Investimentos do exterior no Brasil e brasileiro no exterior Carlos Lessa De forma esquemática e simplificada, quando o exterior investe no Brasil gera empregos e, por conseguinte, alimenta compras internas - e, ao obter lucros, pode tomar a decisão de remetê-los para fora ou reinvesti-los no Brasil. Esta segunda modalidade transfere para um outro momento a remessa de lucros para o exterior. Ela é legítima, mas é uma saída de recursos do país. A linha de defesa clássica do investimento estrangeiro sublinha que ele eleva o investimento no país, acima da poupança nacional. Teria o mérito adicional de transferir tecnologia e eventualmente desenvolvê-la. Finalmente, se exportasse, a filial estrangeira estaria gerando divisas e, se substituísse importações, auxiliando o Brasil nas transações externas. Quando brasileiros, pessoas jurídicas ou físicas, investem no exterior, em tese, por simetria, estariam gerando empregos lá fora e capturando rendimentos e dividendos para os residentes no Brasil. É óbvio, o melhor para o país acontece quando empresários e pessoas físicas nacionais investem aqui, pois seriam geradas rendas pelo emprego e capital que alimentariam virtuosamente a dinâmica nacional. O Banco Central informa que, em 2006, o Brasil recebeu investimentos estrangeiros de US$ 22,2 bilhões. A parcela virtuosa seria na indústria (US$ 8,7 bilhões). A surpresa está no investimento em atividades primárias, que deve estar associado à elevação do preço da terra agrícola. A maior parcela (US$ 12,1 bilhões) ocorreu no setor terciário e isto é um imbróglio que vai desde investimentos em instituições financeiras até aplicações em comércio, prestação de serviços, transporte etc. Em contraponto, desde 2003 cresce velozmente o investimento de brasileiros fora do Brasil. Saíram daqui US$ 1,4 bilhão em 2003; em 2005, US$ 10,1 bilhões; em 2006, a aceleração foi assustadora, atingindo US$ 32,3 bilhões, quase 50% a mais que os estrangeiros investiram no Brasil. É óbvio que não falta poupança aqui. Falta apetite dos empresários brasileiros para investirem em nosso país. O surpreendente do investimento brasileiro no exterior é o destino. Na modalidade mais importante, nossos investimentos são predominantemente nas Bahamas, Bermudas, Ilhas Cayman, Luxemburgo, Ilhas Virgens. De um fluxo total de US$ 32,3 bilhões, mais da metade (US$ 18,7 bilhões) foram para esses conhecidos paraísos fiscais. Nos países sul-americanos e nos EUA, é insignificante o investimento brasileiro. Porém, o que mais impressiona é a insignificância dos investimentos industriais (menos de US$ 2 bilhões) em relação aos do terciário (mais de US$ 30 bilhões). Nos paraísos fiscais, é facílimo registrar empresa para aplicações financeiras que caem no anonimato. Ninguém garante, mas provavelmente estas empresas de brasileiros que gozam das delícias paradisíacas retornam em parte para o Brasil. Alguém perguntaria: por quê? Nos últimos anos, com apoio irrestrito do comando monetário financeiro brasileiro, foi desonerado o imposto de renda sobre juros obtidos em aplicações em dívida pública. Assim, além do anonimato, o brasileiro metamorfoseado em aplicador financeiro internacional pode desfrutar da espetacular taxa de juros real que o BC pratica. No momento, está em aberto a discussão sobre se a Companhia Vale do Rio Doce deve ou não comprar a suíça Xstrata, a que preço e a partir de que operações financeiras. Após sua privatização acelerada no governo de FHC, a CVRD se converteu num gigantesco patrimônio e, hoje, a maior parcela de seu capital não pertence mais a brasileiros, estando esta fatia condensada em uns poucos bancos no exterior que foram, diretamente e por seus fundos, adquirindo as ações preferenciais "privatizadas". O Morgan Stanley detém uma parcela expressiva. O Brasil manteve o controle da Valepar, que detém a maior parcela de ações ordinárias da CVRD. O governo manteve uma golden share que lhe dá poder de veto em última instância às decisões estratégicas da Companhia. A Valepar é controlada pelo Bradesco, Previ (fundo de pensão dos funcionários do BB), BNDES e pelo banco japonês Mitsui. No primeiro governo Lula, o BNDES recomprou as ações da Valepar que FHC havia vendido como "bônus" para alguns ex-funcionários da Vale. Ao exercer a preferência, barrou a pretensão do Mitsui de assumir direito de veto na Valepar. Agora, a compra da Xstrata é tecnicamente conveniente para a Vale, pois reforçará sua posição na produção de carvão e alguns outros metais. A compra da empresa suíça será por valor superior a US$ 80 bilhões. A Vale pode se endividar no sistema internacional e trocar parte das ações controladoras da Xstrata por ações preferenciais da Vale. O presidente Lula está correto quando lembra à CVRD que ela é estratégica para o Brasil, que a compra da Xstrata não pode deslocá-la dos interesses nacionais e que o modo de montar a operação não pode conter risco de perda do controle brasileiro da companhia. As pré-condições de Lula comprometerão uma parcela expressiva de recursos do Sistema BNDES. É um enorme desvio de recursos financeiros voltados para novos investimentos produtivos no país. