN e CSIE, no embasamento de Inteligência e Mobilização.
A interação entre a ESG e o Ministério da Defesa permitirá à Escola que seu trabalho seja
orientado pelas necessidades do Ministério e este dispor de um centro de altos estudos, um laboratório de idéias: conhecimento, disponibilidade, experiência e seriedade avalizam e dão respeito a
qualquer produção intelectual desta Escola.
b)
Projeto Modernização e Racionalização Administrativa
A Escola deverá submeter-se à avaliação de toda sua estrutura de ensino e administrativa
para localizar e corrigir desperdícios ou mau uso no emprego de recursos humanos, materiais e
financeiros. Valorizamos a intenção constante da eficiência e da eficácia.
c)
Projeto Fundação
As dificuldades orçamentárias que afetam nossa atividade-fim necessitam de uma solução. Do ponto de vista das linhas de ação levantadas, no planejamento da criação de uma Fundação,
devem ser estudadas, logicamente, todas as implicações e, na justa razão, avaliadas as vantagens e
desvantagens.
O trabalho já produzido na área do conhecimento e a experiência de seu Corpo Permanente garantem a qualidade dos resultados. Trabalho poderá gerar recursos financeiros. Auto-gestão,
mesmo que parcial, deverá ser analisada.
d)
Projeto Patrimônio Cultural
São cinqüenta anos de História. Mais de 6.000 monografias elaboradas pelos estagiários
das mais diversas origens e formações universitárias. Uma biblioteca com mais de 40 000 títulos.
Som e imagem em arquivos de palestras e conferências de mais alto nível proferidas por respeitáveis autoridades do País.
Torna-se evidente, realçar a necessidade de resguardar este rico acervo do Brasil e preservar sua memória.
e)
Projeto Imagem da ESG
A Escola desempenhou durante anos uma posição fundamental no aperfeiçoamento da
elite brasileira. Em perfeita sintonia de ideais, civis e militares estudam o Brasil no rumo das melhores soluções para os graves problemas nacionais.
Atenta aos postulados democráticos e visando ao bem comum, jamais procurou ser uma
forja de leis ou um órgão consultivo governamental. O precioso acervo de avaliações conjunturais
e propostas de políticas e estratégias estão sempre ao dispor das autoridades. Deve-se realçar que
não cabe à ESG nenhuma ingerência na vida pública.
A boa imagem da Escola está na razão direta do rigor na seleção de seu Corpo de Estagiários. Não existe outro centro de altos estudos com características iguais às da ESG. A faixa etária
deve proporcionar a experiência mínima necessária e a disponibilidade de vida para a aplicação dos
ensinamentos auferidos. A convivência entre civis e militares é salutar para o conhecimento recíproco e para a qualidade das produções intelectuais, mais diversificadas, advindas de diferentes
formações. Há necessidade de rever os critérios para a seleção de estagiários, particularmente quanto
à representatividade nacional.
Existe a necessidade de que se atue com maior desenvoltura na área da Comunicação
Social e se intensifiquem os contatos com os setores mais representativos da sociedade brasileira.
Devemos exaltar, nessa perspectiva, que a maior participação da ESG na difusão dos seus
conhecimentos, por intermédio das Delegacias e Representações da ADESG, traduzirá dinamismo
e seriedade às suas intervenções intelectuais.
É importante que os conhecimentos auferidos na Escola sejam realmente úteis. A funcionalidade da ESG, ou seja, seu custo-benefício positivo para o País se encontra no aproveitamento
de seus concludentes em cargos que possam aplicar os conhecimentos adquiridos. O Ministério da
Defesa e os Comandos de Forças são os destinatários naturais dos diplomados pela ESG.
Algumas propostas de utilização da ESG pelo Ministério da Defesa, a título de colabora-
ção:
· organizar um Ciclo de Estudos sobre um determinado assunto ou tema, para a elaboração de
um Plano de Ação;
· conduzir um estágio intensivo na preparação de oficiais que cumprirão missão em uma
Força de Paz internacional;
· conduzir Estágios de Preparação para missões internacionais, tais como a Representação
Brasileira na Junta Interamericana de Defesa e adidâncias das Forças Armadas;
· apoiar a preparação de oficial que deva participar de fóruns internacionais;
· coordenar a apresentação de uma conferência para estabelecimentos de ensino das Forças
Singulares;
· submeter determinado tema à discussão universitária.
Conclusão
A Escola foi criada em 1949, com a finalidade de “desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para o planejamento da segurança nacional”.
Hoje, passados cinqüenta anos, pergunta-se: permanece válida essa finalidade?
O preâmbulo de nossa Constituição Federal explicita o que se deseja defender:
“...um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...”.
A Escola Superior encontra sua fonte primeira de inspiração no preâmbulo da Constituição
Federal onde sobrelevam a Segurança, o Desenvolvimento e a Justiça Social.
Portanto, as finalidades para as quais a ESG foi criada permanecem válidas: prover um método de análise para estudos; integrar civis e militares em trabalhos de responsabilidade e discutir e
defender conceitos e objetivos sobre segurança nacional.
A ESG prestou um serviço de grande relevância quando alertou que a segurança dependia do
desenvolvimento do país e não apenas do fortalecimento do potencial militar. Passou-se da visão de
segurança como uma questão militar, em que os dispositivos legais, na Constituição de 1946 estavam no título consagrado às Forças Armadas, ao da Segurança e Desenvolvimento. Ressalta-se no
conceito o atributo volitivo, vez que a vontade nacional terá um papel protagonista nas ações de
Defesa.
Hoje, mais do que nunca, a nação brasileira precisa voltar-se para os prognósticos de defesa
da herança e do sonho que nos legaram os antepassados. Não se trata da existência ou não de
inimigos: mas sim, do que defender e preservar. É necessário, portanto, que a cada dia, civis se
juntem aos militares, no trato de assuntos que qualifiquem e quantifiquem os riscos à nossa integridade, estabilidade social e desenvolvam pesquisas e estudos geradores de atitudes e ações para
superá-los.
Só através do exame metódico e aprofundado da moldura internacional e do quadro nacional,
poderemos estabelecer políticas e estratégias que superem as ameaças de um mundo sem distâncias, assimétrico e competitivo. É o grande desafio do novo milênio.
Creio que, neste segundo semestre, a ESG apresentará um esforço realizador, após exaustivas
avaliações no âmbito interno quando, orientado por diretrizes do Ministério da Defesa, advirão
suas propostas de um novo Regulamento da Escola.
Do mesmo modo, não parece que haja mais dúvida, é necessário adequá-la à nova conjuntura, sem abdicar da importante participação no aperfeiçoamento das elites brasileiras e da fundamental liberdade acadêmica que enriquece o conhecimento.
O “Programa ESG 2000”, constituído por cinco projetos, tem como finalidade adequar as
estruturas de ensino e administrativa à subordinação ao Ministério da Defesa e à conjuntura atual.
Modernizá-la para melhor atender às demandas em estudos e pesquisas; preservar sua memória e o
patrimônio cultural enriquecido por cinqüenta anos de existência; modernizar e racionalizar o emprego de recursos humanos, materiais e financeiros buscando economia e eficiência; e estudar
novas formas de aportes de recursos que possam ser aplicados à pesquisa definem os objetivos
operacionais dos projetos.
Assim, o Programa pretende operacionalizar, de forma moderna, ágil e dinâmica as relações
da Escola.
Por isso, consideramos agora com a força de uma conclusão que o Ministério da Defesa tem
à sua disposição um centro de estudos e pesquisas de renome nacional e internacional, com experiência e conhecimento acumulados em cinqüenta anos de profícua atividade intelectual nos campos
da Política e da Estratégia e um Corpo docente sério, competente e idealista. Trabalho é
recompensador, por sabê-lo destinado ao Bem Comum.
Defender o Estado Democrático vai além da defesa do patrimônio tangível, pressupõe a realização de um sonho: o sonho da construção de uma sociedade justa e feliz.
A Escola Superior de Guerra, ontem e hoje, sempre estudando o Brasil, persegue este sonho.
(*) General-de-Divisão, Comandante e Diretor de Estudos da Escola Superior de Guerra
O SÉCULO XXI PARA A ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
Oswaldo Muniz Oliva(*)
I.
Retrospecto
1. Na “Revista da ESG” No 38/1999 (1) focalizei o evoluir do processo denominado globalização,
que a todos envolve. Desse cenário, qual numa plataforma de lançamento, destaca-se a necessidade
de revermos nosso modo de inserção no cenário internacional. Surge, também, a vantajosa posição
geográfica, a qual nos propicia ligações, por vias interiores, com toda a América do Sul, e, aponta
para o fortalecimento do núcleo, o MERCOSUL. Ficou bem caracterizada a necessidade e a importância da sociedade brasileira participar, diretamente e com voz forte, na elaboração de nossas
políticas estratégicas nacionais, em especial, na área do comércio exterior. Nesta, objetivos maiores
devem ser a busca de tecnologias específicas e a captação de capitais, bem como a produção de
superávit comercial.
2. Conclusão decorrente aponta para a importância de nosso mercado interno. Só por meio
dele daremos suporte a grandes empresas nacionais, muitas das quais, naturalmente, chegarão à
situação de multinacionais ”Global Traders”, é importante lembrar que nós próprios brasileiros
somos esse mercado interno, o qual constitui-se em nossa maior riqueza.
II. O MERCOSUL
3. Para o Brasil, a consolidação do MERCOSUL deve merecer alta prioridade. Suas
consecução e consolidação abrirão espaços para o espramento natural para toda a América do Sul.
4. Ainda recentemente, confirmando esta visão sobre a Latino América, a Revista “Época”, de 03 de abril de 2000, publicou algumas estatísticas, por ela colhidas em uma pesquisa sobre
o MERCOSUL, coordenada pela USP (Universidade de São Paulo). Sem entrar em detalhe, apresentou algumas das conclusões importantes:
· O Brasil é considerado como Nação simpática e parceiro econômico fundamental, para 80% de
argentinos, chilenos, paraguaios e uruguaios;
· A Política Externa Brasileira tem por objetivo a expansão territorial do País, para 71% do mesmo público consultado;
· O alvo do Brasil seria o controle dos recursos hídricos da Bacia do Prata, segundo 77% dos
entrevistados;
(1)
“A Globalização e Nós `guisa de Introito”- Revista da ESG No 38/99.
· Os empresários brasileiros não são honestos e leais nem respeitam contratos fechados;
· Os Estados Unidos não figuram como parceiro comercial importante, para 90% dos argentinos,
91% dos uruguaios e 100% dos paraguaios;
· Existe otimismo quanto às possibilidades de plena integração regional.
5. Não cabe, dentro do escopo deste trabalho, avaliar o mérito do que foi positivo ou
negativo, certo ou errado, se observa nos resultados da pesquisa. Deve-se, sim, aceitá-la como mais
um dado de planejamento, a ser buscado em sua origem. Podemos, com certeza, porém, deduzir
que para a população do CONE-SUL, o MERCOSUL já é uma realidade a gerar novas esperanças.
Quer parecer, mais ainda, que o MERCOSUL constitui-se, para os demais países sul americanos,
num caminho a seguir, único apto a aglutinar interesses comuns de nossos povos; será instrumento
provável de melhoria coletiva. Se me fosse dado sintetizar, diria que o MERCOSUL pode vir a ser
um instrumento factível para alcançar-se razoável grau de justiça social deste sofrido continente.
6. Ainda em termos de MERCOSUL os países que o integram, no seu conjunto, constituem-se, potencialmente, no maior pólo produtor de carne, grãos, frutas e alimentos em geral. Tal
situação, se encarada e conduzida de forma harmônica e com visão geopolítica, coloca-nos em
confortável posição em face dos grandes grupos de nações que se estão estruturando no mundo.
Nada temos contra eles, mas temos tudo a nosso favor.
Como decorrência, emerge a necessidade da adoção de medidas diretas e indiretas para proteção de nossos produtos e de nossas empresas, contra a predação internacional desleal, com a
contrapartida das exigências de qualidade e preços competitivos.
7. A união latino-americana, de alguma forma, é o único instrumento disponível para podermos situar-nos com firmeza e chance confortável, em face do NAFTA, comunidade européia e
Bloco Asiático. A adesão pura e simples a um deles, em especial o NAFTA, com um livre comércio
escancarado, seria o mesmo que ocorreria com qualquer mortal colocado a lutar box contra “Mike
Tison”, sendo obrigatório o respeito às regras daquele esporte se olharmos para USA e Europa,
vemos dois “Mike Tison”.
8. A conjugação de forças dos países sul-americanos exigirá grande espaço, mas sua consolidação criará condições para olharmos para a África Atlântica, com simpatia e boa vontade, sem
qualquer ranço internacional de colonialismo, pior, recolonização.
Será a retomada de laços traçados, na sua origem, pelos navios negreiros, os quais sem qualquer intenção nesse sentido, contribuíram para o nascimento da maior nação miscigenada do mundo.
III. A Nova ESG
9. Oportunidade Feliz
A oportunidade surgida com estudos sobre o futuro da ESG não poderia ter sido mais
valiosa. Deve, nossa Escola ser colocada numa posição de grandeza, como o merece.
Deve e pode ser encarada, sem jactância ou temor, como o grande Centro de Estudos da
América do Sul, sobre Geopolítica, Poder e Grandes Objetivos comuns, sem preconceitos ou posições prévias e rígidas.
Para integração do MERCOSUL numa primeira fase, e, da América Latina numa Segunda
fase, muito haverá que debater arestas de fundo histórico necessitarão ser aparadas umas e afastadas outras, o tempo e os fatos, naturalmente, colocarão as ações correspondentes de forma sucessiva umas, e, de forma simultânea, outras, todas na direção correta.
A tradição da Escola foi, por muito tempo, a de estudar segurança e desenvolvimento do
Brasil. A partir de 1988, passamos a inserir a justiça social como intrínseca ao desenvolvimento e,
na mesma época, foi promovida, em seus estudos, ampla abertura para a área internacional, com a
criação da Divisão de Assuntos Internacionais.
Podemos e devemos, a partir de agora, abrir o leque dos estudos, em proveito de todas as
Nações Latino-Americanas.
O mundo, ao longo da sua história, vive de grandes em grandes “momenta”, na Segunda fase
do recém-findo século.
10. Interpretação das Grandes Área de Estudos
Para que não ocorram interpretações errôneas ou equivocadas passo, rapidamente, a conceituar,
como as vejo, essas três grandes áreas de estudo.
10.1. Geopolítica
Nunca aceitei-a como teoria para expansionismo e conquistas, embora alguns assim a vejam
e outros assim ajam.
Quando no Comando da ESG, expus minha compreensão de que geopolítica é o relacionamento de um povo com seu próprio território, bem como com outros povos e respectivos territórios
vizinhos, próximos ou afastados. Como exemplos claros, Angola, Nigéria e outros estados africanos, à primeira vista, apresentam-se como separados de nós, pelo Atlântico; n a verdade, o oceano
liga-nos a eles. Do mesmo modo, para nós, Chile e Equador são nossos vizinhos, muito embora
sem fronteiras comuns.
O governo Geisel há que entender pois o mundo novo, atual, com globalização e internet; não
poderemos sucumbir sem defender nossos interesses.
10.2. Poder
É o conjunto de meios de toda ordem, disponível para a consecução de objetivos fixados. O
poder nacional, na sua amplitude verdadeira, reflete a capacidade de atuação de um povo, É ele um
todo complexo, unindo estado e sociedade; atua sob variadas formas, em qualquer de suas expressões. Tanto pode ser representado por um clube esportivo ou por uma força militar, quanto por uma
ação econômica, e, até mesmo, por uma ONG.
Sua aplicação pressupõe visão estratégica geopolítica, ampla e global, para poder alcançar
êxito.
Já está maduro, hoje, o entendimento de que a sociedade – por menos que deseje – deverá
exercer avaliação continuada sobre o funcionamento do estado; deve pressioná-lo em qualquer
oportunidade na busca do respeito às necessidades e aspirações básicas do povo.
10.3. Grandes Objetivos
Para sua fixação, em termos sul-americanos, deveremos superar óbices e desconfianças, como
indicado na Figura No 1.
11.
Visão Latino-Americana
O modo como vejo a condução do processo de integração latino-americana está contido na
síntese a que denominei de “Modelo de Desenvolvimento Latino-Americano”. (Figura No 2)
12.
Novas Finalidades para a ESG
Com o atual ou com outro nome, a nova ESG necessitará reorganizar-se; deverá promover a
inclusão, entre outras, de novas finalidades em seu regulamento. (Figura No 4)
13.
Novos Corpos Docentes e Discentes
Salta a vista a necessidade de participarem da ESG, em seus corpos permanente e de estagiários, permanentemente, figuras da elite dos países latinos-americanos, para irmanarem-se aos brasileiros de início, deverão ser oriundas das áreas da administração pública, diplomática, militar,
policial e de informações.
14.
Doutrina Ampliada
A doutrina merecerá uma revisão; considero que as “Bases para Atuação da ESG (ESG –
2000)” (2) e (3), com facilidade, poderão ter ampliado seu enfoque de nacional para latino-americano
e, assim, servirem de referencial básico para a revisão necessária. A execução, com participação
ampla, inclusive de latino-americanos, consolidará toda uma estratégia geopolítica conjunta, para o
futuro.
IV. Visão do Futuro
15. No portal do Departamento de Estudos está escrita frase lapidar do Marechal Castelo Branco;
“Nesta casa estuda-se os destinos do Brasil”.
Quem sabe, e esperamos que sim, o Novel Ministério da Defesa com apoio do Ministério do
Exterior, consiga implantar a grande semente de uma nova América Latina. Poder-se-á, então,
cunhar e afixar nova placa ao lado daquela primeira: “... e, no seu conjunto, os destinos dos povos
irmãos latino-americanos”.
(*) General-de-Exército e Ex-Comandante da Escola Superior de Guerra
(2)
Doutrina – ESG – 1989 – pág. 37 e 38.
(3)
Fundamentos Doutrinários da ESG – 1997 – pág. 25 e 26.
Conceito I/98 (1)
· AMPLIAÇÃO E INTEGRAÇÃO CRESCENTES DO MERCADO COMUM LATINO-AMERICANO, ASSIM CONSIDERADOS BRASIL/MERCOSUL MAIS A INSER-ÇÃO PROGRESSIVA DOS OUTROS PAÍSES SUL-AMERICANOS;
· BUSCA DO SUPORTE FINANCEIRO ESSENCIAL MEDIANTE PARTICIPAÇÃO INTELIGENTE NO MER-CADO INTERNACIONAL.
· PROMOÇÃO DE ESFORÇO CONJUNTO, RESPEITADAS AS AUTODETERMINAÇÕES
NACIONAIS, ORIENTADOR DE UM PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO COMUM, SOBRE COMO UTILIZAR NOSSAS REAIS VANTAGENS COMPARATIVAS E COMPETITIVAS.
FIGURA 3
MODELO DE DESENVOLVIMENTO
LATINO-AMERICANO
Conceito I/98 (2)
· ESTÍMULO AO SURGIMENTO DE JUSTIÇA SOCIAL E SOLIDARIEDADE LATINO-AMERICANAS, COM ATUANTE PRESERVAÇÃO DE BENS NATURAIS, VALORES ÉTICOS E
CULTURAIS, E, DAS INDIVIDUALI-DADES DE NOSSOS POVOS.
FIGURA 4
ESG / 2000 (1)
(Sonhar é preciso assim como Viver é lutar)
· NOVAS FINALIDADES A ACRESCER
- Manter papel de vanguarda no século XXI, por meio de Estudos e Planejamentos Prospectivos,
sobre a área internacional, com ênfase para a América Latina;
- Considerar o interesse Nacional e dos povos latinos-americanos acima dos demais;
- Estimular o debate e a difusão de novas idéias, e de conceitos e soluções;
- Apoiar o Estado e a Sociedade Brasileiros com seus trabalhos;
- Ampliar a colaboração e o intercâmbio com Instituições Nacionais e Internacionais, em especial
Latino-Americanos.
AMAZÔNIA: VISÃO POLÍTICOESTRATÉGICA
Hernani Goulart Fortuna (*)
“Se pude ver mais longe é porque trepei aos ombros de gigantes”
Leibinitz
Prólogo
O pensamento das lideranças dos Estados Unidos da América tem influenciado significativamente a formulação de sua política externa que pode ser resumida em duas visões características, desde a independência daquele País:
· Uma visão realista – O mundo é, inerentemente, um lugar de conflito, com os estados nacionais
buscando a consecução de seus interesses, empregando todos os meios ao seu alcance e, portanto, a segurança nacional não pode ser apenas garantida pela cooperação internacional (Governos
de George Washington, John Adams, Theodore Roosevelt, Harry Truman, John Kennedy);
· Uma visão liberal – Maximiza o papel dos organismos internacionais para a solução pacífica
dos conflitos, utilizando as leis do mercado para conciliar antagonismos e interesses econômicos, favorecendo a negociação e o convencimento (Governo de Woodrow Wilson, governos
republicanos da década de 1920 e Governo de Franklin D. Roosevelt).
As estratégias pós Segunda guerra contidas nessas duas visões da política externa dos EUA
podem ser assim resumidas:
· Estratégia de Contenção Periférica – crescente risco de guerras limitadas regionais, estabelecimento de um sistema de alianças num papel de contenção onde a OTAN, a OTC, a OTSE e
acordos bilaterais da OTSE com a Coréia do Sul, Formosa e Japão fecham o anel que envolvia
a União Soviética e a China, os objetivos políticos só seriam alcançados se a guerra fosse levada
ao território nacional do inimigo, para o controle da ação militar e da própria sociedade, extirpando-a ou transformando-a do ponto-de-vista ideológico;
· Estratégia de Retaliação Maciça – as tropas americanas teriam um efetivo simbólico, em áreas
consideradas estratégicas, para caracterizar uma agressão e justificar o envolvimento dos EUA;
uma vez caracterizada a agressão, os EUA usariam maciçamente o seu arsenal nuclear, ação
que, por si só, já significava uma dissuasão intensa e explícita;
· Estratégia de Resposta Flexível – um ataque de surpresa impedia o contra-ataque do inimigo,
First Strike; a neutralização desse primeiro ataque permitiria que aquilo que emergisse do arsenal estratégico fosse aplicado num segundo ataque, Second Strike; a presença dos EUA no Vietnã
foi uma aplicação da resposta Flexível, introduzindo o conceito de contra-insurgência e influenciando a doutrina geral da guerra;
· A Estratégia de Distensão e Coexistência Pacífica – estabelecimento de tratados de não proliferação nuclear e de limitação de armas estratégicas, visando à preservação de interesses em
áreas vitais das duas superpotências e ao equilíbrio de poderes.
Estamos vivendo o último ano do ocaso de um século que assistiu a uma dramática sucessão
de acontecimentos, quase que inimagináveis, para o cenário cristalizado a partir da paridade nuclear, estabelecida em 1949, quando a União Soviética explodiu sua bomba de hidrogênio; nesse
cenário podemos distinguir:
¨ A invasão do Panamá e o isolamento de Cuba na América Centra;
¨ A queda do muro de Berlim com a autonomia e a liberação dos países do leste europeu;
¨ O fracionamento dos Bálcãs e a independência dos países que integravam a antiga Iugoslávia;
¨ A invasão do Kwait pelo Iraque e a Guerra do Golfo;
¨ O desmembramento do Império Soviético e a criação da Comunidade dos Estados Independentes;
¨ A reafirmação política da China com taxas de crescimento que se respaldam em impactos
tecnológicos produtivos e de agressivas abertura competitiva;
¨ A convulsão da África Sub-Saárica, fruto de uma divisão política, imposta pelos antigos colonizadores, que resultou em conflitos tribais, atrasando seu desenvolvimento econômico;
¨ A busca da América do Sul em superar sua dependência de poupança externa e alterar sua
condição de importadora de tecnologia e exportadora de matérias primas de baixo valor agregado;
¨ O surgimento de Estado-Nação onde se fortalece o nacionalismo das etnias em busca de afirmação de identidades; e
¨ A reafirmação dos EUA em sua condição de potência hegemônica num ambiente de economia
globalizada.
Os conceitos de Poder, Política, Estratégia e Objetivos são agora mais amplos e sofisticados,
num novo ordenamento internacional, estabelecendo mecanismos de proteção que privilegiam os
países desenvolvidos do hemisfério norte, congregando 85% da riqueza de um mundo globalizado,
em detrimento daqueles que, no hemisfério sul, usufruem apenas de 15% da riqueza gerada no
planeta.
Introdução
A posição geoestratégica do Brasil no continente sul-americano resulta em uma fronteira
terrestre que interage com 10 países e em uma fronteira marítima com mais de 4.000 milhas de
extensão. Nesse contexto, visamos enfocar a Amazônia e seus aspectos mais importantes no que
possa interessar aos interesses brasileiros e à soberania nacional.
Assim, discutiremos a Amazônia brasileira, com sua área de 4 milhões de km2, sua projeção
na plataforma continental, que pode atingir até 350 milhas, em face das peculiaridades do cone
amazônico, distinguindo-se de imediato uma área marítima e uma área fluvial onde influências
políticas e estratégicas desdobram-se em um cenário único no mundo que interage com a maior
floresta tropical do planeta em aspectos de biodiversidade, província mineral privilegiada, vocação
energética invejável e reservas de água doce não comparáveis a quaisquer outras, fora das calotas
polares.
Dessa forma, não é difícil distinguir os aspectos de natureza político-estratégica que essa
Amazônia possa representar para seu desenvolvimento, segurança e definitiva integração ao restante do território nacional.
Pretendemos, assim, apresentar algumas considerações e subsídios a uma questão que desa-
fia a nação brasileira, dona de um patrimônio valioso demais, porque, em suas peculiaridades, é
único no mundo e não admite soluções que não sejam encontradas dentro das fronteiras nacionais.
O Cenário Político – Estratégico
Do Tratado de Madrid em 1750, até o Tratado de Santo Idelfonso, foram obtidas as condições
que ratificaram interesses, violações e pré-condições para que o gênio do Barão do Rio Branco
emoldurasse a Amazônia no contexto do território nacional, desde a questão acreana, na Amazônia
Oriental, o que tornou o Brasil eminentemente amazônico por determinismo geográfico.
A esses aspectos, seguiram-se períodos de esquecimento do significado verdadeiro da importância da Amazônia para a grande Nação Brasileira. Essa situação era compreendida por aspectos
de significado efêmero, como o ciclo da borracha que, embora tivesse despertado o interesse europeu e o norte-americano, não conseguiu superar o isolamento que o fator distância determinava nas
decisões nacionais, sem informações adequadas e, portanto, sem o conhecimento da realidade.
A tentativa de estabelecer pólos de influência política e econômica na Amazônia por países
estrangeiros, foi fruto da presença norte-americana em Fortlândia, na década de 1940e, posteriormente, com o Projeto Jari, na década de 1970. Em ambas as situações, houve reversões de expectativa da fixação americana com retorno à soberania brasileira.
Assim, a presença de tropas americanas em Belém e Manaus, durante a Segunda Guerra
Mundial, pode ser considerada como a de um país aliado, combatendo inimigos comuns o que, de
certa forma, trouxe benefícios que se desdobravam num processo de desenvolvimento econômico
e tecnológico para a região.
Projetos importantes tiveram lugar na Amazônia, no período de 1965 a 1975, como a construção da hidroelétrica de Tucuruí; a descoberta e o desenvolvimento da província mineral de Carajás;
a construção do complexo ferro-portuário Carajás-Ponta da Madeira, na Baía de São Marcos; a
construção do projeto Alumar em São Luís do Maranhão; a construção do projeto Albrás-Alunorte,
em Barcarena no Pará; a extração de bauxita na Mineração Rio do Norte, no Rio Trombetas e a
reorientação do Projeto Jari para a produção de caulim e celulose branqueada, entre o Pará e o
Amapá.
Esses empreendimentos, de forma direta ou indireta, foram resultado do célebre Projeto
RADAM (Radar da Amazônia) que permitiu o primeiro inventário, em bases científicas, da superfície e do subsolo da imensa região amazônica, na década de 1970.
Se os aspectos de desenvolvimento estavam sendo atendidos, o mesmo não se aplicava aos
requisitos de segurança. Os contenciosos existentes, todos com desdobramentos na região são, até
hoje, motivo de preocupação permanente com segurança amazônica e, portanto, com a segurança
nacional.
Estamos falando das questões de fronteiras entre o Suriname e a Guiana, entre a Guiana e a
Venezuela, pela Bacia do Essequibo; entre a Venezuela e a Colômbia, no golfo da Venezuela; entre
o peru e o Equador onde o Brasil é mediador; entre o Chile, o Peru e a Bolívia quando perdas
importantes foram sofridas pelos dois últimos países na Guerra do pacífico, o que custou ao Peru a
perda de seus territórios ao norte, em Arica, e à Bolívia, a sua saída para o mar, além de reivindicações importantes, resultado de questões não resolvidas após a Guerra do Chaco com o Paraguai.
A Amazônia não está, portanto, imersa em uma atmosfera de tranqüilidade, o que vem exigindo uma preocupação constante do Brasil para manter sua integridade e prover sua segurança.
Esse foi o propósito que levou à criação do Projeto Calha Norte, estabelecendo um arco de
presença e proteção desde Tabatinga até Macapá. Entretanto, aquilo que seria a presença de órgãos
federais como Ministério da Saúde, FUNAI, Polícia Federal, IBAMA, dentre outros, limitou-se à
presença de pequenos efetivos do Exército, em pelotões de fronteiras, selecionados em locais onde
a logística era provida pelos quartéis construídos e pelas pistas de pouso para receber os aviões da
FAB.
Com o fim da guerra fria e do confronto leste-oeste, os Estados Unidos da América emergiram como a única superpotência do planeta, alterando, profundamente o equilíbrio existente no
mundo bipolar.
Aspectos de natureza científica, tecnológica, econômica e militar determinaram a formação
de blocos hegemônicos, todos no hemisfério norte.
Estamos falando do NAFTA (EUA, Canadá e México) na América do Norte; da União Européia, no Continente Europeu; e dos países do Sudeste Asiático cujos desenvolvimentos econômicos e tecnológicos surpreenderam o ocidente, após o término das guerras da Coréia e do Vietnã.
Esses blocos hegemônicos passaram a discutir uma gama de assuntos que afligem os países
do hemisfério sul ou emergentes, como sejam, a ecologia e a preservação dos ecossistemas, o
emprego da energia nuclear, as transferências de tecnologia, as migrações indesejáveis no fluxo
sul-norte e a alteração do papel das Forças Armadas que desejam ver reorientadas para questões
como o combate ao narcotráfico, ao terrorismo e ao contrabando de armas, congelando seus níveis
de poder atuais, e dificultando qualquer tentativa de dissuasão, a nível regional ou continental, que
possa, eventualmente, sobrepor-se às decisões emanadas de órgãos internacionais como a ONU ou
de defesa coletiva como a OTAN.
Aspectos da Concepção Política e do Conceito Estratégico dos EUA, emanados em 1995,
pela Casa Branca e pela Chefia do Estado-Maior Conjunto permitem identificar os seguintes
corolários:
¨ O mundo pós guerra fria continua sendo um lugar perigoso;
¨ O conflito é, assim, inevitável e torna-se altamente improvável que Instituições Internacionais
possam restringir a tendência da humanidade para a violência;
¨ Nenhuma Força Singular isolada incorpora todas as capacidades que são necessárias para responder a qualquer situação de crise;
¨ Rivalidades étnicas, nacionais e religiosas não estão sob o controle de uma hierarquia bipolar;
¨ A proliferação de armas de destruição em massa é a grande ameaça;
¨ A existência de refugiados, fruto de conflitos de guerra civil, pressiona a comunidade internacional;
¨ O combate às drogas e ao terrorismo é uma preocupação da estratégia nacional dos EUA;
¨ A preservação dos ecossistemas é fundamental para o equilíbrio das necessidades globais da
atual população mundial.
Esse prisma de observação, do ponto-de-vista dos países do primeiro mundo, é mais
preocupante quando enfocado na peculiaridade amazônica onde coexistem 19.000km de vias navegáveis, a maior província mineral do planeta, um potencial energético de mais de 100 milhões de
quilowatts, um banco de germoplasma e uma biodiversidade incomparáveis, convivendo com a
maior floresta tropical do mundo e com reservas de hidrocarbonetos ainda em fase inicial de delimitações.
Não bastassem essas preocupações, existem desdobramentos nas áreas de reservas indígenas,
onde a questão da tribo Ianomâmi foi a mais polêmica de todas, pelo fato de não respeitar as
peculiaridades de um subsolo não conhecido, bem como a faixa de fronteiras, estendendo-se além
do território nacional, dificultando a preservação da segurança em áreas de difícil acesso, porém, de
grandes vulnerabilidades para ações de violações de fronteiras, da prática de narcotráfico e de
contrabando de minérios.
Assim, quando o governo brasileiro delimitou as reservas Ianomâmis, verificou-se que cerca
de 10.000 indígenas ocupariam uma área de mais de 9 milhões de hectares, sem que o inventário do
subsolo adjacentes fosse conhecido em sua totalidade.
O trabalho pouco divulgado das missões religiosas estrangeiras, dedicadas à catequese indígena, com tarefas e missões definidas no exterior, também é motivo de preocupação, em face da
possibilidade de ser, eventualmente exigida, a autonomia de Nações Tribais dentro do próprio território nacional.
Das 532 reservas catalogadas pela FUNAI, 358 estão na Amazônia, sendo que 50% ainda não
foram demarcadas; a tribo mais numerosa é a dos Ticunas no alto Solimões com 14.000 índios.
As reservas indígenas brasileiras envolvem hoje, cerca de 200.000 índios e, aqui, estamos
tratando de algo que, pelas suas dimensões, abrange 11% do território nacional.
Essas são preocupações que, sem dúvida, afetam a consecução de um objetivo nacional permanente que é a integridade do patrimônio nacional brasileiro.
O Projeto Calha Norte dos anos 80 está sendo substituído pelo SIPAM (Sistema de Proteção
da Amazônia) que abrange o SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia).
O SIVAM, baseado em informações satelizadas, foi profundamente prejudicado, em face da
privatização da EMBRATEL que transferiu para empresas estrangeiras o monopólio de informações classificadas que detinha em seu acervo e que permitiam o conhecimento de uma realidade
preciosa para os interesses nacionais.
Retornando ao SIVAM, podemos defini-lo como um viabilizador de ações estratégicas, a
cargo do governo federal, dentro de um conceito sistêmico cujos elos são os órgãos governamentais
que tenham como objetivo integrar, avaliar e difundir informações e conhecimento para o desenvolvimento e a integração da Amazônia ao restante do território nacional.
Apesar dos óbices gerados pela privatização da EMBRATEL, espera-se que o SIVAM possa
realizar aquilo que não foi possível alcançar com o Projeto Calha Norte, distorcido por
incompreensões político-partidárias que o acusaram de ser um projeto de militarização da região.
Retornando às vocações da região amazônica, verifica-se num breve bosquejo que, apesar de
tratar-se de um cenário que contém 33% das reservas florestais latifoliadas do globo, a EMBRAPA
(Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) classifica como floresta densa 50% do território;
como floresta aberta 30%; como mata de várzea 4%, existindo, ainda 16% de áreas não florestadas
constituídas por campos de várzea, campos de terra firma e manchas férteis. A propósito, existem
manchas de terra fértil em toda a região amazônica, cabendo destacar as extensões existentes entre
os rios Tapajós e Xingu onde já se encontra expressiva atividade agrícola em terra roxa de qualidade similar às existentes no território paulista e que estão aptas à produção de cacau.
A vocação energética é inegável quando só a margem direita do Amazonas tem um potencial
estimado em 100 milhões de quilowatts, além de reservas não delimitadas de hidrocarbonetos, de
urânio natural, estimado em 2% das reservas mundiais, e de tório cujas reservas domésticas chegam a 30% do que existe na terra.
Quanto às biomassas, combustíveis vegetais, de alto custo de mão-de-obra e baixa demanda
de capitais, o seu aproveitamento é apenas uma questão de tecnologia.
A vocação mineral não admite discussão porque estamos falando da maior província mineral
do planeta onde os escudos das guianas e o brasileiro foram definidos no arqueozóico, encerrando
seis expressivas províncias minerais de valores aproximadamente iguais, embora diferentes em
suas dotações.
A mais conhecida de todos os brasileiros, a de Carajás, é a maior província polimineralizada
do planeta com 20 bilhões de toneladas de minério de ferro, com teor de 60%; 1 bilhão de toneladas
de cobre a 1%; 150 milhões de níquel a 1,5%; manganês, estanho, chumbo, zinco, molibdênio,
tungstênio, cromo, prata, ouro, alumínio e amianto.
A psicultura, em face das peculiaridades da região, onde a maior bacia hidrográfica do globo
interage com o maior rio do planeta e com uma bacia sedimentar costeira. Acompanhando o litoral
e projetando-se mar a dentro, sob forma de plataforma continental, é outra vocação importante da
região amazônica para satisfazer às necessidades de uma população carente de proteína animal.
A par dessas vocações naturais da região amazônica, há que se considerar a presença do
maior banco de germoplasma do mundo, acompanhado de uma biodiversidade cuja riqueza, também, não tem paralelo no planeta.
Essa situação excepcional deveu-se, provavelmente, a um comportamento da floresta equatorial, ao longo das idades glaciais, quando, ao avanço das geleiras, as comunidades bióticas resguardavam-se e, posteriormente, representavam-se, ora com suas propriedade orgânicas
restabelecidas, ora tornando-se aptas para novas combinações.
Assim, é possível que todas as patologias ou disfunções do planeta Terra tenham a possibilidade de encontrar solução no refúgio da biodiversidade amazônica.
Em uma região onde a estrada é, normalmente, o rio, os eixos de desenvolvimento estão
intimamente ligados ao transporte aquaviário. Não é sem motivo que a maioria dos projetos da
região só foram viabilizados pela logística desse tipo de transporte.
Assim foi, com o projeto da Mineração Rio do Norte onde o Rio Trombetas recebe navios de
até 50.000 TPB; com o projeto Jari onde o Porto de Munguba recebe navios de 35.000 TPB; com o
Projeto Albrás/Alunorte onde no Porto de Barcarena atracam navios de 50.000 TPB; com o Projeto
Aluma e Carajás/Ponta da Madeira no Maranhão onde a Baís de São Marcos pode receber os
maiores graneleiros do mundo; com a calha principal do Solimões/Amazonas escoando a produção
dos poços da província de hidrocarbonetos em Urucu, na confluência dos rios Tietês e Coari, responsável pelo abastecimento completo da refinaria de Manaus, sem prejuízo de novas descobertas
na Bacia do Rio Juruá a 3.200 milhas de Belém, distância essa superior àquela de Recife a Gilbraltar.
Verifica-se, dessa forma, que na área fluvial e marítima da região amazônica convivem a
navegação de longo curso, como um instrumento do comércio exterior; a navegação de cabotagem,
como uma solução parra os problemas de logística nacional; e a navegação interior, aproximando
os centros de consumo e de produção, reduzindo custos e contribuindo para os aspectos de desenvolvimento da região.
Para uma área onde o regime de chuvas alcança, não raro, cerca de 4 metros em diversos
lugares, a construção e a manutenção de rodovias é extremamente problemática e custosa, o que
privilegia a importância das vias fluviais indestrutíveis e com dificuldades restritas a regime de
cheias, balizamento e sinalização.
Assim, após tentativas infrutíferas para construir-se a Rodovia Porto Velho-Manaus, a linha
de comunicação principal, que serve à região, é o Rio Madeira que transporta inclusive, todo o
combustível líquido da refinaria de Manaus para Porto Velho.
A Rodovia Cuiabá-Porto velho e o Rio Madeira estão, hoje, integrando a região produtora do
Estado de Mato Grosso ao Porto de Itacoatiara, na divisa dos estados do Amazonas e do Pará,
permitindo uma redução expressiva dos custos do transporte de grãos para consumidores estrangeiros e brasileiros.
Retornando aos aspectos de segurança, não poderíamos deixar de mencionar a peculiaridade
da fronteira com a Guiana Francesa no Estado do Amapá.
Primeiro, por não se tratar de um estado soberano, mas de uma extensão da França onde a
Base Aeroespacial de Kouru, em Caiena, lança satélites franceses e brasileiros.
Segundo, porque existe uma articulação estratégica entre Caiena – Fort de France (Martinica)
e Point-à-Pitre (Guadalupe) projetando a influência político-estratégica da França no Atlântico e no
Caribe.
Terceiro, porque a presença de um Comando Militar Combinado nesse eixo, inclusive com a
presença de uma Brigada de Selva na Guiana, interage com os interesses brasileiros na região.
Na verdade, a fronteira do Brasil com a Guiana é maior que qualquer outra do território
metropolitano Francês com qualquer país da Europa.
Recentemente, a Marinha Brasileira contribuiu, decisiva-mente, para a demarcação definitiva de fronteiras na região do Oiapoque no Amapá.
Por outro lado, a perspectiva de uma saída para o pacífico encontra na Amazônia a mais
concreta possibilidade de sua realização, mais precisamente, através da Amazônia Ocidental, alcançando os portos peruanos de Callao, Ilo e Matarani, assegurando ao Brasil uma posição estratégica de maior estatura no contexto do continente sul-americano, concretizando uma verdadeira
bioceanidade para os eixos de comunicação nacional limitados, hoje, às saídas tradicionais para o
Atlântico.
Não poderíamos deixar de discutir um problema que afeta sobremaneira a
Amazônia, em face de seus desdobramentos, a nível internacional, que é a questão
de disponibilidade de água doce no mundo.
A revista Industry and Environment da ONU, trata do assunto num tom preocupante. A terra
dispõe de 1.400 milhões de quilômetros cúbicos de água. Desse total, 97% constitui-se de água
salgada distribuída entre os oceanos e os mares. Os 3% restantes têm 77% congelados nas calotas
polares e 22% são águas subterrâneas. O total disponível de água doce superficial é pouco mais de
um por cento e, segundo o relatório da ONU, essa qualidade seria suficiente para atender às necessidades humanas atuais e futuras. Ocorre, que o problema existente é a desigualdade na distribuição
desse potencial hídrico.
Os quinze maiores rios do mundo respondem por uma terceira parte do caudal total existente
na superfície do planeta e, desses grandes rios, o Amazonas é responsável por 15% desse total. O
problema da água é tão importante que no dossiê da “Água da Europa” a primeira frase afirma: “A
Comunidade Européia não pode desinteressar-se dos problemas da água”.
Podemos concluir que, no mundo, a posse de recursos hídricos traz consigo uma forte possibilidade de geração de conflitos, mormente na Amazônia, que responde pelo maior caudal existente no planeta, traçando uma nova e explosiva geopolítica entre os que tem água e os que lutam por
consegui-la.
Conclusão
Os interesses nacionais e os objetivos estratégicos da Nação Brasileira foram identificados e definidos, com rara felicidade, por José Bonifácio, logo após a independência e explicitavamse na preservação da nova condição política, na fixação das novas fronteitras e no desenvolvimento
econômico, através da participação no comércio internacional. A lucidez de José Bonifácio levou à
criação imediata dos Ministérios da Justiça e da Marinha, visando à integridade do patrimônio
nacional, onde a Amazônia já preocupava o poder central pelo seu isolamento e distância.
O Tratado de Madrid e o Tratado de Santo Ildefonso que ratificaram todas as violações do
Tratado de Tordesilhas asseguraram ao Brasil sua forma triangular e amazônica por excel6encia,
fruto de um determinismo geográfico que concentra nessa região mais de 4 milhões de km2 do
território nacional.
Apesar dessa peculiaridade, a Amazônia é uma região praticamente virgem, pois somente cerca de 8% de sua superfície foi fruto de ação antrópica, ou seja, alteração devida à ação do
homem.
O continente sul-americano continua pleno de contenciosos onde os mais importantes situam-se entre a Venezuela e a Guiana pela posse da Bacia de Essequibo; entre a Venezuela e a Colômbia pelo litígio do Golfo da Venezuela; entre o Peru e Equador no altiplano andino; entre o Chile,
Peru e Bolívia; pela Guerra do Pacífico, quando as Bolívia perdeu sua saída para o mar e o Peru os
territórios que estão, hoje, na região norte chilena; e entre a Bolívia e Paraguai onde, ainda, existem
resíduos gerados pela Guerra do Chaco. Todos esses contenciosos apresentam desdobramentos na
região amazônica.
O Brasil não tem um contencioso definido nem problemas de fronteiras, porém, continua a
apresentar problemas nas fronteiras. A região amazônica com seu imenso arco setentrional, desde
Tabatinga, na fronteira com a Colômbia, até o Amapá na fronteira com a Guiana, apresenta uma
vulnerabilidade apreciável às questões do narcotráfico, guerrilhas ideológicas e contrabando de
armas que se desdobram a partir dos país vizinhos para o território brasileiro.
Outras questões como a demarcação de terras indígenas, preservação ambiental, biodiversidade,
províncias minerais extremamente nobres, elevada reserva de água doce e grande potencial energético
determinam uma preocupação constante com o espaço amazônico, onde os sistemas de proteção e
vigilância, ora em implementação, têm vícios na origem de suas concepções, já que a satelização
desses sistemas deixou de ser monopólio nacional pela privatização da EMBRATEL e os vetores
avançados de sensoreamento não têm uma interação adequada com as plataformas onde serão instalados.
As vocações já identificadas como a mineral, a agrícola, a energética, a psicultura com sua
fonte de proteína animal, devem ser fruto de interações entre governo e empresas onde a visão
sistêmica dos projetos permitam que eixos de desenvolvimento substituam conceitos ultrapassados
de pólos de irradiação.
Dessa forma, será possível que a energia, a logística e a telemática (telecomunicações +
informática) estejam presentes nesses eixos de desenvolvimento.
Se quisermos preservar o direito da Nação Brasileira de promover o progresso sem angústias
e incertezas, livre do arbítrio daqueles que se julgam com o direito de policiar nossas atividades,
não temos dúvida em afirmar que a região amazônica constitui-se em uma questão de soberania
nacional.
Assim, a Política de Defesa Nacional não poderá ignorar que a Amazônia tem peculiaridades
que exigem ações especiais para sua preservação e segurança.
Hipóteses de conflitos precisam ser identificadas e explicitadas à luz de fatores como consolidação e vivificação de fronteiras, patrimônio da humanidade, internacionalização, biodiversidade,
pulmão do mundo, fonte inesgotável de água doce e outros que possam justificar tentativas de
monitoramento ou limitação da plena soberania nacional em solucionar a grande questão da Amazônia Brasileira que esperamos ver desenvolvida e definitivamente integrada ao restante do território nacional.
Afinal, estamos falando de metade do território nacional, da maior província mineral do planeta, da maior floresta latifoliada do globo, dotada de uma biodiversidade inigualável, dona do
maior banco de germoplasma do planeta, abrigando uma expressiva parcela da matriz energética
brasileira e projetando os interesses brasileiros no Atlântico e no Caribe.
(*) Almirante-de-Esquadra (RRm)
Ex-Comandante da Escola Superior de Guerra
BIBLIOGRAFIA
CAPRILE, René; A Guerra da Águias; Jornal do Brasil; Idéias/Ensaios; 22/03/92; Rio de Janeiro; RJ.
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GAMA E SILVA, Roberto; Os Recursos Naturais do Brasil; Questões Importantes Referentes ao
Mar; São Paulo; SP; Sociedade dos Amigos da Marinha; SOAMAR; Coordenadora: Georgette
Nacarato Nazo; 1996.
GUARACIABA, Mirian; As Áreas Indígenas em todo o Brasil; Jornal “O GLOBO”; o País; pg. 3;
17/10/93; Rio de Janeiro; RJ.
VIDIGAL, Armando; Apontamentos sobre Estratégia Naval (II); Revista Marítima Brasileira; Serviço de Documentação Geral da Marinha; Rio de Janeiro, v. 199 No 10/12 – out/dez 1999.
A GEOPOLÍTICA BRASILEIRA – PREDECESSORES E
GEOPOLÍTICOS
Carlos de Meira Mattos (*)
Os Predecessores
Antes mesmo que o pensamento geopolítico adquirisse foros de conhecimento científico,
através da teorização das observações relativas à interação homem-meio físico, isto no final do
Século XIX, já havia, a respeito do Brasil, prognósticos prospectivos de pensadores esclarecidos,
dotados de visão política, que premonizaram para o nosso país um destino de grandeza.
Nascidas da observação, as ciências sociais, entre as quais se inclui a Política e seu ramo a
Geopolítica, caracterizam-se por comportarem projeções prospectivas. Não se trata de futurologia,
visão advinhatória, mas de aproximação porvindoura baseada em elementos racionais de estatística, de história e de psicologia.
Observa o Embaixador José Oswaldo Meira Penna, no seu livro “Política Externa”, que os
autores do Tratado de Tordesilhas (1494) já haviam traçado as grandes servidões da geopolítica
brasileira. Passamos a palavra ao Embaixador Meira Penna:
“A linha de Tordesilhas, marco inicial, imposição geopolítica sobre a qual se arcará a
história colonial do Brasil, determinando a configuração de nossa política externa. Tordesilhas é
este o primeiro, em ordem cronológica e em importância histórica, dos alicerces sobre os quais se
assentará nossa vida internacional. Representa as relações com a Espanha, isto é os domínios a
oeste da linha, os quais irão, mais tarde, constituir as repúblicas nossas vizinhas. Tordesilhas é o
problema de fronteiras – problema sempre prioritário em toda ação diplomática e tacitamente colocado ao realizar-se o descobrimento. Logo em seguida quase que imediatamente após a colocação
do marco cabralino, anuncia-se o segundo elemento fundamental dessa política: o problema da
segurança da orla marítima.”
Destacou o Embaixador Meira Penna, a presença já nos primórdios de Século XVI, dos dois
desafios vitais de nossa segurança externa, - a proteção das fronteiras terrestres a oeste e a proteção
da fronteira marítima a leste. Dois problemas geopolíticos que exigiram da diplomacia colonial
portuguesa e da diplomacia imperial e republicana, preocupação constante, negociação permanente
e, algumas vezes, luta armada.
A mais antiga visão prospectiva sobre o futuro do Brasil data de 1587, do historiador português Gabriel Soares de Sousa, que no seu livro “In Tratado Descritivo do Brasil – Proemio”, relatando a visita que fez a nossa terra, assim sintetiza as suas impressões:
“Está capaz para se edificar nele um grande império, o qual com pouca despesa destes
reinos se fará tão soberano que será um dos Estados do Mundo.”
Antes de nossa Independência, em 1821, José Bonifácio produziu um documento precioso
em termos de visão do Estado Brasileiro do futuro. Tal documento, denominado “Lembranças e
Apontamentos”, era destinado a orientar os deputados da Província de São Paulo, eleitos para
representar o Brasil na Corte de Lisboa, encarregada de elaborar a nova Constituição para o Império
Português.
“Lembranças e Apontamentos” revela como preocupação principal a preservação da unidade
nacional, quando viesse a se dar a Independência , cuja proximidade era evidente. Mas, ao lado de
um programa completo de necessidades administrativas, versando sobre estrutura territorial, educação, saúde, questão indígena, política exterior, defesa do território, antevendo, já, o futuro Estado
brasileiro, os “Apontamentos” revelam uma extraordinária visão geopolítica de nossa territoriedade.
Propõe José Bonifácio que os nossos representantes na Corte de Lisboa defendam a tese da necessidade de interiorização da capital do país, pois possuidores de enorme massa continental, não
poderemos, no futuro, viver somente nos alimentando nas praias e sugere o local para o novo centro
de poder político, assim se expressando, “que poderia, no futuro, ser em latitude pouco mais ou
menos de 15o, em sítio sadio, ameno e fértil, e regado por algum rio navegável.” Este local estaria
nas proximidades de Paracatu, cerca de 200 quilômetros ao sul da atual Brasília.
As razões que José Bonifácio vê para a mudança da capital para o interior, revelam sua notável visão geopolítica: – invoca a imensidão geográfica e a característica continental-marítima, invoca motivo de defesa, (numa época em que o poder marítimo das potenciais imperialistas constituíam constante perigo às nações fracas), invoca a necessidade de uma administração central que se
transforme em pólo de atração das áreas periféricas. Diz textualmente: – “com a mudança da capital para o interior fica a Corte ou assento da Regência livre de qualquer assalto de surpresa externa,
e se chama para as províncias centrais o excesso de população vadia das cidades marítimas e mercantis”, e mais adiante, “desta Corte central dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar, para que se comuniquem e circulem com toda a prontidão as ordens do
governo, e se favoreça por elas o comércio interno do vasto Império do Brasil”.
Outra figura de visão geopolítica foi, sem dúvida, o brasileiro, santista, diplomata da corte
portuguesa de D. José I, Alexandre de Gusmão, considerado o inspirador do Tratado de Madrid de
1750. Segundo o historiador português Jaime Cortezão, “Alexandre de Gusmão dava-nos “de jure”
aquilo que bandeirantes já nos haviam dado de fato”. O Tratado de Madrid legitimou as conquistas
dos bandeirantes paulistas e nortistas até então contestadas pelos espanhóis. Ali, ficaram já esboçadas
as nossas atuais fronteiras políticas.
Apresentados os três premonizadores intuitivos da geopolítica brasileira: – o historiador
seiscentista Gabriel Soares de Sousa, o diplomata oitocentista Alexandre de Gusmão e o estadista
novecentista José Bonifácio de Andrada e Silva, vamos enfocar, agora, o pensamento geopolítico já
fundamentado na metodologia científica das escolas alemã e francesa, lideradas respectivamente
pelo talento acadêmico de Rudolf Ratzel e Vidal de La Blache.
Os Geopolíticos
Os primeiros livros de Geopolítica Ciência, Geopolítica Teoria, surgiram no Brasil na Década dre 30. Os autores, o Capitão do Exército Mario Travassos e o Professor Acadêmico Everardo
Backeuser. Foram saudados pela intelectualidade brasileira nas figuras de Ronald de Carvalho,
Alberto Torres, Oliveira Vianna, Roquete Pinto, Gilberto Freyre, Pandiá Calogeras.
O jovem Capitão Mario Travassos na década de 30 escreveu dois livros: “Projeção Continental do Brasil” (edição de 1931) e “Introdução à Política de Comunicações Brasileiras”, Prefaciaram, o primeiro Pandiá Calogeras e o segundo Gilberto Freyre. O primeiro destes livros, o “Projeção Continental”, saurgiu em 1930 sob o título de: “Aspectos Geográficos Sul-americanos”. O
segundo livro, “Introdução à Política de Comunicações Brasileiras”, 1941, atualizou e complementou
as idéias e sugestões contidas no “Projeção”, conforme declarou na sua apresentação o próprio
autor.
O “Projeção Continental”, escreveu Ronald de Carvalho, foi a primeira obra de Geopolítica
publicada no Brasil. Este livro lançou os fundamentos da Geopolítica brasileira para a primeira
metade do Século XX. Com clarividência e nitidez invejável, Mario Travassos traçou os grandes
rumos de uma política nacional destinada a nos levar à posição de maior potencial sul americana.
Não se sabe o que mais admirar nessa obra, se clareza das análises ou a objetividade das soluções
propostas.
Na sua análise geopolítica, Mario Travassos destaca os dois grandes antagonismos geográficos de nosso subcontinente – do Atlântico e do Pacífico. Mostra a importância da cordilheira andina
como divisor, que se extende da Venezuela à Patagônia, os pontos de rebaixamento, os chamados
“nudos”, onde a cordilheira oferece passagem mais fácil de uma vertente para a outra. Pesquisa
nossa posição atlântica, por sua vez submetida a dois outros antagonismos geográficos – do Prata e
do Amazonas, Salienta a força convergente do Prata carreando para Buenos Aires a influência
sobre as bacias de seus formadores – o Uruguai, Paraná e o Paraguai – todos os três mergulhando
fundo no território brasileiro.
Realça, em termos de uma política continental, a importância do triângulo geopolítico boliviano – Santa Cruz de la Sierra – Cochabamba – Sucre, como pólo de converg6encia das influências
Atlântico – Pacífico. Santa Cruz na bacia amazônica mas bem articulada com a região andina de
Cochabamba e Sucre. Cochabamba andina mas também próxima à calha amazônica e, finalmente,
Sucre andina, próxima a um dos “nudos”, passagens na cordilheira e ligada à Cochabamba e à
influência amazônica de Santa Cruz de la Sierra, que recebe a atração platina de Corumbá. Segundo
Mario Travassos, o poder sul-americano que conseguir controlar esse triângulo-chave, região de
convergência das três forças geográficas que o operam no subcontinente, dominará a política
continentalista regional. Nessa região encontram-se e poder-se-ão dar-se as mãos ou partir para a
disputa.
As soluções sugeridas por Travassos visando à superação dos óbices oferecidos pela geografia sul-americana, situam-se na realização de uma política de transportes que neutralize, a nosso
favor, os desequilíbrios potenciais oferecidos pelos antagonismos fisiográficos existentes. Propõe
que se implante ou se complete (quando for o caso), uma rede ferroviária carreadora para os portos
brasileiros do Atlântico – Santos, Paranaguá, São Francisco, Porto Alegre e Rio Grande – as influências platinas sobre as regiões interiores brasileiras das bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Propões a chegada de nossos trilhos a Santa Cruz de la Sierra e daí, a África, articulando as
grandes regiões platina (Atlântico) e andina (Pacífico). Sugere a construção de ramais da Estrada
de Ferro Noroeste do Brasil para a República do Paraguai. Em termos de vertebração da massa
continental sul-americana sugere ampla conjugação das redes ferroviária, hidroviária e aérea, além
de propor a criação de um sistema aéreo interligando todas as capitais dos países de nosso
subcontinente austral, superando assim, temporariamente, as dificuldades de tráfego terrestre oferecidas pelos obstáculos geográficos. Antever o desenvolvimento do transporte rodoviário para
longa distâncias e sua futura inserção no sistema múltiplo de articulação vial.
Mario Travassos chegou a General de Divisão no Exército ativo, como Coronel participou da
Força Expedicionária Brasileira, FEB, e foi reformado como Marechal. Teve imensa influência no
pensamento de sua geração. Suas análises e formulações geopolíticas dominaram a mente de intelectuais patriotas e dos oficiais formados pelas Escolas de Estado-Maior do Exército, Marinha e
Aeronáutica até a década de 50. Suas idéias coincidiram com os propósitos políticos de fortalecimento do Estado Brasileiro oriundas dos revolucionários de 1930. Seu livro “Projeção Continental” foi amplamente discutido, aceito ou negado, mas sempre discutido, em quase todos os países
sul-americanos, particularmente na Argentina . Foi traduzido para o idioma espanhol.
As propostas geopolíticas sugeridas por Travassos, visando a articulação vial do território
foram, quase todas, incorporadas aos projetos dosa sucessivos governos. Graças à realização do
sistema de transportes carreadores para os nosso portos os interesses da imensa área interiorana
brasileira, antes submetida à atração hidroviária da bacia platina, consolidamos a nossa integração
territorial e construímos nas nossas regiões Leste, Sudeste e Sul, a mais importante base cultural e
econômica da América Latina.
Começando a produzir nos últimos anos da década de 20. O Professor Everardo Backheuser,
autor de vários livros, colunista dos principais jornais, articulista de revistas especializadas em
geografia e história, é considerado o precursor dos estudos de geopolítica no nosso país. Backheuser
foi o teórico da geopolítica brasileira, deu-lhe um método, sistematizou-a. Travassos aplicou-a com
mestria no diagnóstico de nossas potencialidades. Ambos dominaram o campo durante 30 anos
com valiosa e intensa produção intelectual. Backheuser pregou suas idéias geopolíticas durante
vários anos, principalmente pelas colunas do Jornal do Brasil e nas aulas da cadeira de geografia do
Colégio Pedro II. Foi organizador (1948) e Professor do Curso de Geopolítica na Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro.
O pensamento de Backheuser expresso no seu excelente estudo sobre Política de Fronteiras,
largamente difundido em artigos de jornais e revistas desde os anos 30 e condensado no seu livro
“Geopolítica Geral do Brasil”, teve grande influência no estabelecimento pelo governo de uma
nova política de fronteiras e na criação dos territórios nas regiões lindeiras mais críticas.
Realmente, nos primeiros anos que se seguiram à Revolução de 30, o espírito renovador,
[preponderante no governo, aproveitou-se das idéias difundidas por Backheuser e promoveu uma
política de fortalecimento de nossas regiões limítrofes, sob a inspiração de que, “a fronteira é a
epiderme do organismo estatal, captadora das influências e pressões foraneas e, como tal, região
que deve ficar diretamente subordinada ao poder central, e não a autoridades regionais que manifestam menor sensibilidade para os seus problemas”, enfim, a política de fronteira não deve ser
atribuição regional, mas federal.
Estas idéias difundidas por Backheuser foram decisivas para a criação dos nossos territórios
federais do Amapá, Roraima, Rondônia, Fernando de Noronha , Ponta Porã e Foz do Iguaçu. Cumprida a finalidade de povoamento e fortalecimento destes territórios, foram os três primeiros transformados em Estados e os três últimos extintos e reincorporados aos Estado contíguos.
No período dos anos 40 e 50 tivemos o aporte valioso dos estudos geopolíticos do brigadeiro
Lysias Rodrigues, condensados no livro “Geopolítica do Brasil” (1947), prefaciado pelo Professor
Backheuser. O autror destaca a importante do papel presente e futuro da aviação para o desenvolvimento das áreas longínquas e despovoados de nosso território, em particular das fronteiras terrestres. Preocupa-se com as nossas fronteiras norte, analisa-as e aponta seus pontos críticos (punctum
dolentis). Defende com entusiasmo uma política de interiorização, de mudança da capital e de
redivisão territorial. Preocupa-se particularmente com o futuro de nossas fronteiras com os Estados
europeusa ocupantes das Guianas. Pregando a interiorização escreve:
“O deslocamento do homem brasileiro para o sertão é um problema de economia dirigida,
dando-se a ele e sua família o transporte até o local, fixando-se a gleba que lhe toca, fornecendo-lhe
as ferramentas, as sementes e o financiamento para sua alimentação e instalação, até que possa darlhe compensações. É o que se faz com o imigrante. E o imigrante não é em nada superior ao
homem brasileiro, balanceados qualidades e qualidades, defeitos e defeitos. Agir de outra forma é
condenar à inutilidade qualquer esforço”.
Conclui o Brigadeiro Lysias Rodrigues: “o Brasil tem potencialidade e ambições para se
engrandecer, deverá: dirigir seus passos de acordo com as linhas que forem fixadas pela geopolítica,
porque, só ela é capaz de apontar o caminho certo, só ela é que pode evitar ao Brasil surpresas
dolorosas”.
O Brigadeiro encontrou um seguidor entusiasta de suas idéias no Professor paulista Paulo
Henrique da Rocha Correia, ainda hoje militante nas hostes dos geopolíticos.
Sem ser um geopolítico teórico, mas um intelectual possuidor de pensamento intuído para a
conjugação das realidades políticas e geográficas do território, Cassiano Ricardo, na década de 40
trouxe a sua contribuição através da portentosa obra “Marcha para o Oeste”. Grande pensador que
foi, além de poetas dos melhores, seu livro extraordinário avivou a face continentalista de nosso
destino aspecto tão descurado por aqueles que no dizer de Frei Vicente do Salvador, “contentaramse em andar arranhando as terras ao longo do mar, como caranguejos”.
Analisando este período da geopolítica brasileira que engloba desde as obras de Alberto Torres até as de Mario Travassos, aproximadamente meio século, começando na década de 10 terminando na de 50, o historiador e “imortal” Luiz Vianna Filho, prefaciando o livro “A Geopolítica e
as Projeções do Poder” de nossa autoria, assim se expressou:
“Contudo, embora oriundos de origens que poderíamos ter como diversas, a verdade é
que Alberto Torres, Oliveira Vianna, Backheuser e Mario Travassos, parecem corresponder a um
reclamo, a um espírito da nacionalidade que dir-se-ía desejosa de se encontrar com seus problemas,
avaliá-los, conhecê-los e para eles procurar soluções que correspondessem efetivamente à decantada realidade nacional. realidade muito mais real do que se imaginava , e cujo conhecimento era
intensamente almejado pelas gerações jovens. Gerações ávidas por encontrar novos caminhos para
o Brasil e que, a bem dizer, como que advinhavam a necessidade de adquirirmos uma outra dimensão interna e externa. Internamente não podíamos continuar a ser apenas a pátria do Jéca Tatu, e
externamente repugnava permanecermos como simples e explorados exportadores de produtos primários”.
Nos anos 50 desponta no horizonte geopolítico brasileiro a figura do então Tenente Coronel
Golbery do Couto e Silva. Golbery proferiu inúmeras confer6encias em nossas Escolas de EstadoMaior e na Escola Superior de Guerra. Escreveu dezenas de artigos para revistas especializadas
como a defesa Nacional e a do Instituto Histórico e Geográfico. Em 1976 condensou todos os seus
escritos no livro que alcançou grande projeção “Geopolítica do Brasil”, lançado pela Editora José
Olympio.
Golbery projeta suas luzes sobre no projeto desenvolvi-mentista brasileiro, faz a radiografia
do Brasil contemporâneo e sugere ações políticas.
Vamos reproduzir trechos principais dessa radiografia:
· “Na verdade o Brasil é bem um “império”, vasto império compacto, de ampla frente marítima e
dilatada fronteira continental equidependentes quase em torno do eixo de simetria norte-sul, que
vai do cabo Orange à barra do Chuy;
· Ocupa sem dúvida, aquela frente marítima, uma posição um tanto original no caprichoso contorno do oceano mundial em que o Atlântico Sul não é mais que um golfão ainda excêntrico;
· Estende-se aquela fronteira terrestre, em grande parte, através do deserto que a Hileia domina
como vasto cinturão protetor;
· Essas condições favoráveis de início é que asseguram o indispensável grau de imunidade a
ações de conquista, mantidas em potência ou duração, provindas do exterior. É, de fato, a própria insularidade em proporções continentais.
A este resumo do enfoque global do território, em face, inclusive às pressões externas, seguese a radiografia interna traduzida no levantamento das regiões geopolíticas e sua dinâmica.
Destaca-se o autor:
- Uma área geopolítica de reserva geral ou de manobra, são Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara,
Espírito Santo, Minas Gerais e o sul de Goiás com o Distrito Federal;
- Uma área geopolítica da ala Norte, abarcando os estados do Nordeste, desde a Bahia até o
Maranhão;
- Uma área geopolítica da ala sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul;
- Uma área geopolítica do oeste, reajustada aos contornos de Mato Grosso e mais o Território de
Rondônia;
- Finalmente, uma área geopolítica da Amazônia, compreendendo os estados do Amazonas, Pará,
Acre e os territórios do Amapá, Roraima e Rondônia.
Durante seus primeiros quinzes anos a ESG formulou sua doutrina de Segurança Nacional e
pesquisou profundamente no campo do desenvolvimento. Formou elites civis e militares aptas a
pensarem no Brasil com objetividade, como um todo, e se exercitarem na formulação de um método visando a aplicação do poder nacional para a segurança, a se aprofundarem nos estudos seletivos
para o nosso desenvolvimento. Quando veio a Revolução de 1964 a doutrina da Escola Superior de
Guerra já estava formulada e exercitada em termos laboratoriais ou escolares. No período revolucionário, os Presidentes da República e seus principais assessores, militares e civis estimularam a
formulação dessa doutrina pois, na sua maioria, haviam pertencido aos quadros da ESG. Exercitaram, na prática governamental, a aplicação da doutrina já formulada no casarão do Forte de São
João.
De todos, indubitavelmente, o mais lúcido expositor desta doutrina foi o próprio Presidente
Castelo Branco. São essas as suas palavras pronunciadas na aula inaugural do ano letivo de 1967 na
Escola Superior de Guerra:
“A Escola que hoje está entregue a vossa inteligência e conhecimento não se imobilizou
sempre, se atualizou, e é, no meio cultura do Brasil um exemplo de antecipação de idéias. O
tema escolhido – Segurança e Desenvolvimento – é o assunto dominante no vosso programa
doutrinário, nos vossos estudos e hoje ‘já integrado, em essência, na nova Constituição Brasileira e em leis modernas.
Procurarei desdobrá-lo segundo os seus elementos constitutivos.
A primeira parte a fixar é a dilatação do conceito de Segurança Nacional, bastante diferenciado, hoje, do conceito mais restrito de defesa nacional. A diferença é dupla. Conceito tradicional de defesa nacional coloca mais ênfase sobre os aspectos militares de segurança e
correlatamente aos problemas de agressão externa. A noção de Segurança nacional é mais
abrangente. Compreende, por assim dizer, a psicológicos, a preservação do desenvolvimento
e da estabilidade política interna, além disto o conceito de segurança, muita mais explicitamente do que o de defesa, toma em linha de conta a agressão interna, corporificada na infiltração e subversão ideológica, até mesmo nos movimentos de guerrilha, formas hoje mais
prováveis de conflito do que a agressão externa.
Desenvolvimento e segurança por sua vez são ligados por uma relação de mútua causalidade.
De um lado, a verdadeira segurança pressupõe um processo de desenvolvimento quer econômico, quer social. Econômico porque o poder militar está também essencialmente condicionado à base industrial e tecnológica do país. Social, porque mesmo um desenvolvimento
econômico satisfatório, se acompanhado de excessiva concentração de renda e crescente desnível social, gera tensões e lutas que impedem a boa prática das instituições e acabam comprometendo o próprio desenvol-vimento econômico e a segurança do país.
De outro lado, o desenvolvimento econômico e social pressupõe um mínimo de segurança e
estabilidade das instituições. E não só das instituições políticas, que condicionam o nível e a
eficiência dos investimentos do Estado, mais também das instituições econômicas e jurídicas, que garantindo a estabilidade dos contratos e o direito de propriedade, condicionam, de
seu lado, o nível de eficácia dos investimentos privados.
A doutrina de segurança nacional, assim como o conceito de estratégia, não constitui um
corpo rígido de princípios, visto comportar influências geográficas, ideológicas, tecnológicas
e econômicas.
A influência doutrinária pode ser exemplificada pela expansão territorial, que elevou a construção dos grandes impérios que se julgaram possuídos de missão civilizadora; pelo
expansionismo ideológico característicos dos sistemas marxistas; ou pelo isolacionismo, conforme ocorreu em certas fases da história americana.
No caso brasileiro, a nossa longa tradição pacifista leva-nos a uma doutrina essencialmente defensiva. A opção que realmente se nos apresenta é entre um conceito de segurança eminentemente nacional, o que seria algo irreal no mundo moderno e esquemas de defesa associativa
em que passamos a pensar em termos de segurança continental”.
Nos anos 70 aparece nos estudos da geopolítica brasileira Therezinha de Castro, professora
de História e Geografia do Colégio D. Pedro II.
Logo nos seus primeiros escritos na área da Geopolítica revela-se uma incansável pesquisadora e uma inteligência criativa. Deixou inúmeros livros, entre os quais, na área específica da
geopolítica se destacam: “O Brasil da Amazônia ao Prata, África – Geohistória, Nossa América –
Geopolítica Comparada, Geopolítica – Princípios, Meio e Fins” sua presença foi contínua., nestes
últimos 30 anos, com artigos sobre temas geopolíticos em nossos jornais e revistas. Conferencista
entusiasta e dotada de grande poder de comunicação, ocupou com freqüência o “pódium” dos
institutos de ensino superior das Forças Armadas, tais como da Escola Superior de Guerra – ESG,
a cujo quadro de professores pertenceu e das Escolas de Estado-Maior e de altos estudos políticos
e estratégicos do Exército, Marinha e Aeronáutica. Era, habitualmente, convidada a pronunciar
confer6encias sobre temas geopolíticos na Argentina, Uruguai, Chile e Portugal. Teve vários de
seus livros traduzidos para o idioma espanhol. De todos os temas geopolíticos que Therezinha de
Castro tratava freqüentemente destacam-se” – geoestratégia do Atlântico Sul, importância estratégica da ocupação da Antártica, integração do Cone Sul, Bacia do Caribe, problemas amazônicos.
Foi uma das poucas vozes pioneiras e entre elas a mais insistente, sobre a necessidade do Brasil
instalar uma base na Antártica, tendo em vista a prospectiva de sua importância estratégica num
futuro próximo, em função de sua posição de defrontação com todo o Hemisfério Sul do planeta e
por suas imensa reservas minerais e de água. Therezinha de Castro reivindicava que o Brasil participasse territorialmente da comunidade antártica defendendo o seu direito pelo princípio de
defrontação, princípio que já fora aplicado no caso dos direitos territoriais no Ártico. Viu a sua
pregação realizar-se, quando em 1983, o Brasil instalou a Estação Comandante Ferraz, comandada
pela Marinha, na ilha Rei George, do arquipélago Shetlands.
MAPA DAS PRETENSÕES BRASILEIRAS NA ANTÁRTICA BASEADAS
NO DIREITO DE DEFRONTAÇÃO, EXTRAÍDO DA REVISTA ARGENTINA ESTRATEGIA
O autor deste livro, quando ainda Tenente Meira Mattos, no final dos anos 30, teve oportunidade de ler os livros de Mario Travassos. Empolgou-se por sua visão geopolítica do Brasil. Tivemos o nosso patriotismo eletrizado pela leitura de Travassos sobre a geografia sul-americana, os
antagonismos em confronto, a posição do Brasil nesse contexto geográfico, as sugestões sobre uma
política de comunicações e de transportes que nos trouxesse para a situação inequívoca de principal
poder continental. Passamos a estudar a geopolítica. Lemos um livro muito falado na época, “El
Factor Geográfico en la Politiva Sul Americana” de autoria do Professor espanhol Carlos Badia
Malagrida. Este livro era muito apreciado pelos argentinos porque, entre outras conclusões, considerava a bacia platina (cuja maior extensão territorial encontra-se no interior do nosso país), tiranicamente subordinada, política e economicamente, à atração hidroviária de Buenos Aires, por sua
posição privilegiada na Foz do Prata. Travassos nos seus livros “Projeção Continental do Brasil” e
“Introdução à Política de Comunicações do Brasil” propõe um sistema vial terrestre que atraísse
para os nosso portos atlânticos do Sul, o interesse das regiões platinas brasileiras, propondo, assim,
uma correção geopolítica que neutralizasse a força carreadora sobre o nosso território da rede fluvial platina. Os hoje chamados “carreadores de exportação” outra coisa não são senão parte do projeto geopolítico de Travassos, apresentado em 1931. Nossa leituras do tenente, capitão e major de
então, não ficaram em Malagrida. Lemos os autores Backheuser e Lysias Rodrigues entre os brasileiros e Ratzel, Kjéllen, Vidal de La Blache, Hausshofer e vários outros mais modernos, entre os
estrangeiros. Em 1959 publicamos o nosso primeiro trabalho sobre geopolítica, um fascículos de
72 páginas de que o Brasil já podia almejar uma escalada de poder, 30 anos depois do “Projeção
Continental” de Travassos, na apresentação deste livro escrevemos:
- “O Capitão de 1931 sonhou com um Brasil potência continental, nós lhe pedimos licença para
sonhar agora com um Brasil potência mundial”.
Neste nosso primeiro livro de geopolítica analisamos os conceitos de poder mundial expressos por três respeitados pensadores da ciência política – o sueco Rudolf Kjéllen, o inglês Arnold
Toynbee e o francês Tibor Mende. Analisando o espaço e posição geográfica do Brasil, suas riquezas potenciais, a coesão de seu povo e sua história, além da opinião de vários autores estrangeiros,
concluímos que tínhamos condições de, no futuro, virmos nos alinhar entre as grandes pot6encias
do mundo.
Nosso segundo livro de geopolítica só veio 15 anos depois “Brasil Geopolítica e Destino”,
1975, prefaciado pelo historiador e cientista Arthur Cezar Ferreira Reis e, dois anos depois, em
1977, lançamos o “A Geopolítica e as Projeções do Poder”, que teve o prefácio do historiador e
“imortal” Luiz Vianna Filho.
Estes dois livros foram concebidos e publicados sob a influência do espírito de otimismo, de
fé nos destinos do Brasil, que dominaram o nosso povo na década de 70. Viajava-se pelo país, de
Norte a Sul, de Leste a oeste, e só se ouvia as expressões “Brasil Grande” e “Prá Frente Brasil”. O
nosso crescimento econômico beirava os 10% ao ano. Analistas e imprensa estrangeiros nos apontavam como uma das próximas potências o Professor Ray Cline, Presidente do Centro de Estudos
Estratégicos na Universidade Georgetown, Washington, nas suas avaliações sobre potências mundiais, estimou que poderíamos vir a ocupar o 6o lugar, depois dos Estados Unidos, União Soviética,
Alemanha, França e China. O Secretário de Estado da maior potência do mundo, Henry Kissinger,
elegeu-nos como aliado preferencial dos Estados Unidos.
Nós, que em 1959, no nosso primeiro livro, havíamos viabilizado o nosso destino de potência, vimos reforçada a nossa avaliação prospectiva. Com este espírito escrevemos “Brasil Geopolítica
e Destino” e “A Geopolítica e as Projeções do Poder”.
No primeiro, examinamos os desafios do espaço brasileiro ao nosso desenvolvimento, enriquecimento e progresso social. Analisamos as características do nosso povo. Balanceamos as nossas estratégias de segurança e defesa. Tivemos sempre presentes, como instrumentos de avaliação
estratégica, a teoria do historiador Tonybee sobre “Desafio e Resposta” e os fatores de poder político da fórmula de Ray Cline. Eis esta fórmula:
·
·
·
·
Pp = (C + E + M) X (S + W)
Pp = poder perceptível
C = massa crítica (população + território)
E = capacidade econômica e tecnológica
· M = capacidade militar
· S = estratégia (projeto nacional)
· W = vontade nacional
Projeção Geoestratégica do Brasil
Estes instrumentos de análise e prospecção, aplicados à realidade nacional, permitiram-nos
julgar que havíamos já chegado a uma “plataforma de lançamento para alcançar o nível de potência
política. Impunha-se aos governos futuros assegurar o andamento rápido do Projeto de Desenvolvimento Nacional, iniciado pelo Presidente Castelo Branco, seguido pelo Presidente Costa e Silva e
acelerado e fortalecido pelo Presidente Emílio Médici. O Desenvolvimento Nacional exigia, essencialmente, uma política de interiorização, de valorização da enorme massa continental, particularmente a Amazônia e o Centro-Oeste carentes de uma infra-estrutura de transportes, comunicações
e povoamento. A necessidade de garantir a segurança interna e defesa externa deviam ser consideradas nos projetos de desenvolvimento. Consideramos que, prosseguindo no Projeto de Desenvolvimento, poderíamos transpor os humbrais do Ano 2000 alinhados entre as maiores potências do
planeta.
Não chegamos lá. A crise mundial provocada pela criação da OPEP, iniciada em 1973, aumentando substancialmente o preço do petróleo, nosso principal produto de exportação, desequilibrou nossa economia e desritmou o Plano de Desenvolvimento. Mas, não devemos Ter errado
muito nos alvos que previmos para entra do século, erramos no tempo. Pelo menos é esta a opinião
do pesquisador e analista Roberto Pereira da Silva, em artigo publicado na revista especializada
“Parcerias Estratégicas”, dezembro de 1996., editada pelo Centro de Estudos Estratégicos, da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Conclui o articulista, depois de rever os estudos e propostas
contidas no livro “Brasil Geopolítica e Destino”, passados mais de 20 anos:
· “O General Meira Mattos como estudioso do Brasil à luz da Geopolítica e da Estratégia, foi
capaz de elaborar, na década de 70, um cenário para o ano 2000, muito próximo do que hoje se
vislumbra para 2020 e, praticamente, para uma extensão de tempo”.
No livro “A Geopolítica e as Projeções do Poder”, pensado e editado nessa mesma época de
entusiasmo desenvolvimentista da Nação, complementa e fortalece a tese de nossas possibilidades
políticas e econômicas de alcançar o nível de potência mundial.
Particularmente o estudo do poder, suas origens históricas, natureza e manifestações, características de Poder Nacional. Em seguida, reavaliamos a realidade política brasileira, os estímulos
marítimos e continentais de nosso espaço geográfico, os estímulos recebidos de fora, tentamos uma
análise norte-americana e, finalmente, imaginamos uma perspectiva da ação governamental para o
último quartel do século. Nessa perspectiva visualizamos a aceleração do Projeto de Desenvolvimento Econômico e Social dentro dos padrões de um estado democrático moderno, destacando
neste Plano a necessidade de maior de progresso nos setores de transportes, educação, ciência e
tecnologia, energia inclusive a nuclear e cibernetização. Quanto à Segurança, opinamos que, assegurada a paz interna, devemos dar mais atenção aos problemas de segurança externa, uma vez que,
a projeção de nosso poder resultará, fatalmente, no aumento de nossas responsabilidades e encargos de defesa.
Em 1980 lançamos o livro “Uma Geopolítica Pan Amazônica”, prefaciado pelo conceituado
escritor Leandro Tocantins, autor entre outras obras de “O Rio Comanda a Vida” e “Formação
Histórica do Acre”. Animou-nos, na época, a assinatura em Manaus (1978), do Tratado Pan Amazônico, firmado pelos oito países condôminos da grande bacia de 7 milhões de km2 (a bacia do
Mississipi banha 3,2 milhões de km2 e do Rio Nilo 2,8 milhões km2).
O que nos entusiasmou com a assinatura do Tratado Pan Amazônico, foi verificar que, pela
primeira vez os países amazônicos abandonavam suas prevenções e pequenas rivalidades e se uniam num projeto regional comum, indispensável para assegurar a elevação do padrão de vida dos
povos ribeirinhos e o progresso econômico da área banhada pela imensa calha hidrográfica. Propusemos-nos a fazer a avaliação geopolítica dessa região coberta por uma floresta tropical úmida (que
Humbolt chamou de Hiléia), regada por vasta trama hidrográfica, detentora da maior reserva de
água doce do planeta e, ao mesmo tempo, uma das mais despovoadas e atrasadas. Estávamos
convencidos de que somente uma estratégia comum, sustentada pela vontade firme dos condôminos
poderia levar ao êxito a iniciativa de desenvolver a região.
Uma estratégia regional visando a proteger a soberania dos países amazônicos sobre esta área
tão ambicionada internacionalmente, assegurar a preservação equilibrada de sua natureza e promover o seu progresso social e econômico, exigiria a conjunção das vontades e das ações dos países
signatários obedientes a um bem concebido plano estratégico.
Propusemos alguns elementos para este amplíssimo plano estratégico multinacional, visando
a acelerar o desenvolvimento sócio-econômico da região. Eis um resumo de nossa proposta:
- selecionar a área mais crítica da região, por que mais isolada a Amazônia Ocidental, como alvo
prioritário do plano de desenvolvimento;
- realizar a abordagem desta área, Amazônia Ocidental, partindo de três frentes – a tradicional,
saindo da foz e subindo o rio, a do planalto central brasileiro e, finalmente, descendo dos Andes
e do sistema guiano; cada país participante de cada frente se empenharia em realizar programas
de desenvolvimento nacionais que o arrastassem a fronteira econômica em direção à Amazônia
Ocidental;
- estimular nas áreas de conexão fronteirica, – Clevelândia (Guiana Francesa), Tiriós (Suriname),
Normandia (República da Guiana), BV8 (Venezuela), Auarís, Cucui e Letícia (Colômbia),
Tabatinga e Assis Brasil (Peru), Brasiléia, Porto Velho e Guarajá-Mirim (Bolívia) – no sentido
de, em torno delas, criar-se um pólo binacional de desenvolvimento social e prosperidade econômica, tomando como modelo os exemplos de convivência internacional profícua alcançados
na fronteira sul (Livramento / Rivera e Uruguaiana / Los Libres);
- estimular em toda a Amazônia Brasileira a execução de projetos e programas de transportes, de
navegação, de construção de aeroportos, de educação, saúde, saneamento básico, telecomunicações, agricultura, pecuária e indústria.
AMÉRICA DO SUL
POLÍTICO
Apesar da extensão, complexidade e do vulto de investimento que exigiram os projetos amazônicos dos governos Castelo Branco, Costa e Silva e Médici, a administração pública destes três
Presidentes da República conseguiu dar um grande impulso à tarefa de desenvolver a imensa bacia
do nosso “rio mar”. Nesse período nossos vizinhos muito pouco fizeram para desenvolverem a sua
região amazônica, exceptuando-se a Venezuela que construiu a Rodovia Caracas – Santa Helena na
fronteira, em frente a BV8, ligado a Boa Vista (Roraima) e impulsionou o desenvolvimento do Vale
do Rio Orinoco, que pela proximidade trouxe influência indireta à melhoria de sua linde amazônica.
Em nosso livro “Geopolítica e Trópicos” (1984) prefaciado pelo eminente sociólogo Gilberto
Freyre, focalizamos, na primeira Parte, as teorias de geógrafos, sociólogos, cientistas políticos que
proclamam a impropriedade das regiões tropicais para abrigarem uma sociedade adiantada. Em
geral, alegam duas razões: serem habitadas por raças inferiores e possuírem condições climáticas
desfavoráveis que desestimulam a criação da cultura e da tecnologia. Enfim, razões etnocentristas
e deterministas, que o historiador Arnold Tonybee, no seu estado das 21 civilizações que povoaram
a terra nestes últimos seis milênios, contesta veementemente. Para Tonybee não há raça superior,
não há clima completamente hostil, o que há é a dialética milenar entre o homem e o meio físico, –
o desafio e a resposta. Assim Tonybee sintetiza sua teoria do desafio e da resposta:
“A geografia condiciona, dificulta, sugere, inspira, estimula, enfim, apresenta o seu
desafio, cabe ao homem responder a esses desafios. Ou os responde e os supera, ou não os responde
e é derrotado.”
Terra e Homem conjugados numa equação de vontade e competência, de educação,
ambientação e de uma tecnologia adequada ao meio, são os instrumentos de uma síntese que a
história consagra como crisálida de sociedades adiantadas e de civilizações.
Na Segunda parte da obra, analisamos o desafio do trópico brasileiro, Amazônia e região do
Cerrado. Destacamos os feitos do homem brasílico no decorres de quase dois séculos e seus esforços inauditos para preservar o nosso patrimônio amazônico, criando dois grandes centros irradiadores
de progresso e mantendo incólumes suas fronteiras. Exaltamos a atuação sacrificada, competente e
operosa das Forças Armadas; presentes na região desde sua incorporação territorial ao Brasil.
Mostramos que este homem brasílico já estava prestes a vencer o desafio do cerrado tropical,
transformando-o em terra produtiva. Terminamos manifestando a nossa fé de que o homem brasílico
melhor aparelhado em educação, saúde e tecnologia estará apto a vencer o gigantesco desafio dos
trópicos.
No livro “A Geopolítica e a Teoria de Fronteiras” (1990), prefaciado pelo ilustre General
Lyra Tavares, voltamos à propostas que havíamos lançado em 1975 no livro “Brasil Geopolítica e
Destino”, alusiva à importância em fortalecer nossas fronteiras, principalmente as vazias lindes
amazônicas, já agora num contexto visando o interesse regional comum aos países vizinhos. Voltamos à tese da e necessidade de estimular o desenvolvimento das “as áreas interiores de intercâmbio
fronteiriço”. Animava-nos a criação, pelo governo, do Projeto Calha Norte (1985), cuja implantação vinha a corresponder às idéias que vínhamos defendendo há dez anos.
Destacamentos militares do Exército existentes na área de 1.200.000km2, que abrange os Estados
do Amazonas, Pará, Amapá e Territórios de Roraima. Asseguram a vigilância de 6.500km de fronteiras terrestres, com a Colômbia, Venezuela, Guiana Suriname e Guiana Francesa, estendendo-se
de Tabatinga sobre o Rio Solimões até a localidade de Oiapoque na foz oceânica do Rio Oiapoque.
Com estes seis livros, cujas idéias espraiamos, também, através de inúmeras conferências,
palestras, artigos em revistas especializadas e jornais, marcamos nosso pensamento geopolítico
durante os últimos 25 anos.
Seríamos injustos se recordando os 70 anos do pensamento geopolítico brasileiro, olvidássemos do nome de autores de reconhecido valor cultural que, sem serem especializados em estudos
geopolíticos, revelaram em suas produções intelectuais admirável visão dos problemas políticos
brasileiros relacionados com a nossa geografia. Citaríamos aqui, entre os principais, os nomes de
Delgado de Carvalho, Arthur Cezar Ferreira Reism, Leandro Tocantrins, Samuel Benchimol, Jarbas
Passarinho, Gilberto Freyre, Lavanére Wanderley, Álvaro Alberto, Amerino Raposo, Mario Cesar
Flores, José Osvaldo de Meira Penna, Octávio Tosta e Shiguenoli Miyamoto.
Síntese
Reunindo e integrando o pensamento geopolítico de nossos autores manifestado nestes últimos 70 anos, encontramos os seguintes rumos, muitos deles coincidentes entre as proposições de
vários pensadores:
- a idéia de Império, inspirada na grandeza territorial e na missão de desbravá-la, dominou o
espírito de vário pensadores;
- a necessidade de uma política de interiorização, visando a incorporar a imensa massa continental inexplorada ao processo de enriquecimento e de fortalecimento do Poder Nacional;
- nesta política, acentuada prioridade vem adquirindo a consciência da importância do desenvolvimento e da defesa da região amazônica;
- a vantagem de nossa maritimidade estará sempre assentada numa respeitada presença estratégica no Atlântico Sul;
- o desenvolvimento aeronáutico, (transporte, vigilância e defesa) face à extensão geográfica do
país, constitui-se em fator indispensável à integração territorial;
- em termos gerais, impõe-se uma política de desenvolvi-mento econômico, social, científico e
tecnológico em benefício de todo o território;
- prevalece o reconhecimento de que o Brasil possui condições para vir a ser uma das grandes
potências de nível mundial para chegar a isto precisará melhorar o seu desempenho administrativo e acelerar o seu desenvolvimento econômico e social;
- em face das ambições internacionais suscitadas pelo seu imenso patrimônio geográfico e suas
riquezas inexploradas, o Brasil precisa manter uma força militar de dissuasão estratégica, capaz
de desencorajar possíveis tentativas de aventura sobre o seu território.
- (*) General do Exército Reformado e Conselheiro da Escola Superior de Guerra
“E FEZ-SE A LUZ”
(Gênesis 1-3)
Luiz Sanctos Döring (*)
Nos últimos dias de fevereiro de 1996, escrevemos o artigo O “Brasil Que Queremos”, Queremos?, publicado naquele mesmo ano na Revista da Escola Superior de Guerra. No final do texto
tecemos algumas considerações sobre as qualidades do Povo brasileiro. No momento em que comemoramos quinhentos anos, parece-nos que soou a hora de ampliar aquela análise, sem a pretensão de julgá-la profunda ou completa.
O Povo Brasileiro
Como sabemos, os povos possuem a sua herança social comum, a sua cultura. Apesar de
formados, muitas vezes, por grupos que habitam áreas geográficas diversas e pertencem a etnias e
raças diferentes, ao constituírem uma só nação significa dizer que, em que pese tais diversidades,
possuem aspectos culturais comuns muito mais fortes do que as diferenças. Prevalece o fator “história” que gera a cultura nacional. O Homem é o vetor que leva esta cultura, no espaço e no tempo,
contribuindo, inclusive, para a sua evolução.
Alceu Amoroso Lima, em palestra proferida na Escola Superior de Guerra, em 17 de maio de
1954 – Aspirações e Interesses Nacionais Objetivos Permanentes do Brasil) Civilização Brasileira
– e publicada na Revista de Escola Superior de Guerra, ao discorrer sobre o Homem, tece considerações sobre o que denomina humanismo brasileiro; e propõe-se a analisar alguns traços deste
humanismo. Fixar-nos-emos apenas em um, que julgamos da maior importância, justamente o
citado em primeiro lugar pelo palestrante: a primazia do sentimento sobre a razão. Com suas
palavras: “Somos um povo naturalmente afetivo ... Todos os grandes povos apresentam, geralmente, uma qualidade dominante. A nossa é o sentimento. A psicologia do homem brasileiro gira em
torno do coração e não da cabeça ... A bondade, por exemplo, é uma qualidade derivada dessa
psicologia afetiva e é um traço altamente positivo e que devemos cultivar e defender”.
Fernando Bastos de Ávila, em sua obra Introdução à Sociologia, focaliza estas idéias daquele
insigne pensador , reportando-se, porém, a conferência realizada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1957. E as coloca sob o enfoque da personalidade de base ou caráter
nacional. Reproduzimos trechos da obra citada, em que discorre sobre a primazia do sentimento
sobre a razão: “O nosso homem é primariamente sentimental e secundariamente racional. Entre
esses sentimentos sobressai a bondade. O brasileiro é bom, é naturalmente cordial. A evolução de
nossa história foi repassada por esta nota de bondade” e “Os grandes momentos de nossa evolução
foram superados sem as lutas truculentas que marcaram a evolução de outros povos: a independência, a abolição ... a República” (pg. 112, 4a ed., 1970).
O aspecto “sentimental” sobressai em outros eventos históricos, em muitas atitudes e comportamentos, e no folclore.
Eventos Históricos
Além daqueles citados acima – Independência, Abolição e Proclamação da República – alguns outros, mais recentes, merecem citação, ora apenas para mostrar-se o traço sentimental, ora,
além disto, para frisar o complemento da bondade.
Inicialmente focalizaríamos o sucesso do populismo, em certo período, em nosso País; um
fenômeno baseado fundamentalmente no sentimento, em que a racionalidade aparece apenas nos
líderes populistas, ao planejar suas ações ( embora tais ações possam decorrer de atitudes não
racionais, se no líder constelar-se arquétipo do inconsciente coletivo). Uma figura marcante do
populismo foi Getúlio Vargas, que, sobre o sentimento da massa, estabeleceu uma ditadura de
quinze anos.
O envolvimento da opinião pública nacional, quando o País passou a participar diretamente
da Segunda Guerra Mundial, mostrou bem a presença da face sentimental do povo. A adesão maciça à participação refletia, de um lado, o sentimento de aversão e repúdio à agressão nazi-fascista,
bem como a compaixão para com os povos que sofriam os horrores decorrentes daquela agressão;
de outro o amor à Pátria e o orgulho – no bom sentido – de participar de uma ação nobre, a de
resguardar o futuro da Humanidade. Vale lembrar que a palavra “pracinhas”, com que a Gente
brasileira designou os jovens componentes da tropa que lutava na Europa, reafirma a face sentimental bondosa; o diminutivo constitui, em nossa Terra, uma forma usual de manifestar apreço e
carinho para com pessoas, animais e objetos. Se houvesse uma agressividade intrínseca nas pessoas
comuns, certamente os soldados receberiam outro título, como “leopardos”, “falcões”, “águias”,
denominações compreensíveis quando eleitas pela própria instituição militar, para estimular o melhor desempenho em combate. Também não será demais lembrar que o “amor à Pátria” constitui
um conteúdo psíquico sentimental, espontâneo, e não uma atitude calculada friamente. Quanto
mais sentimental um povo, mais amor terá por sua terra, seu continente, pelo Planeta. Um fator
muito importante para a harmonia perpétua entre os povos.
A deposição de Getúlio Vargas, em 1945, sem lutas fraticidas, em que pese contar ainda,
naquela época, com expressiva massa de correligionários, corrobora a visão de uma gente pacífica.
Apelando para o sentimento do povo – por exemplo como “pai dos pobres” – conseguiria toldar a
lembrança das violências e arbitrariedades do Estado Novo e voltaria ao poder em 1950, em
eleição direta, e até hoje é lembrado e citado por muitos como grande estadista, naturalmente em
inúmeros casos com interesses meramente eleitoreiros ( em contrapartida, os governos do período
de 1964 a 1985, caracterizados por princípios e metas, logicamente estabelecidos, e não por um
governante único, absolutista e populista, que pautaram sua administração em decisões racionais,
abdicando do apelo enfático ao sentimento, hoje são lembrados negativamente, apesar de haverem
mudado radicalmente a situação do País, modernizando-o e transformando-o na oitava economia
do mundo. Governantes racionais não cativam a massa). A aceitação da sua candidatura, um exditador, pouquíssimo tempo depois de sua deposição, sem ação concreta de embargo daqueles que
o depuseram, e a posterior eleição também acentuam a evidência da ação não racional do eleitorado
e das elites, e sim fundamentada no sentimento. O seu suicídio inverteu o posicionamento da opinião pública, que passou do repúdio à comiseração e à restauração de sua imagem, atitude fundamental-mente sentimental.
O impasse sucessório criado pela renúncia de Jânio Quadros, com solução pacífica, em que
ambas as partes cederam em suas pretensões; sem revoltas populares violentas.
A Revolução de 1964 foi pedida e estimulada explicitamente pela maioria da opinião pública
nacional, quer majoritariamente motivada pelo sentimento de receio da instalação de regime comunista, em nossa Terra, quer minoritariamente pela avaliação racional da elite pensante do País,
sobre a possibilidade de que tal ocorresse. Ela desencadeou-se e o governo revolucionário instalouse sem combates, dizimações, extermínios em massa ( ao passo que os movimentos comunistas,
segundo afirma o autor do capítulo Os Crimes do Comunismo, na obra o Livro Negro do Comunismo, geraram cento e cinqüenta mil mortos na América Latina; a Intentona Comunista, em 1935,
surpreendeu e matou trinta e um militares nos quartéis). Uma constatação a mais da prevalência do
traço “sentimento” reside no fato de que as mulheres constituíram as personagens das grandes
marchas pelas ruas de capitais. Na mente feminina o sentimento manifesta-se mais intensamente
do que na masculina.
Por fim citaríamos o encerramento do período de retração defensiva da democracia, modelo
de reação comum na Natureza – que protegeu o Povo brasileiro contra a tentativa de instalação de
uma ditadura comunista ou de regressão a um populismo infantil ( filhos de novos “pais dos pobres”) – e o retorno a um modelo normal de democracia, quando a elite nacional (da qual os chefes
militares eram – e são – apenas uma parcela) se conscientizou de que desapareciam os riscos, pelo
evidente enfraquecimento da então União da Repúblicas Socialistas Soviéticas, transição sem conflitos internos ou deposição pela ação de facções militares dissidentes ou “braços armados” de
partidos ou de ideologias políticas; com eleição indireta, forma inteligente que afastou a possibilidade de radicalizações inadequadas para a mudança que se programara.
Alceu Amoroso Lima atribui à instituição Família, “baseada no sentimento”, esta forma tipicamente brasileira de superar grandes conflitos sociais, com ênfase à atuação feminina. Assim
expressa-se: “Se os nossos grandes acontecimentos históricos se operaram sem derramamento de
sangue: a passagem do período colonial para o período imperial e a passagem deste para a República e se todas as revoluções brasileiras foram pouco sangrentas e toda a vida política brasileira,
nacional e internacional, orientada muito mais pela idéia de paz e harmonia, de acomodação, do
que pela idéia de luta e de violência, tudo isso se deve, antes de tudo, à formação essencial doméstica do povo brasileiro, com o predomínio crescente da mulher” (palestra na ESG,17/5/1954). A
“formação doméstica”, ou seja, no seio da família, e a influência marcante da mulher, “ação materna”, neste ambiente, não constituirão um fator a mais para a primazia do sentimento?
Atitudes e Comportamentos Característicos
Apenas a título de exemplo, lembraremos alguns poucos posicionamentos ou reações coletivas, que contribuem para a tese de que somos um povo sentimental, genericamente bom e pacífico.
Não acolhimento da pena de morte, o que significa considera-ção última pelo Ser Humano; e
crença na sua recuperação, mesmo nos casos em que tal possibilidade é remota. Leis trabalhistas
que durante muito tempo foram consideradas como exemplo das mais “avançadas” – no sentido de
mais favoráveis aos trabalhadores – do mundo.
Parcela significativa dos eleitores brasileiros, que, embora bem intencionada, vota não racionalmente e sim com base no sentimento. A opção é baseada na simpatia, na repetição, muita vez
sem análise, da mesma escolha mantida ao longo de várias eleições (o eleitorado “cativo”, que
como todo cativeiro espontâneo revela uma dependência não racional). Na realidade, os políticos
tentam explorar este traço sentimental, aqui e em todos os países do mundo; e mais intensamente
no caso do populismo.
Acolhimento amistoso a estrangeiros transitórios e sua total absorção pela sociedade, enquanto aqui residem.
Tratamento cordial a turistas nacionais ou estrangeiros, mesmo quando aportam em grande
quantidade, onerando as estru-turas de comércio, transportes e outros serviços das localidades.
Ausência de preconceitos quanto a migrações internas expressivas, apesar da diferença de
culturas regionais, diferenças naturais em um país de tão grandes dimensões; apesar, também, da
escassez de espaço, de empregos e de recursos naturais. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro
são bem uma vitrine da manifestação deste traço característico da nossa Gente.
Ausência de preconceito quanto à capilaridade – ascensão social – o que se pode observar
inclusive e principalmente nas Forças Armadas.
Integração espontânea de raças – negra, indígena, branca, amarela – e de imigrantes de nacionalidades as mais diversas, com a conseqüente miscigenação. Um protótipo da “globalização” da
Espécie Humana. A propósito, transcrevemos o depoimento de um autor britânico, à época professor de Psicologia Social da Universidade de Oxford: “Os problemas raciais desenvolveram-se nos
Estados Unidos com a emancipação dos escravos, ao passo que no Brasil os seus primos se tornaram componentes de uma sociedade multirracial com a prática total de casamentos mistos” (Michael
Argyle, A Psicologia e os Problemas Sociais, p. 106).
Ausência de conflitos entre religiões, crenças, fés; em muitas regiões do Globo, estes conflitos representam um sério problema que tende a agravar-se.
Como dissemos em O “Brasil que Queremos”, Queremos?, “Não existe ódio entre grupos. A
tendência a perdoar está presente em todos. A solidariedade manifesta-se imediatamente nas situações difíceis, vividas por indivíduos e pelas comunidades.”
Folclore e opções de lazer.
A proeminência folclórica e o significado social de alguns eventos de massa, profanos ou
religiosos, e a abrangência de certas opções de lazer podem revelar a predominância do sentimento
no Homem coletivo brasileiro. Estímulos que mobilizam a massa sistematicamente.
Não poderíamos deixar de começar pelo carnaval. Este tipo de festa, que se estende por
quatro dias, abrangendo praticamente todo o território nacional, de expressão tão significativa para
a grande maioria do povo, constitui manifestação não da razão, mas do sentimento; e da sensação,
na medida em que os sentidos, principalmente a audição e a visão, se deleitam com as músicas, as
pessoas dançando. O carnaval evoluiu do “entrudo”, uma festividade provinda de Portugal, que se
caracterizava pela interação agressiva entre as pessoas, com remessa de ovos, água, laranjas, etc.,
sem poupar os transeuntes; atitude que assim chegou ao nosso País, mas que, com o tempo, se
transformou na festa alegre e pacífica que conhecemos. Na grande maioria dos países não vemos
esta espécie de manifestação coletiva sem violência, tão valorizada, despida de ideologia e de
interesses políticos, sem outra motivação exceto o prazer e o lazer; não é por mera coincidência que
o nosso carnaval atrai tantos turistas estrangeiros.
As procissões, igualmente, expressam manifestação não do racional, mas do sentimento. A
grande maioria dos fiéis desloca-se em massa não com a mente envolvida em raciocínios lógicos,
porém sim com o sentimento da presença de Deus – e, no caso dos católicos, da Virgem Maria, dos
Santos – da participação religiosa coletiva, de pertencer a uma igreja, uma religião, uma fé; naturalmente também a sensação de ver as pessoas e as imagens, de ouvir as músicas tocadas e cantadas
e, muitas vezes, sentir o cheiro do incenso. Na maior parte dos países do Hemisfério Norte, não se
vêem tais modelos de rituais; observam-se, sim, manifestações coletivas fundamentadas em lutas
(a palavra já expressa a agressividade dos sentimentos) reivindicatórias, contestatórias, onde o
conflito, e não a paz, estão evidentes. Não pretendemos dizer que tais tipos de manifestações não
existem em nosso País; a diferença reside em que, aqui, o sentimento não agressivo está presente
em inúmeros rituais de massa, em grau bastante elevado.
Os cultos de origem africana são, da mesma forma, expressões do sentimento, complementadas
pela sensação.
A prática de “shows” religiosos, que se vai tornando habitual nas igrejas cristãs, inclusive a
católica, freqüentemente com uma quantidade de público surpreendente, que sem dúvida mantém
um paralelo fenomenológico com os grandes festivais populares, representam uma manifestação
intensa do sentimento e de sensação. Também no interior das igrejas (prédios), realizam-se cultos e
missas de jovens, em que a música de ritmo tradicionalmente profano permeia os ofícios.
O futebol constitui outro grande catalisador de sentimentos, que empolga quase todo o povo
brasileiro, principalmente quando joga a “seleção”. Um traço marcante da alma brasileira, que nos
últimos anos lamentavelmente vem gerando agressividade, “importada” conforme comentamos
em O “Brasil que Queremos”, Queremos?. Comparem-no os leitores com o “rugby”, as touradas,
o esgrima, o box, o judô, o jiu-jítsu, o caratê, muito populares em outras culturas. A capoeira, esta
sim parte tradicional de nosso folclore, embora regional, oriunda da África, pautou-se, inicialmente, por um princípio de grande violência, a ponto de tornar-se um problema prioritário de polícia,
no Rio de janeiro, no fim do Século XIX ( ver Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara
Cascudo); hoje possui uma versão que tem como pano de fundo a música, ainda que muito simples; é quase um bailado, que poderemos admitir como um recurso para compensar a agressividade, público e lutadores canalizando a energia agressiva para a dança. Manifestação compensadora
gerada pelo sentimento pacífico.
O gosto pelas novelas, estórias que geralmente desenvolvem tramas de amor, de amizades
incondicionais, de sacrifícios em benefício das pessoas estimadas, de deslealdades, traições afetivas,
frustração de paixões, e tantas outras desilusões, mas geralmente com final feliz, desfechos muitas
vezes pesquisados junto ao público para melhor atender à sua expectativa (o que comprova o seu
profundo envolvimento), tudo isto representa mais uma evidência do traço sentimental de nosso
povo. Vale lembrar que esta relação obsessiva com novelas não surgiu com a chegada da televisão
ao País; vem do “tempo do rádio”.
Os filmes brasileiros, com raras exceções, referem-se a um mundo se não realmente bom,
pelo menos de esperança; mesmo quando refletem uma existência penosa, que gerariam no espectador a expectativa de comportamentos negativos, os sentimentos de compaixão, de amor ao próximo, estão presentes, compensando as agruras da vida dos personagens, como ocorre, por exemplo,
no filme Central do Brasil; e quando narram estórias de indivíduos marginais, são mínimas as
cenas de violência, se comparados com filmes estrangeiros sobre temas semelhantes. Na década de
cinqüenta, tornaram-se famosas as “chanchadas”, comédias alegres e românticas; os espectadores
deixavam o cinema com espírito leve e otimista. As casas de espetáculo estavam sempre lotadas,
nos horários de maior procura.
Começamos com o carnaval e terminaremos com a música popular, na maioria das vezes
romântica, sentimental, composta por pessoas tão simples quanto moradores dos bairros mais pobres, até intelectuais, como Tom Jobim e Vinícius de Moraes; todas com igual oportunidade de
sucesso, sejam os versos rebuscados ou simples, acolhidas pelo sentimento dos brasileiros. Os anos
da Bossa Nova, os festivais da música popular, são expressões enfáticas de uma cultura musical
estritamente brasileira, que reflete alegria e tolerância para com as adversidades. Hinos e marchas
militares também revelam a índole pacífica dos brasileiros, porém bravos, se necessário, por amor
à Pátria; por exemplo, a Canção do Marinheiro, em que o navio é simbolicamente associado a um
cisne branco e a uma garça, e os versos, continuamente, ora enaltecem a beleza do mar, ora a
saudade da Pátria e a alegria de a Ela regressar; outro exemplo a Canção do Exército, nos versos “A
paz queremos com fervor / A guerra só nos causa dor / Porém se a Pátria amada / For um dia
ultrajada / Lutaremos sem temor” Sem esquecermos o Hino à Bandeira: “Salve, lindo pendão da
esperança! Salve, símbolo augusto da paz!” (sublinhados nossos).
Certamente a presença marcante do sentimento, no folclore brasileiro, se manifesta nas obras
do grande sociólogo Gilberto Freyre, Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife e
Olinda 2o Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira (sublinhados nossos).
As Influências Negativas
Com a popularização das viagens a outros países, para estadas breves ou longas, e com os
avanços tecnológicos fabulosos na área da comunicação por imagem e som, precipita-se um processo inevitável de aculturação. Considerando que o status de algumas nações tornou-se um mito,
que na maioria das vezes não passa de inflação da vaidade de seus integrantes e de idealização do
observador externo desatento, estas “nações-mito” conseguem disseminar aspectos culturais inadequados, às vezes até condenáveis, a outros povos. Nosso País não tem escapado a tal infiltração.
Em 1954, Alceu Amoroso Lima já se preocupava com os “mimetismos”, conforme expressou na
palestra a que anteriormente nos referimos.
Um fato comum consiste na cópia de leis, regras, organizações. Ora todos sabemos que a
legislação precisa compatibilizar-se com a cultura do povo; para sermos mais exatos, precisa decorrer da própria cultura. Quando se copia, cai-se no fenômeno das “leis que não colam”, defeito
que aqui se atribui ao povo, quando na verdade parte do legislador e autoridade dos poderes executivos, ao imitar – às vezes criar – sem levar em conta a cultura nacional. Os sociólogos conhecem
esta verdade e podemos citar as palavras de Samuel Koenig, em sua obra Elementos de Sociologia
( pg. 64 ): “... as leis são, de fato, mores codificados ... Pode-se dizer que nas sociedades civilizadas
os mores tendem a ser traduzidos em leis. Por esse motivo, para serem eficazes, as leis devem estar
em conformidade com os mores existentes; do contrário, estarão condenadas ao fracasso” (sublinhado nosso). A seguir o autor cita caso de artigo da Constituição norte-americana que “não colou”
(naturalmente ele não usou esta expressão jocosa, própria do nosso vocabulário). Isto vale para
normas burocráticas, organizações, etc.
Nos artigos O “Brasil Que Queremos”, Queremos? e Ser Potência é Conseqüência, (este
último publicado nesta Revista, edição de 1998), enfocamos algumas outras influências negativas;
lembraremos apenas três, para acrescentar alguns dados. Primeiro, o comunismo e sua proposta de
ditadura radical, seus terrorismo e guerrilhas, originários da Europa Oriental, que gerou vinte milhões de mortos, na URSS, e sessenta e cinco milhões, na China, conforme consta da obra antes
citada, o Livro Negro do Comunismo. (quantos morreriam no Brasil?). Segundo, os eventos trágicos de crianças e adolescentes matando crianças, adolescentes, e adultos; aquilo que prevíramos,
no artigo Ser Potência é Conseqüência, aconteceu, há pouco tempo, em um salão de cinema, em
São Paulo. Terceiro, o aumento do consumo de drogas e da criminalidade (o tráfico e os seus
desdobramentos que se vão tornando públicos), desde o momento em que o nosso país se tornou
rota de exportação para o enorme demanda do Hemisfério Norte, e verificarmos, agora, que o
dinheiro do tráfico está financiando guerras, conforme comenta Eric Hobsbawn, em O Novo Século
(p.22).
Estes três aspectos da influência negativa e os demais abordados nos nossos dois artigos
citados decorrem ora do que a Sociologia designa “efeito contágio”, fenômeno que se ampliou
com a mídia eletrônica, ora de comportamento de “imitação”, induzido pelo status – nem sempre
real e sim idealizado – do modelo, no caso as “nações-mito” .
Por fim – e com destaque – o neoliberalismo ou o capitalismo selvagem, que ganhou força de
ideologia originária dos países mais ricos, com a competição profissional desenfreada e o desemprego elevado, que acentuam o individualismo, o egocentrismo, e o descaso pela sorte do próximo;
e podem levar ao comportamento de fuga através das drogas, e ao aumento da violência, no contexto de assaltos e seqüestros, como solução para a sobrevivência e, amiúde, para a manutenção de
vícios e de padrões de vida elevados.
Faz-se mister dificultar a proliferação destes modos de ser e agir anti-sociais, estranhos à
nossa cultura, o que se conseguiria, principalmente, valorizando o que é nosso, nas conversas nos
lares, nas escolas, nas universidades, nos filmes e peças teatrais, nos eventos culturais privados e
dos governos, e principalmente, através da mídia, máxime o rádio e a televisão. No caso específico
do desemprego, a solução encontra-se nas mãos da sociedade, o que seria assunto para um inteiro
artigo.
A Nação Iluminada
Esta visão não é recente; ela está expressa na capa do nosso livro de poesias Estruturas Leves
& Pesadas, publicado em 1990. Certamente muitos estranharam aquela figura, em que o Sol iluminava apenas a América do Sul, o que o colocava numa posição astronômica irreal; os símbolos
apenas utilizam – mas não respeitam – a realidade. Naturalmente houve uma generalização; em
algumas regiões sul-americanas ocorrem ainda áreas escuras, pouco iluminadas; fazemos votos de
que estas “sombras” venham à luz, e a tranqüilidade reine por toda parte.
Qual a fonte desta luminosidade que clareia tanto a América do Sul naquela figura? O Sol,
responderíamos prontamente. Engano; o Astro-rei é ali apenas um símbolo. O responsável por toda
aquela claridade é a gente.
Tivemos, nós brasileiros, duas grandes aliadas: a distância das “nações-mito” e a amplidão
de nossa Terra. A primeira defendeu-nos, por muito tempo, do efeito contágio; a segunda protegeunos dos conflitos gerados pela escassez de espaço e de recursos para a sobrevivência e para a
harmonia psíquica. Estas dádivas que recebemos permitiram que se formasse um povo com aquele
traço característico a que nos referimos, entre outros apontados por Alceu Amoroso Lima. Toda a
maldade que se desenvolveu no Hemisfério Norte – presente no nazismo, fascismo, comunismo, na
Guerra Civil Espanhola, no IRA, ETA, nos conflitos do Oriente Médio, da Bósnia-Herzegovina, de
Kosovo, da Chechênia, para citar alguns dramas – se e quando chegou à nossa Terra, não conseguiu
modificar o povo, atingindo apenas pequenos segmentos. A personalidade de base das “naçõesmitos” tem como um de seus traços mais proeminentes a belicosidade, conforme abordamos em
Kosovo, Algo Novo? publicado na edição de 1999, desta Revista. Aqueles povos não conseguirão
criar uma Paz Mundial, porque não possuem tradição de paz.
A paz não se impõe pela força; esta apenas reprime um sentimento coletivo que voltará a
aflorar, tão logo possível. Não foi o que aconteceu com a Alemanha, anos após o término da Primeira Guerra Mundial? Em contrapartida a mesma Alemanha e o Japão, que contaram com tremenda ajuda econômica de seus vencedores de 1945, tornaram-se seus aliados incondicionais (ao
passo que algumas nações do Leste Europeu, abandonadas às suas sérias dificuldades, enveredaram pela via da cruel ditadura comunista). Vale igualmente lembrar os eventos a que assistimos
atualmente, os conflitos reprimidos pelas duas superpotências, durante a Guerra Fria, que explodem agora nos Bálcãs, na Europa Oriental, na África, na Ásia e na Oceania.
O fenômeno “paz entre Estados”, em nosso tempo, fundamenta-se em quatro fatores, raramente atuando apenas um: a ausência de contenciosos, disputas e ambições de conquista históricos; ausência de ameaça; interesses comuns; capacidade de dissuasão.
A existência, entre países, de contenciosos, disputas e ambições de conquistas antigos, históricos, reprimidos por imposições externas de qualquer natureza ou pela incapacidade de, à época,
serem solucionados ou realizadas pela força, representam motivações ponderáveis para eclosão de
conflitos bélico, tão logo um dos pólos possua a capacidade de impor sua vontade sem perdas ou
com perdas aceitáveis; por exemplo, o caso China X Taiwan” e “Índia X Paquistão”. Ao cessar as
pressões, sanções ou força externa e, às vezes, inibições internas, que o contenham, o conflito
eclode. A ausência de heranças deste tipo, em determinada região, é fator favorável à paz entre
Estados ali situados.
A total ausência de ameaça, em outras palavras, de potencial agressão, ocorre normalmente
entre países distantes, quando um deles não seja superpotências com ambição de domínio regional
ou mundial, caso da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Entre vizinhos é fato menos
raro, posto que poderão existir, muitas vezes, um resíduo, ou resquício, de desconfiança, fundamentado em confrontos anteriores, conflitos de interesses econômicos passados, presentes, ou previstos, disputa de fontes de recursos ( água ou petróleo por exemplo; e até vontade de domínio,
como traço de caráter nacional. Tais desconfiança e divergências podem exacerbar-se em algumas
situações e os sentimentos de que o vizinho está mal intencionado, é usurpador, conquistador,
apossam-se da nação, criando condições para o nascer de uma crise. Agravados pela “projeção da
sombra” sobre o “opositor”, processo psicológico que também ocorre no comportamento coletivo
(Presente e Futuro, Carl G. Jung, pr. 572).
Os interesses comuns constituem forte elemento aglutinador. Podem ser estratégicos , como
os que motivaram criação de aliança atlântica, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN,
que se contrapunha à ameaça da ex-URSS; econômicos, como os que originaram a, então, Comunidade Econômica Européia, que mais tarde adicionou o aspecto político, evoluindo para a União
Européia. Este fator contribui substancialmente para possibilitar ou reforçar o anterior, a ausência
de ameaça. A criação do MERCOSUL constituiu passo importante para a consolidação de um
relacionamento de colaboração, entre os países membros, e sua ampliação representa evolução
significativa para o continente sul-americano.
A capacidade de dissuasão ainda significa a mais eficaz garantia de manutenção da paz,
entendida esta palavra no seu sentido mais realista e diminuto, o de ausência de conflito armado.
Esta capacidade, existente em ambas as superpotências, evitou a catastrófica Terceira Guerra Mundial; havia a consciência de que o mundo seria destruído, pela capacidade de igual resposta que o
“outro” possuía. Isto nos leva, mais uma vez, a lembrar que a segurança de uma nação reside no
fato de dispor de meios para dissuadir qualquer intenção de ações agressivas, provindas do exterior,
o que somente se consegue com existência de Forças Armadas bem “armadas” e “amadas” pela
nação, adestradas e prontas. Não será demais alertar que, no atual estágio de civilização, esta capacidade de dissuadir terá de perdurar por muito, muito tempo, porque projetos de ganhos, apropriações de recursos naturais pela força, ampliação ou recuperação de fronteiras, desejo – das elites ou
coletivo - de domínio regional ou mundial, e tantos outros, reprimidos pela resposta concreta do
poder militar ou pela capacidade de dissuasão do país alvo, renascem logo que aquela possibilidade
de responder ou de dissuadir se torna relativamente inferior ao poder do país predador. Como
afirmamos anteriormente, não se obtém a paz duradoura simplesmente pela repressão dos impulsos
do “outro”. Lamentavelmente a “paz entre Estados” ainda é um sistema em equilíbrio instável. O
que ressalta a importância do próximo parágrafo.
A paz mundial perene obter-se-á não pela imposição ou pelo “protetorado” de superpotências, mas pela integração fundamen-tada no sentimento. A via da integração mundial (preferimos
esta expressão pelo fato de que a palavra “globalização” já está eivada de conotações de domínio e
de prevalência dos mais poderosos) passa, necessariamente, pelo sentimento. O intelecto é frio; sob
sua prevalência o indivíduo doa, divide, reparte, apoia, esforça-se, trabalha ou sacrifica-se, pelo
“outro”, se houver algum lucro, ganho, ou risco de perdas ou prejuízos maiores do que aquilo de
que abre mão. Conforme nos mostra Hanna Wolff em sua obra Jesus na Perspectiva da Psicologia
Profunda, Nele predominava o sentimento. Não existe melhor exemplo de dedicação à paz.
Por outro lado o desaparecimento da estruturas comporta-mentais preconceituosas e o julgamento isento do valor dos outros povos, e ainda a predisposição para não considerar como norma
geral que outra nação seja, em princípio, sempre ameaçadora, fundamenta-se no sentimento. Como
frisou Carl G. Jung, em sua obra Tipos Psicológicos (pr. 965, 1029, 1054), a função “pensamento”
trata de conhecer o objeto; a função “sentimento” estabelece o valor deste objeto, que podemos
interpretar como o que vale o objeto para o sujeito.
A nossa Nação é o exemplo vivo da integração da Humanidade. Exemplo, também, de que A
Paz é Possível. Isto conseguimos . E com certeza o fator sentimento do “humanismo brasileiro”,
traço importante de nossa personalidade de base ou caráter nacional, e a distância em relação às
áreas mundiais, onde as guerras eram forma tradicional de solução de conflitos, representaram
papel fundamental.
A aculturação global, que permitirá a Integração Mundial, precisa fazer-se através da assimilação de bons sentimentos das povos que os têm.
Também, as nações que desejam a paz devem passar esta imagem ao Mundo. Nós o fazemos
nas relações internacionais e, até, o formalizamos no Artigo 4o da Constituição:
“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III –autodeterminação dos povos; IV – não intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII –
solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político.” (sublinhado nosso).
O Povo brasileiro é sentimento e pelo sentimento foi cimentado. Possui boa índole, propensão natural para a bondade. Nele prevalece a aceitação do diferente (em raça, etnia, nacionali-dade,
credo religioso, costumes, mores, etc), a solidariedade, a empatia, e tantos outras qualidades que
enumeramos nas muitas linhas anteriores. Tudo isto somos. Tudo isto “devemos cultivar e defender”, usando as palavras de Alceu Amoroso Lima.
Nossa Terra foi o laboratório onde Deus – ou a Natureza – testou, com êxito, a próxima etapa
da Evolução. Experiência que durou quinhentos anos. Precisamos preservar esta dádiva.
O Povo brasileiro é um protótipo de. Nova Humanidade.
O Sol desta NAÇÃO ILUMINADA.
(*) Vice-Almirante (RRm) e Ex-Subcomandante da Escola Superior de Guerra
DISCUSSÃO DA POLÍTICA PETROLÍFERA
BRASILEIRA
Jaime Rotstein (*)
1.
Introdução
A discussão da política petrolífera brasileira obriga a que se faça um pequeno histórico.O petróleo
é um combustível duro, de fácil manipulação, que revolucionou o século XX, cuja vida, no século
XXI, não deve se adentrar muito longe e que é um combustível que, independente de seu uso para
finalidades como transporte e petroquímica, está presente em quase tudo em nossas vidas. O petróleo na verdade condicionou toda a evolução da sociedade no século XX.
O petróleo não tinha essa expressão no momento em que Rockfeller mandava distribuir
lamparinas na China para vender querosene. Ele ganhou dimensão estratégica e importância econômica, com intensa participação na vida das comunidades, quando Henry Deterting, que era o presidente da SHELL, conseguiu convencer o governo inglês a substituir, na frota inglesa, o carvão pelo
óleo. E ele teve uma frase que foi uma previsão antológica; ele disse: “Agora que temos um grande
poder por trás, o petróleo vai ganhar uma nova dimensão”. E a previsão foi tão correta, que já na
1a Guerra Mundial, não fosse o mar de petróleo que os Estados Unidos fizeram chegar à Europa, a
Alemanha teria ganho a guerra. Foi o petróleo que decidiu a 1a Guerra Mundial. E daí para a frente a
história é muito conhecida: por muitos anos as majors dominaram, completamente, a conjuntura
petrolífera. E mais do que isso, faziam e desfaziam governos. Há situações que fugiram de controle,
como ocorreu com a queda do Xá do Irã. O governo de Mossadegh foi derrubado. Há dezenas de
exemplos de governos, ou de guerras, ou de revoluções, inclusive no Golfo Pérsico, manipuladas
pelas majors, inclusive nas lutas entre si. A partir de certo momento, alguns países, grandes produtores de petróleo, adquiriram um grau de autonomia mais significativo, como foram os casos da Líbia e
do Irã após a revolução fundamentalista.
Apesar disso, tudo girou em torno do controle físico das jazidas de petróleo, até o momento
em que as majors entenderam que era melhor ter o domínio econômico e não ter o custo político
direto. Aí, foram mudando a sua conduta e, ao mudarem a sua conduta, criaram espaço para o
aparecimento de empresas estatais. Essas empresas estatais, em sua maioria, são empresas que
estão vinculadas aos interesses das majors e vinculadas aos interesses geopolíticos e estratégicos
das grandes potências. Mas têm seus arroubos e os seus momentos em que se auto-afirmam. Na
verdade, o que ocorre é que 65% a 70% do petróleo está no Golfo Pérsico e é dele – até aqui – que
vai depender o Planeta, após a depleção das reservas em outras partes do mundo. Esgotar, no caso,
quer dizer: as reservas atingirem níveis em que a produção não dá para atender ao consumo. Ou
seja, o horizonte, que é reserva recuperável sobre produção, reduz a disponibilidade física do combustível – em termos quantitativos e no tempo – e obriga a sua importação ou, por falta de produto,
eleva os seus preços. E até existe a discussão quanto à vantagem de preservar reservas, importando
petróleo quando o seu preço está baixo.
Em função de sua posição estratégica, criou-se, no Golfo Pérsico, uma situação extremamente complicada face a sua importância como reserva petrolífera em nível planetário. Na verdade, o
que ocorre é que certas monarquias que dominam o Golfo Pérsico só o fazem porque têm o apoio
das grandes potências. E, para consegui-lo, dão aos seus povos só direitos e não geram deveres.
Ninguém paga imposto, ninguém paga hospital, todos têm algum benefício para poder se manter,
etc. E esta situação tende a se desequilibrar em face da ação dos fanáticos, dos fundamentalistas,
pondo em risco, inclusive, a monarquia da Arábia Saudita. A verdade é que, aos preços baixos de
petróleo, ninguém sustenta aquelas dinastias.
A posição mais importante no quadro geoestratégico do petróleo, no Golfo Pérsico, é a dos
americanos, para quem hoje – e os especialistas aceitam – o custo do petróleo está em cerca de 90
dólares o barril. Porque o custo do petróleo, para os Estados Unidos, é a somatória do preço do
barril mais o preço de manter um guarda-chuva militar na região. E eles garantem com isso o
suprimento de petróleo ao mundo ocidental, beneficiando – se assim se pode dizer – inclusive o
Brasil. Ocorre que, se os americanos resolverem tirar o guarda-chuva militar – na medida em que
eles têm países ricos em petróleo no Hemisfério Sul, a Venezuela e o México – isso criaria um caos
em termos de preço de petróleo que não se pode nem prever. Por enquanto, a situação está sob
controle, como revelam a intervenção no Kuwait, as restrições ao Iraque e a concordância no aumento
do preço do petróleo.
Isto levou a que o sentimento ambivalente seja válido em relação ao petróleo: nem otimismo
com o preço baixo, nem julgar que o preço alto veio para sempre. A tendência, no entanto, é de
acomodação e aceitar que tanto o preço baixo como o preço alto, quando ocorrem, são imbatíveis.
Na verdade os raciocínios são táticos e raramente estratégicos. Veja-se o erro, por exemplo, de
superestimar, no caso, a chamada grande descoberta de um novo campo de petróleo no Irã. Na
realidade trata-se de cerca de 15 bilhões de barris, ou seja, seis meses de consumo mundial. É uma
descoberta muito importante para o Irã. Mas não é uma descoberta importante para o mundo. Era
preciso descobrir isto cada três a quatro meses para que realmente se pudesse ter um horizonte
válido que ultrapassasse a década de 20 do século XXI, 2020, em que o preço do petróleo deverá ser
crescente, em função da produção não atender ao consumo. Quando os dados apontarem para um
impasse, o preço do petróleo começará a subir. Por isso é um combustível que deve ser preocupação
permanente para o Brasil, e o ideal é não ficar dependente dele.
2.
A Posição Brasileira
O petróleo para o Brasil é uma fratura exposta, coberta com o véu diáfano das boas intenções
e da fantasia. Por quê? Porque quando o petróleo está a 10 dólares o barril, aceita-se o valor como
um valor cabalístico que vai se manter nos próximos anos. Isso ocorreu não faz muito tempo. Faz
alguns meses. Quando o preço do petróleo sobe a surpresa é generalizada, e os exegetas nunca
raciocinaram com esta possibilidade. E muito menos com a desvalorização concomitante da moeda
brasileira.
Como o petróleo gera derivados vendidos em reais, na verdade, para o Brasil, ele já subiu
mais de quatro vezes em reais. Se ele estava a 10 dólares (12 reais) e está a 24 dólares (48 reais),
subiu cerca de 400% em reais.
Face ao quadro em que vive o País é preciso tomar em conta qual é a estratégia que se
seguia no Brasil.
QUADRO1–CONDICIONANTEATUAL
− ExportaçãodoexcedentedepetróleopesadoproduzidonoPaís.
− Exportação de excedentes de derivados de petróleo cuja produção é
superioràdemanda.
− Importaçãode derivados de petróleo cuja produção é insuficiente para
atenderàdemanda.
− Importaçãodepetróleoleve.
Isso significava que a prioridade na estratégia seguida em relação ao petróleo não era a de
obter um alto grau de autonomia através do uso pleno do petróleo produzido no Brasil e seu
refino internamente, de preferência. Inclusive importando petróleo pesado para atender às necessidades de refino que supram, aproximada-mente, à demanda de consumo interno (Figura 1).
Nas atuais circunstâncias o Brasil é prisioneiro da importação de expressivo volume de
petróleo leve (3,77 dólares mais caro do que o petróleo pesado em média histórica de 5 anos),
bem como da importação de derivados. Hoje em dia (novembro/99), a importação de derivados
excede ao volume de petróleo importado.
As metas propostas tomam em conta:
- transformar o handcap negativo do tipo de petróleo produzido no Brasil em vantagem, através
da adaptação das refinarias para usarem ao máximo o petróleo pesado – brasileiro e importado
(mais barato) – enquanto a produção brasileira não atender as necessidades de refino; aliás a
produção de petróleo pesado no mundo é muito restrita (ver Figura 2);
- deixar a decisão sobre o que fazer com o petróleo descoberto em Santos para quando estiver bem
conhecida a sua potencialidade, tomando em conta a estratégia a ser estabelecida, seja a de
exportar o petróleo leve, seja a de programar a expansão de refino com inteiro conhecimento da
situação;
- a importância do óleo diesel no consumo de derivados de petróleo do País, inclusive por se tratar
de um produto caro no mercado internacional e do qual depende toda a produção agrícola que
representa cerca de 17% do total do consumo do referido combustível;
- a necessidade da estratégia de combustíveis utilizados em transporte tomar em conta as possibilidades de substituição do óleo diesel por álcool hidratado e gás natural (ver Quadro 2).
FIG URA 1
PAWS
2 S EP 9 9
Pla tts Wkly Dated Ass ’d Differential Bra ss River (Nige ria - 4 0 º API) vs Maya (M exico - 2 0 º API)
Bras s Rive r vs M aya
Min. 1 .8 8
Ma x. 6 .6 3
U
S
$
/
B
b
l
La st 3 .2 4
Me an 3 .7 7
7
7
6
6
5
5
4
4
3
3
2
2
1
1
1995
1996
1997
1998
1999
Pe tro leo Bra sileiro
6 JAN 9 5 to 2 7 AUG 9 9
Figura 2 - Histórico e Projeção da Produção Mundial dos Petróleo Leve, Médio e Pesado
MMB/D
API
50
33,5
45
33,4
40
33,3
35
33,2
30
33,1
25
33,0
20
32,9
15
32,8
10
32,7
5
32,6
Light (> 40º API)
Medium
0
32,5
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
Ano
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Heavy (< 25º API)
API
1000
800
600
400
200
0
PETROBRÁS
2003
2000
1997
1994
1991
1988
1985
CORRELAÇÃO
1982
CONSUMO DE
DIESEL (milhares de
barris/dia)
Quadro 2 - Projeção do
Consumo de Diesel
ano
As condicionantes que têm sido perseguidas pelo autor ao longo dos últimos 30 anos apóiamse, essencialmente, na necessidade de evitar o que ocorreu quando dos choques de petróleo venha
a repetir-se. Entre 1980 e 1986 (ver Quadro 3) a dívida externa brasileira – oficialmente – foi
originada pela importação de petróleo e os juros sobre tais dispêndios – sem tomar em conta que o
Ministro Delfim Neto tem afirmado que certas dívidas, sob outras rubricas, de fato serviram para
pagar petróleo importado.
(US$ Bilhões)
Q u a d r o 3 – E v o lu ç ã o C o m p a r a d a d o s G a sto s e m D iv isa s c o m P e tr ó le o e
d a D ív id a E x te r n a B r a sile ir a – P e r ío d o 1 9 8 0 / 8 6
V a r ia ç ã o d a
D ív id a
I m p o r ta ç õ e s L íq u id a s d e P e tr ó le o
A no
L íq u id a (1 )
e D e r iv a d o s
n o P e r ío d o
Im p o r ta ç õ e s –
E x p o r ta ç õ e s
I m p o r ta ç E x p o r ta ç õ
ões
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
TOTAL
es
9 ,9
1 1 ,0
1 0 ,1
8 ,2
6 ,9
5 ,7
3 ,1
5 4 ,9
0 ,4
1 ,1
1 ,4
1 ,1
1 ,8
1 ,6
0 ,7
8 ,1
9 ,5
9 ,9
8 ,7
7 ,1
5 ,1
4 ,1
2 ,4
4 6 ,8
6 ,7
7 ,0
1 1 ,8
1 1 ,1
2 ,3
5 ,2
1 0 ,2 (2 )
5 4 ,3
Fonte: SEDEC / CACEX / BACEN
OBS.: (1) Dívida bruta menos reserva
(2) Estimado com base nos dados até set/86
É fácil avaliar os riscos que corre o Brasil quando depende da importação de petróleo ou de
derivados. Isso independentemente do capital que deixa de ingressar no País para transformar o
perfil do refino e para aumentá-lo, a par dos empregos que deixam de ser gerados. As possibilidades de choques de petróleo ficam nítidas – verificando-se o papel do Golfo Pérsico em sua produção – tomando em conta estudo feito pelo Center for Strategic & International Studies até 1983 (ver
Quadro 4). Os fatos posteriores a 1983 só confirmam o raciocínio.
Poder-se-ia, ainda, argumentar que hoje o Brasil diminuiu a sua dependência ao
Golfo Pérsico e aumentou significativamente a importação de petróleo do Hemisfério Sul. Isso não
dá tranqüili-dade em termos de preços e tem riscos de não cumprimento de contratos em uma
grande crise. Nesse caso os países ricos têm poder político e econômico para terem a preferência,
na compra de petróleo. Parece óbvio que a alternativa brasileira é procurar depender, ao máximo,
de suas próprias possibilidades.
Atualmente, e tomando em conta as projeções para o ano
2004, o atendimento ao consumo de diesel obrigaria a refinar cerca de 2.500.000 barris de petróleo.
A alternativa até aqui era manter a importação de petróleo e derivados, conservando o refino em
torno de 1.700.000 a 1.800.000 barris líquidos, com uma produção diária em torno de 1,5 milhões
de barris de derivados em face da manutenção e conserto das referidas instalações industriais.
F i g ur a 3 - C us t o U ni t ár i o do B ar r i l de P et r ó l eo R ef i nado no B r as i l
30
U S $ 2 6, 0 0
$ 1 ,00
25
20
Acr és ci mo na mar gem
de venda do
der i vado naci onal
U S $ 1 5 , 00
U S $ 2 1 , 23
$ 3,00
$ 1 ,00
U S $ 1 7, 70
$ 2,00
$ 1 ,00
15
$ 3,00
$25,00
30% a $21,00
10
$17,23
$ 1 2,00
5
70% a$ 1 2,00
0
R E F I N A D O COM
R E F I N A D O COM
P E T R ÓL E O N A C I ON A L
Produção
R E F I N A D O C OM P E T R ÓL E O
E T R ÓL E O
N A C I ON A L
P E S A D O I M P OR T A D O
E L E V E I M P OR T A D O ( M I X )
Importação
Transporte
DE R IVADO
I M P OR T A D O
Refino
Q u a d r o 4 – C e n á r i o s d e R e d u ç ã o d e F o r n e c im e n t o d e P e t r ó le o
T ip o d e
C o rte d e
S u p r im e n t o
♦
♦
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da
R edução
C ausa
P o lític a s d o
c o n su m id o r
p aís
R e d u ç ão
ou
cessação
E x e m p lo s
E m b a rg o s á ra b e s
d e p e tr ó le o e m
194 6, 19 57 , 1 96 7
e 19 73 - 19 74
L íb ia ( 1 97 5 ) K w a it
(1 97 5 -1 9 80 )
E f e it o
E con ôm ic o *
V e l oc id a d e
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E sta b e le c im e n t o
E s p e c ífic o
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R e p e n t in a o u
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da
R edução
**
C u rt o
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O b j e t iv o
E x te rn o
(P o lít ic o )
M ud anças d e po R e d u ç ão
G era l
R e p e n t in a o u
M é d io a
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R e d u ç ão
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R e p e n t in a o u
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♦
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P ro d u çã
198 0)
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♦
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cessação
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m il it a r)
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p e tró le o
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G u e rra s r e g io n a is ,
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(m il it a r)
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cessação
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o
(* ) O te rm o e s p e c í fi co in d ic a q u e a p e n a s u m p a í s o u p eq u en o g ru p o d e p a ís e s s e ria a fe t a d o p o r u m a q u e b ra n o fo rn e c im e n t o d e
p e tró le o . O t e r m o g e r a l in d ic a q u e a e c o n o m ia m u n d ia l s o fre r ia e m g ra u s d ife re n te s .
(* * ) P re s u m e - s e q u e a d u ra ç ã o d e q u a lq u e r e m b a rg o d o f o rn e c im e n to d e p e t ró le o t e ria q u e s e r c u rt a , d e v id o à s in te rd e p e n d ên c ia s
e c o n ô m ic a s d o s p a ís e s p r o d u to re s d e p e tr ó le o c o m o h e m is f é rio o c id e n t a l in d u s t ria l. S e o e m b a rg o s e d ir ig ir c o n t ra u m g ru p o d e
p a ís e s d e m en o r im p o rt â n c ia p a ra a e c o n o m ia m u n d ia l, s u a d u ra ç ã o p o d e rá s e r m a io r, c o m o o e m b a rg o p e rm a n en te d o
fo rn e c im e n t o d e p e t ró le o p e la O P E P à Á f r ic a d o S u l.
F o n te : E t h a n o l: N a t io n a l S e c u rit y I m p li ca tio n s — C e n t er fo r S tr a t eg i c & I n t e rn a t io n a l S tu d i e s — G e o rg et o w n U n i v e rsit y —
W a s h i n g t o n , D .C .
Para avaliar as vantagens/desvantagens de adotar a política proposta, foram examinados os custos
das diferentes alternativas. Assumindo algumas premissas reais, descritas a seguir, tem-se a Figura
3, transcrita na página 104.
custo do barril de petróleo e de derivado no exterior (com
o petróleo a US$ 21,00 e derivados importados a US$ 25,00), ambos onerados pelo custo do transporte;
custo do refino de óleo pesado brasileiro acrescido de mais de 50% sobre o
custo atual (sem inclusão de overhead da Petrobrás, no caso) somado ao custo do petróleo produzido no Brasil de US$ 12,00, com tendência de queda;
admitindo que o mix de petróleo leve com o pesado, aparentemente pouco
mais caro do que o derivado refinado no Brasil com petróleo brasileiro, de fato obriga a importar
petróleo leve e derivados.
A decisão importante que precisava ser tomada é preparar o País para ter o
máximo de auto-suficiência em produção de derivados utilizando petróleo pesado brasileiro.
A política recomendada traz diferentes vantagens para o Brasil:
1) A importação de petróleo, ou seus derivados, implica em vender produtos em reais e pagá-los em
dólares. Antes da desvalorização do real, 1 barril de petróleo ao custar 10 dólares correspondia a 12
reais. Após a mesma, corresponde a cerca de 20 reais. Logo, se o petróleo voltasse a custar 10
dólares ainda assim teria subido mais de 70% em reais!
2) Apesar de o processo de globalização dar a impressão de que a soberania nacional perdeu importância, na verdade não existe soberania transnacional. A dependência à importação de petróleo e
seus derivados vulnerabiliza a economia do País, e, portanto, ao próprio País.
3) A solução preconizada gera empregos no Brasil, tanto no período de revamping das refinarias ou
construção de novas unidades, como na operação do complexo industrial.
4) A par disso, gera a entrada de capitais privados, nacionais e estrangeiros, contribuindo para o
equilíbrio do balanço de pagamentos.
5) A solução preconizada, com a participação de capitais privados, permite atender ao programa offbalance.A síntese econômica da estratégia defendida gera significativas economias conforme
consta do Quadro 5.
Quadro 5 – Economia Anual
MANTIDO O PERFIL DE REFINO – SITUAÇÃO PARA 2004
§
Petróleo Pesado Brasileiro1.800.000 barris/dia
§ Petróleo Leve Importado
460.000 barris/dia x US$ 24,00 / barril = US$ 11,04 x 106 / dia
§ Derivados Importados
250.000 barris/dia x US$ 26,00 / barril = US$ 6,50 x 106 / dia
TOTAL = US$ 17,54 X 106 / dia
§
Petróleo Brasileiro Exportado
260.000 barris/dia x US$ 17,23 / barril = US$ 4,48 x 106 /dia
Dispêndio de Divisas = US$ 13,06 x 109 / dia
PROPOSIÇÃO – REFINO DE PETRÓLEO PESADO
§
Petróleo Pesado Brasileiro 1.800.000 barris/dia
§ Petróleo Pesado Importado
450.000 barris/dia US$ 21,23 / barril = US$ 9,55 x 106 / dia
§ Dispêndio de Divisas = US$ 9,55x 106 / dia US$ 3,49 x 109 / ano
Economia Anual
ano
4,76 x 109 – 3,49 x 109
US$ 1,27 x 109 /
Consumo Nacional de Derivados 2.250.000 barris / dia
Produção Nacional de Petróleo
1.800.000 barris /dia
Fonte: PETROBRÁS
Face a todas as considerações já feitas, apresentamos ao Conselho de Administração da
Petrobrás, na reunião do dia 10/09/1999, uma exposição da estratégia sugerida e apoiada
sinteticamente nos seguintes pilares:
Considerando:
· A volatilidade dos preços do petróleo no mercado internacional;
· A peculiaridade do petróleo brasileiro – em geral pesado – obrigando a um mix com petróleo
leve importado nas atuais condições de refino;
· Os riscos da variação cambial do Real, maiores nos casos de derivados importados e/ou nos
refinados no País a partir do mix com petróleo leve (mais caro) também importado;
· A necessidade de exportar petróleo brasileiro (pesado) a preços inferiores ao petróleo estrangeiro leve, que tem um diferencial histórico de US$ 3,77/barril;
· A atual posição compulsória do País como importador de derivados de petróleo em volumes
significativos (coisa de 400.000 barris/dia), superiores ao do petróleo leve importado.
Estratégia Proposta:
· Produção no Brasil da quase totalidade dos derivados, com eventuais barters de sobras/ faltas
de produtos devido à diferença dos perfis de refino/consumo;
· Acelerar o processo de conversão das atuais destilarias da Petrobrás para refino de petróleo
pesado, sem mix;
· Estimular a implantação, pela Petrobrás e/ou terceiros, de novas refinarias aptas a processar
petróleo pesado (de menor custo), com a meta de, em 2004, manter o mercado suprido em
sua quase totalidade por derivados refinados no País, a partir de petróleo pesado, produzido
no Brasil ou importado, a um preço inferior ao do petróleo leve;
· Estimular a importação de petróleo pesado, de menor custo, garantindo o seu refino no País,
assegurando capacidade de refino nacional para aumentos não previstos na produção nacional
de petróleo bruto;
· Atrair capitais de risco de terceiros para os investimentos necessários para as operações
acima, da ordem de US$ 5 a 6 bilhões (possivelmente off-balance), com regras de encomendas preferenciais no País, gerando empregos no Brasil, tanto na fase de implantação como na
fase de operação
· Participação das distribuidoras no Programa de refino, prefe-rencialmente na proporção de sua
fatia do mercado consumidor;
· Reduzir a dependência a suprimentos oriundos dos países do Golfo Pérsico, com compras no
hemisfério ocidental em produtores de petróleo pesado (Venezuela, dentre outros), com
acordos específicos e deflatores definidos;
· Ampliar a produção nacional de petróleo em detrimento da importação de petróleo leve e/ou
derivados, deslocando os investimentos previstos na área de refino para exploração e produção, face à possibilidade de project finances, parcerias, etc. para a produção de derivados.
3.
Conclusão
O objetivo da estratégia proposta, e que parece está sendo adotada no País, é parte de um
elenco mais ambicioso, pois transborda para o uso do álcool em motores diesel e para o uso do gás,
gasolina e álcool em motores ciclo Otto, capazes de funcionar indiferentemente com qualquer um
dos três combustíveis.
De outra parte, implica também em priorizar, corretamente, o transporte de massa em relação
ao transporte individual, bem como no estabelecimento de um programa para reduzir a dependência da agricultura ao óleo diesel.
(*) Engenheiro
A ESPECULAÇÃO E AS CRISES FINANCEIRAS
Francisco de Assis Grieco (*)
Teoria da Especulação e a Crise Global
A partir da Segunda metade do Século XX, a progressão da supremacia política e financeira dos Estados Unidos traz as multinacionais e a globalização com impacto radical na produção
e na comercialização internacionais. Seguiram-se ao segundo conflito mundial, mais o estímulo da
Guerra Fria, as revoluções da informática e telemática que permitem hoje a circulação instantânea
de capitais, com propósito de lucros – e porque não dizer ganância – ou de defesa ante-riscos
nacionais ou regionais. No espaço recente dos últimos quinze anos, cresceu e impôs-se a ideologia
dos mercados globais: livres com circulação desimpedida, de modo geral e mundial. A maior parte
dos países em desenvolvimento abriu seus mercados, embora com estruturas financeiras incipientes,
pequenas e instáveis à vista das contingências cíclicas de suas economias.
Opiniões associaram as atuais dificuldades do sistema financeiro global às instabilidades políticas e sociais da comunidade emergente – América Latina, “Tigres” e China – a causa
maior das crises mundiais noção que parece agora descartada com o estouro bancário no Japão e
certas falências “mamúticas” nos Estados Unidos. Na realidade, não mais subsistem dúvidas de
que a problemática das crises demanda tratamento institucional global da FMI, do Grupo dos Sete
e o próprio Tesouro norte-americano, após seu êxito no México: quando foi possível propiciar
pacote financeiro maciço e conjugado a medidas domésticas efetivas.
Atualmente, as operações de salvamento dos países em desenvolvimento já escapam às medidas internas, saindo de sua esfera exclusiva para as instituições multinacionais, regionais e internacionais (países). Esse fato foi comprovado pelo reconhecimento explícito, não só de políticos e
líderes da União Européia e dos Estados Unidos, mas do próprio diretor-gerente do FMI. Há, em
suma, a consciência de que pequenos países não têm recursos suficientes e instrumentos adequados
para superarem crises, geradas pela abertura econômica e a disposição de financiar suas contas
correntes crônicas, com capitais externos no mais das vezes de curto prazo.
A integração de esquema global, reunindo os países-ricos e os emergentes, exigirá normalmente drásticas soluções de recuperação econômica e mais amplas aberturas nas nações em desenvolvimento, para assegurar-lhe maiores investimentos estrangeiros e, eventualmente, ajuda externa
para enfrentarem flutuações cíclicas de balanços de pagamentos. Vale lembrar que, no México, dos
seis grandes bancos apenas dois são totalmente mexicanos e os demais objeto de associações. Na
Argentina, existe somente um e o fenômeno de associações está em franca expansão no Brasil. A
opção de grandes influxos de capitais estrangeiros trará reações políticas. A alternativa de controles
cambiais, de entrada e saída pode levar à evasão e à corrupção. Sempre, porém, devemos estar
alerta para a opção nefasta do hot money.
As crises recentes do México, Ásia e Rússia, esta última comprometendo a balança
brasileira de capitais, levaram a projeções pessimistas sobre o fluxo líquido de empréstimos e
captações de recurso, para os países emergentes, que chegariam a ser, praticamente, negativos em
1999. A gravidade dessas previsões reside na circunstância de que, estancada a entrada de capitais
em volumes adequados à compensação das contas correntes, não haveria sequer possibilidade de
pagamento de amortização e juros. Em números, a queda foi de US$ 162 bilhões (1996) para US$
125 bilhões (1997), sendo as projeções ainda mais desfavoráveis para 1998 (US$ 36 bilhões).
As previsões para 1998 e 1999 no que se refere a fluxos de curto prazo foram, respectivamente, de US$ 51 bilhões (negativos), com aumento negativo de 12,4% sobre o ano anterior
(1997). A queda dos fluxos de médio e longo prazos, para os países emergentes, foi igualmente
acentuada de US$ 166 bilhões (1997) para projeção de US$ 87 bilhões (1998) e q eu despencaria
nas previsões de 1999 para US$ 17 bilhões.
Segundo as projeções da J. P. Morgan, na crise mexicana (1994-1995) , os fluxos não
sofreram alteração, já o mesmo não acontecendo com as crises asiática e russa e, por extensão,
brasileira. Afetariam todas profundamente os fluxos correntes em 1997-1998 e dariam margem a
previsão pouco animadoras para 1999. Nota ainda aquele banco que atualmente – ao contrário dos
anos 80, quando os recursos de médio e longo prazos provinham dos bancos (84%) – os grandes
investidores internacionais compraram 93% dos títulos colocados no mercado global. Na manutenção do fluxo de investimentos diretos, as privatizações brasileiras, no setor de telecomunicações
têm sem dúvida papel de destaque.
As Bolsas e o Processo Especulativo
No exercício de suas funções tradicionais e seculares, os capitais internacionais movimentam-se motivados pela procura de oportunidades de investimentos diretos ou de outras modalidades várias. Essas transações são efetuadas através de bolsas de valores ou de aplicações em
empréstimos públicos e privados; financiamentos de operações comerciais; compras de papéis;
swaps; contratos futuros sobre mercadorias (futures); opções de entrega; títulos públicos; instrumentos de dívida, como debêntures; certificados de depósito; bônus etc. São os chamados “derivativos”, que existem no mercado global, servindo como veículos de expansão e de retração dos
créditos financeiros.
São atuantes na movimentação financeira mundial: bancos de investimento; fundos de
pensão (principalmente); tradings; empresas de leasing; seguradoras; fundos mútuos e indivíduos
megainvestidores, como o famoso magiar – americano George Soros. Assumem todos eles ricos de
informações, avaliação de situações financeiras e consistência de políticas nacionais – à procura de
ganho, geralmente, em bases de curto prazo. A especulação caracteriza-se pelo jogo dinâmico e
preciso no cenário complexo das bolsas de valores e naquela multiplicidade de derivativos (aplicações).
No que concerne à especulação mobiliária, constituem alvo as comunidades emergentes:
desprovidas de recursos de poupança interna e apelando para os investimentos estrangeiros, em
seus processo de abertura comercial e admissão de novos esquemas de associação global. Nos
países da Ásia e da América Latina, embora em montantes limitados, se comparados com os existentes nas nações desenvolvidas, as bolsas de valores oferecem ação de empresas em expansão que
se beneficiam de processos de privatização e de seus mercados crescentes de consumo. Essas transações mobiliárias, quando feitas no curto prazo, constituem mecanismo rápido de entrada, realização de ganho e retirada conhecidos como hot money, “dinheiro esperto” etc. O incentivo está nas
diferenças de taxas nacionais e internacionais de juros, como será visto adiante em relação ao
Brasil.
As movimentações de curto prazo estão vinculadas à manutenção da política cambial, atrelada à moeda estrangeira e, portanto, atentas às condições econômicas locais, que possam determinar
deteriorações orçamentárias, de balanço de pagamentos e moratórias de dívidas externas. Assumese que boa parte dos recursos de curto prazo sejam de proveniência de capitais expatriados, por
motivos de instabilidade política. Pertencentes aos nacionais dos países emergentes, esses movi-
mentos dispõem de informações imediatas sobre eventuais crises e perspectivas de desvalorização
cambiais ou mesmo moratórias.
Com a globalização dos mercados financeiros, crises econômicas nacionais tendem a ampliar-se ao plano internacional no conhecido “efeito dominó”, quando investidores de curto e médio
prazos se movimentam rumo a outros mercados para evitar prejuízos. Será o que se verá adiante,
em relação às crises mexicana, asiática e russa com suas conseqüências sobre o Brasil. Em geral,
impossibilitados de mexer nos seus câmbios, os países afetados procuram tomar medidas defensivas, pela venda de moeda estrangeira (reservas), tentando estancar a evasão de capitais estrangeiros
das bolsas e aplicações.
Os investimentos de curto prazo estimulam, igualmente, especulações nas bolsas mundiais.
Quer de países desenvolvidos, de onde provêm o hot money, ou nos emergentes através dos pregões
de Nova York, onde se compram ações de qualquer empresa de capital aberto. Por outro lado, a
multinacionalização das grandes corporações facilita a retirada de recursos para atender à euforia
das bolsas americanas, a despeito de advertências: como as feitas por Greenspan, durante mais de
ano antes de dobrar-se à realidade de elevação dos juros nos Estados Unidos. Com a eclosão das
crises russa (e brasileira, por expansão), as expectativas voltaram-se para o comportamento das
finanças americanas e aos pregões de Nova York. Certas falências de grandes fundos (LTCM) e
problemas em bancos (UBS) criaram expectativas (setembro-outubro 1998). Foram. Todavia, revertidas por medidas do FRS e anúncio de crescimento do PIB americano.
Projeções internacionais orçavam (outubro de 1998) as perdas das bolsas mundiais de valores em cerca de US$ 4 trilhos, em período de apenas dois meses, segundo a HSBC Securities. O
maior banco da Europa, Union des Banques Suisses (UBS) amargou prejuízo de mais de um bilhão
de dólares (julho-setembro 1998), na sua vinculação com o Long-Term Capital Management (LTCM),
cuja estrondosa falência será comentada adiante.
As crises financeiras, em seu processo de contágio e de propagação internacional, podem inclusive tornar-se veículo de desequilíbrio econômico a outros países vinculados às economias de hoje intercomunicantes pelas normas e mecanismos da globalização. Em primeiro lugar, a
queda dos preços no mercado de ações e bônus reduz os volumes de consumo e de investimento.
Para compreensão desse fenômeno, basta lembrar que os poupadores individuais e famílias aplicam suas economias em fundos de investimento e/ou de pensões. A redução de valores de suas
poupanças, leva os investidores a diminuírem seu consumo e aplicações para compensarem perdas
e manterem níveis considerados adequados. As empresas, por sua vez, vêem-se confrontadas às
suas próprias perdas e, diante das perspectivas de baixa de consumo, diminuem sua produção e
ajustam sua capacidade produtiva.
As instituições financeiras, em segundo lugar, são prejudicadas pela retração dos investidores das empresas de produção e seu efeito sobre o sistema bancário, cuja diminuição dos empréstimos pode afetar o sistema financeiro como um todo. Em conseqüência, essas instituições financeiras reduzem seus portifólios, concorrendo para deprimir ainda mais o mercado mobiliário. Concorrem, portanto, para a queda de preços dos ativos e afetam os investimentos das pessoas e das
empresas.
A reversão das expectativas, em terceiro lugar, pela previsão de recessão nas atividades econômicas, levanta receios de risco e ocasiona a redução da liquidez dos volumes potenciais de investimento. Cria-se desse modo, ambiente desfavorável ao comportamento das bolsas, a possibilidade
de recuperação ou o agravamento rumo à recessão e desemprego.
Grande parte dos analistas acredita que essa chamada “causalidade inversa” da relação, entre
os mercados financeiros e os níveis de atividade econômica, levam as autoridades à manipulação
inevitável da taxa de juros. Tomam por base o fato de que as oscilações dos preços de ações e dos
bônus são determinadas pela noção de risco: que por sua vez determinam o comportamento das
variáveis econômicas reais, como a demanda do consumo e do investimento e, portanto, o próprio
crescimento do PIB. Disputam, com esse raciocínio, a opção de que se deva primeiro fazer previsões das variáveis econômicas, tais como PIB, inflação e juros, para estimar-se o nível adequado
dos preços dos ativos referidos.
A Mecânica da Especulação
Conquanto seja difícil precisar o montante exato, calcula-se em cerca de US$ 30 trilhões os
recursos movimentados pelos fundos de investimento, que operam no cenário financeiro internacional. Ou seja, aproximadamente quatro vez o PIB (1997) dos Estados Unidos. Esses fundos opera
pela alavancagem de empréstimos, no propósito de comprar ações e derivativos, tais como opções
de contratos futuros; bem como atuando no mercado de swaps em operações no mercado de balcão
(over-the-counter). A tendência de muitos desses fundos é tomar recursos de empréstimo acima de
seu patrimônio e liquidez, com riscos evidentes não só para as finanças de países mas, igualmente,
para todo o sistema mundial.
Os chamados fundos de hedge atuam em diferentes mercados, comprando ações, títulos públicos ou contratos futuros para distribuir riscos mas, muitas vezes, assumindo riscos maiores nas
operações derivadas de ativos vários. Operações essas que, por isso são conhecidas como “derivativos”: swaps; contratos futuros de dólares ou mercadorias; diferenças entre índices de ações ou
taxas de juros etc. No Brasil, os fundos, operantes em derivativos, são controlados pela Comissão
de Valores Mobiliários (CVM), sendo limitados a uma alavancagem de 1,4 vezes o seu patrimônio.
Os riscos dos fundos de hedge, principalmente de alavancar recursos além dos patrimoniais,
tornaram-se públicos com a quebra do Long-Team Capital Management (LTCM), com investimentos em carteira superiores a US$ 1 trilhão. A crise financeira custou ao LTCM cerca de US$ 100
bilhões, exigindo intervenção do Federal Reserve System (FRS) que, em bom “estilo PROER”,
coordenou a operação de resgate (setembro de 1998). A ação imediata do FRS culminou no afastamento de maiores da Wall Street, entre eles dois agraciados, no ano anterior, com o Prêmio Nobel
de Economia. Os investimentos mal-aplicados foram no Sudeste Asiático e na Rússia.
Há preocupação governamental, nos Estados Unidos e em vários outros países, sobre a necessidade de controle dos mercados de balcão (over-the-counter), que estão livres de regulamentação e registro nas bolsas de valores organizadas. A predominância nesses mercados informais está
nas operações de swaps, na troca de moedas ou taxas de juros, ou vencimentos de títulos públicos
ou comerciais. Há divergência sobre as necessidades de controle em diferentes países. No Brasil,
todavia, o registro dos swaps já é obrigatório. As razões contra são nos Estados Unidos em relação
a todo o intervencionalismo e pelo de o mercado não prejudicar pequenos poupadores, uma vez que
o mínimo de aplicação em derivativos é de US$ 10 milhões. Chegou-se mesmo a afirmar que, sem
a “precipitação” governamental o mercado tomaria (como tomou) conta do LTCM.
Antes mesmo do episódio LTCM, os fundos brasileiros de investimento há haviam sofrido
com a crise asiática, quando vários foram liquidados. A crise, decorrente da moratória russa, afetou
menos os fundos brasileiro que, entre agosto-setembro (1998) sofreram, todavia, redução de seu
patrimônio de cerca de R$ 140 bilhões para R$ 135,2 bilhões. Talvez pelo fato (atribuído) de tomarem os fundos menores riscos de empréstimos que chegaram, antes da quebra da Ásia, a 20 vezes
seus patrimônios. As captações dos fundos sofreram redução de cerca de menos R$ 7 bilhões do
bimestre referido.
Os fundos de investimento, no Brasil, podem ter legalmente sede no exterior sem estarem
sujeitos às limitações de risco da legislação brasileira. Esses fundos off shore podem ser, por exemplo, nas Bahamas ou nas ilhas Cayman. São a única forma de brasileiros aplicarem em fundos
hedge do tipo LTCM, sem restrições de alavancagem pela legislação brasileira. Levanta-mentos
feitos (agosto de 1998) revelaram que os fundos off shore tinham patrimônio de cerca de R$ 2,5
bilhões, havendo essa cifra crescido em relação ao ano anterior. Sabe-se que alguns desses fundos
sofreram perdas de 23%-27% nos seus investimentos em títulos da dívida pública brasileira.
O grande fator de auto-alimentação das crises especulativas mundiais reside na
institucionalização dos investimentos em grandes fundos. A obrigatoriedade da prestação de contas, pelos administradores dos fundos sobre a rentabilidade dos investimentos, leva a remanejamento
para a compensação de prejuízos sofridos em determinados mercados. A crise asiática exemplificou
claramente esse processo de vasos comunicantes, nas ocasiões em que ocorrem desequilíbrios financeiros ou econômicos em determinados países. Nessa situação, os administradores de fundos
do tipo hedge procuram realizar lucros latentes que acumularam em outros países ou mercados,
para conseguir oferecer melhores resultados. É a maneira de poder saldar os juros dos créditos
tomados, causando no entanto baixa nas cotações dos ativos financeiros ou monetários de outros
mercados. Ampliam assim a crise pelo efeito de contágio, provocando oscilações adversas nas
bolsas ou nos câmbio de outros países: até mesmo com risco às nações desenvolvidas, obrigandoas a medidas de defesa como a compatibilização de suas taxas de juros.
Culpam-se os mercados mundiais de capitais, investidores ou fundos estrangeiros de serem
responsáveis pela desestabilização, conseqüente à movimentação especulativa. Não se deve esquecer, contudo, que são os investidores em fundos nacionais os primeiros a iniciarem a corrida da
especulação global. Por outro lado, essas ponderações, relacionadas à atuação dos grandes fundos
de investimento, não devem invalidar a realidade de ser a desestabilização das economias nacionais
ou regionais a causa primária dos ataques especulativos. Sem a debilidade econômica não ocorrerão as crises, como ficou comprovado na recente expansão do PIB norte-americano, após o calote
da Federação Russa.
As Opções de Intervenção Governamental
Portador que é da chave milagrosa da taxa de juros americana, Alan Greenspan rotulou as
crises financeiras de 1997-1998 como as mais graves desde a grande depressão dos anos 30. Nela
identificou as disparidades das finanças mundiais pela exposição das economias emergentes à sofisticação do processo de globalização, pela auto-alimentação e contágio de distorções propagadas
pelas facilidades de transmissão. Comprovação, preciso fosse, refere-se ao fato de que as crises do
México, dos países asiáticos e do Brasil apontam para economias financeiras frágeis e com desníveis sociais grandes; ao passo que a Federação Russa atravessa fase de tribulações políticas e econômicas que não requerem maiores explanações.
A impotência governamental em lidar com as turbulências, geradas pela intercomunicação
global das finanças, ficou patente na necessidade de ação do FMI e dos países-ricos do Grupo dos
Sete (G-7). Na verdade, nem sempre a mídia identifica a causa primária das crises como conseqüência de distorções econômicas nacionais, que deslancham as transmigrações de capitais à procura
de mercados estáveis. São as crises nacionais, na realidade, causadora das crises internacionais,
uma vez que o objetivo precípuo dos capitais de risco é o lucro e a garantia de livre-circulação. Não
bastam, portanto, medidas de salvação de instituições multilaterais de crédito (FMI, BDI, BIRD,
BIS etc), de disciplina financeira (G-7) ou dos países-ricos, individualmente.
A pergunta decorrente refere-se então à medidas que se aguardam da ação dos governos
dos países ameaçados por essas investidas episódicas, passíveis de tornarem-se crônicas. A experiência recente permite identificar a atuação dos bancos centrais em cheque pela utilização de suas
reservas; elevação de suas taxas de juros; e, em último caso, à desvalorização das moedas. O recurso às reservas e aos juros altos, como formas de intervenção, foram usados inicialmente nas crises
mexicana, asiática e russa. Na ausência de resultados, ocorreram as desvalorizações cambiais. O
Brasil, ver-se-á adiante, resistiu à desvalorização do real, a despeito de críticas e pressões de teóricos e grupos de interesse.
A primeira opção governamental refere-se à especulação feita pela venda de uma moeda (a
descoberto), geralmente a um banco e pelo prazo máximo de pelo menos um mês. O banco comprador entrega dólares à vista e cobre sua posição (swap) para compra da moeda nacional. As autoridades têm a alternativa de intervenção no mercado, comprando a moeda nacional e vendendo dólares.
Agem dessa maneira, para demonstrar que possuem reservas suficientes para saldar operações de
maior volume e na esperança de convencer os especuladores da sua liquidez e paridade financeira.
O investidor estrangeiro contempla assim as opções dos rendimentos em outros mercados de aplicação, taxas de juros e riscos de retorno.
As reações à “queima de reservas” apontam para o paradoxo do estímulo à especulação e à
saída de divisas, que são a garantia contra as oscilações cíclicas da balança de transações correntes.
Embora sejam as reservas acumuladas justamente para atender às referidas flutuações – juros da
dívida externa, turismo, remessas etc – a sua redução, até níveis considerados perigosos, tem repercussões nos mercados financeiros mundiais. Há uma luta entre a disposição governamental de
manter o valor de sua moeda e a revisão de sua paridade, muitas vezes contra a realidade esmagadora de sua sobrevalorização.
Uma segunda opção das autoridades financeiras é a elevação das taxas de juros a porcentagens que atraiam ou preservem os capitais investidos. Essa elevação pode, inclusive, convencer a
garantir aos especuladores (risco deles) rendimentos previstos em caso de fatal desvalorização.
Sem uma política adequada de regulamentação e restrição ao hot money, persiste a entrada com a
caveat das saídas especulalistas dos capitais de curto prazo. Ou seja, uma “espada da Dámocles”
para futuras erupções de novas crises. A adoção de restrições, todavia, deve considerar certas operações de financiamento legítima e de curto prazo, ligadas às transações comerciais: como créditos
de exportação e importação.
O problema mais grave da elevação da taxa de juros relaciona-se ao ciclo econômico
dos países que, pela abertura, assumiram compromissos internacionais. Em seu processo de recuperação econômica, os países emergentes adotam medidas de enxugamento orçamentário que os
levam à recessão e a crescentes índices de desemprego conjuntural, agravado pela racionalização
estrutural dos sistemas de produção. Juros altos significam atração e desvios de investimentos
produtivos para compra de títulos da dívida pública, destinada à correção de déficits orçamentários
crônico. As crises do México e dos países asiáticos corroboram os procedimentos, adotados pelos
seus bancos centrais, de utilização de suas reservas e apelo à elevação das taxas de juros, antes do
apelo ultimal à desvalorização.
A auto-alimentação das ofensivas especulativas tem seus sólidos alicerces, como vimos, na
institucionalização dos investimentos e na noção do ganho que os leva às migrações ocorrentes
agora. A única opção governamental aparente, para regularizar mercados e movimentos de capital,
na atual “teoria da especulação”, consiste na adoção do regime cambial global: de comum acordo e
que afaste arbitrariedades nacionais. Mexicanos e asiáticos terminaram, amargamente, por roer os
ossos da recessão e da austeridade orçamentária. Não escaparam às avalanches da desvalorização.
A Rússia, sem reservas, tentou a elevação de juros e acabou por apelas para moratória parcial. Só o
Brasil confrontou-se à crise com disposição férrea de manter sua âncora cambial.
(*) Ex-Embaixador na Hungria e nos Países Baixos
EFICÁCIA PROVISÓRIA E DEFINITIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS.
Ives Gandra da Silva Martins (*)
Neste breve artigo pretendo expor minha opinião sobre a eficácia dos tratados internacionais
à luz do direito constitucional brasileiro. (1).
Aspecto preambular é necessário que se examine, qual seja, a correta dicção do texto
constitucional sobre a celebração de tratados.
Reza o artigo 84, inciso VIII, da lei suprema que:
- “Art. 84 Compete privativamente ao Presidente da República:
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional” (2), tendo-o eu comentado da forma seguinte:
(1)
Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina: “Diferentemente, a Constituição de 1946 (art. 87, VII) apenas
submetia à aprovação do Congresso Nacional os tratados e convenções internacionais. Ora, a expressão atos internacionais abrange muito mais do que tratados e convenções. É um gênero onde aparecem os tratados e as convenções
inseridos como espécie.
Dessa forma, interpretado literalmente, decorre do preceito em tela que todo ato que importe criação de direitos e
obrigações para o Brasil na órbita internacional deveria ser celebrado pelo Presidente da República e aprovado pelo
Congresso Nacional para ser válido em face do direito interno. Isto seria exato quer na relação aos atos unilaterais
(reconhecimento, protesto, notificação, renúncia), quer em relação aos acordos internacionais (tratados, convenções).
Esta interpretação iria além da intenção do constituinte. Certamente quis este reagir contra a tendência universal da
celebração pelo Executivo de acordos internacionais, sem a forma de tratado e convenção, e assim fugindo ao
controle do Legislativo. Com efeito, tais acordos escapariam à necessidade de aprovação por parte do Legislativo,
muito embora sejam relevantes e graves, não raro, as suas repercussões.
Tal interpretação, ademais, não pode prevalecer, em face do disposto no art. 49, I, desta Constituição (v. supra). Com
efeito, a menção a referendo deve ser interpretada em consonância com esse dispositivo constitucional, o qual
somente exige referendo com relação a atos internacionais que “acarretam encargos ou compromissos gravosos ao
patrimônio nacional” (grifos meus) (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 2, ed. Saraiva, 1992, p.
156/157).
(2)
A. A. Meira Mattos explica: “O tratado é uma das fontes principais do direito internacional, conforme
dispõe o Estatuto da Corte Internacional de Justiça (CIJ) das Nações Unidas (art. 38), ao lado dos costumes e dos princípios gerais do direito.
Para a citada Convenção de Viena, “tratado significa um acordo internacional celebrado por escrito entre Estados e
regido pelo direito internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos,
qualquer que seja sua denominação específica” (art. 2º, I, “a”). A Convenção de Havana sobre tratados, de 1928, já
considerava ser a forma escrita condição essencial do tratado. Existe, contudo, doutrina que acata a validez do
tratado não escrito ou oral.
Note-se, ainda, que a Convenção de Viena enfatiza o papel dos Estados na celebração dos tratados. Nada obsta,
entretanto, que outros atores internacionais concluam tratados e a própria Convenção o admita em seu art. 3º. Desta
forma, tais acordos, até mesmo se celebrados em forma não escrita, terão seu valor, jurídico assegurado. E válida
será a aplicação a eles de quaisquer regras enunciadas na própria Convenção, a despeito de estarem excluídos de
seu âmbito” (grifos meus) (Enciclopédia Saraiva do Direito nº 74, ed. Saraiva, p. 431/432).
“Cabe ao Presidente da República a celebração de tratados, convenções e atos internacionais,
sujeitos a referendo do Congresso Nacional.
O referendo exterioriza o princípio da legalidade pelo qual ninguém pode ser obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
É o que dispõe o artigo 5o, inciso II.
Sendo o Congresso Nacional o Poder que representa a totalidade do povo, pois a ele todas as
correntes de pensamento político têm acesso, à evidência, é o referendo que oferta validade
ao tratado internacional, às convenções ou atos, visto que a iniciativa presidencial apenas
sinaliza a intenção do Governo, que poderá ou não obter a concordância do Poder Legislativo.
Até ser referendado, todavia, as normas de direito internacional prevalecem, mormente no
que diz respeito àquelas de aplicação imediata.
Se apenas quando aprovados pelo Congresso entrassem em vigor os tratados assinados, à
evidência, a dicção do texto deveria ser “sujeitos à aprovação do Congresso Nacional”.
Tenho para mim que a interpretação adequada é a da imediata vigência do ato internacional
assinado, sujeito a confirmação futura, deixando de ter validade “ex nunc” apenas se não
referendado.
Embora muitos divirjam desta interpretação, parece-me a mais adequada.
Faz, por exemplo, o §2o do artigo 5o, referência a tratados internacionais garantidores de
direitos individuais e o Código Tributário Nacional refere-se, em seu artigo 98, à prevalência
de tais tratados sobre o direito interno.
Ora, o tratado é tratado desde o momento de sua assinatura, razão pela qual a interpretação
que lhe dá eficácia provisória a partir de então parece-me a mais adequada e conforme ao
espírito das relações internacionais.
Os mais importantes documentos legais internacionais são os tratados e as convenções, que
geram um regime jurídico específico, como, a título exemplificativo, serão os tratados contra a dupla tributação de que o Brasil firmou mais de uma vintena. No mesmo nível, mas de
espectro mais abrangente e menos específico, encontram-se as Convenções, de que a Convenção de Genebra sobre o cheque é exemplo. Por fim, os atos internacionais são diplomas
de relevância menor, regulando aspectos variados do convívio internacional” (3). RODA PÉ
PAG. 124
Sei, perfeitamente, que parte considerável da doutrina não oferta maior validade ao
vocábulo “referendado”, que, nos textos constitucionais anteriores, vinha na dicção latina “ad referendum”.
Volto, todavia, a insistir que o discurso constitucional não é “acidental” e nem o constituinte
- em homenagem que faço a seu conhecimento do vernáculo - um pobre manejador do idioma, que
utiliza a mesma palavra com significados diversos no mesmo artigo veiculador de comandos superiores.
Com efeito, lê-se também, no inciso XIX do referido dispositivo, o seguinte:
“XIX. declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas
(3)
Comentários à Constituição do Brasil, 4º volume, tomo II, Ed. Saraiva, 1997, p. 295/299.
condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional” (grifos meus) (4), e o XX
hospeda a dicção abaixo:
“XX. celebrar a paz, autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional” (grifos meus).
Inequivocamente, o constituinte dá ao vocábulo “referendado” o sentido clássico de “aprovação posterior”, pois tanto no inciso XIX como no XX, ao utilizar-se do conceito de “referendo” ao
lado de “autorização” resta claro que “autorização” se refere a manifestação prévia e “referendo”,
posterior aos atos de que cuidam os incisos XIX e XX.
É, de resto, o sentido, também, que o artigo 14 da lei suprema oferta ao distinguir o
“referendo” do “plebiscito”, estando assim veiculado:
“Art. 14 A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I. plebiscito;
II. referendo;
III. iniciativa popular” (5)
Ocorre que o inciso VIII, do artigo 84 da Constituição Federal, refere-se exclusivamente à
expressão “sujeitos a referendo do Congresso Nacional”, não ofertando, a meu ver, sentido diverso
(4)
Escrevi, ao criticá-lo: “Quem tem o poder de declarar a guerra, tem aquele de celebrar a
paz. Hoje é mais fácil celebrar a paz do que declarar a guerra, na medida em que as guerras não
são mais declaradas.
É bem verdade que também a cessação de hostilidades sem declaração formal de acordo de
paz é a hipótese mais freqüente, mas a cessação de hostilidade representa, de rigor, a celebração
de acordo de paz, quando negociada.
Pode, pois, o Presidente da República celebrar a paz, devendo ser autorizado pelo Congresso ou ser, o seu ato, por este referendado.
Nas autorizações, o presidente submete antes o acordo de paz e somente após a autorização
assina o tratado ou documento que a assegure. Na outra hipótese, assina, o Presidente, o acordo
antes da autorização, submetendo o ato ao Congresso Nacional, que poderá referendá-lo ou não.
Se referendada, a declaração presidencial tem validada sua assinatura, se não, o acordo perde
toda a eficácia” (Comentários à Constituição do Brasil, 4º Volume, Tomo II, Ed. Saraiva, 1997, p.
347/349).
(5)
José Cretella Júnior assim esclarece: “Pontes de Miranda (cf. os fundamentos atuais do
direito constitucional, p. 363) acentua que “como contrapeso aos males do parlamentarismo, e ao
vício, comum ao regime parlamentar e ao presidencial, das Câmaras divorciadas da opinião pública ou esquecidas dos interesses gerais, para os quais é notável a intuição popular, a intervenção
do povo funciona como as melhores esperanças. A democracia mista constitui um dos traços mais
sedutores das Constituições novas”.
“Em alguns países, o povo não se satisfaz em escolher os seus representantes: quer ter a iniciativa
das leis e o direito de recusá-las ou sancioná-las com o próprio voto. É o processo do referendum”
(cf. Aráujo Castro, A Constituição de 1937, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1938, p. 45).
O referendum é medida a posteriori, sendo o instituto de direito constitucional, de direito interno, pelo qual as coletividades se pronunciam sobre decisão legislativa, desde que os pronunciamentos reúnam determinado número de assinaturas, fixado em lei. Desse modo associa-se o
povo ao processo legislativo, complementando a tarefa do legislador” (grifos meus) (Comentários
à Constituição Brasileira de 1988, vol. II, Ed. Forense Univr., 1989, p. 1096).
daquele exposto nos incisos XIX e XX. Vale dizer, nos três casos, pode o Presidente da República
praticar atos com plena eficácia, embora seja esta provisória, que poderão ser ou não referendados pelo Congresso Nacional.
Que a eficácia dos atos é plena, é de se interpretar pela luz lançada na explicitação feita pelo
constituinte no inciso XIX e no inciso XX, em que a declaração de guerra a ser referendada pode
implicar a mobilização total ou parcial dos brasileiros antes da manifestação do Congresso. Em
outras palavras, se aprovado previamente ou referendado posteriormente, o ato de declarar a
guerra produz seus efeitos plenos até que seja examinado pelo Parlamento (6). RODA PÉ PAG. 127
A meu ver, a mesma eficácia precária, mas real, ocorre na celebração dos tratados internacionais, convenções ou atos, na medida em que o ato de celebrar é privativo do Presidente, embora
sujeito a referendo do Congresso, que o convalidará ou não. Entre sua assinatura e o referendo,
todavia, em minha maneira de interpretar o texto, tem eficácia provisória, mas real.
Tal exegese parece-me a única capaz de conciliar a tripla utilização, no mesmo dispositivo,
do vocábulo “referendado”, duas delas claramente sinalizando a “eficácia precária” do ato e, no
caso do inciso VIII, com implícita indicação da validade provisória, por força de idêntico vocábulo
utilizado. A melhor homenagem que posso prestar ao constituinte é considerar que a mesma palavra tem o mesmo sentido, pois aplicada no mesmo artigo para definir competências privativas do
Presidente da República (7).
Tal “eficácia precária”, todavia, ganha sua definitividade quando expressamente aprovada, pelo Congresso Nacional, via decreto legislativo, acordo internacional celebrado pelo Presidente da República.
Com efeito, reza o artigo 49, inciso I, da lei suprema brasileira que:
“Art. 49 É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I. resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.
O texto continua, a meu ver, sendo de clareza meridiana. O constituinte faz menção a ser da
competência do Congresso Nacional:
(6)
Pinto Ferreira esclarece: “A competência para declarar a guerra é da União (art. 21, II),
tratando-se de ato interestatal. A guerra é a luta armada entre Estados.
Ao Congresso Nacional compete autorizar o Presidente da República a declarar a guerra no caso
de agressão estrangeira. O consentimento deve ser prévio, sem nenhum referendo quanto a tal
decisão. Pode entretanto ocorrer exceção quando a agressão estrangeira ocorrer no intervalo
das sessões legislativas, quando deve ser referendada, e, nas mesmas condições, decretar, total
ou parcialmente, a mobilização nacional” (grifos meus) (Comentários à Constituição Brasileira,
3º Volume, Ed. Saraiva, 1992, p. 586).
(7)
Wolgran Junqueira Ferreira escreve: “À União compete celebrar tratados e convenções
com os estados estrangeiros (artigo 21 - I). Ao Congresso Nacional, compete resolver definitivamente sobre os tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos
gravosos ao patrimônio nacional; (art. 49 - I)”, continuando “A celebração do contrato, convenção ou ato internacional, consiste na assinatura material do acordo internacional. Será feita diretamente pelo Presidente da República ou por pessoa por ele credenciada” (grifos meus) (Comentários à Constituição de 1988, volume 2, 1ª ed., Ed. Julex Livros, 1989, p. 660/661).
“resolver definitivamente”
o que vale dizer, declara nitidamente ser definitivo o comprometimento internacional do país
e a transformação da “eficácia precária e provisória” do acordado pelo presidente em “eficácia
definitiva”. O advérbio, inclusive, utilizado é “definitivamente”, o que significa que, a partir do
referendo do Congresso Nacional, ganha, a “eficácia” até então provisória, sua definitividade (8).
Entender que, apesar de o constituinte fazer menção à “definitividade” da aprovação, esta
aprovação ainda não é definitiva, dependendo de “promulgação presidencial” é, novamente, não
homenagear o domínio vernacular do constituinte e admitir que desconheceu o sentido semântico
dos termos, devendo-se “provisoriamente” ler onde está “definitivamente”, visto que a
“definitividade” apenas se obteria não com a publicação de decreto legislativo, mas com a promulgação do decreto presidencial.
Tal forma de exegese jurídica, à evidência, não honraria nem o intérprete, nem o constituinte,
pois o legislador supremo teria sido substituído pelo exegeta na produção de uma nova dicção
normativa, em que o adjetivo “definitivo” utilizado pelo constituinte ainda não seria “definitivo”
para o intérprete.
A “definitividade” do tratado, acordo ou convenção internacional ao que me parece, é obtida
com a edição de decreto legislativo do Congresso, embora a eficácia obtenha-se, de forma ainda
precária e provisória, com sua assinatura
(9).
RODA PÉ PAG. 129
Se viesse, todavia, a argumentar contra o texto constitucional, ou seja, que a eficácia definitiva não se obteria com o “decreto legislativo”, mas com a promulgação do decreto presidencial,
dois aspectos deveriam ser ressaltados de plano.
O primeiro deles é que a promulgação presidencial consiste em mera formalidade reiterativa
de seu comprometimento anterior, quando da celebração do tratado. Vale dizer: uma segunda vez
reafirma, S. Exa., o que se comprometeu quando o assinou.
Nitidamente, o Presidente da República só pode sancionar tratado que tenha assinado e o
Congresso apenas “resolver definitivamente” aquilo que foi acordado com outras nações.
Em outras palavras, nem o Congresso Nacional pode alterar, sem a concordância de outras
(8)
Celso Ribeiro Bastos escreve: “Aliás, o tratado depende sempre de aprovação do Congresso Nacional, o que é feito por um decreto legislativo. Na verdade a força legal do tratado no
direito interno depende da força desse próprio ato legislativo. É este que o entroniza na ordem
jurídica interna e, enquanto componente dessa ordem, fica sujeito a ser alterado por atos do
mesmo nível hierárquico” (grifos meus) (Comentários à Constituição do Brasil, 4º volume, Tomo
I, 2ª ed., Ed. Saraiva, 1999, p. 111).
(9)
Nesta linha, leia-se Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Assim, em face do direito pátrio,
a vontade do Estado brasileiro relativamente a atos internacionais, inclusive o tratado e as convenções, surge de um ato complexo onde se integram a vontade do Presidente da República, que os
celebra, e a do Congresso Nacional que os ratifica.
A exigência de ratificação decorre da magna importância das matérias que são em geral reguladas nos atos internacionais. Nestes se dispõe quase sempre sobre assuntos que tocam de muito
perto a existência e a independência da nação. Por isso, convém que a Representação Nacional
seja ouvida, dizendo a última palavra. E verdadeiramente a ultima palavra, já que, após a manifestação do Congresso Nacional, não mais cabe qualquer intervenção do Executivo (grifos meus)
Comentários à Constituição Brasileira de 1988, ob. cit., p. 21)” (grifos meus) (A Constituição na
Visão dos Tribunais, volume 2, 1997, p. 533).
nações, o tratado, podendo, no máximo, rejeitá-lo, nem o Presidente, ao promulgá-lo por decreto,
poderá promulgar algo diverso daquilo que assinou ou do que a publicação do decreto legislativo
tornou definitivo (10).
A promulgação, portanto, por “decreto presidencial”, de Tratado internacional ao qual já fora
dado publicidade em “decreto legislativo” que conferiu, definitividade a sua eficácia, é mera formalidade que não gera eficácia a partir daquele momento, mas apenas reitera a eficácia provisória
da época da assinatura e a eficácia definitiva da data da publicação de decreto legislativo do Congresso (11).
O segundo aspecto reside em que uma vez tendo sido publicado o decreto legislativo, a matéria acordada ganha definitividade no direito interno e a eficácia definitiva impede que a legislação
ordinária interna venha a modificá-lo, salvo denúncia do acordo assinado.
Em outras palavras, não pode o Legislativo ou o Presidente da República, por medida provisória, após a publicação do decreto legislativo, alterá-lo sob a alegação de que entre a publicação do
decreto legislativo e a futura promulgação do decreto presidencial poderá o país dispor de forma
diversa daquela acordada internacionalmente.
Restaria ferida a ética legislativa e os compromissos internacionais assumidos anteriormente,
se, por absurdo, se admitisse que a “solução definitiva” de tratado publicado pelo decreto legislativo,
pudesse ser alterada, entre sua publicação e a promulgação do decreto presidencial, por legislação
diversa, que viria a perder eficácia, quando da promulgação do decreto presidencial!
No momento em que o Presidente assinou o tratado e que o Congresso deu-lhe definitividade,
não pode o Presidente ou o Congresso dispor de forma diferente do que foi acordado internacionalmente, sob a alegação de que o Tratado apenas terá validade após a promulgação do decreto presidencial (12).
A tese da “vigência sem eficácia” dos tratados assinados e dos decretos legislativos publica(10)
José Torres Pereira Júnior ensina: “De todo o exposto, concluímos: a) Em face dos
textos constitucionais brasileiros, forçoso é reconhecer, como regra geral, que os tratados, qualquer que seja o rótulo em que se apresentem, devem ser aprovados pelo Congresso Nacional, para
o fim de obrigarem o Estado a seu cumprimento e de se incorporarem ao direito interno. Essa a
orientação da grande maioria de nossos comentadores constitucionais e do decisório do STF”
(grifos meus) (Enciclopédia Saraiva do Direto nº 74, Ed. Saraiva, 1977, p. 463).
(11)
Não discutirei, no presente estudo, por me parecer superada, à luz do que atrás argumentei, a tese que muitos dos autores do livro “Tributação no Mercosul” (Pesquisas Tributárias Nova
Série 3, Ed. Revista dos Tribunais/Centro de Extensão Universitária, 1997, coordenação minha)
de que o decreto legislativo obriga o cumprimento do tratado internacional, internamente, sendo a
promulgação mero ato informativo com seu depósito na entidade internacional ou entre os países
assinantes para efeitos externos, pois, embora sob enfoque diverso, o resultado seria rigorosamente igual, em termos de eficácia, à posição aqui exposta. Aliás, Francisco Rezek parece admitir a
tese diferencial entre o direito interno e externo, ao dizer: “Ratificação é o ato unilateral com que
o sujeito de direito internacional, signatário de um tratado, exprime definitivamente, no plano
internacional, sua vontade de obrigar-se” (grifos meus) (Direito Internacional Público, 7ª ed.,
Ed. Saraiva, 1998 p. 53).
(12)
José Grandino Rodas ensina: “Os governos normalmente concluem tratados somente
com aqueles que parecem aptos a cumprir o prometido” (grifos meus) (Enciclopédia Saraiva do
Direto nº 74, ob. cit., p. 486).
dos não só não se coaduna com a jurisprudência e com a doutrina, como fere elementar princípio
ético dispor, no plano interno, de forma diversa do que foi acordado, sob a alegação de que, embora
tendo assinado o Tratado, o Presidente ainda não assinara o decreto promulgador!!! (13)
Afasto, quanto a este aspecto, essa visão aética da questão, que, de resto, não é hospedada,
nem pela doutrina, nem pela parca jurisprudência existente (14).
(*) Professor Emérito da Universidade Mackenzie, Titular de Direito Econômico e de Direito
Constitucional.
(13)
Sérgio Feltrin Corrêa lembra que: “Observe-se que a ratificação de um acordo internacional pelo Presidente da República não possibilita que de tanto se conclua no sentido de automática introdução dessa norma internacional no direito interno brasileiro. E tal se dá, essencialmente, por competir ao Congresso Nacional a aprovação de tratados. Além disso, esse agir do Congresso Nacional se dá por meio de Decreto Legislativo, e como previsto no art. 59, VI, da CF”
(grifos meus) (Código Tributário Nacional p. 429).
(14)
José Augusto Delgado, de forma gráfica, esclarece: “O sistema constitucio-nal adotado
para os Tratados está circunscrito ao esquema seguinte:
a) a celebração de Tratados, Convenções e Atos Internacionais é da compe-tência privativa do
Presidente da República, sujeitos, contudo, a referendo do Congresso Nacional;
b) é da competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitiva-mente sobre Tratados,
Acordos ou Atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio
nacional;
c) os Tratados devidamente assinados pelo Brasil deverão ser respeitados quanto aos direitos e
garantias nele previstos” (grifos meus) (Tributação no MERCOSUL - Pesquisas Tributárias Nova
Série-3, Co-ed. CEU/Revista dos Tribunais, 1997, p. 70).
“ECHELON” X SEGURANÇA NACIONAL
Silvio Potengy (*)
Segurança Nacional, segundo a Escola Superior de Guerra, é conceituada da seguinte forma:
“A Segurança Nacional é a garantia relativa, para a Nação, da conquista e manutenção dos seus
objetivos permanentes, proporcionada pelo emprego do seu Poder Nacional”.
Um dos temas em debate hoje, em todo o mundo, é sobre até que ponto a Segurança Nacional
dos Estados tem sido afetada sem que saibamos. O fato novo que gerou toda essa discussão foi um
projeto conhecido como Rede Echelon.
Esse projeto, em fevereiro do corrente ano, deu início a uma polêmica de múltiplas dimensões. Interesses políticos, estratégicos e comerciais, além da condução da política pública e análise
de aspectos legais, passaram a ser alvo de preocupação de estudiosos, empresários e homens públicos em todos os continentes.
Mas, afinal, o que vem a ser esse projeto? Qual será o motivo para tanta preocupação?
Há pouco mais de meio século, foi firmado o US 1948 Intelligence Cooperation Agreement
(Acordo de Cooperação de Inteligência), envolvendo Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Nos anos 60, as redes de vigilância eram encaradas com naturalidade sob o ponto de vista da
segurança nacional das nações ocidentais. Ao mesmo tempo em que eram feitas as interceptações e
escutas de telecomunicações soviéticas, algumas poucas comunicações aliadas podem ter sido interceptadas acidentalmente. Ninguém foi alertado para essa possibilidade e, caso viessem a tomar
conhecimento, não protestariam de forma veemente. Entretanto, havia uma grande diferença: o
Echelon ainda não existia.
Com o início da dissolução da União Soviética, no final dos anos 80, as prioridades começaram a mudar. Já não havia a necessidade premente de manter-se uma vigilância tão forte como
antes. As prioridades foram reordenadas com interesse maior para a área econômica. Foi quando o
Echelon começou a ser motivo de preocupação para todos.
O Echelon é um sistema de vigilância, instalado e operado pela NSA - US National Security
Agency (Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos) -, com excepcional capacidade para
interceptar, localizar, ouvir, gravar e decodificar mensagens. Sua eficácia é lendária, quase um
mito.
James Bamford, autor do livro The Puzzle Palace (1982), publicou um artigo em 28 de agosto de 1998, no qual apresentava pela primeira vez um balanço detalhado das operações da NSA,
demonstrando a queda do ritmo de produção da agência, com as seguintes palavras: “Ao final da
guerra fria, a Agência era capaz de reportar apenas 20% do processo de toda a informação obtida. Na metade da década de 90, esse volume de disseminação de informações caiu para 1%, quase
nulo”.
O US News and World Report, em sua edição de 14 de fevereiro de 2000, pintou um quadro
apocalíptico da operação do NSA, creditando a sua queda de produção ao catastrófico espírito burocrático.
Nessa seqüência de fatos, Donald Campbell, do Reino Unido, submeteu um relatório ao
Parlamento Europeu, em 23 de fevereiro de 2000, detalhando certas atuações não usuais da NSA.
Uma delas foi a interceptação de uma comunicação de uma empresa européia anunciando o
pagamento de comissões para intermediários com o objetivo de vencer uma colossal concorrência
internacional de aeronaves. A NSA passou essa informação a uma empresa americana, que retificou
seus preços e suas comissões e venceu a concorrência que era da ordem de 10 bilhões de dólares.
Tudo isso, entretanto, não explica como foi que Echelon veio a se tornar de conhecimento
público e um objeto de intrigas, incitando a curiosidade mundial. Aqueles fatos foram algumas das
peças de um “quebra-cabeças” que aos poucos vai tomando forma.
O Echelon foi realmente exposto através dos insistentes e persistentes esforços de um grupo
de usuários da Internet, cuja causa foi assumida por um representante do Partido Republicano, Bob
Carr, oficial aposentado da CIA, em meados de 1999.
Esta ação levou ao conhecimento do público em geral, a existência do Echelon, através da
colocação na rede Internet, em fevereiro de 2000, de documentações da NSA, obtidas sob a proteção do Freedom of Information Act.
Agora o Echelon está sob ataque: na Europa onde uma ação pode ser movida pela Comissão
Européia; em vários países (França, Itália, Dinamarca e Japão) onde procedimentos legais podem
ser iniciados contra a NSA; e nos Estados Unidos onde a House of Representatives marcou audiências sobre a atuação do Echelon.
Mas qual é o ponto crucial do problema? Porque os internautas americanos querem mover
uma ação contra o Echelon? A resposta é simples: eles se tornaram o alvo desse sistema de vigilância (monitoramento da Internet, interceptação de e-mail, etc.).
A lista, elaborada pelo Professor Simpson da American University of New York, de palavraschave usadas pela NSA (palavras usadas para seleção de mensagens a serem interceptadas e analisadas) mostram a orientação política doméstica que a Agência tem recebido (a NSA não tem direito
de operar em território americano).
Palavras como “Clinton”, “Vince Foster”, “Militia”, “Davidian”, “Abolish the Federal Reserve”, etc. são imediatamente interceptadas e rastreadas pelos supercomputadores do Echelon.
Isso dá uma clara noção do quanto a privacidade e a liberdade de opinião estão sendo colocadas em
risco.
Se as telecomunicações estão sendo monitoradas até o ponto em que mesmo o seu computador pessoal não está livre de ser investigado, se palavras-chave de cunho político ou econômico, ao
serem pronunciadas ou digitadas, não têm a necessária salvaguarda e são interceptadas, e se essas
informações, ao serem colhidas, podem ser usadas para fins políticos ou comerciais, então como
ficará a segurança nacional? Até que ponto as informações que pensamos estar protegidas não são
do conhecimento alheio?
A atividade de coleta de informações é tão antiga quanto a existência da humanidade. O que
faz a diferença em nossos dias é o nível de sofisticação que os equipamentos terrestres, aéreos e
aeroespaciais podem atingir.
Alguns poderão apelar para o “direito” que as Nações têm de não sofrerem ingerências externas nos assuntos internos. Outros apelarão para a necessidade de serem observados princípios éticos na condução de negociações comerciais entre as partes. Haverá até quem acuse o agente que
coleta as informações de cometer ato ilícito de espionagem. De qualquer modo, essas atitudes não
irão resolver o problema.
É fundamental que todos tenhamos a exata noção de nossas vulnerabilidades. Esse é o primeiro passo que deve ser dado. Uma vez conscientes disto, já teremos, pelo menos, condições de
dificultar a coleta de dados que sejam sensíveis, sendo mais cuidadosos.
Outro passo a ser dado é desenvolver com nossos próprios recursos humanos e materiais,
dispositivos que possam ser bloqueadores e codificadores de nossos meios de telecomunicações
mais sensíveis.
Em nenhuma hipótese devemos admitir a colaboração de pessoas que não sejam brasileiros
natos ou a importação de tecnologia e equipamentos de segurança oriundos de outros países. Essa
é uma tarefa que teremos de levar a cabo sozinhos, caso contrário não surtirá o efeito desejado.
O último passo será dotar o nosso país com ferramentas eficazes de coleta de informações,
diminuindo a imensa defasagem hoje existente.
O Echelon constitui um elevado fator de risco para a soberania de qualquer país, isso é
inegável. Entretanto, o verdadeiro perigo está em ficarmos imóveis, omissos, sem encararmos o
problema de frente e buscarmos soluções concretas para nossa proteção.
Não será uma rede de vigilância que irá impossibilitar o nosso País de conquistar e manter os
objetivos nacionais.
Nosso futuro depende e dependerá sempre apenas de nós!
(*) Coronel Aviador da Reserva – Membro do Corpo Permanente da Escola Superior de
Guerra – Adjunto da Divisão de Assuntos Militares
ALÉM DO MERCOSUL
(UMA QUESTÃO DE ESTRATÉGIA)
Jayme Magrassi de Sá (*)
O papel que o Brasil oficia à Organização Mundial de Comércio contra a Argentina
pode ter, comercialmente falando, certa procedência. a Argentina vive um momento seríssimo com
a aberração de taxa de câmbio fixado na Constituição do país. para eles foi a gafe do século. Suas
condições para superar a crise em que está mergulhada são realmente precárias. Tem, por via de
conseqüência, atitudes que a rigor ferem o espírito que norteia o bloco regional a que pertence o
MERCOSUL. Mas o “PANEL” é também uma ação concebível como prática de bloco; ao mesmo
tempo um ato intrinsecamente antibloco na medida em que transpira reação de colidência ou não
cooperativa. ainda que venha a solucionar a questão específica que o instrui ou justifica, deixa-nos
em posição menos cômoda dentro do sistema regional do qual, aliás, fomos um dos inspiradores ou
até patrocinadores. de certa maneira isso contrasta com os esforços do nosso Embaixador Botafogo
Gonçalves, homem íntegro e capaz, com vistas a consertar o estilhaçado acordo automotivo entre
os dois países, acordo esse, ele mesmo peça fundamental para a continuidade do tratado maior em
si. seja qual for o andamento das duas questões – a do “PANEL” e a do setor automotivo – o Brasil
não pode em nenhum momento deixar de ter muito presente sua posição no cenário sul-americano,
no norte-americano, no mundial.
A política de blocos é hoje uma realidade com poucas perquirições contra si. NAFTA,
U.E. e até as conversas para a eventualidade do advento da APEC, na Bacia do Pacífico, são expressões de alguns fatos fundamentais, mas basicamente de um deles – as mutações colossais e
ciclópicas que decorrem dos avanços de ciência e tecnologia. Tal é o acréscimo de capacidade de
produção da chamada unidade de investimento tecnológico que mercados de consumo de pequeno
porte ou restritos em seus limites nacionais tornam-se problemas e entraves, mais, muito mais do
que núcleos de comércio e produção. Simpática ou não, essa realidade gerou os blocos regionais
existentes, tão plantados que os conceitos e normas regentes da OMC não podem deixar de abrigálos, tentando mesmo embricá-los com denominada (já bastante gasta) globalização, movimento
este último ainda uma grande incógnita.
O México não se aparta do NAFTA e a U.E. vai receber em breve, em seu seio, mais uns 10
a 12 partícipes. É a ânsia pelo grande mercado, pela dimensão que se insere na capacidade maior e
nos resultados dos avanços de ciência e tecnologia, colocando as coletividades em posição de agentes ativas do progresso econômico social.
Para o Brasil, a questão se põe em três ou quatro frentes – a norte-americana – e iremos
enfrentar o árduo curso de criação da ALCA; o europeu ocidental, com mesclas de europa central;
o sul-americano, dividido em bloco CONE SUL e bloco sul-americano propriamente dito. Futuramente, deveremos ter o asiático, de conformação ainda um tanto indefinida, mas certamente com
três vertentes – Japão, China e Índia. Somos um País Continental e multicomercial interna e externamente. Um autêntico global-player. Não abrir mão desse “assets” e não encolher-nos, menos
ainda sermos ultrapassados por composi-ções que nos venham a privar de aberturas comerciais
profundas promissoras e conseqüentes ao próprio crescimento da economia mundial.
Dessa forma e a este assunto voltaremos em outras oportunidades na revista da ESG, é nossa
linha compulsória de conduta, à luz dos interesses nacionais: 1o) fortalecer o MERCOSUL, do qual
carecemos inclusive para melhor negociar o advento da ALCA; 2o) ativar os entendimentos havidos na cimeira do rio, para chegar ao menos a uma área de livre comércio com a U.E.; 3o) ativar o
acordo comercial com o México, situando-nos, nada desprezivelmente, no pórtico do NAFTA; 4o)
dar curso ao chamado acordos de Cartagena, por nós propostos e subscritos e que começam ainda
que modicamente, a articular-se com entendimentos no seio da Amazônia, com os passos iniciais
em direção ao bloco andino e com ligações físicas que se alinham num sentido operacional - rodovia com a Venezuela, acesso ao Pacífico via Peru, Quiçá também via Bolívia e Chile, ligações mais
efetivas e preventivas com a Colômbia, prospecções para chegar ao litoral do Chile através de mais
de uma via e de um porto que além de consolidar, inclusive, nossa posição na Bolívia, a nós outorgaria alguns pontos de apoio para um comércio de escala com o extremo oriente.
A política de bloco no âmbito sul-americano é para o Brasil uma questão de defesa – pode-se
dizer um pouco mais remota – mas um assunto bem premente – a integração econômica. Essa é
uma área – a sul-americana – que nos cabe preferencialmente, porque aí o Brasil é, geográfica,
econômica e politicamente um peão giratório – um epicentro cultural autêntico, sendo válido aqui
integralmente o significado do termo cultural.
Se tomarmos a questão na base do conceito genérico de defesa-segurança, (exclua-se um
pouco o jargão esguiano), a integração sul-americana nos oferece alguns pontos de sustentação que
não seriam negligenciáveis sobretudo na Amazônia e mesmo em nossa arca marítima de influência
– o Atlântico Sul. Todavia, defesa, qual defesa e militarmente falando, é uma questão visceralmente
de desenvolvimento econômico-científico-tecnológico, ao qual as forças armadas singulares do
País têm dispensado grande dedicação, com êxitos inequívocos. mas defesa, diga-se, num sentido
mais conciso, que é o econômico e de capacitação econômica essa tem presença atual também. a
política de bloco nessa área sul-americana deve merecer um tratamento contínuo, sistêmico e
programático. A primeira exigência é a das ligações físicas, vias direta de crescimento e integração;
o segundo é o dos acordos pioneiros ou de acesso, que assim como que abrem o cenário e transformam imagens ou potencialidades em realidades; o terceiro, é o contato diplomático operacional,
quando então os assuntos passam das intenções às idéias e às pranchetas. Daí por diante, processase um encadeamento de ações da maior ou menor envergadura e que iniciam, de fato, o trabalho de
ir globalmente armando o novo corpo geoeconômico integrado.
Podemos encarar este assunto da integração sob um prisma mais operacional ao olhar ou ao
passar do tempo presente. Todo o circuito econômico mundial está hoje impregnado por dois grandes conceitos – o dos ciclópicos avanços científico-tecnológicos e o do desenvolvimento econômico no seu sentido estrutural, dois fenômenos que se embricam e como tal interagem de modo
crescente, com velocidade progressiva.
No caso sul-americano, já o acordo de Cartagena induzia aque o Itamaraty, formalmente, bem
como as forças armadas brasileiras, substantivamente, se constituíssem numa instrumenta-ção integrada para dar corpo a uma nova realidade no hemisfério sul, que seguramente teria efeitos, muito
nítidos até ao sul do Rio Grande, já nas fimbrias das América do Norte. E é a isso que precisamos
dar continuidade, enquanto comercialmente o MERCOSUL nos poderá conceder certas escoras
para segmentos mercantis e para os embates mais imediatos no contexto de ALCA e de eventual
acordo com a U.E., além de ombrear conosco no seio da OMC. Iniciativas essas que devemos
enfrentar simultaneamente.
O binômio Itamaraty-Forças Armadas precisa articular-se como se disse operacionalmente;
presentemente, com a criação do Ministério da Defesa, essa montagem pode ser explicitada com
menos dificuldades e inspirada por uma conceituação apropriada. a existência de mecanismos como
o do SIVAM, por exemplo, ou da Calha Norte, também, coadjuram bastante na armação operacional
necessária. são ingredientes relevantes, evidentemente, a questão financeira, isto é a dos investimentos necessários, coloca-se com destaque ante as dificuldades generalizadas dos países da área.
mais um sistema operacional bem estruturado, com boa temática e sólida, porque objetiva, programação permitirão: a) mobilização de recursos mesmo que de certo ângulo se revelem eles residuais
e b) captura externa junto a agências internacionais, algumas delas estatutariamente ligadas à região; c) um trabalho contínuo ainda que nem sempre a ritmo acelerado, de montagem do sistema
geral e seus componentes.
Aspecto muito promissor a ser considerado é o da grande extensão e suas realidades de nossas fronteiras terrestres, que tem hoje uma divisão clara – fronteiras vivas, em que já se instalaram
e desenvolveram atividades até de cunho internacio-nal; e fronteiras inertes, de certo modo ínvias,
onde a humaniza-ção depende eminentemente de ação direta e indireta inicial das Forças Armadas,
inclusive no aspecto da segurança, mas como núcleos de penetração para movimentos ao menos
exploratórios de integração zonal ou subzonal. o centro de estudos estratégicos da ESG, em 1999,
sob pedido da chefia da casa militar da presidência da república, fez um trabalho praticamente
pioneiro sobre procedimentos disciplinares para o trato jurídico de regência das fronteiras vivas e
para abordagem das consideradas inertes. mereceu elogios daquela casa militar. Está hoje no ministério da defesa.
Numa programação conducente a estreitar relações comerciais e até integração em escala,
mesmo que inicial, o curso físico como roteiro das fronteiras terrestres será um aporte adicional
valioso. uma espécie de ação experimental que informaria bastante e desbravaria com propriedade
vias de realização gradualmente maiores e mais indicativas.
O caminho da integração sul-americana cabe, como autêntico lindeiro que é, ao Brasil. e por
razões de defesa, de interesse econômico e de alargamento de presença num cenário mundial futuro
que vai inexoravelmente pertencer ou basica-mente originar-se de duas vertentes construtivas – o
tamanho efetivo dos mercados e as realidades do desenvolvimento técnico-científico.
O Brasil continental e emergente de hoje será um Brasil hemisferial e desenvolvido no amanhã, não comandando ou exercendo posições autocráticas, mas conglomerando suas potencialidades
com a de seus vizinhos do âmbito andino, da orla do pacífico e do cone sul, este já sob a forma de
MERCOSUL. em matéria de defesa é tudo que uma civilização de cunho democrático e pan-étnica
pode aspirar, dada a firmeza e a segurança que se formam no âmago de associações multirraciais
voluntárias e autopreservativas.
Um movimento consciente no sentido da integração não precisa ser obra de cartapácios enganosos em matéria de considerações ditas cerebrinas. nada disso, expediente esse que muito geralmente esconde ignorância, pretensa saber, quando não formula inidônea de autopromoção pessoal.
são três as bases operacionais de uma ação orgânica e eficaz: 1o) os caminhos, estradas ou vias de
comunicação de menor resistência à implementação; 2o) articulação político-diplomática de entendi-mentos exploratórios e 3o) tamponamento dos avanços realizados mediante instalação de unidades ou ações econômicas vivificantes. daí para a frente acordos de trocas, áreas de livre comércio,
exercício de estímulos fiscais, e outros instrumentos de política aplicada, farão a parte subsequente,
que será, logo em seguida o início de uma integração em andamento, na medida em que se forem
conciliando ou se aproximarem as medidas e as configurações macroeconômicas.
A situação da área sul-americana como um todo e a posição emergente de seus estados
membros responderão pelo êxito do movimento, que não deve tardar, pois indica que, em seu final,
o Século XXI trará uns dois, no máximo três pólos mundiais de germinação de progresso, em meio
a um conjunto de subsidiários aderentes. a nossa região sul-americana, talvez, ainda não se inclua
então, no grupo dos germinais, não precisará e não deverá ser um constituinte dos subsidiários e
muito menos aceitar a posição de aderente a qualquer miragem de falaciosa projeção ou enganosa
civilização.
(*) Membro da Junta Consultiva da ESG
A CRISE DO PARADIGMA DA MODERNIDADE
Marcos Oliveira(*)
“Crise é o momento em que o novo está pronto para chegar
mas o velho ainda não quer se retirar.”
O desafio de verificar se a sociedade humana está abandonando o paradigma da
modernidade para ingressar em uma era pós-moderna não é em nada trivial. Embora haja muita
especulação teórica a este respeito, os sinais de uma mudança abrangente e disseminada são ainda
tênues. Não é trivial em primeiro lugar pela extrema diversidade e estratificação cultural em que a
sociedade se organiza, trazendo uma enorme dificuldade para a formulação de princípios e formas
de comportamento verdadeiramente gerais.
Em segundo lugar pela dificuldade de atribuir um significado preciso e universal a “moderno” e, ainda mais, a modernidade, modernismo e modernização, todas elas palavras que são amiúde
empregadas com diferentes sentidos. Se a conceituação de moderno apresenta dificuldades não
menos difícil será entender o que alguns advogam como o seu sucessor, o pós-moderno.
Aqui se procurará compreender a modernidade como o conjunto de atributos paradigmáticos
que caracteriza o comporta-mento social da humanidade, ou pelo menos de uma parte substancial
dela, em uma determinada época.
Ser “moderno” será pensar e agir de acordo com um determinado padrão, de acordo
com um conjunto de crenças e hábitos singulares, substancialmente diversos daqueles de outras
gentes, em outros períodos.
A dificuldade de caracterização da modernidade, como de qualquer outro período específico
de uma dada civilização, reside no fato de que o comportamento humano não se modifica nem por
mudanças súbitas, perfeitamente identificáveis nem por mudanças definitivas e totais. Ao contrário, a modificação nos hábitos e crenças do homem é freqüentemente lenta, dando-se ao curso de
gerações e, mais que isto, nunca total. Há um grau acentuado de permanência, de continuidade e,
não raro, de retorno à modos de agir, de entender a realidade e de comportar-se diante dela.
Ainda mais, a sociedade humana, no correr dos tempos, tem-se apresentado quase sempre
estratificada, tais extratos possuindo diferenças marcantes nos níveis culturais e econômicos, graus
diversos de possibilidades de acesso a novos conhecimentos e, por isso mesmo, com graus diferenciados de propensão à mudança. Nunca houve pois um comportamento diacrônico perfeito no pro-
cesso evolutivo da sociedade humana. Conviveram, e ainda convivem, em uma mesma região e em
uma mesma época, em extratos sociais diversos, formas de agir e de pensar substancialmente diferentes.
Desde o ponto de vista histórico, o moderno é uma idéia da Renascença. Foi durante esta
época que primeiro se pensou na divisão histórica entre períodos antigo, medieval e moderno, o
antigo findando-se com a queda do Império Romano do Ocidente em, 470, e o medieval indo
daquela data até a tomada de Constantinopla, em 1453. Tais seriam, desde um ponto de vista histórico, os três grandes paradigmas de comportamento sob os quais teria vivido a humanidade até
aqui.
A divisão é, certamente, arbitrária e a fixação de uma data uma mera conveniência, didática,
talvez. A crise do paradigma de uma civilização é um processo lento, turbulento, frequentemente
circular entre suas causas e efeitos, com idas e vindas, desaparecimentos e retornos, dificilmente
perceptível aos contemporâneos. Só a perspectiva histórica lhe dá sentido, lhe aponta as causas, as
nuances, o definitivo fixar de um novo padrão.
Para os historiadores a idade antiga termina com a queda de Roma, em 470. Mas já não
estaria Roma defunta ao tempo da invasão de Alarico, em 410? Ou quando da partilha feita por
Teodósio, em 395? Ou, mais longe ainda, quando Diocleciano toma a fatídica decisão de dois
Augustos e dois Césares, ainda antes de se apagarem as luzes do século III?
Não é a data cronológica que importa. A conceituação de uma época se fará de forma mais
precisa e inteligível pelo confronto de suas caracteríticas paradigmáticas com as daquela época que
a precedeu.
A Idade Média Sucede a Antiguidade
A escolha de uma data associada a Roma para dar fim ao tempo antigo e marcar o nascimento
da Idade Média não é desprovida de lógica ou de interesse. No auge de seu poder, Roma se espraia
por todo o Mediterrâneo, conquista terras e gentes da África e da Ásia, domina civilizações superiores à sua própria, assimila, muda, converte e é convertida e com uma nova bagagem investe, no
Ocidente, por uma terra escassamente povoada, de gente mais rude, mais inculta sobre quem impõe
seu poder, sua lei, sua organização, seu conhecimento que, não é mais oriental, grego ou ainda
melhor, helênico. Muda, é romano.
O império foi, desde muito, dividido senão politicamente, o que ao acontecer acarretaria a
desintegração de uma de suas partes, mas culturalmente. A parte ocidental do império, aquela ponta
de terra que se projeta da massa asiática para mergulhar no Atlântico e que viria a se chamar Europa
já tem, ao tempo do domínio de Roma e pois, na Antiguidade, um caráter diverso da porção helênica,
diversidade que se acentuará por todo o decurso da Idade Média para explodir em diferenças fundamentais ao se iniciar a Idade Moderna.
“Desde sempre, ou quase, houve um Oriente mediterrâneo povoado, rico de uma velha civilização, animado por numerosas indústrias e, desde o princípio da conquista romana um Ocidente,
se se quiser, um Far West, tosco, se não inculto, onde Roma criando cidades, instalou por vêzes
uma civilização a sua imagem ou à imagem deformada da sua.” (1)
A visão de que a queda de Rômulo Augusto, último imperador romano do Ocidente, foi
um cataclisma social agudo é falsa. Dificilmente um habitante do Ocidente de então a teria notado.
Roma levou mais de dois séculos para cair e, ao fazê-lo, a nova idade que iria se firmar de há muito
já apresentara sua identidade. É claro que houve mudança em 470, mas longe de algo de impacto. O
Ocidente romano começou a se barbarizar ao longo do sec III quando, já não foi mais possível
manter os bárbaros fora das fronteiras do império, foi preciso conviver com eles, adaptá-los, absorvê-
los. Desde então passam os bárbaros passam a ser soldados, camponeses, mineiros, lenhadores de
Roma. No século V são generais, prefeitos, reis-vassalos. Dividem o poder com os antigos romanos.
Quando Roma cai, o sentimento mais profundo é o da perda da segurança física, pessoal. A
coesão do império se esfacela, as estradas tornam-se perigosas, as comunicações entre as grandes
cidades romanas torna-se mais difícil, o fluxo de mercadorias escasseia. As cidades sofrem pela
perda dos suprimentos e as grandes fazendas do alto império tornam-se ilhas, antecipação do regime que grassaria no feudalismo.
Mas a visão de uma total desagregação não é verídica pois, se acabou o poder imperial, já lá
está, soberana, para substituí-lo, a Igreja cristã.
O cristianismo entrou no império romano pela porta dos fundos, pela senzala e pela cozinha.
Religião da igualdade, ela empolga sobretudo os humildes, os deserdados, os oprimidos. É entre os
pobres, os escravos e as mulheres do império que ela primeiro se espraia. Os primeiros apóstolos e
propagandistas escontravam guarida e ouvidos no interior dos lares, entre mulheres e criados. Era o
tempo em que mulheres eram sacerdotes.(2)
O cristianismo sai da cozinha para a sala quando Constantino, necessitando de apoio para
manter a coesão do império o transforma em religião aceita pelo Estado, ele mesmo se tornando
cristão, o que vai definitivamente marcar, senão os últimos anos da Idade Antiga mas, certamente,
os mil anos de Idade Média que se seguirão.
A concepção divina do poder do Estado, idéia que vinha desde a teocracia egípcia, não muda
com a adoção do cristianismo, que a adota, mas a partir daquele instante passa a se desenvolver,
abertamente, um poder paralelo ao do Estado secular. A partir daí, ao lado da estrutura de poder do
estado romano, ao lado de sua burocracia, de sua administração, uma outra organização, uma outra
burocracia que se articula, que permeia a sociedade, que se estabelece por toda a malha do império
e que virá a ser o elemento de sustentação dos costumes, quando de sua queda, passa a se instalar.
“Tornando-se administração do Estado, a Igreja foi introduzida nos quadros do Império tais
como os havia organizado Diocleciano….Introduzindo a Igreja no Estado, no momento em que
este adquiria a forma de uma monarquia estatista e autoritária, Constantino erguia diante de sí um
poder saído do povo…A Igreja desde logo transformou-se num poder autônomo. Pelos Concílios
de Nicéia e Constantinopla instaurou, progressivamente, a primazia do Bispo de Roma. Adotava,
assim, uma constituição monarquica autônoma no próprio interior dos quadros do Império.Eleitos
pelo povo, os chefes da Igreja exerciam os seus poderes em nome de Deus.”(3)
Quando o Império do Ocidente cai, lá está o Bispo de Roma para manter a sociedade. Ao
tempo da queda do império, a fé já está organizada. De S.Paulo a Ignatius, de Irineus a St. Agostinho a confissão ocidental se cristaliza, combate a heresia, organiza o cânone. É certo que está longe
de ser única, mas já é dominante, mercê de sua proximidade do poder temporal. É com Gregório
Magno no século VI que ela definitivamente se consolida. Formidável administrador, Gregorio dá
poder material a Igreja, articula sua burocracia, fixa as bases de sua expansão européia mandando
missionários à conquista religiosa da Grã-Bretanha – Inglaterra, Escócia, Gales –, resguardando os
tesouros materiais e espirituais da Igreja nos monastérios que funda, organiza e promove.
Se a Igreja tem agora um formidável poder moral falta-lhe a componente força com que
manter a ordem, prover a segurança material. O império, antes economicamente coeso, se esfacela.
As cidades se isolam, o comércio rareia, o tráfego nas antigas estradas imperiais escasseia. É um
tempo de carência, de pirataria, de roubo de decadência econômica, cenário perfeito para o vicejar
do pensamento agostiniano, o homem se refugiando na expectativa do futuro para suportar a miséria do presente.
A Igreja vai a busca de força, à procura de alianças com poderes temporais que possam voltar
a dar unidade e segurança ao Ocidente. Vislumbra nos francos de Meroveu sua oportunidade. Converte Clóvis, luta para manter a unidade franca na dispersão que se segue a sua morte, apoia-se em
Carlos Martel para expulsar, ainda uma vez, o oriental que a invade, triunfa com o triunfo de Carlos
Magno. A partir daí, boa parte da história do medievo é contada a partir da luta desesperada pela
reconstituição do império do Ocidente, não mais Império Romano, mas Sacro Império.
Neste processo de consolidação a Europa se isola, religiosa, cultural e geograficamente, conforma uma cultura única por sobre um território delimitado. O Islã, ao Sul nega-lhe acesso ao
Mediterrâneo e força a Europa a descobrir o Atlântico. É ao longo da costa atlântica que a navegação européia vai ressurgir na próxima era, apesar da ligação persistente de Veneza com
Constantinopla, elo comercial que vai se arrastar até a conquista turca. A eterna ameaça das invasões dos povos das estepes asiáticas, imenso útero que não se cansa de parir, obriga-a a fechar sua
fronteira de Leste. As velhas fortificações e acampamentos romanos das fronteiras imperiais ao
longo do Reno e do Danúbio vão gerar as cidades do medievo tardio, cortina de proteção a ameaça
asiática, Praga, Budapeste, Viena. Tudo o mais , a Leste, vai ser perdido, a partir da fixação dos
canatos mongóis .
A ortodoxia cristã helênica é inconciliável, apesar das inúmeras tentativas, com a confissão
católica romana. Com Sto Agostinho, o aristotelismo está perdido para o ocidente. Nem a tentativa
de aproximação de Carlos Magno com Constantinopla vai recuperá-lo, o pensamento do ocidente
vai evoluir, por séculos, diferentemente do pensamento oriental, bem e mal vistos como polos
inconciliáveis e distintos, dando lugar ao dualismo em tudo o mais, marca registrada do Ocidente
em formação.
Consolidadas as fronteiras a Leste e ao Sul, contidos os povos das estepes e o Islã, o Ocidente
pode voltar-se para si mesmo, lamber suas feridas, progredir. A segurança reconquistada, a ordem
restaurada por uma Igreja ao mesmo tempo religiosa e secular, dá lugar à reocupação do campo, à
recuperação da produção agrícola, ao ressurgimento das cidades. Nos primeiros séculos do segundo milênio, o arado, o cavalo, a introdução da cultura das favas e feijões, a drenagem de pântanos
recuperam a população, o comércio e as cidades.
“Do século X ao século XIII, uma ascensão do cristianismo afirma seu vigor, por toda a parte.
As igrejas, os mosteiros ainda estão aí para testemunhá-lo: toda a Igreja é arrastada por um movimento poderoso, que é também o do impulso econômico, da ascensão social de uma Europa ativa,
cheia de vida e em vias de rápida expansão.”(4)
Na esteira do progresso material a vida intelectual rejuvenesce, deixa os mosteiros, penetra
nas universidades – Paris, Bolonha, Pavia – recebe enfim a herança do Oriente, revisita Aristóteles,
recupera a ciência, discute a política. A pouco e pouco liberta-se do manto pesado da filosofia
agostiniana, afasta-se do pessimismo da miséria humana. Sem se afastar de Deus, aproxima-se do
humano, deixa de se envergonhar do corpo e reencontra a natureza e a alegria. Renasce.
A sociedade ocidental do medievo tardio não é una, seu desenvolvimento é diferenciado. A
unidade é a cidade e o progresso está no Sul, sobretudo na Itália meridional. Milão, Luca, Veneza,
Siena, Genova, Pavia, Florença são os centros de poder e de cultura onde se pensa e se discute mais
fortemente a ética e a política.
Ao Norte é Paris, é Londres, é a sede do Sacro Império, como centros de poder, e pouco mais.
A Oeste, a Ibéria está em ebulição, tratando de conciliar o choque entre duas culturas, a islâmica e
a cristã.
É nas cidades do Norte da Itália, nos séculos XIII,XIV e XV, que fermenta uma nova cultura,
que se discutem os fundamentos de uma nova organização social, uma nova ética de poder, uma
nova relação homem-natureza, real-transcendente, súdito-príncipe.
As cidades estão em choque, a insegurança é grande, a guerra está presente no cotidiano. Os
temas em disputa são liberdade x anarquia, guerra x paz, império, ordem, virtude, cidadania. A
revelação é posta em questão desde o sec. XIII e, com ela, o primado da fé e o direito divino. A
opressão do governante revigora o ideal de liberdade que encontra seu limite no temor à anarquia e
à insegurança. Há que se manter a ordem, mas também limitar a prepotência de quem tem a força,
limitar pela virtude que há de ter o príncipe a quem o uso da força se delega.
Enquanto, em Paris, Tomás Aquinas tenta fazer a grande síntese aristotélica-cristã, resguardando o poder da fé e igualando a revelação e a razão como caminhos para a verdade, na tentativa
de manter a preeminência de Roma – preeminência que Ockham combate em defesa do Sacro
Império – nas cidades do Norte da Itália gesta-se a mudança do paradigma.
Brunetto Lattini, Marsílio de Pádua, Bartolo de Saxeferrato, Remígio de Girolami, Bartolomeu
de Lucca, Giannozzo Manetti, Pico della Mirandola, Nicolla Machiavelli entre tantos outros, lançam os alicerces do viria a ser o pensamento político moderno, refutam Sto. Agostinho e sua miséria, recuperam o homem, exaltam a república e o poder temporal consentido, limitam o absolutismo do príncipe. Na esteira de Tomás Aquinas recuperam o bem comum e a sociedade civil, a
cidade como sociedade, de que já falava Aristóteles:
“Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação e que toda associação se forma
tendo por alvo algum bem…Todas as sociedades, pois, se propõem a algum bem sobretudo a mais
importante delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todos os demais: a cidade ou a sociedade política.”
Embora limitado espacialmente, o comércio ocidental com o oriental não cessou inteiramente. Ele é ainda mantido, em escala substancial, pela ligação com Constantinopla, sobretudo por
Veneza, que passa a ser a principal porta de comercio com o levante e entreposto preferencial da
troca de bens no Ocidente. Com uma organização política que antecipa, de muito, a futura participação popular no governo e a colaboração público-privado, Veneza é um primor de paz e prosperidade. A “República Sereníssima”desenvolve um poderoso sistema de comércio escudada numa
frota que é ao mesmo tempo comercial e militar. Associa o poder econômico à força, desenvolve o
crédito, a letra de câmbio, a moeda. Ganha dinheiro com o comércio e com ele se industrializa.
Monopoliza produtos e defende duramente tais monopólios, aumentando sua riqueza e seu poder.
Lança as bases do capitalismo que, a partir daí, não vai cessar de impor a sua lógica ao progresso
material do ocidente.
Se o Ocidente medieval começa a gestar uma nova ética, um novo sistema de produção e uma
nova política, no campo da ciência ele ainda está preso a física aristotélica. Há progresso científico,
sobretudo pela importação de idéias e práticas do Oriente, mais adiantado mas, não há ruptura. O
consumo de energia cresce, a força não vem só do homem, lá estão o cavalo, o boi, a água, o vento,
mas é só. A física, a explicação da natureza pelo homem medieval ainda é a explicação, a física
grega, de Arquimedes e Aristóteles.
Quando Maomé II rompe as muralhas de Constantinopla e, finalmente, soçobra o que restara
do Império Romano, a Europa está pronta para nascer. Ela dispõe de um território defensável, de
bases firmes para uma nova cultura, contrapõe a razão à revelação, tem todos os fundamentos para
revolucionar a ciência e erigir uma nova utopia política e mais, dispõe de um sistema de produção
para alavancar o progresso material.
Com o renascer do Ocidente se dá o nascer da Europa e, indissoluvelmente a ela ligado, nasce
também o Moderno. Ao abraçar o cristianismo, a Europa sufoca as heresias. Ao descobrir a razão
ela vai afastar o misticismo. Com o dualismo excludente que abraça e que aplica a tudo, sua dialética
vai ser a da oposição.
Modernidade e Europa se confundem, se entrelaçam. O desenvolver e consolidar do moderno é o mesmo desenvolver e consolidar da Europa.
O Moderno Sucede ao Medieval
O que sobretudo diferencia o antigo do medieval são a noção do tempo e a visão religiosa. O
que sobretudo diferencia o medieval do moderno é o teocentrismo do primeiro em relação ao
antropocentrismo do segundo e mais, a oposição fé versus razão e a natureza do conhecimento
científico.
O tempo dos antigos é circular, é o dia se sucedendo a noite para retornar ao dia, é inverno,
primavera, verão, outono para ser outra vez inverno, é lua após lua, é sol após sol, é o eterno
renascer. Não há a noção de futuro, não há como pensar em progresso, algo tão corriqueiro para
nós, modernos.
Na Idade Média, ao contrário, o tempo é linear, herança que recebe do pensamento judaicocristão e que se torna paradigmático. A aventura humana no cristianismo judaico tinha claramente
um começo, a criação, um meio, o primeiro advento e um momento final, o segundo advento onde
se atingiria, finalmente, o Reino de Deus. O elemento circular está presente, é claro e ele é o traço
de continuísmo que tão frequentemente se encontra nas mudanças que ocorrem nos sistemas complexos, mas há passado, presente e futuro. A idéia de progresso, de desenvolvimento pode grassar
com mais liberdade, tem suporte no paradigma.
A segunda diferença marcante é, também, originária do pensamento judaico-cristão, o
monoteismo. A religiosidade da Antiguidade é claramente politeísta. A Idade Média, sobretudo no
ocidente, é fervorosamente monoteísta, fervor que com todas as suas nuances, vai se prolongar pela
modernidade.
O tempo moderno vai se opor ao medievo em vários aspectos.
O tempo na modernidade é o tempo do trabalho, é o tempo do indíviduo. Ele conserva o
passado, presente e futuro que o medievo inaugura, mas introduz o tempo individual e marca em
cores muito mais fortes a idéia do desenvolvimento, a idéia do progresso. Na verdade a possibilidade do desenvolvimento, o desejo do progresso é a idéia-força central de muitas das características
que vão marcar a modernidade, seus destemperos, suas revoluções.
Se o homem medieval se guia por uma ótica teocêntrica, o homem moderno, ao contrário,
será movido pelo antropocentrismo. O homem medieval é agostiniano, pecador, impuro, desgraçado. O homem moderno é senhor do mundo, razão de ser de todas as coisas, é causa e conseqüência.
É a um só tempo locatário e locador da natureza, seu amante e seu algoz, seu fruto e seu predador.
A modernidade é um fenômeno geograficamente limitado. A modernidade é um fenômeno
europeu.
Com os pés assentes no movimento a que se chamou de Renascença, a modernidade, tendo
libertado a mente humana da prisão agostiniana, não para de evoluir, inquieta, curiosa, revolucionária, eternamente insatisfeita.
Com Constantantinopla tornada turca em 1453, fecha-se de vez o contato com o Oriente,
desmorona o sonho da reunificação do Império Romano, cindem-se inapelavelmente a ortodoxia
grega e a confissão católico-romana. As galeras de Veneza não mais singram o Mediterrâneo em
busca dos tesouros do Oriente. Fechado o Oeste ao comércio, a Europa volta-se para o Atlântico, ao
Norte e ao Sul. Cresce o comércio ao longo da costa , o Mar do Norte se povoa, o Báltico ganha em
importância.
As velhas rotas terrestres de comércio ligando o Sul – Veneza, Gênova, Marselha – ao Norte
através da cadeia de feiras – Lyon, Paris, Trier, Bruges – perde força. A polaridade comercial Norte
da Itália-Países Baixos torna-se menos nítida. O Brenner e o São Gotardo não são mais os caminhos
preferenciais da circulação da riqueza. As cidades da costa passam a florescer e dominar. Bordeaux,
Londres, Amsterdam, Hamburgo, Lubeck, Copenhagem, Danzig são nomes que começam a se
tornar comuns.
A costa da Africa é conquistada, contornada, uma nova ponte de contacto com o Oriente
longinquo é estabelecido. De novo as especiarias – temperos, óleo, seda – tão ambicionadas voltam
a inundar a Europa. Na esteira deste reencontro comercial com o Leste, um mundo novo é descoberto, explorado, colonizado. Na aurora de sua existência a Europa se defronta com sua maritimidade,
que vai marcar seu destino.
Lisboa e Cadiz passam a ser pontos importantes de contacto com o Sul. A a porta de entrada
das especiarias é ibérica.
A tecnologia naval se desenvolve, a caravela portuguesa com sua manobrabilidade domina
os mares. O comércio de longa distância torna-se massivo, novos mercados surgem para a produção industrial da Europa infante, novas fontes de riquezas provêm de além-mar. O europeu desbrava, domina, escraviza e coloniza terras e povos distantes, colonialismo e escravismo que vão manchar a sua história, até o século XX. O comércio, exuberante, lança as bases do capitalismo mercantil que comanda a mudança nas relações de produção e transforma as relações sociais. As cidades se
especializam, ora grandes centros agrários, ora grandes centros fabris, ora enormes entrepostos
mercantis. O feudo, que começara a morrer no século XIII com o crescimento das cidades por toda
parte , está definitivamente enterrado.
No alvorecer da modernidade Veneza comandava o ciclo da riqueza. Com o advento do Atlântico e das ligações com o Oriente Lisboa e Madrid têm a sua vez mas falham em retê-la, conservála. Finalmente são Antuérpia e Amsterdam quem detêm o cetro do comércio e do capital, cetro que
só vão passar a Londres no século XIX, após a primeira revolução industrial quando o capitalismo
já têm outra feição, não é mais apenas troca, é produção, não é mais mercantil, já é industrial,
indústria que evolui e suplanta a agricultura como motor do progresso nas azas do conhecimento
científico.
A ciência, a natureza e os fundamentos do conhecimento científico separam a modernidade
de tudo o mais que a precedeu. A ciência antiga e medieval é aristotélica, ciência do equilíbrio. A
modernidade revoluciona, instaura, descobre, explica o movimento. A antiguidade e o medievo são
a estática. A modernidade é a dinâmica.
Os séculos XVI e XVII são o palco da revolução científica inicial. Copérnico (1473-1543 ),
Galileo (1564,1646), Tycho-Brahe (1546,1601), Kepler (1571,1630), estudam o firmamento, o
movimento dos corpos celestes, derrubam a velha tese da terra como centro de tudo, abrindo caminho para a ciência nova, mas é Newton quem dá o golpe final, a explicação definitiva para o movimento, para o equilíbrio dinâmico do universo.
Newton estuda a ótica, a mecânica, o cálculo. Depois dele é impossível reconhecer a natureza
antiga.
A explicação de Newton e o progresso da ciência não seriam possíveis sem que F. Bacon
(1561-1626) e René Descartes( 1596-1650) cortassem as amarras do passado e fixassem um novo
método de observar a natureza e construir a verdade, baseadas na observaçào e na razão. A filosofia
de Bacon e, especialmente a de Descartes vai marcar indelevelmente a modernidade. O método
cartesiano, sobretudo, é um marco notável, apesar de sua simplicidade. Primeiro, abandone os
preconceitos e nunca aceite nada como verdadeiro sem que o conheça evidentemente como tal.
Depois divida o problema em tantas partes quantas forem necessárias à sua solução. Em terceiro
lugar, ordene os pensamentos, dos mais simples aos mais complexos e, por último, faça revisões
tão completas que se tenha a certeza de nada omitir. (5).
O método cartesiano, na sua simplicidade e lógica, provoca uma revolução. É eminentemente
dualista. Com ele a física se afasta da teologia, a natureza se afasta de Deus. O método é perfeito
para se tratar com o mundo material, mas deixa de lado toda a vida do espírito. O europeu se agarra
a ele no prescrutar da natureza e o conhecimeno científico, ao seu amparo, progride sem cessar,
cada vez mais rápidamente. Com Descartes e o triunfo da razão o homem europeu ganha uma das
facetas mais marcantes de sua característica moderna. A expansão acelerada do conhecimento científico vai alimentar o progresso material, orientado pelo processo capitalista de produção, que
não tarda em incorporar as novas idéias e potencialidades ao seu arsenal de meios de ação.
O humanismo que nasce na Itália do quatroccento viaja, chega ao Norte, amadurece e triunfa
por toda a Europa com Erasmo e Thomas Morus. Com Erasmo o homem, dentro da piedade cristã,
assume de vez o papel central na aventura humana, com Morus nasce a utopia que se irá consolidar
como uma das marcas da modernidade, no século XVIII.
Nos humanistas do Norte, a busca da sociedade perfeita e da virtude do príncipe é ainda, o
mote central. A cidade do homem é a que importa e a violenta crítica aos desvios da Igreja, sua
riqueza, seu luxo, seu poder temporal, suas fraquezas humanas ainda não nasceu. O estado teocrático
é posto em xeque a partir das exigências que se põe ao Príncipe mas no contexto, ainda, da religião
dominante. A religião é vista e aceita à luz de seu interesse social, como observa Erasmo no Príncipe Cristão:
“É absurdo supor que o verdadeiro cristianismo se encontre em cerimônias, em doutrinas sutentadas porque estão na moda, e em constituições da Igreja. O autêntico cristão, ao contrário, deve ser aquele que utiliza a razão recebida de Deus a fim de distinguir o bem do mal e que
envida o máximo de esforços para evitar o mal e abraçar o bem”.
Para Erasmo, a busca da virtude se tornou uma questão da maior significação religiosa e, ao
mesmo tempo, moral. Se quem abraça a virtude é com toda evidência um cristão, segue-se que um
príncipe e um povo que colaborem para constituir uma república autenticamente virtuosa estarão
atuando no rumo da maior das realizações – a instituição de um modo de vida genuinamente cristão.(6)
Quase ao mesmo tempo que Erasmo, Morus pensa e cria a sua Utopia, uma peça humanista
a um só tempo irônica e crítica ao próprio humanismo. Em alguns momentos, Morus parece nostálgico de uma vivência campesina medieval mas, no seu todo, sua utopia é uma crítica pesada ao
vício humano e uma apologia da virtude. Morus critica sobretudo a hierarquia e a desigualdade
social, os “graus” em que marcadamente a sociedade humana se estratifica e que vão, mais tarde,
serem examinados como “classes” pelos marxistas.
Nenhuma sociedade hierárquica pode – por princípio – ser virtuosa: pois,
mantendo os graus, encorajamos o pecado do orgulho; e encorajando-o produzimos
uma sociedade que estará fundada não nas virtudes, mas no mais odioso de todos os
vícios.(7)
Morus indaga o porque da conservação dos graus, e responde que é a desigual distribuição do
dinheiro e da propriedade privada que capacita uns poucos a dominar todos os demais, assim alimentando o orgulho e assegurando que se tribute respeito não à virtude, mas sómente a posição
social e a riqueza. Nas palavras de Hitlodeu ao descrever Utopia:
“Parece-me que, onde tiverdes propriedade e todos os homens medirem as coisas pelos valores do dinheiro, será quase impossível uma república ter justiça ou prosperidade, a não ser que
penses que a justiça exista lá onde as melhores coisas vão ter às mãos dos piores cidadãos, ou que
a prosperidade prevaleça lá onde tudo se reparte entre muito poucos.”(8)
Embora o humanismo se espalhe pela Europa, esta está longe de se tornar homogênea no seu
pensar político. O direito divino ainda subsiste e a força da Igreja e sua imbricação nos negócios
seculares ficará ainda patente, por muitos anos. A Igreja saiu da Idade Média rica e poderosa, seus
príncipes orgulhosos, ambiciosos, lascivos, pecadores.
Contra os modos da Igreja, ao tempo de Erasmo e Morus, erguem-se vozes poderosas clamando por uma reforma nos costumes da Igreja, por um retorno a simplicidade e piedade cristãs
dos primeiros tempos. Lutero, Calvino, Huss, Zwinglio formam a linha de frente do pensamento
reformista que avança pela Europa do Norte. Lutero é obcecado pelo pensamento agostiniano do
homem pecador e desepera-se pela possibilidade da salvação. Quer acabar com o pecado da Igreja,
a venda das penitências e sacramentos, sua riqueza, sua luxúria. Vai buscar inspiração em S. Paulo
e defende que o homen, o cristão, é templo suficiente para a pregação do Cristo. A suntuosidade e
a grandeza dos templos é desnecessária. A comunhão com Cristo pode se dar na solidão do indivíduo ou na simplicidade da comunidade.
A Igreja reaje, cria ordens eclesiáticas para defender suas posições. A Europa se fende, se
divide, a intolerância se instala de parte a parte. Milhões morrem nas lutas religiosas por suas
posições, o desenvolvimento e o progresso são afetados no processo. As cicratizes são visíveis,
mesmo hoje.
A Europa que emerge do medievo não é mais uma Europa organizada no entorno das cidades.
“Um dos mais importantes desenvolvimentos que acompanharam a ascenção da modernidade
foi a criação do estado-nação. O processo foi, na maioria dos casos, o trabalho deliberado de monarcas e seus primeiros-ministros, mas era no evidente interesse de um grupo social que não podia
confiar nos poderes territoriais tradicionais . O estado-nação era também o veículo necessário para
o estabelecimento do contrato moderno no lugar da servidão feudal.”(9)
O processo de definição de estados nacionais é lento, que o direito divino ainda preside as
sucessões no regime monárquico e regiões inteiras trocam de senhor e de brasão a cada morte.
A consciência da unidade social se cristaliza primeiro na Inglaterra insular, de língua comum
e de inimigos definidos, além do canal. O rompimento de Henrique VIII com o Papa é o momento
crucial, definidor da nova nacionalidade. Até ali, a política inglesa era fundamentalmente influenciada por Roma, mais, talvez, de que qualquer outro estado europeu. A partir dali a Inglaterra toma
o caminho da unidade estado-nação que a França, embora mais coesa desde Felipe, o Belo, só vai
alcançar com Richelieu e Luiz XIII.
Portugal e Espanha, mais isolados, na Ibéria, começam cedo a desenvolver uma consciência
nacional mas, vão ter que esperar o declínio Habsburgo. O mesmo acontecerá com os Países Baixos, campo de luta das potências, por excelência. A unificação alemã e a da Itália só vingam no
século XIX.
Se o estado-nação já é uma realidade no século XVII, a cidadania é outra história. Vai ter que
aguardar a revolução dos “sens-cullotte” para se afirmar.
A modernidade política européia, que se assenta no humanismo nascido do Renascimento,
prossegue e ganha contornos definidos, no século XVII, com John Locke e, no século XVIII, com
J.J. Rousseau e Thomas Jefferson.
O estado teocrático está em crise e, desde o Renascimento, a idéia da prevalência do povo na
concessão do poder começa a se formar. Ela se espraia sobretudo na Inglaterra desde que os barões
forçam o Rei a dividir o seu poder, pelo menos o poder de lançar impostos e ministrar justiça. É
ainda na Inglaterra, com a Revolução Gloriosa que a idéia da soberania do povo vai se cristalizar e
o seu principal interprete é Locke.
Em seus dois tratados sobre o governo, Locke aborda três temas centrais: governo, propriedade e revolução.
“O governo existe por causa da propriedade privada. Se não houver propriedade, não há necessidade de um governo que a proteja. Se não possuo nada de
meu para que preciso da máquina do estado, leis e juízes, policiais e prisões?”… “A
propriedade sendo legítima, legítimos são também os governos… Governos legítimos devem governar para o bem dos governados e não para o seu próprio bem.”
Locke coloca nas mãos do povo o direito de julgar a virtude do Príncipe, julgar se ele está ou
não governando para o bem do povo. A partir daí, o direito divino de governar recebe seu golpe
mais forte e a fonte do poder passa para as mãos do povo.
“Podem, então, as ordens do Príncipe receber oposição? A isto eu respondo:aquela força
deve se opor sómente ao injusto e ao ilegal. (10) A questão comum deve ser: quem deve julgar se o
Príncipe ou o Legislativo atuam contrariamente a seu dever? A isto eu respondo: o povo deve ser o
juiz.”(11)
Quase um século se passa entre Locke e Rousseau e é a este que cabe o golpe mais poderoso
contra o estado absolutista. Em 1762 edita um pequeno livro, o Contrato Social, em que argumenta
veementemente em favor da soberania do cidadão e seus direitos sobre o governo:
“Uma vez que nenhum homem possui uma autoridade natural sobre seus semelhantes, e pois
que a força não produz nenhum direito, restam pois as convenções como base de toda autoridade
legítima entre os homens.”(12)
E a convenção que ele preconiza é o contrato social:
“A dificuldade do homem é encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda
força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um unindo-se a todos, não
obedeça portanto senão a si mesmo. Tal é o problema cuja solução é dada pelo contrato social.”(13)
A idéias de Locke e Rousseau cruzam o oceano e vão germinar no Novo Mundo. A opressão
do governo imperial britânico sobre suas colônias americanas é vista como causa perfeita para que
se apliquem as idéias libertárias do liberalismo político. Jefferson escreve a famosa declaração de
independência, evidentemente calcada em Locke. A revolução americana inaugura a era das revoluções libertárias que prosseguirá com a revolução francesa e, bem depois, com a revolução russa.
Nenhuma delas alcançará seus objetivos. Vão iluminar o mundo, por certo, vão encher de
esperança os menos afortunados, os deserdados e os oprimidos como um dia a pregação de um
galileu o fêz, mas não resistirão a ambição e a cobiça, a inveja e ao orgulho da condição humana e
ao irresistível apelo do processo capitalista de acumulação e produção que acompanha a toda a
evolução do moderno e que tem em Marx o seu analista e crítico mais sagaz e penetrante.
A revolução inglesa não tem força para abolir a monarquia ou eliminar privilégios de classe
mas introduz a participação popular no governo através da representação na câmara baixa, repetindo o velho modelo veneziano. A representação se funda, ainda, na propriedade, que Locke defendera e a questão agrária, menos aguda que alhures, não é mote principal.
Nos EUA, a revolução se faz em resposta ao abuso do poder central. Civilização de fronteira,
a questão da posse da terra é importante mas não causa de desassossego. Os EUA fazem sua reforma agrária sem convulsão interna. Há bastante terra para distribuir aos cidadãos, terra que conquistam, a ferro e fogo, através do genocídio indígena e da invasão de vizinhos menos poderosos.
Já na Europa continental a questão da terra é fundamental e está no cerne das reivindicações
populares que dão suporte à revolução. Terra dos nobres e da igreja, reservas de caça, de lenha,
vastos campos de produção ainda na posse de poucos, interditos à multidão que, se neles trabalha é
em função de uma corvéia, de uma meação ou em troca de um magro estipêndio que mal dá para
sustentar a vida. A revolução francesa faz uma reforma agrária, o terceiro estado passando a ocupar
terras que eram do primeiro e do segundo. Faz mais, abole a nobreza, decapita o rei, reforma o
calendário, promove um banho de sangue de seus inimigos, sangue com que pretende, de uma vez
por todas lavar o regime antigo, sua opressão, sua injustiça, sua desigualdade.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A pátria, o governo, o poder estão nas mãos do povo,
agora cidadão. O direito divino não mais existe. O príncipe governará por delegação do povo, pelo
voto popular. A Europa já tem sua utopia. A idéia é forte, veio para ficar. Nunca mais sairá do
imaginário do homem europeu, homem, “soi disant”, moderno
E, no entanto, tudo se reverte. A França, isolada, é incapaz de sustentar o novo regime, de
resistir a pressão dos vizinhos, ainda presos a antiga ordem. Restaura-se a monarquia, mas seu
poder já não é mais o mesmo. Pouco a pouco o poder do sangue, do nome, o privilégio hereditário,
vão passando o seu poder ao burguês, o dono do dinheiro. Pouco a pouco não é mais a posse da
terra, ou só ela, que dá poder. É a posse do capital que importa, é o dono do monopólio de comërcio,
o dono da fábrica, da banca, é aquele que pode influenciar na escolha do príncipe, agora tornado
popular. A realeza que volta, que permanece, não é mais a mesma. Não é mais absoluta, é constitucional, há dois outros poderes que se afirmam, como pregara Montesquieu, para recomendar as leis
ao Príncipe e para administrar a justiça em seu nome, ou em nome do povo.
A América, isolada pelos oceanos, mantém a república popular, conserva o sonho e quer
exportá-lo para o mundo. Democracia é a palavra de ordem da revolução americana, rastilho que
vai incendiar o mundo pelos próximos dois séculos. Incêndio necessário, pois que o mundo do
século XVIII é opressivo, injusto. Metade do mundo é colônia, sem liberdade, sem justiça, sem
direito ao progresso e ao livre arbítrio, sem soberania, situação que só mudará, pelo menos na
forma, em meados do século XX, depois do mais formidável conflito que o mundo jamais assistiu.
O século XVII é, ainda, o século do trabalho agrícola, um trabalhador labuta de sol a sol,
todos os dias para ganhar o seu sustento e o de sua família. Não ganha dinheiro, que a economia
ainda não é monetária. O trabalhador ainda não tem um emprego e o o real significado de salário
está por nascer, com a revolução industrial que, começando na Inglaterra vai se expandir pela
Europa continental, primeiro, e depois para a América e o mundo.
O progresso material trazido à Europa no bojo das revoluções industrial, científica e tecnológica
dos séculos XVII e XVIII não é suficiente para reduzir a desigualdade. É certo que a quantidade de
bens disponíveis a sociedade como um todo aumentou, e de muito. O que não quer dizer que todos
tenham igualmente acesso a tais benesses do progresso. A força do homem se multiplica com a
energia que tira primeiro da lenha, depois do carvão que ele põe a seu serviço através da máquina
a vapor, máquina que tira trabalho do homem mas que faz o produto mais perfeito, mais homogêneo com maior qualidade e em maior quantidade por unidade de tempo. Máquina que produz por
menor custo gerando um saldo de que o dono da máquina se apropria para fazer mais máquinas.
O século XIX é o século do triunfo da máquina, do surgimento da química, da eletricidade, do
motor de combustão interna, do medicamento sintético, da anestesia, da microbiologia, da produção por moldes, que sepulta o artífice, da obtenção de bens e produtos em larga escala, mas ainda
não é o século da felicidade, não é o século da igualdade e do aumento do lazer com dignidade, do
triunfo da utopia. A Europa já é rica mas não é justa e o Germinal, de Zola, é um retrato pungente
da desigualdade que ainda campeia.
No século XIX Marx postula que a posse dos meios de produção dentro do processo capitalista é que é a real causa da opressão e da desigualdade na sociedade humana. Estuda o homem e
sua organização, suas necessidades e as maneiras que historicamente usou para satisfazê-las, o
modo pelo qual se organizou para sobreviver no seio de uma natureza tantas vezes hostil e, encontra na desigual distribuição dos meios de produção a causa maior da injustiça. Encontra uma resposta mas não uma solução, que o processo capitalista é implacável e inteligente, muda com as
modas e muda as modas em seu benefício, atualiza-se, transforma-se, promove a mudança para
novamente mudar, permanecendo a essência como dantes, a concentração da riqueza em poucas
mãos, mãos responsáveis pela condução e manutenção do processo.
“Houve um tempo, como na Idade Média, em que somente o supérfluo, o excedente da produção sobre o consumo, era trocado.
Houve depois o tempo em que não apenas o supérfluo era trocado mas, todos os produtos,
toda a existência industrial, passaram ao domínio do comércio, quando o total da produção dependia da troca.
Chegará o tempo em que tudo aquilo que o homem considerava como inalienável tornar-seá objeto de troca, de tráfico ou será alienado.
Este será o tempo em que todas as coisas que haviam sido comunicadas, mas nunca trocadas;
dadas mas não vendidas, adquiridas mas não compradas – virtude, amor, convicção, conhecimento,
consciência, etc –quando tudo, em resumo, passará a ser comercializável.
Este será o tempo da corrupção geral, da venalidade universal…”(14)
Depois de Marx, e muito por causa de Marx, veio a última das grandes revoluções
político-libertárias, a revolução russa de1917. O inimigo visível ainda era o Czar, o absolutismo, a
opressão de um poder não consentido, injusto e açambarcador. Mas isto, como se viu, não passava
de uma fachada, o inimigo real era bem outro, sobreviveu, lutou e triunfou.
Se a modernidade política for entendida como o governo do povo e para o povo, com o
regime da liberdade, da fraternidade e da igualdade, da democracia ampla e irrestrita, o europeu
vive o século XX ainda perseguindo este ideal – a promessa da modernidade – sua utopia não é
alcançada.
O homem moderno é filho da razão, é cidadão do estado-nação, sonha com a liberdade,
igualdade, fraternidade. Encara a realidade com a certeza que lhe dá o conhecimeneto científico,
dispõe de um método para vasculhar as entranhas da natureza e descobrir-lhe os segredos. Dispõe
de um modo de produzir que só faz aumentar a quantidade de bens disponíveis.
O Despontar da crise
Em fins do século XIX, princípios do século XX, a certeza científica do homem moderno
começa a ser abalada. Heisenberg traz à tona a incerteza, Einsten a relatividade. A certeza não é
mais um critério absoluto dentro da ciência. O que se enxerga ou se mede é isto ou aquilo, é maior
ou menor, está parado ou em movimento, depende do observador, é relativo.
Quase simultâneamente, a razão não está mais só, não é só o consciente racional que governa
o comportaento humano. Freud abre as portas da mente para revelar o inconsciente. Entra e explora
o vestíbulo. Jung, mais afoito, quer mais. Vasculha a casa toda, penetra no quarto, abre armários,
gavetas. Vai a cozinha, a dispensa, fareja os hábitos daquele ser novo, quer conhecer-lhe os segredos. O inconsciente, mesmo, é inescrutável diretamente. Jung dedica a vida a estudar o comportamento humano para conhecer-lhe as manhas, desvendar sua estrutura. Tem a intuição de que ele é
uma ponte com o passado, com o coletivo do homem, que nele habita, não o ser passageiro que
nasce, cresce, aprende, fenece e morre. O aprender, o desvendar a realidade com os sentidos, vá lá,
é função do consciente. No inconsciente mora um homem mais velho, que carrega consigo a herança da humanidade inteira, desde que o mais velho desceu das árvores, ou antes até, e é este homem
mais velho que ele se desespera em conhecer, um homem de cinco mil anos. Para seguir-lhe a pista,
fugidia, nebulosa, percorre todos os registros da vivência humana, visita os mitos mais antigos,
estuda as religiões mais diversas, busca o conhecimento onde quer que ele esteja, desde os místicos
do mediterrâneo aos alquimistas medievais, desde a sabedoria do Oriente até a ciência do Ocidente.
Busca como cientista, sem se envolver, sem se deixar dominar. Seu objetivo é conhecer para curar,
médico, terapeuta que é. De início, é a doença mental que o excita, é a preocupação do médico que
o move. Depois isto já não basta, quer conhecer a mente por inteiro, pois quem pode fixar os limites
do insano?
Se não bastassem os abalos na certeza científica, na física, que deixa de ser Newtoniana, e na
razão, que não mais preside, absoluta, o comportamento humano, o homem moderno é envolvido
num processo acelerado de mudança que parece exceder sua capacidade de adaptação. A Europa, o
mundo é um turbilhão. O homem que fazia, a pé, uns bons vinte quilômetros por dia e multiplicava
um pouco esta distância se se valia do cavalo ou da carroça, delimitando assim o seu espaço, ao
final do século XIX começa a se aligeirar com o trem, o navio a vapor, o automóvel. Nas primeiras
décadas do século XX é o avião, depois o jato enfim o foguete. Se Júlio Verne diverte o mundo de
1870 com sua fantasia de dar a volta ao mundo em 80 dias, como se espantaria ele de ver satélites
rodando um mundo maior em apenas 80 minutos. O tempo do homem já não é o mesmo, como não
é o mesmo o seu espaço. O espaço do homem da modernidade do século XIX é ainda de algumas
léguas. O espaço do homem de hoje é o mundo todo, que ele alcança, pessoalmente, em 24 horas no
máximo.
O homem dos meados da modernidade se acostumou com a dimensão do metro, do kilômetro.
São grandezas espaciais que ele visualiza com facilidade. Hoje, tem que trabalhar com o Angstrom
e com o ano-luz. Seu espaço se ampliou, desceu ao super micro e subiu ao super macro. Se antes era
capaz de dialogar, manter contacto com dezenas de interlocutores, agora, na velocidade e amplitude das comunicações pode ter acesso ao produto das elucubrações de milhões e em tempo real. O
conhecimento se amplia de tal forma que não é mais possível abarcá-lo todo, a especialização se
alastra, é dominante.
Nunca, em época alguma, a capacidade do homem de produzir alcança níveis tão elevados e
ele se desepera, diante de tal abundância, de não haver chegado, ainda, o tempo da concórdia e da
paz. Ao contrário, nem mal tinha acabado a primeira década do século XX e a disputa por terras e
riquezas irrompe, em uma guerra de trinta anos, que envolve o mundo inteiro, arrasta não só exercitos
mas toda a população, com requintes de crueldade e de uma mortalidade sem par. Pela primeira vez
na história, populações civis, igrejas, monumentos artísticos são alvos de guerra. Neste enorme
genocídio se pensa, se fala, se tenta a eliminação de uma raça, ou de uma cultura, se quiserem.
O homem sai desta carnificina diferente e em um mundo diferente, que a guerra acelerou a
mudança. Agora ele domina o espaço, alcança a lua. Agora a tecnologia colocou em suas mãos a
arma suprema. O homem pode aniquilar a humanidade inteira e esta sensação de poder é horripilante. Mas ironia das ironias, a tecnologia está em vias de fazer com que o homem possa criar o
homem, que copiá-lo, cloná-lo, ele já pode.
Será este um homem já diferente do moderno? Já há elementos suficientes para carcterizar
um novo paradigma?
Que o homem moderno vem mudando o mundo com velocidade é certo. Que ele já
pense e viva em um novo paradigma é discutível. O europeu, o moderno, com as facilidades da
comunicação está deixando o seu casulo, conhecendo o mundo. Ele agora se vê, outra vez, diante
do oriental, tem que se confrontar com uma dialética de integração, um dualismo que não é excludente
mas complementar, e isto é novo. A segunda metade do século XX assiste ao homem moderno com
uma pletora de informações a respeito deste mundo diverso, o mundo do hinduísmo, do
confucionismo, do taoísmo, de uma outra sabedoria, de uma outra vivência, de uma outra
transcendência. Integração ou exclusão? O que resultará desta convivência que a tecnologia força,
reduzindo a distância, facilitando a comunicação?
Ë possível que um novo paradigma esteja em gestação mas o homem moderno é ainda racional, faz uso, predominantemente, de seu velho método cartesiano para investigar a natureza. Não
desdenha da intuição, reconhece a sua presença e seu valor mas o método de conhecer é ainda o
mesmo.
Seu processo de produção mudou de cara, mas não de essência. O capitalismo já não é mais
mercantil ou industrial, é financeiro. Já não trata ou se interessa apenas pela mercadoria com que
buscar o lucro. Sua mercadoria preferencial passou a ser o próprio dinheiro, a moeda em si, que ele
continua a perseguir, acumular, multiplicar. Apesar de tudo é ainda o mesmo velho processo, que a
alternativa que se ofereceu não teve força ou competência para substituí-lo.
O que é certo é que a utopia igualitária não se concretizou e esta é certamente uma angústia
permanente para o homem moderno. Para citar Rouanet
“O não cumprimento das promessas da modernidade é o combustível que alimenta a visão do
seu final e o início de uma era pós-moderna.”
Se tantos críticos e artistas perfeitamente inteligentes acham que estamos vivendo uma época
pós-moderna é porque querem distanciar-se de uma modernidade falida e desumana. O desejo da
ruptura leva à conclusão que essa ruptura já ocorreu…
A consciência pós-moderna é crepuscular, epigônica…Ela quer exorcizar uma modernidade
doente… Ela tem razão quando critica as deformações da modernidade, a administração crescente
da vida, a aplicação cega da ciência para fins destrutivos e um progresso econômico transformado
em seu próprio objetivo.”(16)
Habermas distingue duas modernidades, a cultural (ciência, moral, arte) e a social ( política ,
econômica) e duas posições pós-modernistas, a conservadora e a crítica.
A conservadora rejeita a modernidade cultural e defende a modernidade social.
A crítica rejeita ambas as vertentes da modernidade. A cultural por ter se tornado instrumento
de dominação e a social por ser o campo da opressão e da desigualdade.
A evolução e predominância do sistema capitalista de produção, tornada possível pela
modernidade científica, condicionou a modernidade sócio-política, transformou a escala de valores
do homem aproximando-o mais do material do que do transcendente. Num processo alucinante de
geração de informação colocou o homem sabedor do detalhe, aprisionou-o no campo do saber
especializado, afastando-o da visão do todo.
Ainda assim, o homem ocidental de nossos dias é incompleto, anseia por algo mais, não está
ainda satisfeito com o saber que acumulou, com o progresso que alcançou. O desejo, a visão da
utopia não estão extintos.
É provável que ao se perguntar a 5 diferentes pessoas o que entendem por pós-modernismo,
5 diferentes respostas sejam obtidas, algumas ligadas a arte e sua interpretação, outras ligadas a
maneira de enxergar e entender o real, outras ainda se referindo a linguagem ou ao conceito de
tempo. Finalmente, outras há que procuram justificar uma mudança fundamental na natureza da
psique humana.
Na esfera da arte, sobretudo da arquitetura, há uma tentativa de enquadrar como pósmoderno o diferente, o pastiche, aquilo que rompe com um padrão estético geralmente aceito. Há,
ainda, com Derrida, um ataque à possibilidade de uma visão única, uma interpretação única da arte,
da palavra, do texto. O descontrustivismo procura demonstrar que, freqüentemente, há mais de
uma leitura, por vezes conflitantes, de um mesmo texto. Chega mesmo a sugerir que é o leitor, e não
o autor, que dá significado ao texto e está visão seria pós-moderna. Haveria um pluralismo nos
textos, livros, pinturas, esculturas, antes considerados unitários. Haveria fragmentação é não unidade.
O homem do século vinte não percebe o mundo como um todo. Em lugar de contar as mesmas histórias e mitos repetidas vezes, como faziam as pessoas, no passado, as estórias de hoje são
contadas rapidamente e depois descartadas, não se repetem. Um filme dura uma ou duas horas;
estórias na televisão ainda menos, usualmente meia-hora, fragmentada pela inclusão de comerciais.
Desta forma, este mundo da alta tecnologia perde o seu sentido de continuidade. A única constante
parece ser a mudança.
Frederic Jameson argumenta que os artistas modernos insistiam em que suas obras tivessem
uma característica pessoal, única, como uma impressão digital. Isto significaria que a estética moderna estava indissoluvelmente ligada a um eu individual, uma identidade privada, uma visão única
do mundo. Com Freud e a divisão do eu, a visão única começa a se esfacelar dando oportunidade
a uma múltipla interpretação do texto.
Sendo assim, o pós modernismo refletiria não a morte do eu(Self), como já se sugeriu, mas a
mudança de um eu(Self) individual para um eu(Self) dividido, freudiano, junguiano. O moderno
percebe a identidade como una, indivisível, comunicando-se com outras individualidades, também
indivisíveis. A nova percepção de que o Self não seria apenas consciente mas também inconsciente
e, mais que isto, inconsciente individual e coletivo, seria uma ruptura fundamental com a
modernidade.
Uma outra visão que surge como indicativa da formação de um novo paradigma seria a noção
circular do tempo. O retorno a uma concepção cíclica do tempo é embasada na perplexidade de
cientistas que se ocupam da pesquisa universo e que encontram dificuldade em explicar certas
observações a partir de um tempo linear, o que tem fortes implicações na aceitação da explicação e
da narrativa históricas. Constructos científicos recentes parecem se suportar melhor em uma visão
pré-moderna, tribal, do tempo, uma visão cíclica.
Como os ocidentais, europeus e americanos, centram seus pensamentos e interesses em torno
de si mesmos como indivíduos, separados e indivisíveis, eles se vêem, e aos outros, progredindo do
berço ao túmulo numa direção linear irreversível, do começo ao fim. Para eles é difícil entender o
tempo cíclico. Ao contrário, para as pessoas que subordinam seus interesses a uma grande família
ou a uma experiência tribal, a família ou a tribo são o permanente, o nascimento de um indivíduo
compensa a morte de outro em um ciclo contínuo e a unidade mantém-se para sempre. Para estes é
difícil entender um tempo que não seja cíclico.
Uma outra característica de tempos recentes é o ressurgir de um interesse por religião e por
mitos. Percepções que se procura caracterizar como pós-modernas parecem querer se afastar da
racionalidade determinística cartesiana em direção a uma identidade pré-científica. Esta nova identidade, pluralista, procuraria significados no mito e não na história, na religião em lugar da ciência
e no tempo cíclico em lugar do tempo linear.
Apesar dos ventos da mudança e dos sinais da crise ainda parece cedo para pensar que já se
vive um novo paradigma.
A modernidade não é um projeto falido. É um projeto incompleto.
Ainda não há um paradigma pós moderno. Se falaria com mais propriedade de uma
modernidade tardia, em permanente mudança.
(*) Conferencista da Escola Superior de Guerra e Ex-Membro do Corpo Permanente
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAUDEL, F. – Gramática das civilizações – S. Paulo, Martins Fontes, 1989: 287.
TORJESEN, J. Karen – When women were priests – S. Francisco, Harper Collins, 1995
PIRENNE, Jacqus H. – Panorama da história universal – S.Paulo, EDUSP, 1973
BRAUDEL, op. cit.
DESCARTES, R. – Discurso do método- S.Paulo, Martins Fontes, 1989
SKINNER, Quentin- As Fundações do pensamento político moderno- S.Paulo, Cia das Letras
MORUS, Thomas – A Utopia- Brasília, Ed. Univ. de Brasília, 1992
idem
DAHRENDORF, R. – O conflito social moderno – S.Paulo, EDUSP,1988
LOCKE, apud VAN DOREN, C. – History of knowledge – New York, Ballantine Books, 1991
Idem
ROSSEAU, Jean J. – O contrato social – S.Paulo, Cultrix, 1965
Idem
MARX, Karl – A miséria da filosofia - 1847
ROUANET, S.P – As razões do Iluminismo – S. Paulo, Companhia das Letras,1987
ORGANIZAÇÕES QUE APRENDEM
O CAMINHO SEGURO
Jorge Calvário dos Santos (*)
O melhor e mais profíqüo investimento é o aprendizado.
Introdução
Uma das características do mundo contemporâneo é a velocidade e profundidade com que as
mudanças ocorrem. Isso é um grande desafio e também fonte de sérias preocupações. Valores,
conceitos e padrões oriundos do momento histórico iniciado com a Revolução Industrial, não mais
conseguem atender as necessidades das organizações. Para Hobsbawm, o momento histórico atual
indica possibilidades de mudanças que exigem novas formas de compreensão do significado dos
fatos e das coisas. Entretanto, faz-se necessário que conceitos antigos sejam revistos e entendidos
sob uma dimensão mais adequada ao atual momento histórico.
As organizações para atenderem adequadamente as necessidades do mundo atual, necessitam
de nova configuração, pois só assim terão melhores condições de sobreviverem como tal. Uma
nova configuração é fundamental para que as organizações possam interagir, relacionarem-se com
outras e, adquirirem condições de sobrevivência.
É importante lembrar, que as modalidades de contato no relacionamento entre os homens,
entre as organizações, assim como entre as nações, são três: cooperação, competição e conflito,
assim definidas:
- Cooperação – Quando dois ou mais homens, empresas ou nações se unem em busca dos mesmos objetivos;
- Competição – Quando dois ou mais homens, empresas ou nações buscam os mesmos objetivos,
preservando nessa busca algumas regras previamente acordadas;
- Conflito – Quando dois ou mais homens, empresas ou nações buscam os mesmos objetivos, não
se prendendo a nenhuma regra previamente acordada.
O que faz a mediação entre as formas de contato é a estratégia. Esta é a questão fundamental,
pois aqui cabe perguntar: quem é que define a estratégia? Certamente, no mundo político, não é
qualquer Estado Nacional que define a política e muito menos a estratégia, mas aquele que detém
significativo poder nacional. No mundo empresarial ocorre o mesmo. Não é uma simples empresa
que define a estratégia. Constata-se que as empresas mais poderosas, as grandes corporações ou
grandes oligopólios, sempre definirão a estratégia. Logo, determinarão a forma de relacionamento
que lhe seja mais favorável, ou seja, a competição, que na verdade esconde o conflito, pois não há
regras acordadas pelas partes envolvidas na interação.
Em nome da competitividade, da competição (considerando sua definição), da modernidade,
da produtividade (considerando seu verdadeiro significado), da Globalização, de uma nova era, de
uma atividade incessante, a servidão termina por transformar-se em uma nova e efêmera liberdade
que acaba em servidão, quem sabe, perpétua. Ainda que o sonho esperado da modernidade seja,
dentre outros, a emancipação social, a autodeterminação do homem, maior autonomia, o que acontece é a asfixia do homem, do ser ontológico. Isso, de fato é a aceitação voluntária ou induzida de
um sofrimento, do fim da esperança e da impossibilidade da felicidade, o fim do homem, do ser
humano.
A competição, tal como ocorre neste final de século, considerando a sua definição, termina
por converter-se numa competição totalitária, tendo como objetivo o poder, a riqueza, o domínio
sobre as crenças dos homens, mas, como diz Bertrand Russell, acima de tudo, a própria vida, que
pode levar por conseqüência a definição sobre o futuro das organizações e das nações em desenvolvimento. Tudo isso leva à incerteza que caracteriza o mundo desse final de século.
Mas, nesse panorama, em que as organizações que terão condições de competir no meio
empresarial, são as organizações que aprendem, as que se propõem a instituir Times de Aprendizagem. Os Times de Aprendizagem, são coesos, possuem objetivo comum e seus membros, cooperam entre si e com a organização, de modo a criar condições de sobrevivência e aumentar a capacidade competitiva da organização e, assim viabilizar melhores condições e esperança quanto ao
futuro.
Um dos componentes de nova configuração é o conceito de “Core Competence”, surgido em
1990, na “Harvard Business Review”, em artigo intitulado “The Core Competence of the
Corporation”, de autoria de Gary Hamel e C. K. Prahalad. “Core Competence” designa as competências estratégicas, únicas e distintivas de uma organização. Poderá ser, por exemplo, um conhecimento técnico ou uma tecnologia específica que é suscetível de oferecer um valor único para os
clientes e que distingue a empresa de suas concorrentes. Para os autores, poucas companhias poderão ser líderes mundiais, em mais de cinco ou seis competências estratégicas.
As organizações, no novo conceito, devem ter uma configuração que se aproxime da figura 1,
pois essa configuração dará condições básicas à organização, de preparar-se para o ambiente incerto e competitivo. Isto porque, a nova configuração propõe que a organização considere, sua cultura,
a visão prospectiva e a estrutura adequada ao ambiente em que a organização funciona, como
entidades fundamentais ao seu funcionamento harmônico e adequado ao ambiente externo. O núcleo da organização deve ter como base para todo e qualquer planejamento, a definição de sua
política, o poder que necessita ter para implementar sua política e a estratégia adequada para colocar os meios necessários para atingir o objetivo definido pela política.
Cultura, refere-se aos valores, crenças, práticas, ritos e costumes de uma organização e constituem uma tradição. Na organização que aprende, a cultura corporativa, é reconhecida como o
ponto crítico para o sucesso, onde o aprendizado torna-se hábito e parte integrante do processo
funcional. Tal como os indivíduos, as organizações são o que é sua cultura.
Visão prospectiva, antecipa objetivos e direção para o futuro. É a imagem da organização que
é transmitida interna e externamente. Mostra o futuro desejado pela organização de modo a motivar
e induzir à criação.
Estrutura, inclui departamentos, divisões, níveis e configurações da instituição. A organização que aprende, maximiza os contatos, fluxos de informações, responsabilidades e colaboração
interna e externa.
Configuração Organizacional
Visão
Prospectiva
Política
Meios
Estrutura
Conhecimento
Cultura
Fig. 1
Dois novos e importantes componentes da nova configuração organizacional, são a organização que aprende e o time de aprendizagem, num ambiente em que pode este ser a imagem daquela.
Isso porque, sendo a organização um sistema, o time será um sub-sistema, que pode ser a identidade do sistema organização.
O aprendizado, neste início de século XXI e, daqui para frente, deve ser continuado e permanente. No aprendizado permanente, está o grande valor dos Times de Aprendizagem. Com as disciplinas preconizadas por Senge a possibilidade de não ser surpreendido pelos fatos, principalmente
os óbices no futuro, ou de minimizar os efeitos negativos, dentro de um universo particular, tornase viável. Este texto, sugere, que a Escola Superior de Guerra, adote ou ao menos tome conhecimento do que é e o que pode representar uma organização que aprende e times de aprendizagem.
Organizações que Aprendem (“learning organization”)
Criado por Chris Argyris, professor em Harvard, designa por “learning organizations” (organizações que aprendem) as empresas que aprendem à medida que os seus profissionais vão ganhando novos conhecimentos. O conceito é baseado na idéia de Argyris, chamada “double-loop learning”
(quando os erros são corrigidos através da alteração das normas empresariais que o causaram). Em
1990, Peter Senge, professor do MIT, popularizou o conceito através do conhecido livro “The Fifht
Discipline – The Art and Pratice of a Learning Organization”. Senge define organizações que aprendem, como sendo “aquelas nas quais as pessoas aprimoram continuamente suas capacidades para
criar o futuro que realmente gostariam de ver surgir”. Garvin, apresenta a seguinte definição: “Organização que aprende é uma entidade com habilidades para criar, adquirir e transferir conhecimento e, ainda, modificar seu próprio comportamento para refletir novos conhecimentos e descobertas” (Corrêa, 1998). Organização que aprende significa incrementar Times de Aprendizagem.
Quando se analisa a organização que aprende, é fundamental a definição do foco em “o que”,
ou seja: o que é a organização e qual o seu objetivo. Descreve-se os sistemas, princípios e características da organização que aprende e produz como uma entidade coletiva.
Para Peddler as organizações que aprendem tem as seguintes características: a) apresenta um
clima em que os membros são estimulados a aprenderem e desenvolverem todo o seu potencial; b)
estrutura as suas ações em torno de uma cultura de aprendizagem envolvendo todo o espectro de
clientes de fornecedores e outros grupos de interesses; c) torna a estratégia de desenvolvimento de
recursos humanos o centro das suas políticas de atividades; d) passa continuamente por um processo de transformação organizacional. Peddler explicita como elemento fundamental o desenvolvimento de uma cultura de aprendizagem, que torna possível a continuidade do processo sem que
haja traumas (Peddler, 1989).
Para que uma organização seja mais eficiente, que tenha condições de superar os óbices
existentes, faz-se necessário pensar novas maneiras de administrar, novos valores e conceitos que
sejam adequados às organizações nos dias atuais, caracterizado pela incerteza, turbulência, velocidade e competição.
Faz-se necessário ter uma organização capaz de lidar com os complexos problemas atuais, de
aproveitar as oportunidades que conduzam à um futuro melhor, que possibilite aos seus membros
condições de criar teorias, técnicas, instrumentos, novos conhecimentos, assimilar novos paradigmas
ou seja, capaz de manter-se atualizada, acompanhando as mudanças ou mesmo estar um pouco a
frente dos fatos. Esta organização é a organização que aprende ou como a denominou Senge: “learning
organization”.
Novos paradigmas são necessários. Os valores que compõem a estrutura do novo paradigma
ainda estão sendo construídos. Não se dispõe de um modelo cuja estrutura e contornos sejam definidos. Por essa razão, principalmente, faz-se necessário refletir sobre o paradigma individual e o
paradigma da organização.
Sendo as organizações movidas por indivíduos e sendo o homem seu maior patrimônio, devem ter como objetivo o aprendizado consciente, criativo a nível individual, coletivo e institucional.
Para isso torna-se importante o uso de técnicas modernas e eficazes que sejam adequadas ao novo
ambiente.
Creio não existir um modelo que seja solução perfeita para a questão. Entretanto, os indivíduos que compõem a organização, devem incorporar o hábito de refletir sobre seu paradigma mental.
No novo contexto, o paradigma mental do indivíduo é fundamental para o progresso e o sucesso da
organização.
Uma organização não é apenas um conjunto de bens e serviços. É também um grupo social
que tem tradição e cultura própria, que tem origem e fundamentos na cultura da sociedade em que
está localizada.
Ainda que, cada organização tenha tradição e cultura específica, as organizações que atuam
na mesma área de atividade, possuem características culturais semelhantes. Entretanto, as organizações nacionais, ou seja, as que são criadas e desenvolvidas pelos nacionais, tem sua cultura
fortemente vinculada à cultura nacional.
Nesse início de século XXI, naquilo que se refere às organizações empresariais, constata-se
um ambiente competitivo, desafiador e incerto quanto ao futuro. Nesse quadro, as técnicas e práticas gerenciais, até então existentes, tornam-se inadequadas. A estrutura organizacional, a política e
a estratégia das organizações devem adequar-se aos novos tempos. As organizações devem tornarse mais ágeis, dinâmicas, flexíveis e voltadas ao cliente porém, sempre atentas quanto ao futuro. O
foco no cliente ou usuário, requer e conduz a um modelo cultural que apoie essa transferência de
valor.
Nesse novo contexto, o conhecimento é fundamental e indispensável. Por essa razão, a capacidade das organizações de promover e manter um continuado processo de renovação do conhecimento é fundamental para adquirir melhor capacitação e importantes vantagens competitivas para
o futuro próximo.
Renovar conhecimento significa aprender, mantendo um continuado processo de aprendizagem. Desenvolver um apren-dizado organizacional significa recriar a empresa num processo
ininterrupto de auto-renovação e aperfeiçoamento pessoal e organizacional envolvendo todos e
toda a instituição.
Para que o sistema funcione adequadamente, é necessário que os indivíduos tenham uma
visão comum, abrangente da organização e de sua missão, pois só assim poderão ter consciência do
que é importante para o melhor desempenho da organização. Cada indivíduo deve sentir-se como
parte importante da organização e como tal sentir-se comprometido com a sua instituição.
Pelo fato de exercer algum tipo de influência sobre as diretrizes de seu trabalho, o indivíduo
ganha estímulo para o desempenho de suas atividades. A descentralização e a delegação de poder e
responsabilidade possibilita aos tomadores de decisão, maior autonomia e consequentemente mais
liberdade de ação, o que traz velocidade aos processos inerentes à organização.
Uma organização que aprende onde os indivíduos sentem-se como colaboradores ou membros prestigiados, tem as condições para adquirir melhor performance, vantagens competitivas;
criar equipes dinâmicas; ter diálogo e abertura; e facilidade para sugerir e gerir mudanças.
As organizações que desenvolvem estruturas e estratégias visando a dinamização e aumento
do potencial de aprendizagem, têm sido denominadas de organizações que aprendem. Tudo indica
que apenas as organizações que aprendem terão condições de sobreviver no início do próximo
século.
Aprendizado Organizacional (“organizational learning”)
Quando se discute aprendizado organizacional, define-se o foco em “como” o aprendizado
organizacional acontece, os instrumentos, metodologias, processos de construção e utilização do
conhecimento.
O sentido maior da aprendizagem está em tornar os indivíduos mais capazes de desenvolverem novas habilidades, de ter nova visão de mundo e, principalmente possibilidades e condições de
criar.
O aprendizado organizacional ocorre quando as organizações são capazes de modificar seus
próprios padrões de atividade com o objetivo de reagir e, especialmente anteciparem-se às necessidades de mudanças.
De modo geral as organizações praticam alguma forma de aprendizado. Normalmente, as
formas mais freqüentes destinam-se à execução de trabalhos, via de regra de caráter individual. No
novo contexto, as organizações que pretendem ter alguma garantia quanto ao futuro, passam a
caracterizar-se como organizações de aprendizagem. Nessas organizações, os indivíduos estão constante-mente envolvidos num contínuo processo de aprendizagem. Isso possibilita aos indivíduos a
expandirem continuadamente suas capacidades de melhor desenvolverem suas idéias, e identificar
novos padrões de raciocínio. Assim, a organização terá melhores condições de permanecer ativa no
novo contexto.
Entretanto, para que isso se torne realidade, faz-se necessário que certos temas, voltados para
a organização de aprendizagem, sejam de conhecimento e mesmo, de domínio da instituição.
A história dos estudos sobre aprendizagem organizacional está ligada a uma série de disciplinas acadêmicas que procuraram estudar este fenômeno organizacional. No mundo competitivo em
que vivem as organizações e, principalmente o mundo futuro próximo, a relação entre aprendizagem e a capacidade competitiva fortalece-se cada vez mais. Num mundo em que a incerteza é a
única certeza, entende-se que a forma segura de que as organizações desenvolvam sua capacidade
competitiva é através do conhecimento. No que se refere a política e estratégia das empresas, a
aprendizagem tem fundamental e central função na capacidade dinâmica da organização.
A aprendizagem tem função estratégica na promoção da eficiência inovadora. A inovação e a
aprendizagem possuem um forte relacionamento biunívoco que determina a existência de um processo contínuo. A teoria das organizações e da psicologia, procura compreender a natureza e a
dinâmica da aprendizagem nas organizações. Num esforço dedicado ao entendimento do assunto,
Dogson, dentre outros, assim se manifesta:
Afirma Dogson, que “a aprendizagem é a forma que as organizações constróem, suplementam,
mantém e organizam o conhecimento e rotinas em torno de suas atividades, de suas culturas, bem
como adapta e desenvolve a eficiência para melhorar o uso das aptidões e habilidades da sua força
de trabalho” (Dogson, 1993).
A aprendizagem nas organizações, de acordo com Crossan, ocorre em três níveis: individual,
grupo e organização. Cada uma dessas ocorrências se estrutura através de quatro processos: intuição, interpretação, integração e institucionalização, tal como apresentado no quadro abaixo (Fig 2)
Quando uma organização aprende, significa que o processo de aprendizagem efetiva-se no
indivíduo. Entretanto, não é possível compreender a organização que aprende focalizando apenas o
indivíduo. É fundamental analisar a cultura organizacional e a interação social necessária ao processo de aprendizagem. Em síntese, para compreender o processo de aprendizagem nas organizações é relevante apreender o processo através do qual os grupos aprendem e como os esquemas de
significados individuais são interpretados e integrados ao estruturar uma orientação compartilhada
traduzida pela missão e estratégia organizacional. (Crossan, 1995)
Nível
Processo
Intuição
Resultados
Experiências
Imagens
Metáforas
Indivíduo
Interpretação
Linguagem
Mapa conceitual
Conversação/Diálogo
Grupo
Integração
Organização
Compreensão compartilhada
Ajustamentos mútuos
Sistemas interativos
Rotinas
Institucionalização Sistemas de diagnóstico
Regras e procedimentos
Fig. 2 Fonte: Crossan et all
Ainda que o processo de aprendizagem efetive-se no indivíduo, não é possível aceitar a idéia
de que a eficácia seja individual. Faz-se necessário que seja incentivado, como condição para a
eficácia organizacional, a aprendizagem e o trabalho em grupos ou times. Times de trabalho devem
ser capazes de criar e fixar o aprendizado. Times de aprendizado podem e devem trabalhar sempre
que um grupo de pessoas pensem juntos, seja para uma curta reunião, para um rápido projeto ou
para um longo projeto.
Na essência do time de aprendizado está o conceito de alinhamento, do compartilhamento o
objetivo comum, em oposição ao conceito de acordo. Alinhamento ou compartilhamento do mesmo objetivo, significa melhorar a capacidade da equipe em pensar e agir sinergicamente, de modo
coordenado e com forte sentimento de unidade. No desenvolvimento dos trabalhos, o
compartilhamento ou o alinhamento vai se fortalecendo, e as pessoas não mais escondem suas
críticas, pois a equipe é capaz de os utilizar para construir um sentido coletivo maior e mais rico do
universo em que atuam. A organização passa a funcionar com mais harmonia e eficiência. Marquadt
diz que uma maneira de mostrar a diferença entre o aprendizado individual, de grupo e o aprendizado organizacional, é considerar a performance da organização, tal como uma orquestra sinfônica. A
performance de uma orquestra sinfônica não pode ser atribuída aos indivíduos isoladamente ou
mesmo à soma do conhecimento de todos os indivíduos. É o resultado do conhecimento de todo o
grupo, considerando o grupo como um unidade trabalhando uníssona. (Marquadt, 1996)
Times de Aprendizagem
A expressão Time de Aprendizagem refere-se a habilidade de transformar idéias coletivas e
conversacionais, que grupos de pessoas pode desenvolver com inteligência e habilidade maior que
a soma dos talentos individuais dos membros do grupo.
É importante lembrar dos times de trabalho autodirigidos, “self management teams”. Estes,
são compostos por um pequeno número de pessoas que tem a responsabilidade por um processo
operacional e os seus resultados. Eles têm os meios para resolver problemas relativos à execução
do trabalho e gerem a divisão e o planejamento das tarefas do grupo. Foi um conceito na moda nos
anos 70, mas cujo entusiasmo decresceu na última década, visto que os resultados da aplicação nem
sempre foram os desejados. Hoje tem novamente mais adeptos, devido à crescente qualificação dos
recursos humanos. De fato, essas propostas tem como objetivo materializar um único propósito:
criar vínculos que associem o desenvolvimento da organização, com o progresso de cada um dos
indivíduos dela pertencentes.
Apenas as organizações que aprendem terão melhores condições de sobreviver como tal. O
que distinguirá as organizações de aprendizagem, das tradicionais, nos parece ser a incorporação
do conceito de Times de Aprendizagem. A verdadeira organização de aprendizagem é, de fato um
Time de Aprendizagem. A incorporação do conceito implica no domínio do que podemos denominar como “as seis disciplinas”, que caracteriza uma ampliação com relação à tese apresentada por
Senge.
Os Times de Aprendizagem possuem características especiais e próprias, do grupo e de seus
membros. O Time é composto de indivíduos que tem atitudes, valores e perfis variados. Por tal
razão, o trabalho em grupo requer, durante o tempo inicial, esforço e paciência. O principal segredo
do bom desempenho do grupo está em todos entenderem que são parte de uma equipe e que o
objetivo maior é o compromisso com o grupo. A confiança mútua é fundamental, pois que só assim
todos poderão ter comportamento coerente e trocarem, sem receio, suas opiniões. Mesmo com suas
diferenças, as contribuições são respeitadas e assim é estabelecido um engajamento da equipe.
Senge afirma que, se o ponto de partida para se tornar uma “learning organization” está no
engajamento de todos os membros da organização, o passo seguinte é incorporar as cinco disciplinas de aprendizagem, no nosso caso, as seis disciplinas.
As Seis Disciplinas
As seis disciplinas são uma preciosa ajuda para que o líder ganhe novas competências que lhe
são exigidas. Primeiro, o líder tem de saber qual o rumo que deve tomar, saber para onde caminha
(um líder sem rumo reflete-se numa empresa perdida) – domínio pessoal; para compreender os
outros e manter-se aberto a influências tem de balancear reflexão com inquirição – modelos mentais; depois, deve defender as idéias que considera importantes, mas sempre mantendo-se aberto às
perspectivas de outros - objetivo comum; o trabalho e aprendizagem em equipe - aprendizagem em
grupo; para aplicar, na empresa, o conhecimento gerado por esta compreensão, precisa saber as
interrelações e forças existentes – enfoque sistêmico; para minimizar as incertezas e ter uma visão
do que pode ocorrer utiliza as – técnicas qualitativas de previsão; que por fim será a base de um
grupo que desenvolverá um trabalho de excelente qualidade em benefício da organização.
Essas disciplinas são programas permanentes de estudo e prática que levam ao aprendizado
organizacional e continuam as mesmas, porque o que importa é adquirir as capacidades fundamentais para a organização.
Domínio Pessoal
Aprender como expandir a capacidade pessoal para criar os resultados desejados, e criar um
ambiente organizacional, que motive todos os membros a desenvolverem-se em função do rumo e
objetivos de sua escolha.
Através do conhecimento adquirido, as pessoas adquirem melhores condições de clarificar e
aprofundar seus próprios objetivos, a não dispersar esforços e a entender a realidade de uma forma
objetiva. É o espírito da organização de aprendizagem, ou seja, as organizações aprendem através
dos indivíduos.
O domínio pessoal transcende a habilidade e a competência. Ele se refere ao compromisso
com o verdadeiro significado do trabalho criativo, com uma contínua vontade de aperfeiçoamento.
Quando o domínio pessoal incorpora-se ao indivíduo, ele possibilita o discernimento daquilo que é
importante e a verificar (interpretar) a realidade pragmaticamente. Entender objetivamente a realidade presente é uma das tarefas mais difíceis desta disciplina. O domínio pessoal possibilita ao
indivíduo a entender o mundo tal como ele é, mesmo que isso crie algum desconforto ou insegurança.
A essência do domínio pessoal está em aprender a manter, de modo permanente, a capacidade criativa mesmo num ambiente de incerteza.
Indivíduos com elevado grau de domínio pessoal caracterizam-se por um nível de proficiência de sua vida profissional ou pessoal. Tais indivíduos apresentam algumas características comuns. Eles tem um propósito especial de vida: aprendem a trabalhar com a realidade procurando
forças favoráveis ao invés de tratá-la como inimiga. São inquisitivos: procuram analisar a realidade, e portam-se como parte de um processo criativo maior, no qual podem influir. Tem preocupação
permanente com o aprendizado contínuo.
Entendemos que o desenvolvimento das organizações depende de seus membros. Por essa
razão, as organizações devem promover um ambiente em que os indivíduos possam, sem restrições, libertar seu espírito criativo, aprofundar o compromisso com a verdade e que o desafio ao
“status quo” seja um comportamento permanente.
Modelos Mentais
Refletir, analisar, esclarecer continuamente e melhorar a imagem que cada um tem do mundo, a fim de verificar como moldar atos e decisões dos indivíduos.
São idéias profundamente enraizadas, generalizações e imagens de mundo que influenciam o
modo como as pessoas entendem o mundo.
Não é possível negar que o que determina o sucesso ou o fracasso das organizações são as
pessoas. Isso, porque os modelos mentais das pessoas possuem características que produzem idéias
que conduzem para determinados rumos, sem que tenham condições, ou mesmo predisposição
para analisar ou identificar outros rumos que possam trazer melhores benefícios. Os modelos mentais podem distorcer a visão que cada indivíduo tem da realidade. Logo, é possível que diferentes
pessoas tenham diferentes visões da mesma realidade. Consequentemente, as ações podem ser
influenciadas pelas diferentes visões.
Modelos mentais são ativos, logo influenciam a maneira de ver e modelam a maneira de agir
das pessoas. Pessoas com diferentes modelos mentais, certamente terão visões diferenciadas do
mesmo acontecimento. Entretanto, observaram melhor e identificaram mais detalhes quando em
conjunto.
Modelos mentais são simplificações, não são certos ou errados. Quando são tácitos, localizados abaixo do nível consciente, não podem ser examinados, logo não podem ser mudados. Isso
torna-se grave a medida que o mundo se transforma tais modelos distanciam-se da realidade, o que
acarreta resultados inadequados ou contraproducentes.
Modelos mentais podem tornar o aprendizado difícil ou mesmo impossível. Podem também
otimizar o aprendizado através do treinamento e da prática de algumas técnicas básicas de reflexão
e análise dos modelos mentais. Tais técnicas são individuais e abrangem as questões profissionais
e as de relacionamento.
A disciplina dos modelos mentais, objetiva reeducar as pessoas de modo que tenham melhores condições de adquirir um aprendizado genuíno e não apenas reforçar idéias ou opiniões já
anteriormente fixadas.
Uma das mais importantes e eficientes formas de aprendizado é através da reflexão sobre os
atos praticados ou observados. A reflexão possibilita um bom entendimento entre a ação e os resultados.
Numa organização, o desenvolvimento da capacidade de trabalhar com modelos mentais, é
necessário o aprendizado de novas técnicas e implementação de inovações institucionais.
A análise e o esclarecimento dos modelos mentais mais importantes sobre a administração,
formadas pelos administradores, a identificação de contradições internas nesses modelos e, a criação de estratégias baseadas em novos modelos, é a atividade básica numa organização. Em seguida,
o desenvolvimento de novas técnicas de aprendizagem, de reflexão e de análise, tornam-se fundamentais.
Devem ser efetuadas análise e teste dos diferentes modelos mentais. É importante que na
análise dos modelos, quando do funcionamento do processo, eles levem ao consenso, pois as idéias
expostas são respeitadas.
Senge afirma que muitas abordagens que produziriam melhores resultados nunca chegam a
ser difundidas e adotadas. Isso se deve aos modelos mentais. Mais especificamente, novas idéias
deixam de ser postas em prática por serem conflitantes com imagens internas profundamente arraigadas de como o mundo funciona , imagens que limitam as maneiras habituais de pensar e agir. Por
isso é necessário administrar modelos mentais: trazer à superfície, testar e melhorar nossas imagens
internas do mundo, fator esse que promete ser de grande importância na formação de organizações
de aprendizagem (Senge. 1990).
Objetivo Comum
Construção de senso de compromisso, de engajamento do grupo em relação ao futuro que se
procura criar e, pela criatividade, elaborar os princípios e as diretrizes que permitirão alcançar esse
futuro.
Uma boa idéia não é necessariamente um objetivo comum. Mas dela ele pode surgir. Quando
ele passa a atrair algumas pessoas, deixa de ser uma abstração, e torna-se concreto. Um objetivo
comum além de unir, tem significativa forças nas relações humanas. Numa organização, o objetivo
comum, cria forte sentimento de coletividade, o que possibilita harmonia e vigor necessários às
atividades e mostra o comprometimento dos indivíduos com a organização, pois sentem-se partícipes.
O indivíduo, quando comprometido com a organização sente-se responsável, assume responsabilidades e riscos necessários no caminho ao objetivo comum.
O objetivo comum muda a relação das pessoas entre si e com a organização. Gera novas
maneiras de pensar e agir. As pessoas passam a interagir com mais vontade, expõem suas idéias,
aceitam novas idéias e agem em função do novo rumo, o que é indispensável ao aprendizado
organizacional.
Por proporcionar a direção e a disposição para o aprendizado, o objetivo comum torna-se
vital para a organização de aprendizagem.
Aprendizagem em Grupo
Transforma as aptidões e idéias coletivas, ligadas ao pensamento e comunicação, de modo
que grupos de pessoas possam desenvolver inteligência e capacidades maiores do que a soma dos
talentos individuais. O time é maior que a soma das partes.
A implementação do aprendizado em grupo é importante para uma organização. Traz harmonia e evita perda de energia por parte dos indivíduos. O benefício é expressivo, pois o todo (grupo)
é maior que a soma das partes (indivíduo).
As bases para o aprendizado em grupo são o objetivo comum e o domínio pessoal. É o processo de desenvolvimento da capacitação do grupo para possibilitar a criação daquilo que os membros desejam.
O aprendizado em grupo exige a prática do diálogo e da discussão por parte dos membros. No
diálogo cada um escuta as diferentes idéias sem manifestar-se. Na discussão diferentes opiniões
são apresentadas e defendidas, procurando identificar a melhor idéia para apoiar decisões que devam ser tomadas na oportunidade. Times de aprendizado são mais rápidos e efetivos que aprendizado individual.
A dialética possibilita a exploração livre e criativa de questões complexas e delicadas. As
pessoas passam a ser observadoras de seu próprio pensamento e a analisá-lo. Passam a reconhecer
e a aceitar a incoerência. Possibilita, também, a percepção da natureza coletiva do raciocínio. As
idéias que normalmente são efetivadas são oriundas de um grupo de idéias elaboradas em grupo e
culturalmente aceitáveis. O aprendizado individual e coletivo é fundamental para a realização do
potencial da inteligência humana. Apenas com o aprendizado o indivíduo, a coletividade e por
extensão as instituições podem Ter condições de evoluir, em termos pessoais e institucionais.
Quinta Disciplina
Uma maneira de analisar e uma linguagem para descrever e compreender, as forças e
interrelações que formam o comporta-mento dos sistemas. Esta disciplina possibilita na percepção
e na otimização ou melhoria dos sistemas, mais eficazmente, e como a organização deve comporta-
se com relação aos processos do mundo natural e econômico.
Enfoque sistêmico é disciplina que conduz a mudança de mentalidade, possibilita ver o mundo por uma vertente diferente, a ter visão holística, identificar e descrever as inter-relações entre os
elementos do sistema, e processos de mudança. Esta disciplina é a integração das anteriores. Isso
faz-se necessário pois que cada uma das quatro por si, é pouco eficaz e capaz. A integração, como
afirma Corrêa, é a força do processo. (Corrêa, 1998)
O enfoque, o raciocínio sistêmico, possibilita formar padrões de mudanças e a evitar mudanças instantâneas. A visão sistêmica possibilita a visão do todo sem perder a visão das partes. Vê a
parte como módulo ativo no processo total, identificando sua função. Cada uma das partes, cada
elemento pode influir em outro de modo a promover o crescimento, o declínio ou a estabilidade do
sistema total. Assim é possível integrar as disciplinas de aprendizagem quando elas são postas em
prática.
Uma das vantagens desta disciplina é a possibilidade de ser aplicada tanto horizontalmente
como verticalmente e mesmo diagonalmente, se assim se pode dizer, contrastando com as tradicionais abordagens rigidamente verticais.
Sexta Disciplina ou Técnicas Qualitativas de Previsão
Em 1990, ocasião do lançamento do livro A Quinta Disciplina - A arte e prática da organização de aprendizagem, Peter Senge, admitia o aparecimento de uma sexta disciplina. Isso, porque
Senge acreditava que as organizações que aprendem podem ter o seu desenvolvimento otimizado,
por inovações que pudessem surgir no futuro. Uma nova disciplina surgiu: a “Sexta Disciplina”, ou
seja, as Técnicas Qualitativas de Previsão. Sugiro esta disciplina, para completar e validar a teoria
de Senge. Ela possibilita uma visão prospectiva através de simulação de cenários, o que permite
antever, com boa margem de acerto, a adequação de decisões.
A velocidade da mudança obriga os gestores a encarar uma dura realidade: é cada vez mais
difícil (senão impossível) prever ou antever as possibilidades de ocorrências no meio envolvente a
longo ou principalmente a médio prazo. Peter Schwartz populari-zou a técnica que permite resolver
o problema: a simulação de cenários alternativos, uma das várias técnicas qualitativas de previsão.
Através dela, a Shell foi a única empresa do setor preparada para a crise do petróleo de 1973. Os
cenários não são previsões, são técnicas de auxílio ao planejamento. Construídos a partir da geração de hipóteses alternativas sobre o futuro, permitem às empresas estarem preparadas para a ocorrência de cada uma dessas hipóteses e exercitam os gestores a refletir sobre as estratégias de longo
prazo.
No que diz respeito à times de aprendizado, as técnicas qualitativas de previsão, possibilitam
a “busca antecipada de caminhos possíveis para obstáculos que apareçam na trajetória da organização” (Corrêa, 1998).
Corrêa apresenta o assunto e diz que existem ferramentas que servem como base ao espírito
da proposta da Sexta Disciplina. Tal ferramenta é a programação gráfica do processo de decisão
(PDGP). No processo de planejamento de alternativas, faz-se necessário “prever um desvio para
quando um possível óbice se concretiza”. É preciso criar sensores que tenham a função de alertar
das dificuldades sempre antecipadamente. A questão fundamental é antecipar. De fato a antecipação é fundamental. Isso porque as hipóteses possíveis do que o futuro pode oferecer, devem ser
emolduradas com os aspectos fundamentais da realidade e também, como precursoras de um caminho, evento ou alerta quanto ao futuro. O futuro pode deixar de ser algo totalmente desconhecido e
por isso é possível, de certa forma, influenciá-lo, fazendo com que possa conduzir o destino, ainda
que com restrições. A esse respeito, Gaston Berger afirma que: “Se o futuro depende de tudo o que
existe no presente e da maneira pela qual nós estamos situados neste presente, ou seja, do que nós
podemos - ele também depende do que nós queremos”, ou seja, querer determinar ou influir o que
for possível com relação ao futuro.
Não apenas a técnica de simulação de cenários, mas todas as técnicas qualitativas de previsão
devem ser utilizadas pelas instituições, adequando cada uma delas às necessidades. Inúmeras são
as técnicas conhecidas e testadas.
Corrêa em seu livro, apresenta a metodologia e ferramentas para o desenvolvimento de times,
o que é fundamental (Corrêa. 1998). A esse respeito, dois conceitos, que creio serem de extrema
importância na utilização das cinco ou seis disciplinas, devem estar sempre presentes: Fator Exógeno
e Fato Portador de Futuro.
Fator Exógeno: É aquele fato que ocorre ou que se situa fora do sistema em que se estuda o
tema, estratégico ou tático, mas que poderá causar-lhe, de alguma forma, algum tipo de impacto no
futuro.
Fato Portador de Futuro: É aquele fato ocorrido em passado recente, ou que está ocorrendo no
presente, mas que poderá causar, ao tema estratégico ou tático, em estudo, algum tipo de impacto
(efeito) no futuro.
Sendo fundamental a antecipação, entendo que os conceitos acima expostos, tem relevante
papel no desenvolvimento de times de aprendizagem e de organizações que aprendem. No início do
processo, devem ser realizados levantamento dos fatores exógenos e dos fatos portadores de futuro,
que possam ter alguma relação com o tema em estudo. Assim, os métodos qualitativos de previsão,
possibilitarão aos times e organizações, uma visualização menos imprecisa do futuro, permitindo
assim uma avaliação mais coerente e, principalmente, uma simulação mais coerente com o que
pode-se denominar de “realidade prospectiva”.
É importante que as atividades sejam conduzidas, na busca da solução de problemas, com
base em aspectos concretos, fugindo da especulação ou da hipótese, de modo a que a simulação dos
cenários proporcione as conclusões mais importantes.
Cinco Fatores
Uma instituição, de qualquer tipo, seja pública ou privada, de ensino ou não, deveria empregar e adequar-se às novas técnicas, métodos e processos atualmente disponíveis, testados e que
podem ser úteis para otimizar suas atividades, de modo a ter melhores benefícios institucionais.
As organizações deveriam capacitar-se para lidar com os complexos problemas atuais para
ter melhores condições de aproveitar as oportunidades e pensar no futuro. Para tanto, necessita ser
uma instituição onde todos ouvem, todos falam, que seja capaz de aplicar novas teorias, técnicas e
instrumentos, de gerar novas idéias, novos conhecimentos, analisar e estudar novas idéias e conceitos ou seja, acompanhar a evolução, naquilo que lhe pode trazer benefícios. Funcionaria como uma
instituição em que todos os seus membros, por opção e crença nos objetivos a alcançar, se propõem
a caminhar como um time unido e coeso no mesmo rumo. Todos se empenham em aprofundar e
expandir as suas capacidades enquanto coletivo em perder a competência e capacidade individual.
Muitas instituições, nos dias atuais, encontram-se num momento em que lhe é difícil projetar-se como uma organização que reconhecidamente se mostre competente e necessária ao país
pelo que pode produzir. Para alcançar o nível desejado faz-se necessário, ao menos começar a
discutir, ou seja, pensar no que significa uma organização que aprende.
Não é fácil construir uma organização que aprende. Entretanto os benefícios são surpreendentes. Dentre as razões que levam e levaram inúmeras instituições a abraçarem a idéia, estão os
resultados conseguidos pelas que se decidiram a fazê-lo.
Para modificar, de modo a melhorar, e assim otimizar o desempenho, adquirir melhores condições para, se possível pleitear um futuro promissor, não deve deixar de pensar nos benefícios que
seriam possíveis se, como uma organização que aprende, os seguintes fatores fossem promovidos:
Melhor performance: Porquê concentrar o “mérito” de gerar novas idéias para a instituição
em alguns de seus membros? Porque a administração deve depender da inspiração de um pequeno
número de pessoas e nelas depositar toda sua esperança e possibilidades? Uma visão compartilhada, tem as melhores condições de trazer relevantes benefícios ao nível interno e externo.
Ganho em produzir novos conhecimentos: Idéias e conhecimentos não poder ser criados a
partir de uma decisão alheia mas apenas com motivação, estímulo e inspiração individual. Numa
organização que é uma organização em que existem condições para a discussão, que existem condições adequadas para o desenvolvimento individual e coletivo, novas idéias e conhecimentos surgirão e que lhe serão fundamentais para conduzir-se com competência e prestígio.
Uma nova dinâmica: O valor da instituição é medido pelo valor e engajamento das pessoas
que nela trabalham. Faz-se necessário levar o efetivo a aprender e aceitar a pensar no interesse da
organização, bem como a administração deve promover a abertura de espaço para que seus membros se motivem e se desenvolvam, o que fará a instituição crescer e por via de conseqüência se
projetar.
Diálogo e abertura: Numa organização que se conduz como uma instituição que aprende, o
diálogo é encorajado. As discussões são permanentes e explícitas. Quando algo não vai bem, em
vez de ser escondido, deve ser trazido à discussão. Não há receio de errar por que o erro faz parte do
processo de aprendizagem. As convicções e idéias individuais são apresentadas e discutidas abertamente sem medo de ser ridicularizado. A abertura é fundamental para que o diálogo e a discussão
no seio da Escola tenha sucesso e traga os melhores benefícios.
Gerir a mudança: Mudanças tecnológicas, de gestão, econômicas, sociais, estruturais ocorrem rapidamente nos dias atuais. Elas são capazes de desorientar, desestruturar ou encerrar as instituições que não se adequarem aos novos tempos. Sendo assim, uma organização que aprende é
capaz de reagir às mudanças do momento seguinte, antecipando-as ou mesmo ela mesmo criar as
mudanças necessárias. Só assim é possível andar à frente e não ser levado ou arrastado pelos acontecimentos.
Seguindo essas sugestões as organizações poderiam abraçar e engajar-se em orientar ao
menos, parte de seu esforço no sentido de transformar-se numa organização que aprende e
assim adquirir melhores condições de adquirir e garantir um lugar de destaque no seio da
sociedade.
Conclusão
As organizações que aprendem, sejam estatais ou privadas, nesse início de século XXI, são as
que tem alguma possibilidade de sobreviver e principalmente de projetarem-se, garantir um lugar
ao sol. Isto porque podem aumentar seu potencial e sinergia, podendo com isso adquirir melhores
condições para enfrentar as incertezas do futuro.
A aprendizagem nas organizações é um fenômeno multi-dimensional. Envolve desde a tradição e cultura até a personalidade do indivíduo. Nesse quadro, duas constantes são destacadas: a
unidade corporativa e o objetivo comum. Isso deve-se ao compromisso dos indivíduos com os
princípios e objetivos da organização, fruto, principalmente da motivação que incorporam.
A palavra chave é engajamento. As pessoas precisam acreditar em algo que lhes seja significativo. Para Senge, em uma organização a aprendizagem está relacionada com seus grandes desafios e a maior parte das pessoas é motivada a aprender por estar comprometida com a missão geral da
instituição.
No processo, surge uma entidade de relevante valor: o Time de Aprendizado. Esta é a entidade que viabiliza a organização que aprende. Isso porque, dentre outros, o time de aprendizado é
usado para a solução de problemas, para o aprendizado de novos caminhos de decisão, para auxiliar
a preparação da organização para o futuro ou, para o seu aprimoramento.
Ao entender-se e vivenciar-se como uma organização que aprende, a organização, após as
modificações necessárias, terá melhores condições de resgatar ou conquistar um futuro melhor,
promissor e melhor contribuir para o país.
Uma organização de aprendizagem e um time de aprendizagem são um desafio. Todos os
indivíduos da organização são necessários para a edificação de uma cultura de aprendizagem. A
partir daí, a organização evolui no rumo de uma organização de aprendizagem. É desenvolvida a
capacidade de ouvir, e consequentemente a participação voluntária de todos é conquistada. Logo
muitas competências passam a ser exigidas. Daí, as Seis Disciplinas são um poderoso instrumento
para que a organização ganhe eficiência e novas competências que lhe são necessárias.
Para tanto, é preciso ter sempre em mente que numa instituição, “a questão fundamental é
antecipar”.
(*) Cel.-Aviador da Reserva – Adjunto da Divisão de Extensão da Escola Superior de Guerra
BIBLIOGRAFIA
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____________. 1997. A Quinta Disciplina. Caderno de Campo. Qualitymark Editora. Rio de Janeiro.
O ESTADO: UMA ENTIDADE IMPRESCINDÍVEL
Manuel Cambeses Júnior (*)
O Estado moderno como conceito e como ordenamento político institucional começa a desenvolver-se na Europa, a partir do Século XIII. A sua característica principal é a busca da centralização do poder em uma instância que abarque as relações políticas fundamentais. Entre os Séculos XVI e XVIII a noção do Estado assentou-se em uma concepção mercantilista de economia que
buscava aumentar o poder dos Estados às expensas dos demais Estados rivais. Não foi sem razão
que esta doutrina econômica resultou paralela ao surgimento e auge do absolutismo.
Ao final do Século XVIII, tanto o mercantilismo como o absolutismo entraram em crise. A
convergência da economia de mercado na área econômica e do estado de direito no campo político,
gerou as bases de uma nova ordem. A chamada ordem liberal a qual buscava traçar limites precisos
ao Estado, locando barreiras ao exercício de seu poder. Não obstante, longe de iniciar-se nesse
momento o declínio do Estado, o mesmo vai adquirir novos ares com a aparição do fenômeno
nacionalista. De acordo com ele, a lealdade fundamental do cidadão deveria ser dirigida ao EstadoNação.
O período compreendido entre o final do Século XVIII e início do Século XIX é conhecido
com a “Era das Revoluções”. Durante esse espaço de tempo, ocorreram a Revolução Americana, a
Revolução Francesa e a Guerra da Independência hispano-americana. Todas elas se assentaram
sobre a idéia do Estado-Nação como conceito superior. A tese da soberania popular, originária de
Rousseau, provê as bases para a consolidação deste novo conceito de Estado. Ao longo do Século
XIX o poder deste se fortaleceu na Europa, cavalgando sobre a idéia do nacionalismo. Surgiram
nesse momento novos Estados centralizados como Alemanha e Itália.
O Século XX levou o Estado a limites nunca vistos anteriormente. Nele se produziu a
“estadolatria” dos totalitarismos fascistas e comunistas. Terminada a II Guerra Mundial, por sua
parte, o Estado-Nação identificou-se com o processo de descolonização na Ásia e na África, expandindo o seu âmbito a nível planetário. O período compreendido a partir da II Guerra caracterizou-se
pela contraposição de dois superestados e de seus respectivos aparatos e sistemas de alianças.
Entretanto, ao iniciar a década final do Século XX, um autêntico cataclisma fez sacudir em
seus alicerces a noção de Estado, conduzindo-o a uma intensa crise histórica. As ameaças que hoje
recaem sobre este antigo e familiar conceito são tão grandes quanto variados. Nos aspectos jurídico, político e econômico, a sobrevivência do Estado como instituição fundamental está seriamente
comprometida. Isto foi o resultado inevitável do colapso do comunismo que trouxe consigo a implantação de todo um conjunto de paradigmas emergentes.
A nova linguagem do Direito Internacional se assenta em noções como “soberanias limitadas”, “tutelas internacionais”, “direito de ingerência” e “administrações supranacionais” todas as
quais têm como denominador comum o desconhecimento do estado como ator essencial da vida
internacional. No campo político, o poder que tradicionalmente deteve o estado está tendendo a
fluir em distintas direções. Para cima, em direção aos organismos supranacionais e coletivos, tais
como o Conselho de Segurança da ONU, a União Européia e a Organização Mundial de Comércio.
Para os lados, para Organizações não Governamentais enraizadas com a sociedade civil que
emergem ao interior dos próprios Estados. Para baixo, em direção a regiões cada vez mais autônomas, as quais se consideram representativas de identidades étnicas e culturais. Entre os dois
últimos segmentos e o primeiro tendem a estabelecer-se relações cada vez mais diretas que obstam
o Estado central. O Estado, desta maneira, vai perdendo o seu caráter de articulador fundamental da
vida nacional e de interlocutor natural em matéria internacional.
Entretanto, é no campo econômico onde as ameaças contra o Estado apresentam-se maiores.
A queda do Muro de Berlim trouxe consigo a preeminência do econômico sobre o político e, também, do âmbito do privado sobre o público. Por sua vez, o processo de desregulação, que tem
evidenciado a economia nestes últimos anos, acompanhado de um gigantesco salto tecnológico,
tem proporcionado uma extraordinária vitalidade ao fenômeno econômico, permitindo acumulações de capital nunca antes imaginadas. Acuado frente aos mercados financeiros, aos
megaconglomerados da comunicação social e a fusão das grandes corporações transnacionais, o
Estado apresenta-se cada vez mais impotente.
Destruir o Estado significa, entretanto, sufocar as reivindicações dos povos, deixar sem intérprete o sofrimento dos excluídos, perder o sentido do coletivo e renunciar a mobilizar as forças
espirituais dos cidadãos em função de um ideal superior. Destruir o Estado é retirar do jogo a única
instituição que foi capaz, nos anos trinta e no pós-guerra, de sustentar a economia e de reverter suas
grandes crises. Hoje, quando o frenesi dos mercados ameaça condenar à pobreza centenas de milhões de seres humanos, torna-se mais necessário do que nunca contar com essa instituição ancestral, indispensável e insubstituível: o Estado.
(*) Coronel-Aviador da Reserva e Chefe da Divisão de Assuntos Internacionais da Escola
Superior de Guerra.
N O VO E N F O Q U E PA R A O S E S T U D O S D A E S G X X I
Ivan Fialho(*)
Introdução
Neste ano seguinte ao seu cinqüentenário e à implantação do Ministério da Defesa, considerando ainda o alvorecer do século XXI, torna-se oportuno reavaliar o papel e a orientação dos
estudos da ESG. Como instituto de altos estudos de política e estratégia, a ESG deveria redirecionar
o enfoque desses estudos para reajustá-lo às mudanças no cenário internacional e nas relações entre
os Estados, pós fim da Guerra Fria É verdade que o ajuste dos estudos, ao lado da atualização da
Doutrina já vêm sendo conduzidos, de certa forma, com base na avaliação da conjuntura. Julgamos, no entanto, que cabe um redirecionamento mais sistemático e objetivo, em função do papel e
da própria razão principal da existência da ESG como instituição acadêmica, vinculada à Segurança Nacional. (Apesar de a ESG dedicar-se à Segurança e ao Desenvolvimento, destacamos propositalmente a Segurança por razões a serem expostas ao longo deste trabalho).
O presente trabalho é sintético e visa suscitar discussão quanto a uma possível revisão da
orientação básica dos estudos desenvolvidos na ESG, partindo de idéias e considerações constantes
da própria Doutrina de Ação Política..
Julgamos que há uma lacuna nos segmentos político e acadêmico, relativa a pesquisas e
estudos no campo da Estratégia, a qual poderia ser preenchida pela ESG, dando-lhe assim maior
projeção junto àqueles setores.
A proposta a ser apresentada caracteriza uma verdadeira “estrategização” dos estudos da
ESG.
1. O Conceito de Estratégia
O conceito particular de Estratégia, aqui utilizado, se refere, essencialmente, ao relacionamento de um Estado com outros agentes no cenário internacional, em defesa dos seus interesses
vitais. Pressupõe uma situação de conflito de interesses nacionais, ou de competição entre Estados
– Nação, em busca do poder, o que é inerente ao relacionamento internacional.
Desse modo, este conceito de Estratégia se identifica com o sentido universal aplicado por
muitos autores no campo das relações internacionais, como veremos a seguir. Neste sentido, é mais
limitado que o conceito doutrinário da ESG que, por sua vez se refere tanto ao âmbito externo,
quanto ao interno, ao campo da segurança e ao do desenvolvimento; representa o “como fazer”,
subordinando – se ao “o que fazer”, definido pela Política
Cumpre salientar que nosso objetivo não é discutir conceitos nem propor modificações na
Doutrina. O conceito de Estratégia aqui utilizado pressupõe a prévia formulação da Política, cujos
objetivos devem refletir os interesses vitais da nação. Reiteramos que estamos utilizando o concei-
to de Estratégia num sentido específico, mas que não deixa de estar abrangido pelo conceito mais
amplo da doutrina da ESG. Não há portanto divergência substantiva entre esses dois conceitos.
Cada Estado busca, entre outros objetivos nacionais, preservar sua soberania e sua sobrevivência e, se possível, fortalecer seu poder nacional relativo ao dos outros Estados. Nessa dinâmica,
a diplomacia representa o principal meio de interação pacífica, mas o uso da força e inclusive a
guerra, se constituem em referenciais que, historicamente, não deixam de estar presentes (o que não
significa, necessariamente, o emprego efetivo da violência).
Essa breve conceituação da estratégia se apoia em diversos autores. Para Cavagnari1 , por
exemplo, “estratégia é a arte(ou o método) de atingir os objetivos fixados pela política nas relações
interestatais- nas relações entre potências, nas relações de força – por todos os meios disponíveis,
militares e não militares”. Esclarece que “o emprego da força (ou mesmo ameaça de emprego) é
eventual, mas a estratégia deve ser pensada e realizada na perspectiva desse emprego, visto que a
guerra é o problema fundamental de qualquer teoria das relações internacionais”, citando Bobbio.
Cavagnari destaca a referência ao uso da força, mesmo reconhecendo que as questões econômicas tendem a prevalecer na nova ordem mundial, “ocupando o lugar central antes conferido às
questões estratégico – militares”. Acrescenta, no entanto, que, “embora a força militar venha a ser
secundária e menos decisiva no âmbito dos conflitos de interesses, ela continuará necessária para
garantir os avanços no processo de competição internacional”.
Concordamos, desse modo, com Cavagnari que o problema estratégico é antes de tudo um
problema de segurança, o que, aplicado aos países emergentes como o Brasil, implica, basicamente, dispor de um poder militar que tenha capacidade dissuasória defensiva, com credibilidade.
A questão da segurança nas relações internacionais é destacada também por Karl Deutsch,2
para quem “a política externa de cada país diz respeito, em primeiro lugar, à preservação da sua
independência e segurança”.
O conceito de Estratégia acima se superpõe, em grande parte, ao de Política no âmbito internacional, se esta for vista como sendo “acima de tudo, uma luta pelo Poder”, conforme o Alte
Caminha,3 citando Morgenthau .Noutra passagem, o Alte Caminha sublinha que ambos os conceitos se confunde, em certa medida, mas se diferenciam quanto aos objetivos: enquanto a Política
visa principalmente à preservação da paz, a Estratégia “só tem cabimento para empregar meios
numa disputa”, citando o Mal. Castello Branco.
O conceito de Estratégia do Alte. Caminha realça, sobremaneira, o uso da força e a perspectiva da guerra, apesar de ele muitas vezes destacar o seu caráter integrado, isto é, a Estratégia
envolvendo todos os meios do poder nacional, reportando-se neste caso ao conceito de Estratégia
Total do Gen. Beaufre.4
Outras idéias do Alte. Caminha bastante relacionadas ao conceito de estratégia que estamos
utilizando se referem a sua caracterização essencial de uma situação estratégica quanto à “existência de poderes antagônicos e objetivos conflitantes”; a questão da relatividade do poder nas situa1
Ver Geraldo Lesbat Cavagnari Filho: “Notas Sobre Estratégia e o Emprego Futuro da Força”.Trabalho
apresentado no II Encontro Nacional de Estudos Estratégicos – USP/95 e publicado nos correspondentes anais“Estratégia no Novo Cenário Mundial”, organizado por Braz Araújo , NAIPPE/ USP.
2
Ver Karl Deutsch : “ Como se faz Política Externa” em “Curso de Relações Internacionais” – O Estado e as
relações Internacionais” – Obra editada pela UNB/82.
3
Ver Vice-Alte João Carlos Gonçalves Caminha: “Delineamentos da Estratégia”, BIBLIEX, 1982.
4
Ver Gen. André Beaufre : “Introdução à Estratégia”, BIBLIEX, 1998.
ções estratégicas, onde, “desde que entre em cogitação a maneira de alcançar o objetivo, é sempre
o poder relativo, ou seja, um poder face ao contrário, o que está em consideração”; a “interligação
das ações desenvolvidas nas situações estratégicas, a noção fundamental da unidade do Poder e da
Estratégia”, ambos envolvendo fatores econômicos, políticos, militares etc.
Finalmente o Alte. Caminha enfatiza “ser o sistema internacional o ambiente por excelência
no qual a teoria da estratégia é aplicada”.
2. Estratégia e Relações Internacionais
O conceito de Estratégia se refere, como já destacamos, às interações de Estados – Nação no
cenário internacional, superpondo-se, portanto, ao conceito de política externa, constante da Doutrina da ESG. Representa, por outro lado, uma significativa ampliação e enriquecimento do conceito de Estratégia Externa, ao se reportar, fortemente, à considerações geoestratégicas e geopolíticas,
no que, concordamos com o pensamento do Embaixador Camillo Côrtes.5
A vinculação da política externa à geopolítica é defendida por Kissinger, ao analisar o relacionamento do governo Nixon com a URSS e a China, no capítulo – “Foreign Policy as Geopolitcs:
Nixon’s Triangular Diplomacy” de seu recente livro6. Kissinger destaca nesse capítulo, a concepção realista em oposição à idealista ou moralista da política externa dos EUA.
A referência essencial da Estratégia ao campo externo deriva do novo paradigma da ordem
mundial e dos efeitos da globalização nos campos econômico e financeiro, cientifico-tecnológico,
político e cultural, interligando, fundamentalmente os objetivos de segurança e desenvolvimento
de cada país aos dos demais – o que configura o novo trinômio: segurança, desenvolvimento e
relações internacionais.
O paradigma acima referido, pós Guerra Fria, é do tipo Estadista, na classificação de
Huntington7 e é baseado na teoria realista das relações internacionais. Pressupõe que todos os Estados atuam no cenário internacional, buscando, cada um, fortalecer seu poder e defender seus interesses nacionais.
Huntington critica esse e outros paradigmas, propondo um mais apropriado, que ele chama
de Civilizatório. Reconhece no entanto, que “esse quadro realista do mundo é um ponto de partida
muito útil para se analisar as relações internacionais e explicar grande parte do comportamento dos
Estados”.
O papel da Estratégia e sua vinculação às relações internacionais são analisados por Luigi
Bonanate. Referindo-se a concepção de Clausewitz , que faz da guerra a continuação da política por
outros meios, aquele autor julga que tal forma “põe claramente, no âmago da reflexão, o papel da
estratégia como charneira entre o momento pacífico e o momento violento da política.” Conclui,
desse modo que a “estratégia se transforma, então, de técnica a serviço do interesse militar, em
ciência subsidiária das relações internacionais ou um dos seus setores...”8
Ao interligar a Estratégia ao campo externo, automaticamente se depreende a importância da
diplomacia, o que foi amplamente analisado por Raymond Aron9. Este autor afirma que “a distin-
5
Idéia defendida pelo Embaixador Marcos Henrique Camillo Côrtes, integrante da ESG, em palestra para os
estagiários, proferida em 21/05/99,tendo como referência o capítulo “Fundamentos da Relações Internacionais” ,
Vol.II dos “Subsídios para Estudos do Fundamentos Doutrinários”, ESG, 1997.
6
Ver Henry Kissinger – “ Diplomacy” – Ed.Touchstone Book 1994.
7
Ver Samuel Huntington – “O Choque das Civilizações – a Recomposição da Ordem Mundial”.Ed.Bibliex,1997.
8
Ver texto sobre Estratégia, no Dicionário de Política , de Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco
Pasquino. Ed.UNB/1986.
ção entre diplomacia e estratégia é relativa. Os dois termos denotam aspectos complementares da
arte única da política – a arte de dirigir o intercâmbio com os outros Estados, em benefício do
“interesse nacional”. Convém observar que o conceito de estratégia de Aron é basicamente militar:
“O comportamento relacionado com o conjunto das operações militares”. De qualquer modo, sua
análise demonstra a simbiose da diplomacia com o poder militar, o que, acrescentamos, vale inclusive para as potências emergentes, como o Brasil, se bem que sob outro enfoque quanto às capacidades de dissuasão e de projeção de poder.
3. Estratégia e Segurança
Já caracterizamos o problema estratégico como uma questão essencial de segurança no âmbito internacional. Cabe agora qualificar a nova visão da segurança, no período pós Guerra Fria e sob
o advento da globalização.
Assim, a segurança que tinha forte conotação militar, passa a abranger outras necessidades e
correspondentes novas estruturas, relativas aos fatores econômicos e sociais, questões populacionais
e ambientais e tecnologia.10. No entanto, conforme já assinalamos, trata-se de mudança da ênfase
anterior no sentido militar da segurança, mas não no seu abandono.
O conceito de segurança que visualizamos, do ponto de vista de uma potência emergente, se
caracteriza pelo seu caráter comum ou recíproco; implica que os Estados reconhecem que sua
segurança é indivisível, isto é, a segurança de um Estado depende de determinado grupo ou região
e está inseparavelmente ligada a dos outros. Preconiza, na concepção estratégica das forças, a capacidade defensiva ou de autodefesa, visando proteger e preservar o território nacional de agressões
armadas. Objetiva, ainda, por meio de medidas de confiança mútua, prevenir conflitos. Neste ponto, diferencia-se da segurança coletiva que prevê resposta à agressão armada de um inimigo comum, pois o objetivo da segurança seria justamente estabelecer mecanismos que inibam coletivamente as possibilidades e alcance de eventuais agressões.
Essa concepção da segurança se baseia nos conceitos de segurança cooperativa da OEA11 e de
segurança coletiva da ONU.12
4. Projeto Nacional e Autonomia Estratégica
Até agora procuramos nos limitar ao campo conceitual e doutrinário do tema. Ressaltamos,
no entanto, que o enfoque estratégico que estamos propondo para os estudos da ESG, está presente,
implícita ou explicitamente, em trabalhos de autores ligados a própria escola.
Citamos como exemplos : as propostas do Gen. Meira Mattos quanto ao Projeto Brasil Século XXI, e sua afirmação de que “devemos perseguir o objetivo de manter um certo grau de autonomia estratégica”.13
9
Ver Raymond Aron: “ Paz e Guerra entre as Nações”. Ed. UNB/1986.
10
Ver Ziba Moshaver, Palestra no II ENEE/USP, 1995 – “Estratégia das Potências Emergentes”, publicada
nos correspondentes Anais ( ver nota 1 ) 11 O conceito de segurança cooperativa é analisado por Rut Diamint em
“Segurança Hemisférica e Medidas para o Fomento da Confiança: Revisando Alguns Temas Conceituais” . Palestra
proferida no II ENE/1995 e publicada nos Anais (ver nota 1). Baseamo-nos também no documento “ Aportes para um
Novo Conceito de Segurança Hemisférica – Segurança Cooperativa“, preparado pelo presidente da Comissão Especial sob Segurança Hemisférica da OEA, Embaixador Argentino Hernan M. Patiño, em maio 1993, conforme Revista
“Seguridad Estratégica Regional en el 2.000”, no 4, setembro 1993.
12
O conceito de segurança coletiva se baseia no Cap. 3 do Informe sobre Segurança Defensiva, elaborado por
grupo de especialistas de diversos países, entre maio de 91 e julho de 92, convocado pela Resolução n. 45/58 de 1990,
da Assembléia Geral da Nações Unidas, conforme revista SER en el 2.000, no 4, setembro de 1993.
13
Ver Gen Div Carlos de Meira Mattos “Estratégias de Segurança e Defesa“ . Art. Publicado na Revista A
Defesa Nacional, Jul/Ago/Set/97.
O professor Darc Costa afirmando que “ política externa e política de defesa são complementares e constituem dimensões fundamentais na vida do Estado” e que ambas “são função de diversos fatores onde se destacam os de caráter geopolítico e os de caráter econômico”. O autor também
defende a busca de alguma autonomia estratégica para o País.14
O Brig. Ferolla, ex-Cmt. da ESG, propugnando pela necessidade da definição de um Projeto
Nacional, segundo um modelo próprio de desenvolvimento, que supere a condição de dependência,
e valorize o principio da autonomia.15
O Alte. Fortuna, também ex-Cmt. da ESG, após analisar a nova ordem mundial, propondo
que “o Brasil precisa implementar uma estratégia nacional que nos permita tirar proveito desse
novo conceito nas relações entre os Estados...” 16 Ou ainda que “no mundo conturbado de hoje, a
Política no âmbito internacional é acima de tudo, uma luta pelo poder”. RODA PÉ PAG. 205
Destacamos, finalmente, algumas idéias do Alte. Flores para uma Política Militar para o
Brasil, de certa forma relacionadas ao presente tema .
O Alte. Flores considera que “a defesa dos interesses nacionais exige alguma capacidade de
barganha... que depende de várias ordens de influências, particularmente o conhecimento científico
e a habilitação tecnológica, a sanidade econômica e um razoável equilíbrio social, mas ela inclui,
para certas situações e circunstâncias passíveis de ocorrerem, se é que algum dia cessará essa possibilidade, capacidade militar tecnologicamente moderna e eficiente.” Mais adiante propõe uma
“estratégia brasileira viável,” com objetivos definidos com sobriedade e realismo.17
5.
Reflexos para a ESG
Levantadas as considerações acima quanto à caracterização e importância da Estratégia, comentaremos, em seguida, algumas conseqüências relacionadas ao planejamento político – estratégico do Brasil e ao papel e estudos da ESG.
A formulação atualizada da Estratégia Brasileira , a título de subsídio para o Ministério da
Defesa, passaria a se constituir na “Primary Task”, isto é, a razão principal da existência da ESG,
que teria um papel semelhante ao de um verdadeiro órgão de produção de estudos e pesquisas para
aquele Ministério, mantendo, obviamente, a atividade também essencial de ensino. A propósito, a
pesquisa e o ensino são atividades inter-relacionadas, sob um processo de mútuo enriquecimento.
Pode ser que essa se torne a ser uma das funções principais da ESG, que passou a se
constituir num órgão de estudo subordinado diretamente à Secretaria Político-Estratégica e de Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa. Em decorrência da reavaliação dos cursos e da
missão da ESG que aquele Órgão realiza.
Embora continuasse tratando do planejamento da segurança nacional, de acordo com sua
missão original, da época da sua criação, o novo enfoque proposto, voltado para a Estratégia Brasileira (que inclui a Segurança Nacional) representaria um significativo ponto de inflexão na vida da
ESG como instituição. Com essa guinada para novos rumos, na virada do século , reavaliando sua
missão e forma de atuação, de modo a adaptar-se aos novos tempos, a ESG poderia revigorar seu
14
Ver Darc Costa: “Pensando a Política de Defesa até 2.010”. Artigo. publicado na Revista “A Defesa Nacional”, Jul/Ago/Set/98.
15
Ver Ten.-Brig.–do-Ar Sergio Xavier Ferolla: “Bases para um Projeto Nacional”. Art. Publicado na Revista
da ESG no 27/94.
16
Ver Alte.-Esqd. Hernani Goulart Fortuna: “Panorama das Relações Internacionais e seus Reflexos no Processo de Desenvolvimento Brasileiro”. Aula inaugural proferida na ESG em 10/Mar/92 e publicada na Revista da
ESG nº 24/93.
17
Ver Alte.-Esqd. Mário César Flores: “Bases para uma Política Militar”. Ed.Unicamp,1992.
prestígio e reconquistar espaço na sociedade, especialmente junto aos segmentos político, acadêmico e jornalístico.
A ESG assumiria, explicitamente, sob novo contexto, o papel de “instrumento de um projeto
estratégico”, na expressão de Eliezer Rizzo de Oliveira.18
Cumpre salientar que há um certo vácuo no planejamento político-estratégico nacional que
poderia ser parcialmente preenchido pelos estudos da ESG voltados para a Estratégia Brasileira. A
propósito, a Política de Defesa Nacional representou um grande passo nesse sentido, mas ainda
insuficiente.
Quais seriam os reflexos internos na ESG, dessa mudança de enfoque?
Propomos, sob uma visão “up-down”, que o conceito de Estratégia passe a servir de farol
para os estudos da ESG, isto é, uma perspectiva básica que orientaria as atividades de todas as
Divisões do Departamento de Estudos.
Por outro lado, sob uma visão “down-up”, os estudos relativos a cada expressão do poder
nacional e conduzidos pelas correspondentes Divisões constituiriam aportes setoriais para melhor
fundamentar a Estratégia Brasileira, dado seu carater integrado e a sua unicidade.
Essa visão se refletiria no currículo dos cursos, de modo que os estudos de Política, Sociologia, Economia e demais disciplinas teriam um carater subsidiário , instrumental e objetivo em
relação à finalidade maior do ensino e da pesquisa da Estratégia .
Nesse quadro, a Divisão de Assuntos Internacionais (DAInt.) teria, naturalmente, posição
proeminente, em função da natureza da Estratégia, vinculada, essencialmente, ao campo externo,
ao âmbito das inter-relações dos Estados no cenário internacional, conforme já analisamos. A propósito, no Regimento Interno da ESG, a área de estudos atribuída à DAInt compreende “as relações
internacionais, com ênfase na geopolítica, na estratégia e nas áreas estratégicas externas de interesse atual ou futuro”. (grifo nosso)
Em decorrência da maior ênfase ao estudo das relações internacionais, a diplomacia, no sentido de condução de intercâmbio com outras unidades políticas, segundo Aron, também teria maior
destaque.19
A Divisão de Assuntos Militares (DAM) teria igualmente significativa contribuição a dar,
tendo em vista o importante mas negligenciado sentido militar da Estratégia, ao lado do planejamento da Defesa Nacional, temas hoje relegados a uma posição secundária, no País, por desinteresse ou ignorância.
Relembramos aqui, a advertência de Ubiratan Borges de Macedo. Após afirmar que “ não há
mais necessidade de uma escola da Presidência da República para promover a idéia do desenvolvimento e o seu planejamento”, o Prof. Ubiratan – ex-integrante do Corpo Permanente da ESG – se
refere ao estudo da defesa nacional, campo em que “a ESG não pode omitir-se, como vem fazendo,
sob pena de o Estado ter de criar outra instituição similar e fechá-la por descumprimento de sua lei
de criação.80
18
Ver Eliezer Rizzo de Oliveira: “A Doutrina de Segurança Nacional: Pensamento Político e Pensamento Estratégico”- Artigo publicado na Revista Política e Estratégia, Abr/Jun/1988
19
O Emb.Camillo Torres chega inclusive, a propor a revalorização da diplomacia, como um sexta expressão
do poder nacional. Ver nota 5.
20
Ver Ubiratan Borges de Macedo:”A Escola Superior de Guerra, sua Ideologia e Trânsito para a Democracia.” Trabalho apresentado no seminário “A Segurança Nacional dos Países da América Latina, no Marco da Relações Internacionais Contemporânea.” Querétaro, México, 6 a 9 de maio de 1987, publicado na revista “Política
Estratégia”, Abr/jun/88.
A propósito, o Prof. Ubiratan, no mesmo trabalho, visualiza a ESG como uma escola de
estratégia cujos estudos, “a julgar-se pelas congêneres dos países democráticos, devem voltar-se a
temas internacionais e estratégicos, pesquisa e identificação dos interesses brasileiros no mundo,
em suma, no seu jargão: segurança externa”.
Quanto à Doutrina/Método da ESG, julgamos que, conforme já explicamos na Introdução,
todas as idéias e colocações expostas, relativas ao conceito de Estratégia, constam dos Fundamentos Doutrinários ou dos Subsídios para Estudo dos mesmos. Não se trata, portanto, de inserção de
novos conceitos, mas sim de mudança de enfoque, de reinterpretação e hierarquização de conceitos
já existentes, sob um novo paradigma.
Desse modo, os conceitos de política nacional, estratégia nacional, política externa, segurança externa e estratégia externa, constantes da Doutrina e a avaliação da situação internacional, na
fase política do Método da ESG, não resta dúvida, já tratam do tema aqui analisado. No entanto, o
problema está na concepção geral do planejamento, na natureza do enfoque, na hierarquização dos
conceitos e na sua visão sistêmica sob novo paradigma, conforme exposto acima.
Sob uma ótica da instituição como um sistema aberto, a ESG intensificaria o intercâmbio
doutrinário com outros institutos ou centros de estudos estratégicos, a fim de enriquecer, ampliar e
aprofundar a formulação da Estratégia Brasileira e os estudos e pesquisas correspondentes. A ESG
deve evitar uma ótica de sistemas fechados, centrada excessivamente no ensino da Doutrina/Método para os estagiários. Não resta dúvida que esta última atividade é de fundamental importância
para a projeção da Escola e para a divulgação da Doutrina. Entretanto nos últimos anos tem-se
intensificado os estudos de estratégia na Universidade e em outros centros, em relação aos quais a
ESG não pode deixar de ter estreitas ligações acadêmicas.
Em relação a esse último ponto, queremos lembrar que, pelo Regulamento da ESG, os estudos compreendem as atividades de ensino, pesquisa, extensão, intercâmbio e difusão. Pode ser que
a segunda atividade, a de pesquisa, esteja subvalorizada, em benefício da primeira, a de ensino.21
6.
Conclusão
Procuramos desenvolver neste trabalho, do ponto de vista metodológico, uma abordagem de
raciocínio lógico, isto é, a partir de algumas premissas sobre a natureza da Estratégia e sobre a
missão e estudos da ESG, chegamos às conclusões relativas à necessidade da adoção da Estratégia
como enfoque fundamental e norteador dos estudos da ESG, em prol da formulação de uma Estratégia Brasileira. A aceitação das premissas, levará, forçosamente, à aceitação das conclusões. Como
colorário, seguir-se-ia a revalorização das atividades de pesquisa e intercâmbio da ESG,
hierarquizando-as no mesmo nível da atividade de ensino, o que, hoje, não vem, talvez, ocorrendo
de forma satisfatória.
Nossa mensagem final se relaciona ao ilustrativo lema da ESG – “Nesta casa estuda-se o
destino do Brasil”. Lembramos outra proposição, do mesmo autor, Marechal Castello Branco: “O
destino de uma nação está assim vinculado, também, à qualidade de sua estratégia e ao valor de
seus estrategistas.”
(*) Coronel da Reserva e Adjunto da Divisão de Apoio ao Departamento de Estudo
21
Ver entrevista concedida pelo Gen Div Carlos Patrício Freitas Pereira, Comandante da ESG, ao Jornal
Folha Dirigida – Caderno de Educação, Edição de 18 a 24 de maio de 1999.O Gen Freitas, entre outros pontos,
afirma “...pois a ESG é uma Escola de pesquisa.”
PRODUÇÃO: UMA VISÃO ECOLÓGICO-ECONÔMICA E ALGUNS ASPECTOS SOCIOPSICOLÓGICOS
Gerardo José de Pontes Saraiva(*)
Introdução
No último quartel deste século, aproximando-se o final do milênio, a ciência e a tecnologia
têm apresentado um desenvol-vimento alucinante, superando as expectativas mais otimistas e ultrapassando, em termos de espaço e tempo, até mesmo previsões que se fizessem baseadas nas
publicações de Julio Verne, por mais extrapoladas que fossem.
Estações espaciais cruzam os espaços siderais, robôs são enviados aos mais distantes planetas do sistema solar, de onde enviam dados científicos e, no campo da biogenética, clonam-se
animais – o que prenuncia a clonagem de seres humanos, com todas as implicações de natureza
ética e biológica que isso possa acarretar.
A ilusão de poderes ilimitados, sustentada por espantosos feitos científicos, produziu a
concomitante ilusão de ter sido resolvido o problema da produção. Essa idéia, embutida na mente
de pesquisadores, planejadores e fabricantes e também do homem comum, representa, na realidade, o grande desafio a ser enfrentado por esta geração, se quiser que a que lhe suceder tenha condições mínimas necessárias de vida humana ou, até mesmo, de vida física.
A poluição insuportável, o extermínio da fauna e da flora, o aniquilamento dos recursos
naturais, a progressiva incapacidade de a própria natureza absorver os resíduos com que é, constante e gradualmente, atacada, tudo isso prenuncia num futuro não muito longínquo – e aqui não vai
qualquer neurose apocalíptica – a impossibilidade de vida animal ou vegetal no planeta Terra.
Mais grave, porém, é a descaracterização do homem como ser humano, tornado causa e produto de uma sociedade consumista, totalmente alienada dos valores éticos e morais, que condicionam
uma existência digna de ser vivida por uma humanidade composta de seres criados à imagem e
semelhança de Deus, nascida do infinito e que para ele tende.
Este trabalho, feito especialmente para servir de tema de debates, pretende, pois, analisar,
sumariamente, o problema da produção sob a óptica da economia e da ecologia, bem como chamar
a atenção para alguns aspectos sócio-psicológicos que acompanham o consumismo1 desenfreado,
tornando o homem uma simples engrenagem da máquina, sem direito sequer a escolher como
empregar o seu tempo de lazer.
1
Não nos estamos referindo a consumo, pois se existe produção é para ser consumida: abordamos o consumismo,
esse consumo desenfreado e sem limites, fruto de uma propaganda obsessiva que não visa ao atendimento das necessidades do consumidor, mas tão somente ao aumento exagerado do lucro.
1. Produção: Uma Visão Ecológico-Econômica
Um fato nunca é pura ou exclusivamente econômico; sempre existem outros aspectos
em geral mais importantes. (Schumpeter)
Desde tempos imemoriais, terra, capital e trabalho têm sido considerados os componentes
ativos, necessários e suficientes da produção.
Certamente aí está o grande equívoco: a terra (a natureza genericamente falando, ou para ser
mais preciso, os bens naturais) não é estranha ao capital. Dele faz parte integrante e primordial e
não tem sido tratada assim ao longo dos tempos. A causa dessa ilusão reside na incapacidade de
fazer distinção entre renda e capital, distinção essa com que qualquer economista e homem de
negócios está familiarizado e que aplica com especial competência em todos os assuntos econômicos, exceto onde realmente mais importa: o capital insubstituível que o homem não produziu, mas
que encontrou pronto e é imprescindível, pois sem ele nada pode fazer: os bens naturais.2
A maior parte desse capital está sendo consumida em ritmo assustador. Por isso, é um absurdo inaceitável e suicida acreditar e – pior ainda – aceitar que o problema da produção esteja resolvido e de agir em função dessa crença.
Tão somente para caracterizar, consideremos um capital natural, cuja utilização e necessidade são de todos conhecidas: os combustíveis fósseis. Não se pode, de bom senso, negar que eles
estejam sendo tratados como bens de renda, embora sejam na realidade bens de capital e como tal
deveriam ser considerados. Realmente, se isso acontecesse, a sua conservação seria objeto de melhores critérios de consumo e conservação. Nada disso ocorre, no entanto e se procede de maneira
diametralmente oposta. Como comprovação deste fato, utilizemos dados da própria ONU3.
( e. c. = equivalente em carvão)
QUADRO I (1966)
RICOS
(%)
POBRE
S
(%)
MUNDO
(%)
População (milhões)
1.060
(31)
2284
(69)
3.384
(100)
Consumo de combustível
(milhões de toneladas e.c.)
4.788
(87)
721
(13)
5.509
(100)
Consumo de combustível per
capita (toneladas e.c.)
4,52
–
0,32
–
1,65
–
QUADRO II (2000 D.C.)
RICOS
(%)
POBRE
S
(%)
MUNDO
(%)
População (milhões)
1.617
(23)
5.292
(77)
6.909
(100)
Consumo de combustível
(milhões de toneladas
e.c.)
15.558
(67)
7.568
(33)
23.156
(100)
Consumo de combustível
per capita (toneladas e.c.)
9,64
–
1,43
–
3,35
–
2
Dádivas da natureza, como denominava Schumpeter.
3
FONTE: Schumacher, 1973, pp. 21 e 22.
Esses quadros falam de per se de maneira eloqüente, de modo que nos permitiremos apenas
chamar atenção para dois aspectos: (1) o consumo mundial de combustíveis, confirmada a previsão
da ONU, terá aumentado de mais de 300% em não mais que 35 anos e (2) desse aumento, dois
terços seriam por conta dos países ricos.
As advertências emitidas pelo Clube de Roma e muitas outras entidades na década de 60 não
só não foram levadas em conta, como analisadas por alguns com zombaria e desprezo, até o pânico
geral de suprimento de combustível em 1970. Entretanto, cada nova descoberta de petróleo, no
Saara ou no Mar do Norte, na Holanda ou no Alasca, modificava as pessimistas perspectivas futuras. E assim tudo permanece até hoje, quando há profetas sugerindo a inexistência de qualquer
problema, apesar das evidências.
Mister, aqui, se faz assinalar que não estão sendo menosprezadas a possibilidade do incremento qualitativo e quantitativo de matérias primas, nem a descoberta de novas fontes de energia e/
ou um melhor aproveitamento das já existentes, obviamente considerando o inevitável aumento da
população. Isso foi objeto de estudos técnicos e estatísticos realizados pelo Clube de Roma e a sua
conclusão, baseada em pesquisas científicas, é desalentadora.
É importante, também, assinalar que os combustíveis fósseis não são gerados pelo homem e
não podem ser reciclados: uma vez consumidos, não podem ser recuperados.
Há outra possibilidade de discordância: os menos informados poderão argumentar que os
combustíveis de renda poderiam substituir os de capital.4 Consideremo-los, pois. Antes, deve ser
salientado que não queremos acreditar haver pessoas suficientemente otimistas e ao mesmo tempo
realistas que admitam seja possível, nas próximas décadas, admitir que o sistema industrial de
âmbito mundial possa ser sustentado pela água ou pela energia eólica. Isto posto, restaria o emprego da energia nuclear.
Atualmente esse tipo de energia atende a não mais que 4% da energia demandada pela indústria. Somente para argumentar, contudo, admitamos que, nos próximos vinte anos, esse percentual
atinja 20% ou mesmo 30%. Restariam 80% ou 70% para serem supridos pelos combustíveis fósseis. Nesta hipótese, devem ser considerados os gastos econômicos para produzir energia nuclear
em quantidade elevada, de vez que uma coisa é produzir em pequena escala; outra, muito diferente,
é fazê-lo em escala gigantesca. Admitida essa alternativa, somente do ponto de vista econômico,
isso implicaria mais custos e, conseqüentemente, um ritmo mais elevado de crescimento econômico para cobrir essas despesas, ou seja, maior consumo de combustível.
Percebe-se, então, porque nas últimas quatro décadas, palavras como poluição, meio ambiente, ecologia, adquiriram tanta proeminência.
Poucos se dão conta de que a produção, além de um extraordinário aumento quantitativo, deu
também um imenso salto qualitativo. Nossos cientistas e técnicos têm aprendido a fabricar substâncias desconhecidas da natureza e esta se torna totalmente indefesa e impotente para fazer frente aos
danos que por algumas delas lhe são causados. Em face disso, não é somente o esgotamento dos
combustíveis fósseis que preocupa: mais grave que isso, é como fazer frente à poluição e suas
funestas conseqüências, como, por exemplo, a destruição da camada de ozônio que cobre (ou pelo
4
No original: income fuels, em contraste com os fósseis (capital fuels)
menos cobria) a terra; ou a impossível absorção de resíduos não biodegradáveis.5
No que tange aos dejetos materiais radioativos, o Dr. Edward D. David, quando consultor
científico do Presidente Nixon, falando acerca dos detritos produzidos pelo uso da energia atômica,
declarou que a gente tem uma sensação desagradável a respeito de uma coisa que tem de ficar
enterrada e hermeticamente fechada durante 25.000 anos até que se torne inofensiva. Além disso, o
condicionamento, transporte e armazenamento desse material acarretariam mais despesas de natureza econômica muito grandes, além de problemas outros imensuráveis de ordem ética e política.
Daí, pode concluir-se que a proposta de substituir bilhões de toneladas de combustíveis fósseis, consumidos anualmente, por energia nuclear não significa resolver o problema da produção de
combustível, mas tão somente transferi-lo para outra área, criando um problema de tal magnitude,
complexidade e amplitude, a respeito do qual não somente o Dr. Edward iria ter uma sensação
desagradável.
É evidente, pois, que os nossos métodos atuais de produção estão imprudentemente malbaratando os nossos recursos naturais, como se eles fossem algo que nós mesmos tivéssemos criado ou
produzido e pudessem ser facilmente substituídos.
Nossa afirmativa é que, agora, nossa tarefa consiste em desviarmo-nos dessa rota de colisão,
tarefa essa da qual ninguém – pobres ou ricos, moços ou velhos, poderosos ou desvalidos, crentes
ou ateus – se pode furtar. E o caminho para isso é criar e adotar um sistema de vida e novos
processos de produção, que sejam biologicamente corretos, e novos padrões de consumo. Em resumo: um estilo de vida baseado em valores éticos e morais e planejado para ser permanente.6
2.0. Produção: Alguns Aspectos Sociopsicológicos
Muito se fala em Revolução Industrial, de suas causas, de sua origem. Passados dois séculos
após o seu início, ela transformou a vida do homem ocidental, a natureza, sua sociedade e o relacionamento com outros povos do mundo.
Como assinala Landes, as palavras revolução industrial são usadas para denotar qualquer
mudança tecnológica rápida, de modo que os historiadores costumam falar em revolução industrial
do século XVIII, uma revolução industrial primitiva, uma segunda revolução industrial, revolução
industrial do Sul algodoeiro.
Não é fácil, porém, caracterizar, com razoável precisão, a época exata em que ela se iniciou.
A esse início, possivelmente, se possa associar, devido a sua importância e a sua diversificada
utilidade, o episódio da descoberta por Watt da máquina a vapor, por ele posta em funcionamento
em Bloomfield em 11 de março de 1776. Embora muito antiga a invenção de máquinas para fazer
o trabalho do homem, a sua associação com a força do vapor provocou uma enorme modificação
nos processos de produção, pois deu origem ao nascimento do sistema fabril de grande escala. No
início de 1800, a importância e a utilidade da invenção do Sr. Watt se havia tornado tão evidente
aos ingleses que ela estava em uso em 30 minas de carvão, 22 minas de cobre, 28 fundições, 17
cervejarias e 8 usinas de algodão7.
Na realidade, a verdadeira Revolução Industrial, ou pelo menos aquela a que nos estamos
5
Remetemos o leitor para o excelente livro de MEADWS, Denis L. et al. 1972, Os Limites do Crescimento Relatório para o projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade.
6
7
Quanto ao conceito de permanente, sugerimos a leitura do Cap. 2 do livro de Schumacher, 1973, já citado.
Cf. J. Lord, Capital and Steam Power, 1750-1800. P. S. King and Son, Londres, 1923, p. 175. (citado por
Huberman, 1936)
referindo, a que merece ser grafada com letras maiúsculas, foi a que começou na Inglaterra no
século XVIII, de onde se propagou em proporção e tempo desiguais para outros países.
Mais difícil, porém, do que indicar a época precisa do início da Revolução Industrial é localizar a nossa exata posição na trajetória do Industrialismo dos séculos XVIII e XIX para o futuro.
Não sabemos onde estamos, e nossos mapas são tão imprecisos e falsos como eram os mapas de
500 anos a. C. Mais preocupante ainda é que não sabemos para onde nos dirigimos, nem para onde
queremos ir. E isso é tão importante – ou mais – do que ter mapas atualizados.
O cerne da Revolução Industrial foi uma sucessão inter-relacionada de mudanças tecnológicas,
em que os avanços materiais ocorreram em três áreas: (1) houve uma substituição das habilidades
humanas por dispositivos mecânicos; (2) houve uma acentuada melhoria nos processos de extração
e transformação de matérias primas, principalmente as destinadas às indústrias hoje conhecidas
como metalúrgicas e químicas; (3) o fato de ter sido substituída a energia viva (de homens e animais) pela energia mecânica (vapor, petróleo, eletricidade, átomo).
A segunda Revolução Industrial, que vivemos, caracteriza-se pelo fato de não só a energia
viva continuar sendo substituída pela energia mecânica, como ainda por estar o pensamento humano sendo substituído pelo pensamento da máquina: a cibernética e a automação (ou se preferirem,
a cibernação) possibilitam a construção de máquinas que funcionam com mais precisão e muito
mais rapidez que o cérebro humano.
Continuamos professando o individualismo, a fé em Deus, defendendo os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, mas a realidade é a obsessiva conformidade do homem moderno –
o que é moderno, mesmo? – com o princípio materialista do hedonismo.
A grande maioria não sabe para onde vai, nem para onde quer ir: não percebe que o meio
social para o qual se está dirigindo é radicalmente diferente das antigas civilizações e até mesmo
da sociedade industrial tradicional. Essa diferença é muito mais acentuada do que terá sido aquela
da passagem da sociedade primitiva para a agrícola.
A sociedade atual não se dá conta de que o ano 2000, que se avizinha, não representará a
realização das aspirações do homem desde o fim da Idade Média, nem tampouco significará o
cumprimento e a culminação de um período em que o homem lutou pela liberdade e pela felicidade,
mas o início de um processo de desumanização do próprio ser humano, transformando-se este
numa insensível e irrefletida máquina.
Isso independe de ideologia, pois um conservador como Disraeli ou um socialista como Marx
já haviam previsto, cada um sob o seu ângulo de visão, o perigo que adviria para o ser humano de
um crescimento desordenado da produção e do consumo.
Mesmo hoje em dia, poucas são as pessoas – cientistas, empresários, comerciantes, intelectuais – a enxergar que o Leviatã de Hobbes é muito menos ameaçador que o monstro que a sociedade
moderna está dando à luz: o exagerado consumo, esse Moloque, o ídolo tão bem descrito por
Aldous Huxley em O admirável Mundo Novo, que tudo destrói e para quem a vida humana deve
ser sacrificada.
Já estamos entrando na sociedade tecnotrônica, como afirmam alguns, sujeita a um sistema
regido por dois princípios que orientam os esforços e os pensamentos de todos os que nela se
integram.
O primeiro deles é a máxima segundo a qual se algo pode ser feito deve ser feito, porque é
tecnicamente possível fazê-lo. Se é possível ir à Lua, tem-se que ir, mesmo que seja à custa da não
satisfação de muitas necessidades urgentes e prementes aqui na terra.
Esse critério de decisão contraria a filosofia humanista segundo a qual o que deve ser feito é
aquilo que é necessário ao homem, ao seu crescimento, alegria e razão; porque é belo, porque é
bom, porque é verdadeiro. E não nos venham dizer que o emprego de milhões de dólares que,
agora, estão sendo destinados a uma expedição para descobrir esperma de mamute tenha algo a ver
com essa filosofia.8
O outro princípio é o da eficiência e da produção máximas – o que, obviamente, conduz à
existência da individualidade mínima.
Ninguém, com um mínimo de bom senso, pode ser contra a eficiência e é exatamente por ser
a seu favor que afirmamos dever ela ser objeto de cuidadoso raciocínio: economicamente ser
eficiente é usar a menor quantidade possível de recursos para obter o efeito máximo. Isso, obviamente, deve ser usado no contexto histórico e evolutivo, mas principalmente em uma sociedade,
onde a escassez de material é uma realidade incontestável, sua importância tem que ser levada em
conta à medida que os fatores produtivos do meio social progridem.
Disso resulta um fato concreto com conseqüência lógica: se o princípio econômico dominante é o de que produzamos cada vez mais, se o que é produzido o é para ser consumido, o consumidor deve estar preparado para querer isso.
Aqui, outro aspecto da produção moderna: a indústria, em sua escalada de produção
exponencialmente aumentada, não depende das necessidades9 ou desejos do consumidor; ela se
vale consideravelmente da publicidade, a mais importante ofensiva contra o direito de as pessoas
saberem o que querem e daquilo de que precisam. A indústria não necessita dos desejos espontâneos do consumidor para quantidades cada vez maiores de mercadorias. Os produtos são fabricados
para cair em desuso. Com isso, ela força o consumidor a comprar produtos novos, quando os anteriores poderiam durar muito mais.
Caracterizada, sumariamente, sob o aspecto econômico, a sociedade atual, seja feita uma
breve consideração sobre o homem moderno.
De homo erectus, homo habilis, homo sapiens, homo ludens,homo economicus, talvez possa
ele, nos tempos atuais, ser caracterizado como homo consumens.
Tudo é objeto de consumo, tudo é pretexto para consumo, disso não escapando nem a religião. 10
As realizações são vistas quase que exclusivamente pelo seu valor material, melhor seria
dito, pelo seu valor monetário. Quando se fala da construção de um edifício, por exemplo, ressaltase que a obra custou 2 milhões de reais. Não se pensa na sua utilidade, nem em seu eventual valor
estético. Não se está pensando no seu valor concreto de uso, mas apenas no seu valor de troca.
Quando Gertrude Stein escreveu uma rosa é uma rosa, uma rosa...ela nada mais fazia do que
externar sua forma de protesto quanto a essa maneira abstrata de estimar as coisas; ela certamente,
também, estava apresentando o protesto das flores silvestres, tão formosas, que não são apreciadas
pela sua beleza, como a rosa, simplesmente por causa de seu valor de troca.
Essa abstratificação, no entanto, não diz respeito apenas às mercadorias vendáveis no mercado: ela contempla também outros aspectos, outros fenômenos. São comuns manchetes tais como
8
O material procurado, segundo o noticiário, (JB, 1o cad., p. 14, 30/07/97) destina-se a inseminar uma
elefanta africana. Não esclarece porque nen para que.
9
10
Para a economia, de modo geral, não existe o conceito de necessidade; ele é substituído pelo de demanda.
Mais de cem milhões de fiéis consumidores no país...A fé das pessoas motivará o consumo (O Globo,17/08/
97, Classificados, 3o cad., p. 1, a propósito da visita do Papa João Paulo II para o II Congresso Mundial da Família,
a realizado em outubro de 1998 no Rio de Janeiro).
Inundação causa prejuízos de 100 milhões de reais, Foi assassinado o dono do Bar Bracarense.
Não importa o número de vítimas da inundação, nem se o dono do Bar Bracarense era um ser
humano, certamente casado, com esposa, filhos; alguém que amava, sonhava, lutava.
Com os alimentos, a situação não é diferente: comemos, muitas vezes, um pão insípido e sem
qualquer valor alimentício, porque é tão branco e tão macio.
No campo artístico-cultural, a realidade não é diferente.11 Para a grande maioria, a cultura é
outro artigo de consumo, um símbolo de status. Visitar as vernissages atuais, ler os best sellers,
ouvir as músicas badaladas. Isso indica uma educação superior e ajuda a galgar um degrau na
escala social.
No entanto, o melhor da arte e da literatura foi transformado num artigo de consumo, e a
prova disso é que as mesmas pessoas que comparecem às galerias de arte, ouvem música clássica e
compram obras de Platão em brochura, assistem a apresentações vulgares da televisão sem repugnância. Se sua convivência com arte fosse autêntica, se não fossem alienadas, de certo desligariam
seus televisores, quando lhes fosse oferecido o espetáculo tosco e banal, tão freqüente na programação mundial. Em outras palavras, a visão artística e cultural do mundo antigo e moderno tem
seus substitutos reais no crime, no latrocínio, na violência, na pornografia, na mediocridade, estampados em alguns programas de televisão e noticiários de jornais.
O trabalho torna-se cada vez mais rotineiro e irreflexivo. O consumo, que devia ser um meio
para a obtenção da felicidade, tornou-se um fim em si mesmo: tão alienado quanto o processo de
produção. Se fosse perguntado a um homem moderno qual o seu conceito de céu, possivelmente ele
respondesse que seria viver numa grande loja de departamento, tendo dinheiro suficiente para
comprar tudo o que lá existisse.
Até mesmo a diversão tornou-se um consumo: consomem-se partidas de futebol, filmes cinematográficos, peças de teatro, jornais, revistas, livros, conferências, seminários, como se consomem mercadorias. A indústria da diversão é uma indústria como outra qualquer: seu produto é
julgado pelo êxito de mercado e não pelos seus valores humanos: um filme é avaliado pelo quantitativo de dinheiro que passou pelas bilheterias.
Nada melhor para comprovar isso do que o turista com uma máquina fotográfica: ocupado
em tirar fotos, ele nada vê a não ser através da lente de sua câmara.
O homem moderno sequer pode decidir como utilizar seu tempo disponível: seu consumo do
tempo de lazer é determinado pela indústria, como acontece com as diversões.
E qual a relação do homem moderno com seu semelhante? É uma abstração entre duas máquinas, que se usam reciprocamente. Nas relações humanas de nossos dias, não se encontra nem
muito amor nem muito ódio. Há uma relação superficial, atrás da qual estão o distanciamento e a
indiferença, e sua continuidade consiste na manutenção da existência de interesses comuns. Até o
relacionamento profundo do amor foi substituído pelo prazer sexual recíproco. E mesmo que as
máquinas pudessem cuidar de todo o trabalho, de todo o planejamento, elas não poderiam cuidar
dos problemas do relacionamento humano. E isso é verdadeiro, mesmo que haja pessoas como
Marcuse, que pensam numa sociedade cibernetizada e não-repressiva, completamente satisfeita
com a concretização de todos e seus desejos materiais, em que não haveria conflitos humanos,
como os expressos no teatro grego ou shakespeariano, ou nos romances de Dostoiewski e outros
grandes autores.
11
Cabe, aqui, um reconhecimento à sociedade industrial: hoje, graças a ela, milhões de pessoas têm possibilidade de ouvir música excelente, gravada ou ao vivo, e de ler obras-primas da literatura universal, em edições de fácil
aquisição
Consigo mesmo, essa relação do homem não é tão diferente: é uma orientação puramente
mercantil, onde ele se sente como uma coisa a ser empregada com êxito no mercado. Não se sente
como um agente ativo, dono de todas as suas imensas potencialidades humanas. Sua finalidade é
vender-se com êxito no mercado de trabalho. E mesmo essa venda é manipulada, pois a privacidade das pessoas tem sido violentada por esses testes psicológicos, que se aplicam aos candidatos ao
trabalho: muitas vezes nada mais tencionam que detectar a existência de qualidades profissionais e
pessoais que caracterizem atitudes normais, desejáveis e saudáveis, julgadas necessárias para o
desempenho do cargo ou função, e que são imprescindíveis para a obtenção de um emprego. Lamentavelmente, psicólogos existem que utilizam todo o conhecimento que têm do homem para
manipulá-lo no interesse do que as grandes e pequenas organizações consideram ser eficiência.12
Tornam-se, assim, alguns psicólogos, parte importante do sistema industrial, julgando que
sua atividade contribui para o desenvolvimento do ser humano, cujo sentimento de identidade
passa a resultar não de sua atividade de ser vivente e pensante, mas de seu papel sócio-econômico.
3.0. Algumas Constatações até Certo Ponto Óbvias, com Conseqüências,
Possivelmente, Nenhumas
Não se pode afirmar que o nosso futuro esteja determinado pela economia; negar, porém, sua
grande influência seria ingênuo. Suas teorias e seus conceitos sobre o que é ou não é importante e
necessário saltam aos olhos. E isto não é afirmado com qualquer má vontade, prevenção ou preconceito. Apesar de o desenvolvi-mento sistemático dessas teorias e conceitos somente terem surgido no final do século XVII e princípios do Século XVIII com os trabalhos de Petty, Quesnay e
Adam Smith, já nos escritos de filósofos gregos, e até mesmo na mais antiga sociedade do Antigo
Testamento, aparecem algumas das características do Capitalismo moderno: propriedade privada,
divisão do trabalho, mercados e moedas.13
Keynes adverte-nos para não superestimarmos a importância do problema econômico ou
sacrificarmos às suas alegadas necessidades outros assuntos de significado maior e mais permanente; contradiz-se, porém, ao afirmar que a avareza, a usura e a precaução têm de ser os nossos
deuses por mais ainda algum tempo.
O crescimento econômico, a expansão econômica, o desempenho econômico, têm-se tornado o interesse obsessivo das sociedades modernas, o quase único objetivo colimado pelos governos: até a saúde da população pode ir mal, desde que a saúde da economia (dos banqueiros, dizem
alguns!) vá bem.
A maior dificuldade, porém, é conceituar o que é econômico ou antieconômico, principalmente quando se leva em consideração o fator temporal.
Keynes, de uma maneira até certo ponto cínica, disse que o curto prazo tem um peso específico muito maior que o longo prazo, pois neste estaremos todos mortos. Além do mais, na composição do item custo, são excluídos todos os bens gratuitos, isto é, todo o meio ambiente criado por
Deus, exceto, obviamente, aqueles dos quais já se apropriaram as entidades privadas.
12
É a face atualizada e personalizada dos entreguistas cínicos de ontem, de hoje e de sempre, que afirmam que
tudo o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil ou, no âmbito tupiniquim, tudo o que é bom para o
sistema financeiro é bom para a população.
13
Não se pode exigir desses escritos o sentido moderno dos atuais conceitos de Economia, pois nas sociedades
em que viviam os seus autores, as condições econômicas eram bem diferentes das da sociedade atual.
Outro aspecto a considerar é que a Economia lida com os bens, quer sejam primários, adquiridos da natureza, quer secundários, obtidos a partir daqueles, considerando tão somente o seu
valor de mercado e não o que são realmente.
A igualdade desse tratamento decorre do fato de que todos eles, primários ou secundários,
são vistos sob a óptica da lucratividade privada, a qual não tem limitação de valor: o céu é o limite.
Em resumo, a Economia lida com bens e serviços sob o ponto de vista de mercado e isso
envolve vendedores à procura de maior lucro e compradores que não estão absolutamente interessados na origem dos bens, mas tão somente em conseguir o máximo com seu dinheiro, motivados
muito mais pelo sorriso da bela moça da propaganda, por exemplo da coca-cola, do que pelo sabor
dessa bebida. Da mesma forma, os fumantes, apesar dos terríveis efeitos para a saúde provocados
pelo cigarro – não somos ingênuos ao ponto de menosprezar o passageiro alívio de tensão que
fumar provoca, nem a existência do vício – são motivados, muito mais, pela sensação de estar no
mundo de Malboro. O fato é que a propaganda é a técnica ideal da competição imperfeita e elimina
o coeficiente de elasticidade-preço do produto, tornando necessários os bens supérfluos. Fica assim
revogada a lei da oferta e da demanda, sempre considerada tão irrevogável quanto a lei da gravidade, e prevalece a lei da oferta e do lucro: de fato, se prevalecesse a lei da oferta e da demanda
(demanda aí considerada sinônimo de necessidade), num mundo em que existem 2 bilhões de
famintos, a prioridade seria para a produção de alimentos e não para a produção de bens de luxo.
O mercado representa apenas, portanto, a superfície da sociedade e seu significado diz respeito tão somente à situação momentânea: seus participantes não estão preocupados se a atividade
é econômica ou não; se o produto que fabrica ou compra é econômico ou antieconômico; se conserva ou destrói o meio ambiente; se é voltado ou não para atender as necessidades básicas da humanidade. Despesas de bilhões de dólares em publicidade direta pode parecer irracional; mas é absolutamente racional quando se considera que o aumento do consumo é um traço característico do
sistema em que vivemos. Mais que racional, é necessário para mantê-lo
Deste modo, a Economia opera legítima e utilmente dentro de uma estrutura existente, que
não leva em conta, no seu cálculo econômico, fatores que deveriam ser os primordiais de seu
objeto: os bens naturais, o capital natural, tratado muitas vezes como renda, podendo e até devendo
ser consumido sem qualquer preocupação ou poupança.
Conclusão
Não temos a veleidade de querer caracterizar a tecnologia e muito menos limitar-lhe as fronteiras. Estamos convictos, porém, de que essa tecnologia não reconhece um princípio autolimitador,
não possuindo, conseqüentemente, as virtudes do auto-equilíbrio, auto-regulamentação e
autolimpeza.
No sutil sistema da natureza, a super tecnologia do mundo atual procede como um corpo
estranho, e já se podem notar sinais evidentes de rejeição.
Está claro para qualquer observador mais atento que as depredações cometidas contra os
recursos naturais não renováveis, em especial, os combustíveis fósseis, estão causando estrangulamentos e sua virtual exaustão aguarda-nos num futuro próximo e já bastante previsível.
A missão principal da tecnologia devia ser aliviar o fardo do trabalho que o homem tem que
carregar para manter-se vivo e desenvolver todas as suas potencialidades, e não para aumentar a
produtividade de organizações para maximizar o lucro, ou mesmo propiciar a nações a expansão do
seu domínio econômico e sócio-político.
Do ponto de vista econômico, isso poderá concretizar-se quando o estudo da casa (Ecologia)
e a administração da casa (Economia) puderem fundir-se, e quando a ética puder ser estendida
para incluir o meio ambiente, além dos valores humanos tradicionais.
Por mais que cresça o Produto Nacional Bruto, ele não é vivenciado por pessoas reais, que se
sentem oprimidas por crescente frustração, alienação e insegurança. A causa disso está em que, na
sociedade consumista, tornam-se os seus componentes cada vez mais incapazes de solucionar os
mais elementares problemas de sua vivência quotidiana e dimensionar o verdadeiro sentido de sua
existência.
As pessoas, atualmente, não se estão dando conta de seus verdadeiros interesses, entregandose a um frenesi de voraz consumismo: comprar mais coisas, coisas melhores e coisas novas; não se
dão conta de que há outras características humanas, baseadas em conceitos autênticos, como a
identidade e a integridade, cuja validade não pode ser esquecida.
A identidade, no sentido humano, só existe no estado de atividade espontânea, não no estado
de passividade, em que as pessoas estão suficientemente despertas para os seus negócios, mas não
o bastante para sentir o próprio eu, como o centro ativo dentro de si mesmas. Muitos confundem a
identidade do ser com a identidade do ter e, optando pelo ter, perdem a identidade do ser.
A integridade é a disposição de não violar a própria identidade nas muitas maneiras em que
essa violação é possível. É preciso esvaziar o próprio ego (ego aí no sentido de ter) e tornar-se
pobre, a fim de ficar rico.
No Ocidente e no Oriente, nos escritos dos grandes filósofos humanistas, desde os présocráticos aos pensadores contemporâ-neos; nas grandes religiões, judaísmo, cristianismo,
bramanismo, os autênticos valores existentes são o amor, a compaixão, a esperança, etc.
Na sociedade industrial, esses valores existem consciente-mente, mas, na realidade, os valores que predominam são os inconscientes, os de consumo, diversão, posição social, e a emoção. É
absolutamente fundamental eliminar essa discrepância, pois ela devasta a personalidade.
A dificuldade reside em que, na sociedade industrial, a prática dos valores tradicionais tornase mais difícil, precisamente porque o homem materializado pouco experimenta de sua vida, deixando-se dirigir pelos princípios que lhe são programados pela máquina.
Assim, qualquer esperança de vitória sobre a sociedade desumanizada da megamáquina repousa na restauração daqueles valores.
A reestruturação da vida social e da individual reduz a nossa escolha a que tipo de estrutura
queremos adotar. De fato, a maioria das pessoas oscila entre vários sistemas de valores; de ser
competitiva, bem sucedida ao máximo no mercado, apreciada por todos e, ao mesmo tempo, terna,
amorosa e íntegra. Ou seja, viver em estruturas diferentes com as partes valorizadas de uma e com
as partes preferidas de outra. E isso não é viável.
O homem, e não a técnica, deve ser a fonte básica de valores; o desenvolvimento humano
ótimo, e não a produção máxima, deve ser o critério para todo planejamento.
Isso só se concretizará, se economistas e planejadores se conscientizarem dessa realidade e
começarem a estudar essa situação, embora isso não pareça urgente do ponto de vista prático; é
muito importante que os especialistas se voltem para esse problema e, para isso, é imprescindível
que se conscientizem de sua importância. Não vemos outra solução.
Utopia? Talvez. Mas é uma utopia que, se não se tornar realidade, a tendência é caminharmos
para uma situação incontrolável, cujos resultados são imprevisíveis.
Keynes, citado neste trabalho mais de uma vez, afirmou não ter chegado ainda a hora para um
retorno a alguns dos mais seguros e corretos princípios da religião e da virtude tradicional: de que
a avareza é um vício, a extorsão do usuário é uma contravenção e o amor ao dinheiro é detestável...14
Quanto mais, porém, se deixe que esse processo avance, mais difícil será invertê-lo, se é que
ele ainda não ultrapassou já o limite de irreversibilidade. 15
Existe, principalmente por parte dos países ricos, uma imperturbável conspiração do silêncio: negá-los (aspectos considerados neste trabalho) seria por demais absurdo, e reconhecê-los
seria condenar a preocupação central da sociedade (consumista) moderna como um crime de
lesa-humanidade. (Schumacher, p. 31)
Além da destruição dos bens naturais, com todas as conseqüências presentes e futuras que
acarreta, o atual sistema de produção adota uma filosofia que desconhece que o trabalho, como hoje
é exercido, perde a sua dignidade e até mesmo o seu valor material, tornado que tem sido destruidor
da alma, desprovido de significado, mecânico, monótono e imbecilizante, verdadeiro insulto à
natureza humana.
Não nos podemos entregar à descrença ou ao desânimo. Se formos poucos, lembremo-nos de
quantos eram os cristãos nos seus primórdios; ou mesmo os quackers nas suas origens.
Além do mais, deve haver múltiplas forças em marcha, múltiplos movimentos solidários
com o ideal de uma vida mais humana e mais feliz, caminhando obscuramente. Cabe-nos engrossar
suas fileiras Cada um deve fazer a sua parte.
Erich Fromm já escreveu que é preciso ter esperança e ter esperança significa estar pronto a
todo o momento para aquilo que ainda não ocorreu e não desesperar se não ocorrer nascimento
algum durante nossa existência.
A esperança não é uma visão do futuro; a esperança deve ser uma certeza no presente em
estado de gravidez.
Para concluir, transcreveremos a mesma frase com que Schumacher conclui o seu livro, tantas vezes citado:
O que posso de fato fazer? A resposta é tão simples quanto desconcertante: podemos, cada
um de nós, pôr nossa própria casa em ordem. A orientação de que carecemos para esse
trabalho não pode ser encontrada na ciência ou na tecnologia, cujo valor depende profundamente dos fins a que servem; mas ainda pode ser encontrada na tradicional sabedoria da
humanidade.
(*) Adjunto da Divisão de Assuntos Internacionais da Escola Superior de Guerra, Mestre em
Engenharia Civil e Doutor em Ciências.
14
Citado por Schumacher, pp. 26 e 35)
15
Point of no return, no original.
BIBLIOGRAFIA
FROMM, Erich, The Revolution of Hope - Toward a Humanized Technology [ Trad. Bras. de 1968
Edmond Jorge, A revolução da Esperança - Por uma Tecnologia Humanizada, Zahar Editores,
Rio de Janeiro, 1969].
HUBERMAN, Leo, Man’s Worldly Goods [Trad. Bras. de Waltensir Dutra, História da Riqueza
1936 do Homem, LTC - Livros Técnico e Científicos, Rio de Janeiro, 1968].
LANDES, David S., The Unbound Prometheus [Trad. Bras. de Vera Ribeiro, Prometeu 1969
Desacorrentado, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994].
SCHUMACHER, E. F., Small is Beautiful [Trad. Bras. de Octávio Alves Velho, O Negócio é 1973
Ser Pequeno, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977].
A ESTRATÉGIA EMPRESARIAL NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO
Júlio Sérgio Dolce (*)
Clarissa Dolce Anderson (**)
“Keep your objectives always in mind, while adapting your plan to circumstances” - Sir
Liddell Hart
Resumo
Atualmente tem se discutido, intensamente, nos círculos acadêmicos e nas empresas, o fato
de que as estratégias empresariais baseadas em sistemas de informação (SI) e montadas a partir das
novas tecnologias da informação (TI), podem levar as organizações tanto ao sucesso como à falência. Diferentes modelos para formação e implementação das estratégias de SI/TI nas empresas tem
sido apresentados e testados, porém, na sua maioria ligados às estratégias corporativas mecanicistas
do século passado. Este artigo apresenta diferentes perspectivas no emprego das estratégias de SI/
TI e sugere de que modo as empresas devem se organizar para competir na nova sociedade do
conhecimento que começa a se instalar num mundo globalizado. Faz ainda uma crítica ao modelo
de alinhamento automático entre a estratégia de SI/TI e a estratégia corporativa. Nesse modelo, SI/
TI serve apenas de suporte à implementação da estratégia da empresa. Da teoria da complexidade
surgem as idéias de auto-organização (self-organization) e autoprodução (autopoiesis) para mostrar que as empresas, na sociedade do conhecimento, devem ser tratadas como sistemas biológicos
autoproduzidos. Nessas empresas, a estratégia corporativa surge num processo de auto-organização, onde se dá grande importância à capacidade de improvisação e multifunção (bricolage) dos
seus componentes, uma perspectiva ainda não percebida por muitos administradores. Nesse novo
enfoque, a estratégia de SI/TI resulta do acoplamento estrutural entre a estratégia corporativa
autoproduzida e as tecnologias de informa-ção, existentes no ambiente interno e externo da empresa. Finalmente, para que as organizações prosperem na complexa sociedade do conhecimento, elas
devem gerar processos criativos de crescimento coerentes com a sua identidade. Isso se torna possível à medida em que as empresas encontram o equilíbrio entre o grau de abertura às perturbações
na sua estrutura e de flexibilidade em permitir improvisação nos seus métodos e processos.
1.
Introdução
1.1. Conceitos Iniciais
A utilização do SI na administração de empresas surgiu, há três décadas atrás, como um
modelo a ser adotado por todas as organizações modernas. Depois de alguns insucessos, muitas
vezes erroneamente, atribuídos à falta de competência técnica dos seus executores, descobriu-se
que, na verdade, era preciso uma profunda reformulação nas estratégias de emprego do SI, de modo
a tirar dele a pecha de racionalismo, certeza e controle quase absolutos. Atualmente, os sistemas de
informação vão além do campo puramente tecnológico e são muito mais do que complexos sistemas computacionais. Eles ganharam um status social e passaram a ser debatidos por filósofos,
sociólogos, administradores, estrategistas, psicólogos tanto quanto por técnicos e cientistas. Por
isso, o estudo de SI ganhou um caráter interdisciplinar devido aos diversos domínios que ele abrange e seus atores não são mais meros usuários, mas passaram a ser ativos participantes do sistema, o
que trás conseqüências imprevisíveis. Essa nova perspectiva vai permitir ao SI uma inserção mais
natural no processo, mais próxima da realidade e certamente substituirá, definitivamente, as antigas idéias de um sistema computacional impenetrável e todo poderoso das organizações.
Antes de continuar este artigo, vamos definir e diferenciar sistema de informação (SI) de
tecnologia da informação (TI). De uma maneira geral, podemos dizer que sistema de informação
(SI) se refere a um conjunto de interações que compreende não apenas artefatos tecnológicos mas
também os processos, as pessoas, suas idéias e as múltiplas interações que ocorrem entre os membros de uma organização, no ambiente interno e com outras organizações, no ambiente externo. Já
tecnologia da informação (TI) se refere aos equipamentos de toda natureza e aos meios materiais de
toda ordem que compõem o sistema de informação, incluindo, principalmente, o sistema de computação.
1.2. Principais Aspectos da Teoria da Complexidade
A teoria dos sistemas complexos é uma teoria interdisciplinar que cresceu enormemente nos
últimos vinte anos. Na verdade, ela é composta de várias teorias dos diversos campos do saber, de
onde obtém seus principais conceitos. Uma dessas teoria é a teoria do caos, aplicada a ciências tão
diversas como Biologia, Química, Matemática, Física e mais recentemente à Administração de
Empresas.
O estudo da teoria da complexidade levanta questões sobre a real eficácia em administrar
uma empresa pelo modo tradicional e linear de comando e controle, propostos nos manuais de
administração. Hoje em dia, sabe-se que as empresas, por serem organizações sociais, possuem
sistemas complexos com estruturas imprevisíveis, incertas e em permanente desequilíbrio. Empregando a analogia com os sistemas vivos, ao invés das máquinas, os administradores podem, através
desse novo enfoque, mudar seu ponto de vista e perceber que para uma empresa atingir o sucesso,
na sociedade do conhecimento, os relacionamentos pessoais e as comunicações são muito mais
importantes do que os processos e a estrutura da organização.
A teoria da complexidade trata da inovação, aprendizado e adaptação dos sistemas, além da
natureza dos acontecimentos em um universo integral e por demais rico e variado para ser compreendido por mecanismos simples, obedecendo comportamen-tos lineares. Alguns processos no universo podem ser entendidos por esse modo mecanicista de pensar, já os fenômenos mais abrangentes
e intrincados só podem ser compreendidos através de novos princípios e modelos, como os propostos pela teoria da complexidade.
Uma exposição mais aprofundada da teoria da complexidade e suas aplicações estão além
dos objetivos deste artigo, porém alguns dos seus conceitos principais serão brevemente explicados pois serão empregados na teoria da auto-organização que utilizaremos a seguir.
- Não linearidade: não existe proporcionalidade entre causa e efeito, entre “input” e “output”.
- Sensibilidade às condições iniciais: pequenas mudanças nas condições iniciais podem gerar
grandes variações nas condições finais, fazendo o sistema ficar extremamente volátil.
- Estrutura fractal: estrutura onde existe uma repetição de padrões semelhantes nas diversas escalas do sistema. As coisas não ficam mais simples só porque as escalas ficam menores.
- Realimentação (“feedback”): realimentação alternadamente positiva e negativa conduz o sistema a um estado de estabilidade. Quando apenas negativa conduz o sistema a estados cada vez
mais equilibrados e quando apenas positiva leva a um estado de desequilíbrio ou a um ponto de
bifurcação.
- “Borda do caos”: bem longe do ponto de equilíbrio ocorre um estado especial e transitório que
não é nem de estabilidade ou de instabilidade, onde a ordem e a desordem coexistem, paradoxalmente, permitindo o surgimento da criatividade.
- Sistema emergente: sistemas complexos que exibem propriedades que são importantes quando
analisadas no contexto geral, mas, isoladamente, não apresentam nada em especial. Desse modo,
o completo conhecimento das propriedades individuais não é suficiente para se inferir as propriedades do todo.
- Auto-organização: processo referente ao surgimento espontâneo de ordem na escala macro de
um sistema, como resultante de interações em níveis inferiores.
- Sistemas complexos adaptativos: sistemas complexos abertos (trocam energia e matéria com o
exterior) formados por agentes heterogêneos que interagem de modo não linear, ao longo do
tempo, entre si e com o meio externo sendo capazes de adaptar seu comportamento baseado na
experiência.
1.3. Principais Aspectos da Teoria da Auto-organização
Dentro da teoria da auto-organização existem dois conceitos importantes que serão apresentados a fim de se entender melhor como os fenômenos da auto-organização podem influenciar a
estratégia empresarial na sociedade do conhecimento. O primeiro é o conceito de estruturas
dissipativas, com suas interpretações e aplicações, que será explicado sumariamente, e o segundo é
o conceito de autoprodução (autopoiesis) que será explicado em maiores detalhes, pois servirá de
base para este trabalho.
1.3.1.
Estruturas Dissipativas
Estruturas dissipativas são sistemas abertos onde reações físico-químicas mantêm as trocas
de energia e matéria com o meio exterior de tal modo que isso produz uma auto-organização e uma
estrutura estável global por um período de tempo prolongado, mantendo continuamente a dissipação de entropia igual a entropia gerada nesse processo. Essas estruturas foram estudadas por Ilya
Prigogine que estabeleceu o princípio da flutuação, fenômeno que ocorre em sistemas abertos bem
longe do ponto de equilibro termodinâmico.
De acordo com a Segunda Lei da Termodinâmica, a entropia de um sistema isolado cresce até
atingir o estado de equilíbrio termodinâmico. Futuros estados só podem ter igual ou maior entropia
enquanto estados passados só podem ter igual ou menor entropia. Os valores de igualdade são
teóricos e dizem respeitos àqueles sistemas que passam por transformações ditas reversíveis.
No mundo real, as transformações de um sistema são sempre irreversíveis, ocasionando o
aumento da entropia nos estados subsequentes. Esse aumento de entropia pode ser interpretado
como um aumento da desordem do sistema, em direção à máxima desordem. Entretanto, nos sistemas abertos com estruturas dissipativas existe a possibilidade de continuamente importar energia
do meio externo e exportar entropia. Desse modo, uma nova ordem surge nessas estruturas que se
tornam casos especiais de auto-organização espontânea, em continua evolução. Esses sistemas se
encontram em estado de auto-organização dissipativa em oposição à auto-organização conservativa
que ocorre nos sistemas fechados em estado de equilíbrio termodinâmico.
Existem três condições para que espontaneamente ocorra a formação de estruturas dissipativas
em um sistema: 1. abertura para o meio externo com troca de energia e matéria, 2. estar bem longe
do ponto de equilíbrio termodinâmico e 3. presença de reações catalíticas em cadeia auto-alimentadas. Isso tudo resulta num comportamento não-linear dos processos, onde a ordem ora é destruída
ora é preservada, ou então ela surge bem longe do ponto de equilíbrio termodinâmico, depois de um
período de instabilidade. Quando atinge esse ponto o sistema parece se renovar continuamente,
mantendo um regime de estabilidade global no espaço e no tempo, como se existisse apenas para
manter sua integridade e auto-renovação.
1.3.2.
Autoprodução (autopoiesis)
A palavra poiesis vem do grego e quer dizer produção, daí “autopoiesis” autoprodução. Um
sistema autoproduzido é um sistema capaz de gerar seus próprios componentes e processos, e
sempre que necessário, por si mesmo, reorganizar sua estrutura para se ajustar a um novo ambiente,
sem perder sua identidade. Uma célula, por exemplo, produz seus componentes e processos por si
mesma que por sua vez a mantém viva. Ela recebe energia do meio e produz os componentes e
processos que a constitui que por sua vez são os elementos capazes de gerar esses componentes e
processos num, círculo contínuo. Todos os sistemas vivos, de acordo com Varela e Maturana, são
sistemas autoproduzidos que funcionam como entidades autônomas. Eles desenvolveram um critério de seis pontos para identificar se um sistema é autoproduzido:
1.Todos os componentes do sistema analisado devem estar perfeitamente identificados;
2.As propriedades dos componentes devem seguir princípios que estabeleçam relações de
causa e efeito nas transformações desses componentes;
3.O sistema deve ter uma fronteira com o meio externo perfeitamente delimitada;
4. A fronteira deve permitir relações de troca com o meio exterior;
5.A fronteira do sistema deve ser mantida pela interação dos componentes do sistema e
portanto deve ser autoproduzida
6. Todos os componentes do sistema também devem ser autoproduzidos.
Existem algumas definições dentro da teoria da autoprodução que são importantes para o
perfeito entendimento de como uma teoria surgida na Biologia pode vir a ser aplicada nas ciências sociais. Vamos considerar alguns desses conceitos antes de aplicar essa teoria na modelagem
de uma estratégia empresarial.
a) Organização e Estrutura: Organização se refere as relações entre os componentes de
uma entidade que definem as características dessa entidade de um modo único. A organização de
um sistema determina sua identidade e o envoltório onde ele existe como unidade. Em outras
palavras, são as propriedades ou relações essenciais de um sistema que o diferencia dos demais e
que se não estiverem presentes podem transformá-lo em outro sistema. Já estrutura se refere a
situação atual e a relação existente entre os componentes de um sistema no momento que é
observado. A estrutura se constitui numa situação particular da entidade. A estrutura de um
sistema pode ser mudada sem perda da sua identidade, desde que sua organização seja mantida.
Por exemplo, organização é relação que os componentes de uma mesa devem ter entre si, para
que ao observá-la possamos designá-la como mesa e não como uma cadeira ou uma porta. Uma
mesa ainda continua organizada como tal mesmo tendo sua estrutura modificada por uma perna
mais curta.
b) Sistemas determinados pela sua estrutura: São sistemas cujo comportamento é limitado
pela sua estrutura. As modificações ocorridas nele dependem do seu estado num determinado
instante. As possíveis transformações dependem das propriedades dos seus componentes estruturais e ocorrem em resposta a estímulos internos e externos. Entretanto, o meio exterior pode
apenas inicializar essas mudanças, que na verdade, são determinadas internamente. A estrutura
portanto define o alcance potencial dessas transformações e o conjunto de possíveis perturbações
do meio externo que podem inicializar as mudanças de estado do sistema. São as chamadas
organizações monolíticas que podem mudar mas somente elas determinam onde e como mudar.
c) Sistemas fechados organizacionalmente: São sistemas que não recebem nem fornecem
estímulos ao meio exterior. Todos os possíveis estados de atividade devem sempre conduzir ou
gerar atividades dentro deles mesmos. Sistemas autoproduzidos são desse tipo desde que o
resultado da organização é sua própria organização. Não confundir com sistemas isolados que
são sistemas com nenhum tipo de interação com o meio exterior, enquanto os sistemas fechados
organizacionalmente possuem estruturas abertas interativamente, embora não aceitem qualquer
forma de “input” ou “output” do meio exterior. São sistemas formados por sub-sistemas
interconexos, com esquema de retroalimentação negativo que cria características
comportamentais autoreferenciadas. Organizações que se acham auto-suficientes e pouco se
importam com o meio exterior.
d) Acoplamento estrutural: Este é um evento que ocorre onde quer que exista uma estória
de recorrentes interações conduzindo a uma coerência estrutural entre dois ou mais sistemas. É
semelhante ao conceito de adaptação, só que no caso do acoplamento estrutural ao meio exterior,
este não condiciona as mudanças que estão sendo realizadas. As mudanças podem ocorrer e
manter a autoprodução ou não ocorrer e conduzir o sistema à estagnação e até a sua falência.
e) Mudanças estruturais ontogônicas: Diz respeito àqueles sistemas que mantêm sua
organização quando interagem com o meio exterior por meio de acoplamento estrutural onde a
seqüência das transformações determina a estória da organização.
f) Sistemas autônomos: Sistemas autoproduzidos são também do tipo autônomos uma vez
que eles devem produzir seus próprios componentes além de conservar sua organização.
A idéia de organizações como sistemas sociais autoproduzi-dos é extremamente interessante
mas problemática. Dois aspectos precisam ser levados em conta tais como o da produção dos componentes do sistema social e o da produção dos elementos que constituem a fronteira que separa o
sistema do meio exterior. Esses dois aspectos são importantes para a definição de autoprodução e
não podem ser ignorados quando se trabalha com sistemas sociais.
Os pesquisadores em autoprodução aplicada a sistemas sociais podem ser divididos em dois
grandes grupos. O primeiro cuida apenas dos aspectos formais da teoria de autoprodução dentro da
organização social e trata a empresa como um sistema unitário, organizada como uma rede coerente de partes e processos, ao qual a autoprodução se insere. Já o segundo grupo busca entender os
aspectos fenomenológicos tais como a observação, a linguagem e o acoplamento estrutural e vê a
empresa como uma unidade que emerge da interatividade dos seus participantes, os quais dão
suporte à organização e, por isso mesmo, são o objeto fundamental do interesse dos pesquisadores.
2.
Aplicação da Teoria da Complexidade em Sistemas Sociais
Nas últimas décadas, o mundo acadêmico tem sido inundado com artigos que procuram aplicar a teoria da complexidade, devido a sua natureza multidisciplinar, para explicar os mais variados
fenômenos. Apesar dessa teoria ter sido, inicialmente, criada a partir das ciências naturais ela vem
sendo aplicada, mais recentemente, também às ciências sociais e em particular na problemática da
administração empresarial. Essa transferência do domínio das ciências naturais para as sociais tem
gerado controvérsias e trazido à superfície importantes aspectos, tanto filosóficos como práticos,
até então escondidos pela impetuosidade dos pesquisadores e administradores em apresentar rápidas soluções para os problemas da organização empresarial.
Na ciência administrativa, termos como controle, burocracia, cultura, efetividade, estratégia,
competição, eficiência, eficácia, ambiência, aprendizado, informação, conhecimento, entre outros,
são altamente abstratos, difíceis de serem observados e quantificados. Por isso, eles não se prestam
a aplicação do método cientifico e, por serem quase intangíveis, não possuem instrumentos confiáveis
para sua medição. A procura de uma correspondência entre os elementos de um sistema natural
complexo e de um sistema social é um processo mecanicista que viola a essência da própria teoria
da complexidade. Alguns autores que buscam um modo racional de ajustar às ciências sociais
conceitos como: certeza, controle e predicabilidade, se colocam no sentido oposto da nova onda
caótica e incerta, inexoravelmente, trazida pela teoria que eles mesmos tentam aplicar.
Apesar dos componentes de um sistema social serem bem distintos na sua essência, ainda
assim muitas semelhanças e comparações podem ser encontradas entre eles e os componentes de
um sistema físico. Existem várias dificuldades quando se trata de transferir os conceitos estabelecidos em um campo do saber para outro completamente diferente e os pesquisadores não ignoram
essas barreiras que dificultam o uso eficiente da teoria da complexidade nas ciências sociais. Dificuldades que surgem das contradições ontológicas e epistemológicas que ocorrem, sobretudo, quando
se deixa o campo puramente teórico para o da aplicação prática. Entretanto, apesar dessas discrepâncias serem relevantes num estudo mais rigoroso, alguns pesquisadores ainda acreditam que por
analogia, se deixarmos de lado algumas formalidades, seja possível a aplicação da teoria da complexidade no campo social, de modo simplificado e metafórico.
3.
O Processo de Formação da Estratégia Empresarial
Estratégia é um dos conceitos mais importantes e polêmicos em administração de empresas.
Importado das aplicações militares, como a arte dos generais em empregar os meios disponíveis
para atingir seus objetivos, a estratégia vem sendo aplicada no mundo dos negócios desde as primeiras formulações da moderna administração industrial e tem se tornado tópico obrigatório na
literatura sobre administração, nas últimas décadas. Principalmente, depois que os pesquisadores
passaram a utilizar, na administração, as reflexões sobre estratégia militar e arte da guerra escritas
por Clausewitz, no Século XIX, Liddell Hart, neste século e muito anteriormente por Sun Tzu, no
século IV A.C.
Mais recentemente, o termo estratégia, aplicado ao modo de administrar uma empresa, vem
sendo redefinido por diversos autores que apresentaram outras perspectivas e novas concepções
para o termo estratégia, como vem sendo empregado na literatura especializada. As mais comuns
incluem o “processo de adaptar as atividades de uma organização à sua capacidade de recursos e ao
meio ambiente” (Johnson & Scholes) ou “o conjunto de filosofias e programas de uma empresa”
(Angell e Smithson). Entretanto, a maior parte dos autores modernos concordam que estratégia
representa o conjunto de planos e intenções elaborados por administradores seniores a fim de obter
resultados de acordo com suas expectativas.
O trabalho publicado por Mintzberg (1987) foi o mais importante para estabelecer que o
termo estratégia, aplicado aos negócios, requeria mais de uma definição para seu perfeito entendimento. Ele apresentou sua teoria através de cinco P’s, a saber em Inglês: plan, pattern, position,
perspective, ploy. 1. Estratégia é um plano, uma direção, um caminho, um olhar à frente, um propósito e por isso mesmo entendida como estratégia de intenções. 2. Estratégia é um modelo, uma
tendência a ser seguida baseada no comportamento passado e tanto pode assumir a forma de uma
estratégia pré concebida, quando derivada de modelos anteriormente estabelecidos, quanto assumir
a forma de uma estratégia emergente, quando surge naturalmente no desenrolar das atividades. 3.
Estratégia é posição pois envolve a escolha de uma base física ou uma situação vantajosa. 4. Estratégia é uma perspectiva, uma visão da organização. 5. Estratégia, finalmente, pode ser vista como
uma artimanha, uma manobra para vencer um competidor. Em outras palavras podemos dizer que
estratégia indica a direção e estabelece a manobra, concentra os esforços e busca a definição, posiciona
a empresa e sobretudo proporciona consistência às decisões.
Mais recentemente, surge uma outra questão que se junta ao debate do emprego da estratégia
no mundo dos negócios: trata-se da relação entre a estratégia corporativa e a estratégia de SI/TI.
Estava claro pela lógica e na prática que os sistemas de informação (SI) e as tecnologias de informação (TI) não podiam ficar divorciados das intenções e dos objetivos da empresa. Sob esse ponto
de vista a teoria do alinhamento estava correta, entretanto é preferível ver isso mais como uma
coerência estratégica do que uma subordinação. Entretanto, foi o modo cartesiano de ver o mundo
que fez com que se elaborasse a teoria do alinhamento de uma maneira completamente inapropriada
para a sociedade do conhecimento. Os conceitos válidos para a organização das empresas na era
industrial não mais prevaleciam numa sociedade onde a velocidade das informações obrigavamnas a constantes transformações.
Claudio Ciborra em resposta a esses desafios propôs uma perspectiva alternativa na qual ele
mostrava que a estratégia de formulação e implementação dos negócios não poderia ser separada da
sua fase de execução, como era proposto na teoria do alinhamento. Ele mostrou que, num mundo
de rápidas transformações, a multifunção (bricolage) e a improvisação exerciam um importante
papel na forma e no modo como a estratégia seria executada. Suas idéias casaram perfeitamente
com o trabalho que Mintzberg estava começando a publicar na área de estratégia empresarial.
Também ficou claro que a proposta de Ciborra, com sua análise original sobre o relevante
papel da improvisação e da multifunção na fase executiva, exigia das empresas uma estrutura mais
flexível onde seus elementos correspondessem a uma descrição coerente com os diversos processos estratégicos. E, sobretudo, que não inibisse o aparecimento de soluções criativas e caminhos
alternativos, mesmo durante a execução.
4.
O Alinhamento, a Estrutura e a Improvisação na Estratégia de SI/TI
4.1. O Alinhamento
O sistema de SI/TI ganhou importância no mundo dos negócios ao longo dos últimos vinte
anos por conduzir uma revolução nos processos, estruturas e relações entre os diferentes elementos
das organizações. Essa revolução transformou as empresas em campos de batalha onde os sobreviventes, ensinaram e aprenderam, definitivamente, uns com os outros algumas significativas lições.
Clientes, empregados, sócios e concorrentes todos foram afetados pelo novo paradigma que a moderna tecnologia introduziu, pelas novas teorias de gerenciamento e por um ambiente externo cada
vez mais dinâmico.
Acadêmicos e consultores produziram uma extensa literatura sobre as vantagens competitivas que o SI/TI traria e sua relação com o planejamento estratégico das empresas. Os substanciais
investimentos exigidos para a implantação de SI/TI juntamente com a complexidade das modernas
organizações criaram a urgente necessidade de alguma clareza nesse domínio de intensas disputas.
Os administradores, de algum modo, tem usado essas idéias em seus negócios, embora muito ainda
tenha que ser discutido, tendo em vista a dificuldade de se compreender tão complexos e abstratos
conceitos. Por um lado, o gigantismo das organizações, a complexidade das suas estruturas e a
administração de ambos exigiam grandes inversões de capital em SI/TI para as empresas se manterem funcionado de modo atualizado. Por outro lado, os grandes investimentos em tecnologia realizados pelas organizações, aparentemente, não tem impedido que elas continuem a falir. Esse cenário paradoxo tem gerado receios por parte dos administradores mas ao mesmo tempo tem permitido
uma maior abertura no sentido de se buscar uma solução para esse problema ou pelo menos procurar entendê-lo melhor.
4.2. O Acoplamento Estrutural
Usando os conceitos já vistos da teoria da autoprodução vejamos agora alguns pontos interessantes sobre o acoplamento estrutural que ocorre nas organizações. Sabemos que a organização não
pode existir separadamente da estrutura e que esta, apesar de estar acoplada ao ambiente da empresa, só pode ser mudada em resposta a perturbações provenientes desse mesmo ambiente e do exterior, com maior ou menor intensidade, dependendo do tipo de empresa.
Nos sistemas autoproduzidos a identidade da organização é conseqüência da evolução natural da sua estrutura, como se fosse um ser vivo (ontogenia). Isto significa que a estratégia não é uma
escolha livre e independente do meio. Na verdade ela é fruto da identidade que surge como resultante da evolução estrutural da empresa nas suas interações com o meio. É interessante ressaltar
que essas interações só ocorrem por intermediação da própria estrutura. Podemos então dizer que a
estratégia emerge como resultante das perturbações intermediadas pela estrutura nas interações
com o meio, dentro das limitações impostas pela identidade da organização. Essa estratégia recebe
o nome de estratégia coerente na literatura especializada. A identidade de uma organização que
não decorra dessa evolução estrutural expõe o sistema ao risco de um desacoplamento estrutural,
que se mantido pode acabar destruindo a empresa.
A improvisação, como corretamente identificado por Ciborra, é o processo que gera a estratégia coerente dentro do processo de transformação estrutural e, aqui, não é vista como sinônimo de
“quebra-galho” ou “jeitinho”, mas como a ação realizada, além da estrutura, por alguém sem autorização, mas com competência para realizá-la. Desse modo, essa ação busca manter a identidade da
organização e a estrutura coerente existentes, ao mesmo tempo que ela abre espaço para buscar algo
novo. Improvisação, assim definida, não é simplesmente, como se costuma imaginar, um processo
informal e perigoso dentro da organização. Ela é, na verdade, a base fundamental de toda ação
autoproduzida. Estamos acostumados com ela no modo como funciona a linguagem no dia-a-dia.
Quando confrontados com uma situação pouco familiar ou alguma coisa inédita, nós não inventamos uma nova palavra para descrevê-la. Ao contrário, nós tratamos de improvisar palavras antigas,
dentro da mesma estrutura de linguagem, que mantém seu significado conhecido mas que juntas
estão sendo empregadas de modo a indicar muito além do que elas significam. Se empregássemos
um conjunto inteiramente novo de palavras ninguém nos entenderia. Se usássemos a estrutura
usual de palavras para descrever o que víamos não seriamos capazes de explicar a nova situação.
Assim a improvisação torna mais flexível a rigidez da linguagem. A ação de descrever improvisando acaba sendo criativa, sugerindo novos vocábulos. É a língua viva, autoproduzida. A estratégia
empresarial surge e se forma da mesma maneira. O processo estratégico não pode simplesmente
escolher uma nova identidade para a empresa. Ela surge de um modo coerente através da improvisação e da multifunção (bricolage) em resposta a perturbações introduzidas pelo meio. O papel do
administrador não é o de traçar uma estratégia para sua empresa mas sim o de interpretar e articular
a nova coerência que está surgindo na interação da organização com o meio para tentar moldar e ser
moldado por essa nova ordem. A estratégia está em permanente construção.
4.3. A Estratégia de SI/TI e a Improvisação
Muitos autores tem defendido, na literatura especializada, que a estratégia empresarial deve
surgir de um processo informal e emergente, baseado na improvisação e na capacidade multifuncional
dos membros de uma organização. Eles mostram que apesar de a teoria estratégica ser toda ela
focada numa maneira formal e planejada de tomar decisões, a improvisação é um procedimento
muito comum e está incutida nos indivíduos e nas organizações. Além disso, também ficou claro
que o SI/TI pode ser um instrumento poderoso de suporte à estratégia empresarial, permitindo que
processos se realizem, quando necessário, de modo improvisado. Entendendo-se improvisação como
“uma dada ação onde o pensar e agir parecem ocorrer simultaneamente e no impulso daquele momento” (Ciborra). É o que os militares, estrategistas por excelência, chamam de atitude de combate. No calor da batalha, quando algo inesperado surge é preciso ir além do planejado e adota-se um
procedimento de acordo com a situação. A diferença, neste caso, é que muito raramente tais procedimentos passam a ser regulamentares, enquanto nas empresas a improvisação bem sucedida pode
se tornar regra.
A improvisação pode ocorrer nos baixos e altos escalões da hierarquia empresarial. Nos escalões inferiores a improvisação é vista como o meio mais rápido de se adaptar às mudanças, de modo
imediato, circunstancial, peculiar, local e com acesso e disponibilidade de recursos. Já nos altos
escalões, uma nova perspectiva precisa surgir para que entre os procedimentos e métodos da em-
presa, a improvisação seja considerada como um processo normal. A conclusão é que a improvisação é inevitável em todos os escalões, não importando o grau em que os regulamentos e as estruturas formais inibam esse comportamento. Essas idéias reforçam o conceito expresso por Mintzber
de que a estratégia empresarial executada tem sempre elementos da estratégia emergente das bases,
atuando como componente na estratégia deliberada e estabelecida pelos administradores. Ele também critica a capacidade dos diretores de executar e controlar a estratégia existente uma vez que ele
acredita que a verdadeira estratégia emerge das bases da empresa num processo continuo de aprendizado, onde o fazer e pensar ocorrem simultaneamente. Essa idéia subverte a tradicional seqüência de administração onde o planejamento deve anteceder a execução. Na verdade, o planejamento
inicial é apenas um ponto de referência que dentro de um processo interativo será influenciado
retrospectivamente pela execução. Entretanto, o clássico problema da distância que existe entre o
pensar (planejamento) e o fazer (execução) permanece intocado. Por isso os autores acreditam que
o SI/TI, por si só, não é mais capaz de oferecer uma vantagem competitiva para as empresas, o que
faz com que o alinhamento entre a estratégia de SI/TI e a estratégia empresarial se torne ainda mais
complexo e crítico. Um SI/TI bem elaborado passa a ter significável importância uma vez que ele
pode trazer a ação mais próxima da direção. O SI/TI deve ser a ferramenta para tentar superar o
dilema imposto pelo paradoxo do pensar e fazer simultâneos. Como já mostramos, isso pode ser
atingido pela improvisação, pela multifunção (bricolage) e pelo aprendizado contínuo, deixando
que as idéias surjam e a estratégia possa emergir da base da organização.
5.
Uma Visão Alternativa para a Estratégia nas Empresas
Nós sabemos que sem uma contínua inovação os sistemas tendem à estagnação e que sem a
geração interna de diversidade os sistemas homogêneos tendem à imobilidade e se tornam improdutivos e ineficientes. Sem esses dois atributos fica difícil para uma organização superar suas crises
de administração e prosperar. É essa nova visão estratégica que está sendo proposta, a partir dos
modelos apresentados pelos autores já citados, onde é sugerido que sejam aplicados os conceitos da
teoria da auto-organização e da autoprodução nas organizações sociais, em especial nas empresas.
Não se vai discutir, aqui, se as empresas são ou não organizações autoproduzidas mas que a teoria
da autoprodução nos fornece uma nova visão e revela importantes aspectos da dinâmica das empresas.
Um modelo coerente e simples será apresentado e discutido de como as empresas devem
funcionar na sociedade do conhecimento e de como podemos utilizar esses novos conceitos em
proveito de uma nova organização empresarial. A idéia de que as empresas sejam organizações
autoproduzidas nos indica que o processo que cria a estratégia empresarial surge espontaneamente
nas bases da organização e que a estratégia de SI/TI é produto do acoplamento estrutural entre a
tecnologia de informação e a estratégia corporativa autoproduzida na interação entre a organização
e o meio.
Essas idéias provaram ter profundas implicações para a gerência organizacional, uma vez
que elas afetam o processo de formação tanto da estratégia corporativa como da estratégia de SI/TI
que, por último, são responsáveis pela sobrevivência e sucesso das empresas. Vendo as organizações como sistemas complexos adaptativos e não como máquinas, nós substituímos o ponto de
vista de causa e efeito mecanicista, focado na estrutura e no processo, por outro que prioriza as
relações pessoais e a comunicação.
5.1. Impactos na Dinâmica Empresarial
Dentro desta perspectiva, uma empresa pode ser vista como um sistema com um conjunto
bastante específico de características onde seus componentes principais são as pessoas, a produção
(objetos ou serviços), a estratégia, a estrutura, os métodos e os processos. A combinação desses seis
componentes define claramente as fronteiras da organização, que são criadas e mantidas como
parte da própria organização. O processo de autoprodução está, constantemente, recriando e reforçando a identidade da organização, enrijecendo as fronteiras como forma de resistir às mudanças.
Por outro lado, o meio exterior pode ser apenas o inicializador dessas mudanças mas o grau
das mudanças depende inteiramente da flexibilidade da estrutura do sistema. Em outras palavras o
meio exterior tem uma influência limitada na organização. Ou seja ele pode afetar a estrutura mas
nunca a organização (estrutura e organização como definidas anteriormente). Por isso, apesar das
empresas estarem abertas à interatividade com o meio exterior elas, na verdade, são sistemas fechados organizacionalmente. Isto significa que elas não estão abertas a transformações propiciadas
pela ação e reação com o meio, pelo contrário elas estão focadas em manter sua coerência interna
advinda da conectividade dos seus elementos
O importante para uma organização é manter autoprodução num estado cíclico de perpétua
preservação. E a autoprodução estará garantida desde que exista troca circular de energia com o
meio exterior que preserve a identidade da empresa através de múltiplas interações.
5.2
Reflexões sobre a Estratégia Empresarial
Em algumas empresas é desejável manter as características de autoprodução, reforço e preservação das suas identidades. Para isso elas devem ter algum tipo de mecanismo de proteção dos
agentes nocivos devidos à inevitável abertura para o meio exterior. Esse mecanismo deve possuir
elementos que permitam a empresa sobreviver e crescer num mundo competitivo, reforçando suas
fronteiras e fazendo com que suas estruturas funcionem como um filtro seletivo.
A estratégia corporativa parece ser um desses elementos que pode servir como um parâmetro
de preservação da identidade da empresa, quando produzida dentro da firma de um modo autoorganizado num processo espontâneo emergente das bases da empresa e ao mesmo tempo estimular e direcionar o crescimento. Entretanto, os administradores podem tanto sufocar essa iniciativa,
de cima para baixo, através de uma hierarquia muito rígida, como estimular seu aparecimento
permitindo uma maior informalidade de procedimentos, através de estruturas mais leves e flexíveis. Esse mecanismo acaba redundando numa estratégia com muito mais variedade, flexibilidade
e criatividade. Neste cenário, a organização não precisa mais constantemente aumentar sua diversidade para acompanhar a dinâmica do meio exterior e desse modo, as influências do meio são
apenas perturbações, ruídos que podem estimular mudanças mas nunca impô-las efetivamente.
De um modo geral podemos dizer que a estratégia empresarial na sociedade do conhecimento
deve obedecer alguns conceitos fundamentais como:
a) A estratégia empresarial é um processo auto-organizado, inevitável, que pode ser maximizado
por atitudes informais e flexíveis dos administradores ou minimizado por atitudes tomadas pela
hierarquia formal, de cima para baixo. Quando mais auto-organizada for a experiência da empresa na formação de sua estratégia maiores serão suas chances de sucesso.
b) As mudanças são determinadas pela natureza da estrutura da empresa. Assim, não importa o
empenho em trazer novos métodos e novas tecnologias de sistemas que foram bem sucedidas
em outras organizações, seguindo as tendências do mercado, essas mudanças só serão absorvidas com sucesso e adotadas pela firma se elas se ajustarem à identidade intrínseca da empresa.
Não é possível ensinar um cavalo a voar, por maior que seja essa a tendência do mercado.
c) A estratégia de SI/TI é resultante do acoplamento entre a estratégia auto-organizada da corporação
e a tecnologia de informação (TI), existente no ambiente interno e externo da empresa, que
ocorre como conseqüência de múltiplas interações por um longo período de tempo. Além do
mais, a idéia de um alinhamento mecanicista e estático está fadado ao insucesso.
Na figura abaixo, vamos explicar melhor esses conceitos. Nela, podemos ver como a estratégia empresarial, na sociedade do conhecimento, pode manter a organização funcionando dentro da
zona de operação, situada sempre entre uma zona de estagnação e uma zona de instabilidade. É
dentro da zona de operação que se encontram os diversos pontos de operação representados pelos
círculos, indicando os momentos de estabilidade transitória, por que passam as empresas no seu
processo ascendente de crescimento, saindo do ponto inicial de equilíbrio estagnado (A), no instante de criação da firma, em busca do sucesso. A linha mediana representada pelo segmento AB
indica trajetória a ser perseguida e a sua inclinação depende das características de cada empresa.
Perturbação
Abertura
B
Zona de Instabilidade
Flexibilidade
C
Zona de Operação
Zona de Estagnação
A
Improvisação
Figura 1 - Influência da improvisação e da perturbação no estabelecimento da
estratégia empresarial na sociedade do conhecimento. A - ponto de estagnação, B "borda do caos", C - ponto de operação, AB - linha de crescimento
Quanto mais inclinada for a trajetória AB, na direção da posição vertical, indica que a empresa tem seu crescimento mais influenciado pela exposição que tiver ao meio (perturbações). Essas
perturbações podem tanto advir do meio externo tais como: clientes, fornecedores, governo, empresas aliadas e concorrentes, mercado interno e externo, novas tecnologias, etc., como geradas no
ambiente interno, nas relações interpessoais e funcionais dentro da empresa. Quanto menos inclinada for a linha AB, mais próxima da posição horizontal, indica que a empresa tem seu crescimento
mais influenciado pela flexibilidade nos processos internos (improvisação) tais como: menor número de níveis hierárquicos, menor rigidez estrutural e, sobretudo, um SI/TI que rapidamente assimile essas inovações processuais.
Uma maior abertura, tanto a nível interno como externo, estimula o aparecimento de um
maior número de perturbações que pode levar a empresa à zona de instabilidade, provocada pela
pressão das perturbações sem a equivalente contrapartida das improvisações. Do mesmo modo,
uma estratégia que permita uma grande flexibilidade estrutural, com o aparecimento de procedimentos informais que não sejam seguidos de ações para sua absorção, podem levar a empresa à
zona de estagnação, onde as inovações geradas no seio da organização não encontram campo fértil
para florescer e levam a empresa à paralisia funcional. Os administradores têm de saber que tipo de
empresa estão dirigindo, se a linha de crescimento é mais fortemente influenciada pelas perturbações ou pelas improvisações, e buscar o perfeito balanceamento entre essas duas forças emergentes
para manter a empresa sempre dentro da zona de operação.
Outro aspecto importante, representado pelos círculos dentro da zona de operação, é que as
organizações autoproduzidas tendem a se estabilizar nesses pontos e sempre haverá uma resistência interna da organização em se deslocar da posição confortável de equilíbrio que se encontram.
Esse equilíbrio que os elementos e os procedimentos internos atingiram podem levar a empresa a
um perigoso e fatal imobilismo, devido a velocidade das transformações no mundo que vivemos.
Cabe à estratégia empresarial estimular as mudanças, tanto promovendo mais aberturas como possibilitando oportunidade de maiores improvisações para sobreviver na nova sociedade do conhecimento. A maneira de atingir esses objetivos é através do emprego correto de uma estratégia de SI/
TI acoplada à estratégia empresarial, mas não subordinada a esta. Desse modo os administradores
sempre terão à sua disposição instrumentos, para através da correta manipulação dos meios de
informação e comunicação, aumentar a abertura e a flexibilidade conforme as necessidades e no
momento oportuno.
6.
Conclusão
Empregando os conceitos da teoria da auto-organização e da autoprodução, foi apresentado
um processo de formação e implementação da estratégia corporativa e de SI/TI, com o objetivo de
prover uma nova estrutura de pensamento sobre o planejamento estratégico das empresas. Utilizando essas idéias, administradores e pesquisadores podem gerar novos métodos de trabalho e ao
mesmo tempo influenciar as relações entre a corporação e o SI/TI. O principal objetivo não foi o de
apresentar um modelo acabado, nem o de formular uma solução num manual pronto para ser
aplicado. No passado, a imposição artificial de modelos estratégicos que as companhias fizeram a
elas mesmas, parece ter sido uma das grandes razões do fracasso no emprego de SI/TI. Os conceitos da teoria da complexidade em geral e da auto-organização em particular, que originalmente
vieram das ciências naturais, foram aplicados no domínio de uma ciência social a fim de explicar a
formação do mecanismo da estratégia corporativa e de SI/TI. Este processo foi conduzido apresentando primeiramente uma discussão dos dilemas e paradoxos encontrados quando se faz uma transposição de domínios, tanto no plano teórico como no experimental. As idéias obtidas pela análise
foram comparadas com as teorias de administração das organizações e a estratégia de SI/TI mostrando um elenco de diferentes perspectivas e modelos.
A visão contemporânea da formação da estratégia, expressa nos trabalhos de Ciborra e
Mintzberg, foram os fundamentos para a compreensão deste artigo, que em última análise, é o
produto da conexão entre o conceito de estratégia exposto por Ciborra e o processo de auto-organização implícito na teoria da autoprodução. Este último conceito implica num constante esforço na
busca da preservação da identidade da organização que suporta a idéia da estratégia como um
processo natural e não forçado dentro da empresa.
As idéias exploradas tem profundas implicações para a administração das empresas, especialmente com respeito ao processo de acoplamento estrutural entre a estratégia de SI/TI e a estratégia corporativa. Tais conceitos representam a quebra de paradigma dos modelos tradicionais normalmente adotados no mundo dos negócios. A compreensão advinda do estudo das diferentes
teorias apresentadas acaba por revelar a essência escondida na maioria das abordagens e técnicas
mecanicistas da atualidade. Segundo Varela e Maturana “a tradição pode ser não apenas um modo
de ver e agir mas também um modo de esconder o essencial”. Desse modo podemos concluir que as
organizações atuais não clamam por modelos inovadores que se sobreponham aos tradicionais e
logo se tornem obsoletos. Ao invés disso, elas esperam pela descoberta das suas forças inatas, algo
como o despertar da sua essência como organização social. Essa idéia está implícita no conceito de
auto-organização e somente ela poderá trazer a bem sucedida inovação para satisfazer as expectativas, ainda que não claramente estabelecidas, no seio das organizações.
Também, surge das análises apresentadas, que a estratégia empresarial, na sociedade do conhecimento, deve ser estabelecida a partir do confronto entre as perturbações na estrutura da empresa, provocada pelo ambiente externo e interno, e a demanda por processos de improvisação,
gerando processos criativos de crescimento, coerentes com a identidade da organização. A semente
geradora que torna real todo esse processo de transformações é a improvisação que surge em
contraposição à rigidez hierárquica estrutural e ao planejamento racional e inflexível. Se um desses
elementos se tornar muito fraco ou muito forte em relação aos demais, a improvisação será inibida
ou se tornará descontrolada. Nos dois casos, a empresa correrá o risco de perder sua identidade e se
desorganizar funcionalmente.
A perturbação e a improvisação estão em constante interação, fazendo com que organização
pareça estar constantemente à deriva. A questão é saber qual o grau de perturbação e improvisação
que é capaz de manter a organização em constante crescimento mas ainda com sua identidade
própria. Por isso, na sociedade do conhecimento, a correta interpretação da identidade de uma
organização é de suprema importância para o estabelecimento de todo processo de planejamento
estratégico.
(*) Doctor of Philosophy pela University of Florida, Professor do CEFET-RJ e Conferencista
Especial da Escola Superior de Guerra.
(**) Master of Sciences in Information Systems and Business pela London School of Economics
(LSE), Inglaterra
AUTORES REFERENCIADOS NO TEXTO
1. Angell, I. & Smithson, S. (1991). “Information systems Management: Opportunities and Risks”,
Macmillan, London.
2. Ciborra, C. (1994). “Strategic Information Systems”, John Wiley & Sons, New York
3. Clarissa Dolce Drysdale-Anderson (1999). “The Implications of Self-Organizing Theory for
Organizational IS/IT Strategy”. London School of Economics and Political Sciences, England.
4. Introna, L. (1998), ‘Complexity Theory and Social Systems: Is there a match?’, Proceedings of
the Organizations as Complex Evolving Systems Conference (OACES).
5. Introna, L. D. e Clarissa Dolce Drysdale-Anderson, “Alignment versus Structural Coupling:
An autopoietic contribution to the IS/IT strategy debate. Offprint – ECIS (2000).
6. Liddell Hart, Basil Henry. Strategy (2nd Edition Revised). Chapter XX (pp. 348-349) Frederick
A. Praeger, Publisher: New York (1968)
7. Mintzberg, H. (1987) ‘The Strategy Concept 1: Five Ps for Strategy’, California Management
Review 30, pp: 11-24
8. Mintzberg, H. (1994) The Rise and Fall of Strategic Planning, The Free Press, New York
9. Prigogine I. & Nicolis, G. (1989) Exploring Complexity, WH Freeman
10. Varela, F. & Maturana, H. (1987) The Tree of Knowledge, Shambhala, Boston
Memória
O PODER NACIONAL: SUAS LIMITAÇÕES DE ORDEM
INTERNA E EXTERNA - 1957
Luiz Leivas Bastian Pinto (*)
Considerações Gerais
O assunto de que nos vamos ocupar, seguindo o sumário preparado pela Escola, já foi
objeto de várias conferências aqui pronunciadas em anos anteriores. Delas me servirei constantemente no decorrer desta palestra. Portanto, e dada a necessidade de referir-me aos pontos fundamentais constantes do sumário, é pouco o que poderei acrescentar com relação à documentação de
que já dispõem os estagiários.
Começaremos por fazer referência ao caráter de relatividade do Poder Nacional. Assim como
a noção de poder de um homem resulta sempre da comparação com o poder de outros homens,
também a noção do poder de uma ação tem que ser resultado da comparação com o poder de outras
Nações, já que ambos têm a mesma razão de ser, isto é, a defesa de seus próprios interesses ou a
conquista e manutenção de objetivos fundamentais, a despeito de ações contrárias. A comparação
dos poderes, ou o confronto entre o poder de uma Nação e os poderes possivelmente antagônicos,
é o que se chama avaliação do Poder Nacional.
A tarefa da avaliação é extremamente complexa e não pode ser regida pela precisão
matemática ou por regras imutáveis. As conclusões a que nela se chega dependem em grande parte
de fatores pessoais do avaliador e envolvem elementos muito variáveis, às vezes quase intangíveis
por sua imprecisão. A respeito dizia, já há três séculos, Francisco Bacon, o pensador inglês: “Entre
os negócios do Governo nada há de mais sujeito a erro do que a avaliação certa e o juízo verdadeiro
a respeito do poder e da força do Estado”.
Acentuemos, no entanto, que existem métodos, os quais vem sendo constantemente
aperfeiçoados, para medir os elementos mais precisos do Poder Nacional e para atribuir um valor
tão aproximado quanto possível aos elementos imprecisos e variáveis.
No processo da avaliação verifica-se que o Poder Nacional, tanto na ordem interna como na
externa, sofre uma série de restrições, às quais se dá o nome de limitações do Poder Nacional. Estas
podem ter as mais diversas causas. Decorrem por vezes da própria natureza do Estado, outras da
progressiva complexidade da estrutura do Estado ou da intensificação das relações internacionais.
Algumas são aceitas voluntariamente pela Nação por implicarem em benefícios maiores. Certas
destas limitações, porém, consistem em fraquezas ou deficiências do Poder Nacional, do qual são
aspectos negativos, e podem ser exploradas, em detrimento da Nação, no quadro dos antagonismos
existentes, seja por elementos internos, seja por outro Poder. A esta espécie de limitações dá-se o
nome de vulnerabilidade.
É evidente o interesse de que sejam conhecidas e estudadas essas limitações, como
condicionantes que são do Poder Nacional, especialmente no caso das vulnerabilidades, a fim de
corrigi-las e superá-las.
1.
Limitações de Ordem Interna
O Poder de uma Nação baseia-se no conjunto de todos os valores que definem essa
mesma Nação. O Poder Nacional é, pois, condicionado pela Nação em si própria, isto é, pelas
características de seu território, pelo valor quantitativo e qualitativo de seu povo e por seus recursos
naturais e capacidade de aproveitá-los.
Logo, as limitações do Poder Nacional tem origem na terra e nos recursos naturais que esta
oferece ou nos homens e nas instituições que regulam sua coexistência. Nesta ordem é que iremos
agora examiná-las.
2.1. Da Terra
A terra é a base física do Poder Nacional e o mais estável de seus elementos. Quatro de suas
características – a extensão, a forma, a posição e os fatores fisiográficos – são de especial importância com relação ao Poder Nacional.
A extensão é já por si um valor relativo e Estados considerados grandes na antiguidade hoje
seriam pequenos. Uma grande extensão teritorial nem sempre proporciona à Nação que a possui
um grande Poder, mas é incontestavelmente um fator positivo, e disso temos muitos exemplares na
história. Na atualidade as Nações de Poder incontrastável são sem dúvida as de grande território.
Existe mesmo hoje no mundo uma tendência inexorável para o entrelaçamento dos países da uma
mesma região, até de um mesmo continente, conseqüência da convicção a que chegou o mundo de
que só as grandes massas de população com grande território apresentam hoje condições de sobrevivência. Aí estão, evidenciando esta convicção, os organismos regionais, o pan-americanismo, o
início, em Bandung, de uma união das Nações asiáticas, e o tremendo esforço dos países da Europa
ocidental, após a 2a Guerra, para alcançar uma certa unidade política, econômica e militar. E talvez
mesmo essa marcha para o continentalismo, a que hoje assistimos, possa transformar-se com o
tempo em uma tendência para o universalismo pacífico, de são prenúncios os grandes organismos
internacionais de hoje.
Uma grande extensão territorial, no entanto, pode em certos casos dar origem a limitações do
Poder Nacional. Assim a integração nacional, o exercício da autoridade central, as comunicações e
transportes, a concentração de recursos e de forças, tornam-se mais difíceis sobre grandes extensões e podem chegar a constituir graves vulnerabilidades.
A forma de um território pode ser igualmente fator de importância. Um Estado compacto
goza sem dúvida de vantagem, ao passo que uma forma alongada ou descontínua, por vezes até
reentrâncias ou saliências de fronteiras, constituem limitações do Poder Nacional.
A posição geográfica de um Estado é fator da mais alta significação e pode ser considerada
ou do ponto de vista geral, isto é, da posição do Estado no globo terrestre, ou então quanto à sua
posição com relação à de outros Estados
No primeiro caso, consideramos a posição com relação às massas de terra ou continentes, aos
oceanos, às zonas climáticas, às áreas produtoras de certas matérias-primas, etc. A importância de
suas conseqüências é evidente, e seria interminável a enumeração de seus efeitos. Podemos apenas
exemplificar. Assim lembremos que o hemisfério norte contém as maiores massas de terra e que
nele, em sua faixa de clima temperado, se encontram, por isso mesmo, as maiores concentrações de
população e de poderio industrial. Não é de admirar, portanto, que a história do mundo ali se tenha
desenvolvido. O hemisfério sul, ao contrário, de mais águas e menos terras, afastado do cenário dos
grandes acontecimentos, sofre dessa distância que lhe dificulta receber os benefícios decorrentes de
um contato mais estreito, porém, de outro lado, tem conseguido ficar a salvo das grandes catástrofes bélicas. Além disso, a posição de um Estado determina se este será potência marítima ou terrestre. Os mares que o separam de outras terras favorecem seu isolamento. Alguns países acham-se
situados nas grandes vias naturais de comunicações, o que determina inexoravelmente sua história;
outros, delas afastados, tendem para permanecer isolados. Enfim, a posição geográfica influi, através do clima e de tantos outros fatores, sobre o tipo de economia de uma Nação e sem dúvida
também sobre os caracteres físicos e a formação de seu povo.
A posição de um Estado considerada em relação às de outros Estados tem uma influência
ainda mais direta e imediata nas relações internacionais. Lembremos apenas o valor da vizinhança
ou da distância entre os povos, da maior ou menor intensidade de contatos e comércio por causas
geográficas e a enorme importância estratégica da posição relativa dos Estados, e todas as possíveis
limitações daí decorrentes.
Os fatotes fisiográficos influem também de várias maneiras sobre o Poder Nacional. Basta
atentar para a significação da topografia, estrutura geológica, clima, vegetação, vias naturais de
acesso, etc. Numerosas são as limitações que podem decorrer desses fatores e que nos cumpre
estudar devidamente.
2.2. Dos Recursos Naturais
Não necessitamos salientar a importância do estudo dos recursos naturais de um país na
avaliação de seu Poder Nacional. Sua abundância determina em boa parte a amplidão do Poder, sua
carência significa outras tantas limitações.
Acentuemos aqui que os recursos naturais estão na realidade bastante mais ligados à noção
de Potencial que à de Poder, isto porque tais recursos em geral não são diretamente aproveitáveis
pelo homem. Seu aproveitamento, sem valor real depende da aplicação do trabalho, da técnica e do
capital de que o homem disponha. Sem isto, os bens que a natureza oferece não tem valor real,
podem até ser elementos negativos, como uma queda d’água, que de obstáculo à navegação se
transforma sob a ação do homem em fonte de energia.
A Nação necessita de uma grande quantidade e variedade de recursos naturais para conservar
e elevar o nível de vida do povo, para alimentar sua máquina industrial, em suma para manter e
aumentar seu Poder. Citemos entre os principais os alimentos, os metais, como ferro, outras matérias-primas não-metálicas, como madeiras e borracha, e as fontes mais aproximado do Poder de
uma Nação moderna. O carvão, o petróleo, o gás natural, a energia hidrelétrica, em futo próximo os
materiais físseis, são as grandes fontes de energia que permitem acrescer o Poder Nacional.
Nenhuma Nação da atualidade é auto-suficiente em matéria de recursos naturais, embora o
grau relativo de auto-suficiência varie de uma para outra. Todas elas procuram compensar as limitações decorrentes da falta de certos desses recursos mediante a possibilidade de acesso aos recursos situados fora do próprio território. Exemplo bem presente do esforço das Nações nesse sentido
é a luta política que se desenvolve em torno do Oriente Médio, onde se acham talvez dois quintos
das reservas conhecidas de petróleo do mundo.
2.3. Do Homem
Ao examinar a função do homem como elemento constitutivo do Poder Nacional e como
origem de certas limitações desse Poder, devemos fazê-lo tanto sob o aspecto quantitativo como
qualitativo.
Sob o aspecto quantitativo, é inegável que uma população numerosa é um importante
fator de força e que uma população pequena constitui uma séria limitação do Poder. No confronto
entre o Poder de nações diferentes, quando as outras condições são semelhantes, uma diferença
sensível de população é fator decisivo. Não desejo com isto afirmar que uma simples comparação
numérica mostra para que lado penderá a balança do Poder, pois existe também no elemento homem o aspecto qualitativo, ao qual nos referimos a seguir. Quero, sim, chamar a atenção para a
importância do número de habitantes de uma Nação como fator de Poder, o fato que na nossa época
de progresso técnico temos freqüentemente a tendência de esquecer ou de relegar para segundo
plano.
A História nos mostra que nas lutas entre os povos geralmente o mais numeroso predominava
por fim. Assim foi desde a antigüidade. Na Europa, o poder dos Habsburgos no Século 16 repousava na grande população de seu império austro-espanhol. Quando a França m sob os Bourbons, viu
aumentar muito sua população, para ela passou também o predomínio militar e político. A França
de Napoleão era o país mais populoso da Europa Ocidental e só veio a ser derrotada quando se
defrontou com a Rússia, que tinha ainda maior número de habitantes. A ascenção do Poder da
Alemanha no Século 19 coincidiu com o rápido aumento de sua população que já tinha sobrepassado
a da França quando esta foi derrotada em 1870. Na época atual, como disse há pouco, é evidente
que o predomínio no mundo cabe às grande massas de população com grande território. Vemos
mesmo que países atrasados tecnicamente, cujo homem tem portanto uma valor econômico mínimo, desempenham um grande papel só por terem grande população. Assim a Índia tem uma incontestável força na política internacional de hoje em dia pelo simples peso de seus 400 milhões de
habitantes.
A população de um país pode ter tendência para crescer ou para diminuir. Os povos jovens,
em expansão, mostram tendência para o crescimento, enquanto que a diminuição coincide normalmente com a decadência das noções e é evidente limitação. Há ainda a questão dos grupos de idade,
ligada intimamente à anterior. A predominância dos grupos mais velhos, que já passaram da idade
produtiva, ou demasiado jovem, devido à alta mortalidade infantil, constituem também limitações
do Poder.
Uma população muito pequena com relação ao território, insuficiente para aproveitar seus
recursos, é ainda uma limitação, como o é também a superpopulação.
Ao examinar o elemento sob o aspecto quatitativo, numerosas questões nos ocorrem imediatamente. A primeira é a da capacidade de produção do homem, isto é, sua capacidade de trabalhar,
de produzir capital, de acrescer o Poder da Nação. A esta se liga intimamente a questão da educação
e cultura do homem, de seu nível técnico, de sua saúde, de sua capacidade física, cujos aspectos
negativos são outras tantas vulnerabilidades.
A importância da capacidade de produção do elemento homem, e especialmente seu nível
técnico, da qual decorre o poder econômico e sobretudo industrial do país, é hoje assunto amplamente debatido sob todos os pontos de vista, pois as Nações se preocupam na atualidade sobretudo
com o seu desenvolvimento econômico. Por isso mesmo, dispenso-me de maiores comentários a
respeito, bem como sobre as limitações que daí se podem originar.
Vejamos ainda o homem sob o aspecto moral e psicológico. Os fatores daí decorrentes são
dos mais difíceis de avaliar, como o são também as limitações que deles decorrem.
Todos os povos tem traços característicos, alguns dos quais são estáveis e outros suscetíveis
de se alterarem com o tempo ou com as circunstâncias.
Certos povos são individualistas, rebeldes; outros disciplinados e obedientes à autoridade.
Alguns são mais trabalhadores e persistentes; outros tendem para ser indolentes e inconstantes. O
grau de nacionalismo, de religiosidade, de apego à tradição é diferente por vezes em cada povo,
como é também a tendência para o militarismo e a qualidade do homem como soldado. É diferente
também a capacidade de cada povo para resistir a pressões psicológicas, tanto isoladamente como
combinadas com pressões econômicas ou militares.
Sobre este assunto poderíamos estender-nos indefinidamente. O essencial é ressaltar que de
fatores como esses depende em grande parte o esforço que cada povo dedicará à consecução de
seus Objetivos Nacionais. Salientemos aqui a importância de que se reveste o problema da integração
nacional e das vulnerabilidades que decorrem da divergência entre as populações de diferentes
áreas de um país, de um regionalismo excessivo ou de tendências separatistas, da existência de
minorias raciais ou de grandes grupos insatisfeitos, das lutas de classes, da incompreensão entre a
massa e a elite.
2.4. Das Instituições
Faremos agora referência às instituições, produto da vida do homem em Sociedade, e às
limitações que delas se podem originar.
Ocorre-nos logo mencionar três instituições básicas, responsáveis pela formação moral e
pela educação do elemento humano que construirá o Poder Nacional, e que são a família, o sistema
escolar e a religião. As imperfeições de qualquer dessas instituições terá efeito indireto porém
inevitável sobre o Poder de uma Nação. Basta atentar para a coincidência, tantas vezes verificada
através dos séculos, da decadência dos povos com a degeneração de sua organização de família.
Seria ocioso estender-nos sobre a importância do sistema educacional em qualquer nação que seja.
E quanto à religião, tem sido ela a mola mestra dos movimentos que mais influíram sobre o desenvolvimento da História e a formação do mundo de hoje. Nós, brasileiros, formados nas idéias do
liberalismo do Século 19 e acostumados à nossa separação entre a Igreja e o Estado, tendemos com
freqüência a menosprezar seu papel na vida das Nações. Não é assim, porém, em muitos outros
países da atualidade, onde a religião representa, de público e muitas vezes oficialmente, função da
mais alta importância e é aceita como representando a súmula dos princípios de toda ordem pelos
quais se rege o homem através de toda a sua existência.
Desejo ainda fazer algumas considerações a respeito das instituições de caráter político e
econômico. Mesmo os espíritos mais objetivos não conseguem formar opinião clara sobre as relações entre essas instituições e o Poder Nacional. Na verdade, é difícil examinar sem preconceitos a
contribuição que podem trazer ao Poder de uma Nação sistema políticos como o comunismo, facismo
e democracia e os diversos outros tipos que encontramos pelo mundo. O mesmo podemos dizer dos
sistemas econômicos, isto é, das instituições sociais que regulam a produção e distribuição de bens
e serviços.
O exame mais cuidadoso dos exemplos passados e presentes nos deixa sempre perplexos.
Assim, em plena depressão mundial, na década de 30, a Alemanha de Hitler conseguiu incrementar
em grande escala seu Poder Nacional. Podemos daí concluir pela consagração do nacional-socialismo? E no caso da Rússia de hoje, seria seu Poder maior ou menor se lá vigorasse um sistema
político-econômico diferente do comunismo.
A conclusão única a que podemos chegar é que o sistema mais conveniente para o Poder de
uma Nação não o é necessariamente para o de outra, já que em cada uma delas esses sistemas se
entrosam num emaranhado de circunstâncias históricas, materiais e psicológicas. À luz dessas complexas condições é que devemos examinar a contribuição dos sistemas políticos e econômicos para
o Poder Nacional e o valor das limitações que deles podem decorrer.
É neste campo, das instituições políticas e econômicas, que encontramos a maior parte das
limitações de ordem interna voluntariamente aceitas, que a Nação se impõe a si mesma na convicção de que elas serão equilibradas por um aumento do bem-estar geral ou pelo acréscimo que
indiretamente trarão ao Poder Nacional. Exemplo evidente, sobretudo nas democracias, é o das
liberdades individuais.
No que se refere às instituições militares, lembremos que sua suprema importância reside no
fato de que o argumento definitivo do Poder nas relações internacionais é a guerra. Todos os atos do
Estado que se dirigem ao acréscimo de Poder tem em vista a guerra, não com uma finalidade
desejável mas como uma probabilidade real e em certos casos inevitável. Estas considerações bastam por si para mostrar o vulto das limitações que decorrem de qualquer deficiência das institui-
ções militares de uma Nação.
3.
Limitações de Ordem Externa
O progresso material do mundo a partir da época dos grandes descobrimentos, que se acelerou com a chamada “revolução industrial” e que tomou ritmo vertiginoso neste século, trouxe
consigo uma intensificação dos contatos entre os povos a tal ponto que as relações internacionais
assumiram na atualidade importância e proporções que seriam difíceis de imaginar ainda há uma
ou duas gerações atrás. Tem razão aqueles que afirmam que hoje o mundo é um só. Pois os interesse
das Nações – e com isto não refiro só às grandes Potências mais também a todas as demais – não se
circunscrevem mais ao território próprio ou de seus vizinhos mas na verdade alcançam todos os
recantos do globo. Pois nenhuma Nação pode hoje subtrair-se aos efeitos, diretos ou indiretos, dos
grandes acontecimentos internacionais mesmo os que estes se desenrolem nos mais longínquos
rincões do mundo.
O Poder Nacional – com junto, que é, dos meios de que dispõe a Nação para assegurar a
consecução de seus objetivos na ordem internacional – é portanto condicionado cada vez mais
intensamente pelos fatos decorrentes dos contatos entre os povos e é sujeito, nas mesmas proporções a várias limitações de origem externa.
Examinaremos a seguir, e de acordo com o sumário preparado pela Escola, algumas das mais
importantes limitações de ordem externa.
3.1. Equilíbrio de Poderes entre as Nações
Vamos apreciar muito rapidamente em que consiste e como funciona esse princípio ou sistema, do qual podemos apontar duas formas. A primeira forma, a mais simples, verifica-se quando se
defrontam duas Nações, de Poderes mais ou menos semelhantes, sem a intervenção de outros Poderes comparáveis. É o caso em que nos encontramos atualmente com os imensos Poderes antagônicos dos Estados Unidos e União Soviética.
A Segunda forma, mais complexa, verifica-se quando se defrontam diversas Nações de Poder comparável. Tem sido esta a clássica organização da Europa desde que se implantou o regime
de Estados-Nação até a 2a Guerra Mundial.
O objetivo do sistema é essencialmente limitar o Poder das Nações a fim de evitar que
alguma delas se torne tão forte que possa sobrepujar as demais e tornar-se um Estado Universal,
entendendo-se por Estado Universal aquele que absorva todos os que se acham ao seu alcance ou
na área de seu interesse, como foi o caso do Império Romano ou do de Carlos Magno. O sistema
funcionou efetivamente na Europa, desde o Século 16, preservando mais ou menos a integridade
das principais Nações do Velho Continente.
A política de equilíbrio de poderes da parte de uma determinada Nação consiste em que esta
procure manter o equilíbrio internacional seja diminuindo o Poder das outras Nações mais fortes
seja aumentando o Poder das mais fracas, o que geralmente se tenta alcançar por meio de alianças.
Um exemplo clássico é o de Henrique VIII da Inglaterra, o qual, nas lutas entre Francisco I da
França e o Imperador Carlos V costumava aliar-se ao derrotado contra o vencedor.
As principais teorias com relação a esse sistema são no sentido de que ele tende a evitar ou
pelos menos a desencorajar a guerra; que mantém a integridade das Nações; e que mantém vivo o
sistema de Estados nacionais impedindo que surja um Estado Universal. No que se refere aos dois
últimos pontos, o sistema tem funcionado efetivamente. O primeiro, no entanto, baseado na suposição de que um Estado não provocará a guerra sem razoável certeza de vitória, não parece
corresponder à realidade. As guerras se tem sucedido interminavelmente e quase somos levados a
crer que só o Estado Universal pode trazer um período prolongado de paz.
3.2. Compromissos Internacionais, Alianças e Acordos
A finalidade essencial dos compromissos internacionais do tipo de alianças e acordos semelhantes é acrescentar ao Poder da Nação uma parte maior ou menor do Poder de outra Nação tendo
em vista um objetivo comum. Este objetivo comum implica sempre em uma limitação do Poder de
uma terceira Nação.
Além do objetivo determinado da aliança, as Nações que dela participam podem ter, um grau
ou menor, uma série de interesses comuns de cuja amplidão e profundidade depende o caráter do
pacto. De um lado, encontramos alianças concluídas entre Nações com interesses totalmente diferentes mas com um objetivo imediato comum; são exemplos o Pacto Russo-Alemão de 1939 para
a divisão da Polônia e a aliança das democracias com a União Soviética para a destruição da Alemanha. De outro lado, existem os acordos de interesses entre Nações que tem uma grande identidade de interesses, como por exemplo, o Pacto para a defesa do Hemisfério americano. Entre esses
dois extremos encontra-se a grande maioria das alianças, de extensão e durabilidade muito variadas.
Conclui-se, portanto, que entre os membros de uma aliança existem normalmente interesses
antagônicos, em grau maior ou menor, que afetam, é lógico, a própria solidez do pacto. E assim
sendo, até que ponto tais acordos podem inspirar confiança?
De fato, já que a política das Nações é determinada primordialmente pelos próprios interesses, e sendo esses variáveis em vista da mutabilidade das condições de ordem interna e externa, não
pode haver a certeza de que uma aliança resista ao tempo e às tensões de toda espécie a que possa
ser submetida. Mas esta incerteza não exclui uma probabilidade de que a aliança seja efetivada, e é
por isto que as Nações continuam a firmá-las.
Assim, toda aliança compreende um certo risco calculado. Se a aliança em si é um acréscimo
ao Poder Nacional, o elemento de incerteza a que me refiro constitui uma limitação que deve ser
cuidadosamente avaliada.
Ainda a respeito de alianças, estas podem ser defensivas ou ofensivas, conceitos que dispensam explicação. A maior parte, no entanto, contém em si elementos das duas espécies. As de caráter ofensivo vêm normalmente vestidas com uma aparência de pactos de defesa. E mesmo as que
são estritamente desta última espécie tendem muitas vezes a transformar-se em alianças ofensivas.
3.3. Organismos Supranacionais
A intensificação dos contatos e relações entre os povos tornou ainda mais necessária a regulamentação de tais contatos e relações e fez também aumentar muito o número de problemas,
alguns de natureza permanente, que exigem soluções de caráter internacional. Ao mesmo tempo
verificava-se que certos problemas internos, que se apresentavam em vários países, podiam ser
mais facilmente resolvidos através da cooperação entre os mesmo. Verificou-se também que a
regulamentação das relações internacionais, em certos casos, e a solução de muitos desses problemas podiam ser alcançadas mais facilmente e com mais eficiência por intermédio de órgãos, de
caráter mais ou menos permanente, em que estivessem representados os diversos países interessados, do que pelos contatos usuais entre os Estados. Daí nasceram, ainda no século passado, as
primeiras organizações internacionais, que foram se multiplicando e aumentando de importância a
ponto de cobrirem hoje todos os aspectos da atividade humana.
Essas organizações internacionais, cada uma dentro de seu campo de ação, tem inevitáveis
repercussões sobre o Poder das Nações e impõem-lhe determinadas limitações, em vista das obrigações que para com elas assumem os Estados.
Não poderemos aqui estender-nos sobre esse problema e queremos apenas dizer algumas
palavras sobre assunto a ele ligado, que é o da segurança coletiva, embora este também venha a ser
objeto de estudo mais aprofundado quando entrarmos no exame da conjuntura internacional.
A este respeito, a primeira dificuldade que encontramos é a da definição de segurança coletiva, da qual fogem os numerosos autores que se tem ocupado do assunto nos últimos anos.
As nações procuram antes de nada mais a própria sobrevivência e segurança na sociedade
internacional. O equilíbrio de poderes, as alianças e outros acordos internacionais são alguns dos
meios de que se valem as Nações, na ordem externa, para esse fim, ou para manter o statu quo
internacional.
Todos esses meios, no entanto, são conseguiram evitar a catástrofe que foi a 1a Guerra Mundial, que levou os dirigentes das principais Nações a procurar um novo meio de garantir a paz. O
novo meio que se encontrou foi a segurança coletiva, pela qual as Nações se propõem manter o
statu quo internacional garantindo a integridade e segurança de cada uma em base global. Desta
forma, as tradicionais alianças e pactos bilaterais ou entre número restrito de países foram substituídos pela idéia de que a procura da segurança das Nações é uma tarefa coletiva, que cabe ao conjunto das Nações.
Assim nasceu o sistema universal de segurança coletiva, representado entre as duas guerras
pela Liga das Nações e na atualidade pela Organização das Nações Unidas. Nesta, a responsabilidade primordial na manutenção das paz e segurança internacional é atribuída ao Conselho de Segurança, o qual é órgão executivo por excelência das Nações Unidas. Cabe-lhe, entre outras funções,
discutir, investigar e fazer recomendações sobre qualquer controvérsia ou situação internacional
perigosa; determinar a existência de ameaça à paz ou ato de agressão, decidir a aplicação de medidas de sanção; e levar a efeito ações militares para manter ou restabelecer a paz e a segurança.
Cabe-lhe, também, organizar planos prévios para o emprego, com esse fim, de forças armadas pois, de acordo com o art. 43 da Carta, os Estados-Membros se comprometeram a proporcionar
ao Conselho de Segurança, de conformidade com acordos especiais, forças armadas, assistência e
facilidades, inclusive direitos de passagem. Desde 1946, a Comissão de Estado-Maior, por determinação do Conselho de Segurança, iniciou o estudo dois detalhes de aplicação prática desse artigo, isto é, a criação de uma Força Internacional, e no caso da Coréia, quando o Conselho de Segurança decidiu prestar auxílio militar à Coréia do Sul agredida, a ausência de uma Força Internacional foi suprida pela aplicação do art. 106 da Carta, o qual estabelece que, enquanto aquela não for
organizada, as grandes potências e outros Estados poderão constituir uma Força a fim de levar a
efeito, em nome das Nações Unidas, qualquer ação conjunta para a manutenção da paz e segurança.
Desta forma é que se organizou a intervenção das forças dos Estados Unidos e de contingentes de
outras nacionalidades, sob comando norte-americano, na luta ao lado da Coréia do Sul.
Foi exatamente por ocasião da agressão comunista na Coréia do Sul que as potências democráticas, verificando que a oposição permanente da União Soviética, então temporariamente ausente do Conselho de Segurança, viria no futuro a paralisar a ação deste em casos semelhantes, propuseram e conseguiram fazer aprovar nas Nações Unidas a chamada resolução “União Pró-Paz”, de
acordo com cujos dispositivos a Assembléia Geral poderia chamar a si questões da competência do
Conselho de Segurança, quando a ação deste fosse paralisada pelo veto de alguma das grandes
Potências. Essa resolução visava exclusivamente o veto soviético mas, por um desses paradoxos da
História, veio a ser empregada pela primeira vez em fins do ano passado, na questão de Suez, em
face do veto da Grã-Bretanha e França. Chamando a si o exame da questão, a Assembléia Geral
tomou decisões da maior relevância, uma das quais foi a constituição da Força de Emergência das
Nações Unidas. Esta foi criada por resolução que não fez referência específica a nenhum dos artigos da Carta, e difere totalmente da Força Internacional prevista pela Carta e das tropas que lutaram
na Coréia em nome da ONU. Não se assemelha a nada do que foi previsto pelos idealizadores das
Nações Unidas, pelos signatários da Carta, e suas funções ainda não são claras e determinadas,
apesar de estar há meses em ação efetiva. A Força de Emergência das Nações Unidas constitui algo
totalmente novo na História, isto é, uma força realmente internacional, sob comando internacional,
e que recebe ordens de uma Organização Internacional e não dos Governos que para ela contribuíram com seus soldados. É difícil prever a ação e destino futuros da Força de Emergência, mas nela
se encontra talvez a semente de um dos elementos determinantes da História num futuro próximo.
A participação das Nações no Sistema Universal de Segurança Coletivo, isto é, na ONU,
implica em várias e graves restrições ao Poder Nacional. Não as vamos examinar em detalhes, mas
podemos citar algumas, expressamente mencionadas na Carta das Nações Unidas. Assim, o emprego do Poder deve subordinar-se a certas regras especificadas (arts. 1 e 2) de conduta internacional;
a força e ação coercitiva só devem ser usadas em legítima defesa ou no interesse comum e sob a
direção do Conselho de Segurança; os Estados-Membros renunciam a parte de sua liberdade de
ação obrigando-se efetivamente a cumprir as decisões do Conselho de Segurança e moralmente a
acatar as recomendações da Assembléia Geral.
Além do sistema universal de defesa coletiva, existem os sistemas regionais,, previstos na
Carta, e entre os quais podemos citar a OEA, NATO, SEATO, etc. As limitações que estes impõem
ao Poder Nacional se assemelham às que citamos há pouco.
3.4. Trustes e Cartéis
Farei ainda uma referência aos trustes e cartéis internacionais, que representam o desenvolvimento em grandes proporções dos capitais que, à procura de emprego e remuneração, se consorciam e se internacionalizam e chegam a representar tal força que podem exercer influência sensível
sobre a vida das Nações onde se estabelecem, seja em proveito próprio seja como instrumentos da
política dos países de onde provêm.
Seu papel em séculos anteriores foi grande, mas hoje se acha bastante diminuído, pois mesmo Estados pequenos e fracos têm demonstrado que podem resistir e enfrentar a ação limitadora
dessas entidades. Também o aumento da intervenção socializadora do estado fez com que igualmente nos países de origem tenha crescido a ingerência estatal sobre os trustes, de forma que a
influência eventual destes sobre os países pequenos representa não mais uma influência de interesses particulares mas sobretudo a do Poder da Nação onde se originam.
(*) Ministro Aposentado
Homenagem
Homenagem
HOMENAGEM PÓSTUMA
Luís Paulo Macedo Carvalho(*)
Faleceu subitamente, na quarta-feira, 16 de fevereiro de 2000,
em Lisboa, a Professora Therezinha de Castro, 69, solteira, vítima de fulminante enfarte do miocárdio. O sepultamento da renomada conferencista,
escritora e geopolitóloga brasileira ocorreu dias depois, a 21 do mesmo
mês, no Cemitério de São Francisco Xavier, Rio de Janeiro, RJ. O concorrido funeral reuniu amigos e admiradores, que incluíam desde antigos ministros de Estado até uma representação de alunos do Colégio Pedro II. Foi
o reconhecimento tácito de seus méritos em uma vida dedicada à transmissão de conhecimentos que enriqueceram gerações de civis e militares, deixando uma lacuna difícil de ser preenchida a curto prazo.
Carioca, nascida em 22 de dezembro de 1930, filha do General Fábio de Castro e de D. Nedyr
de Castro, fez os cursos primário e secundário no Rio de Janeiro, Uruguaiana e Juiz de Fora, por
força da profissão de seu pai.
Licenciada em Geografia e História pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ), integrou o Conselho Nacional de Geografia e trabalhou 27 anos no
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ao lado do eminente geógrafo Delgado de Carvalho,
onde se voltou para os estudos de Geopolítica. Nesse período, colaborou na elaboração dos fascículos do Atlas de Relações Internacionais e produziu as obras Leituras Geográficas e Geografia
Humana, Política e Econômica.
Lecionou História durante vinte e oito anos, no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Transferida
para a Secretaria de Ensino, escreveu para a Biblioteca do Professor: Brasil, do Amazonas ao Prata
e Geopolítica – Princípios, Meios e Fins, atualizado e reeditado, ultimamente, pela Biblioteca do
Exército Editora, preciosa fonte de inesgotáveis lições de política nacional e internacional.
Bolsista em Portugal, contribuiu para o enriquecimento da História Pátria com aprofundadas
pesquisas na Torre do Tombo. Abriu caminho, pela aplicação de inovadora metodologia de exploração de documentos, para o abandono das aulas tediosas, das narrativas monótonas e para a
humanização e o realismo do ensino de História de segundo e terceiro graus. Assim, lançou, nos
idos de 1968, pela Editora Record, após criteriosa seleção de textos acrescidos de comentários, o
compêndio História Documental do Brasil, revisto e relançado pela Biblioteca do Exército Editora
quase trinta anos mais tarde. A obra inclui desde o Tratado de Tordesilhas até as reformas constitucionais de Fernando Henrique.
Cedo Therezinha de Castro destacou-se pela intelectualidade revelada na produção de duas
dezenas de livros; pela excelência das aulas, conferências e palestras proferidas em Centros de
Estudos, na Fundação Osório, no Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, na Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército, na Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, na
Escola de Guerra Naval, na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, na Escola Superior de Guerra
e em universidades; pela qualidade de mais de uma centena de artigos publicados em jornais e
revistas nacionais e estrangeiras, bem como pela contribuição dada em seminários, simpósios e
congressos dos quais participou, na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Venezuela.
Entre nós, vale salientar a assídua colaboração como articulista de A Defesa Nacional, há
muitos anos. Publicou, também, inúmeros trabalhos na Revista Brasileira de Geografia e no Boletim Geográfico do IBGE. No exterior, seu nome se fez presente nas páginas de Geosur, publicação
da Asociación Latino Americana de Estudios Geopolíticos e Internacionales de Montevideo e
Geopolítica, editada em Buenos Aires.
Deve-se a ela, como bem evocou o General Carlos de Meira Mattos em alocução a beira do
túmulo, ter levantado o véu do interesse nacional pelo grande lago do Atlântico Sul, da necessidade
de se buscar aliança no Cone Sul e integração com a África Ocidental e a África do Sul, afora ter
sido pioneira na defesa da Tese do Princípio de Defrontação, que respalda a legitimidade da presença do Brasil na Antártida. Isto levou a Editorial Pleamar a publicar em espanhol Geopolítica de
la Cuenca del Plata e Atlântico Sur.
Não escondia sua admiração por D. João II, D. João III, D. João VI, e exaltava o papel desempenhado por Alexandre de Gusmão e pelo Marquês de Pombal, particularmente no tocante à política amazônica e à articulação do território nacional, mas amava o Brasil e acreditava nele. Nos
seus livros José Bonifácio e a Unidade Nacional e Hipólito da Costa – Idéias e Ideais, editados
pela BIBLIEX, ressalta a importância de nossa continentalidade e da unidade nacional. Ainda,
poucas semanas antes de sua última viagem a Portugal, reafirmou, em conversa privada, a convicção nos destinos manifestos do Brasil, apesar da crise vivida e da conjuntura adversa.
A linguagem e o estilo simples e claro de seus escritos, despidos de estereótipos e preconceitos, aliados à vasta cultura que possuía, permitia cunhar neologismos. Muito ciosa da grafia dos
topônimos, defendia idéias próprias com fortes argumentos, lastreados no saber antropológico,
geográfico, geopolítico, histórico e sociológico que lhe assegurava larga antevisão político-estratégica. Tirando vantagem de sólidos conhecimentos de História, vistos sob o prisma da Geopolítica,
chegava, facilmente, a projeções que se concretizariam. Lembrava ser o Brasil um país ocidental e
não poder desconsiderar as repercussões da moldura ibero-americana do panorama nacional.
“O Brasil só será bem conhecido se mergulharmos no seu passado. Mas terá que ser vivido
olhando-se sempre para a frente. Os anos se sucedem com precisão matemática, enquanto os dias
são sempre novos”, costumava dizer Therezinha de Castro.
Prefaciando uma de suas obras, o Professor Delgado de Carvalho via a fiel discípula nestes
termos: “...Tenho a maior satisfação de recomendar calorosamente aos mestres o exemplo de renovação metodológica sugerido pela nossa jovem colega, acreditando que o seu conceito de vivificação
da História será de real proveito no estudo de nosso passado.”
Segundo Wilson Choeri, “de tal mestre, tal discípulo se esperava”.
Constam, ainda, do elenco de seus apreciados trabalhos, além da parte de História Geral do
Atlas Histórico Escolar da Fename, e dos livros didáticos publicados pela Editora Freitas Bastos:
Retrato do Brasil – Atlas-texto de Geopolítica; África: Geohistória, Geopolítica e Relações Internacionais; Rumo à Antártida; Atlas-texto de Geopolítica do Brasil e História da Civilização Brasileira, em que já se referia ao achamento e não descobrimento da Terra de Santa Cruz, assim como
ao fato de esta nunca haver sido colônia na verdadeira acepção política do termo.
A partir de outubro de 1993, passou a ser membro do Corpo Permanente da Escola Superior
de Guerra, onde deixa marcas indeléveis de sua brilhante trajetória na Divisão de Assuntos Internacionais.
Tinha luz própria, caracterizava-se por agudeza crítica, colaborava desinteressadamente sempre
que solicitada, não colecionava diplomas, recusava-se a pertencer a instituições culturais, dispensava honrarias, mas orgulhava-se de haver sido agraciada com a Ordem do Mérito Militar.
Afastou-se do nosso convívio como viveu, trabalhando sem alarde. Acabara de ter uma participação notável em seminário nacional sobre a Amazônia e estava em Lisboa, a convite do Instituto de Altos Estudos Militares de Pedrouços, para realizar conferências. Colhida pela morte inesperada, o Instituto reverenciou a sua memória em missa de corpo presente no Hospital Militar de
Estrela.
Therezinha de Castro combateu o bom combate como um cruzado na luta pela valorização da
nossa cultura, ampliando os horizontes daqueles que tiveram a ventura de com ela privar e tê-la
como mestra. Com sua alma de patriota e visão objetiva, envolta por uma inteligência trabalhada,
divisava com seriedade as potencialidades e responsabilidades nacionais, confiante no porvir do
Brasil.
Como lembra muito bem antiga canção militar, os velhos soldados não morrem nem desaparecem. Therezinha de Castro não morreu, tampouco desapareceu. Estará sempre presente no mundo dos livros e dos vivos, orientando cada vez mais o pensamento político e estratégico dos cidadãos brasileiros de hoje e de amanhã com seus ensinamentos e exemplos. Em funeral, armas!
(*) Presidente do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil
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CURSOS DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
Os principais são:
Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia - CAEPE
O Curso tem por objetivo preparar civis e militares para o exercício de funçõ es de
direção e ass essoramento de alto nível especialmente nos órgãos responsáveis pela
fo rmulação das políticas de segurança e desenvolvimento nacionais e dos planejamentos
estratégicos correspondentes.
Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia Militar – CAEPEM
O Curso destina-se a habilitar oficiais das Forças Armadas para o exercício de fun ções
de direção e assesso ria de alto nível, nos órgãos responsáveis pela formulação da política
nacional, particularment e, no campo da segurança e do desenvolvimento e dos
planejamentos estratégi cos militares decorrent es.
Curso Especial de Altos Estudos de Política e Estratégia – CEAEPE
O Curso Especial de Altos Estudos de Política e Estratégia destina-se a divulgar, no
campo externo, a Doutrina e o Método para o Planejamento da Ação Política preconizado
pela Escola Superior de Guerra, também propiciar o intercâmbio entre Nações Amigas.
Curso Superior de Inteligência Estratégica – CSIE
O Curso Superior de Inteligência Estratégica destina-s e a formar analistas em
Informações Estratégicas.
Principais Atividades
O ano letivo vai de março a dezembro, dividindo os currículos, do CAEPE, CAEPEM
e CSIE, em dois períodos:
Período Básico, durante o qual os Estagiários estudam a Doutrina, seu embasamento
teórico, e o Método para o Planejamento de Ação Política, preconizados pela ESG.
Período de Aplicação, onde são avaliadas as conjunturas nacion al e internacional.
Os trabalhos acadêmicos consistem principalmente, de conferências, trabalhos
individuais (monografia) e de grupos, e são complementados por viagens de estudos, em
T erritório Nacional e no exterior.
Os palestrantes do período Básico são selecionados, principalmente, entre membros do
Corpo Permanente da Escola. Para o outro período, são convidados conferen cistas dos
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, de entidades de economia mista e das empresas
privada, direta ou indiretamente ligados ao planejamento e a execução de Programas de
Desenvolvimento Nacional.
Outras Atividades
Em paralelo com os Cursos Regulares, a ESG realiza o Curso de Extensão e Encontros
com a ESG, atividades destinadas em princípio, ao público externo, e pesquisa, intercâmbio
e difusão.
Curso Intensivo de Mobilização Nacional – CIMN
O Curso destina-se a proporcionar a civis e militares conhecimento básicos sobre
Mobilização e sua importância para a Segurança Nacion al.
Curso de Atualização da ESG – CAESG
O Curso de Atualização destina-se a manter atu alizados os conhecimentos dos
diplomados da ESG, a cada cinco anos, sobre a Doutrina e o Método para o Planejamento da
Ação Política.
Histórico
A Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 20 de agosto de 1949, é um Instituto de
Altos Estudos, diretamente subordinado ao Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA),
órgão de assessoram ento da Presidência da República. A esse nível são elaboradas as
diretrizes de ensino e o currículo escolar, que estão constantemente sob a revisão à luz das
necessidades básicas deco rrent es da evolução das políticas do Governo do Brasil. O
currículo refl ete uma preocupação pelos Objetivos Nacionais Brasileiros, de natureza
Política, Econômica, Militar, Psicossocial e de Ciência e Tecnologia.
Estagiários
Os Estagiários são selecionados pelo Estado-Maior das Forças Armadas dentre ofi ciais
das três Forças e civis indicados pelos respectivos ministérios, órgãos governamen-tais,
associaçõ es , entidades de classe, empresas privadas, universidades e Polícias Militares.
Anualmente, são matriculados no CAEPE cerca de 100 Estagiários, entre homens e
mulheres dos quais 70% são civis. Cursam o CAEPEM, aproximadamente, vinte Oficiais
superiores das três Forças Singulares.
Escola Superior de Guerra - ESG
Aveni da João Luiz Al ves – Urca
Fortaleza de Sã o João
22.291-090 – Rio de J aneiro-RJ – Brasil
Embora seja subordinada ao Poder Executivo, a Escola Superior de Guerra não
desempenha nenhum a fun ção na formulação ou na execu ção da Política Nacional, nem
participa de atividades oficiais ligadas a Política do País, de que são responsáveis os Poderes
Executivo e Legislativo. O trabalho da Escola é de natureza exclusivamente acad êmica.
desse modo, ela tem prestado uma inestimável contribuição na tarefa de integrar civis e
militares no exame de problemas nacionais e internacionais, relacion ados com a Segurança e
com o desenvolvimento nacionais. Em síntese, a ESG é um foro democrático e uma Escola
de idéias abertas ao debat e livre e responsável e, tem desempenhado um papel importante na
fo rmação de elites democratas ao longo de quatro décad as de atividades. “ A ESG é a matriz
do pensamento político e estratégico nacional”.
Associação dos Diplomados da ESG
T odos os diplomados da Escola Superior de Guerra fazem parte de uma associação,
conhecid a como Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), sob a
presidênci a honorária do Comandante da Escola. Seu principal objetivo é o de manter um
vínculo entre os diplomados e a Escola, por meio de atividades intelectuais ou encontros de
natureza social.
A ADESG é também responsável pela organização e ex ecução de cursos de
con ferênci as sobre os aspectos principais da Doutrina da Escola. Essas conferênci as são
realizadas em diferent es cidades do Brasil, freqüent adas por autoridades locais, professores,
empresários, representant es de órgãos federais, estaduais e de entidades particulares.
Rede Bibliodata
A ESG integra o Sistema Rede Bibliodata – empréstimos entre bibliotecas – sob a
coorden ação
da
Fundação
Getúlio
Vargas.
E-Mail (Correio Eletrônico) esg @ esg.br
Home Page (Página na Internet) http:// www.esg.br
Telefones: (021) 545-1727 e 545-1737
Telex: (021) 30107
Fax: (021) 295-7645
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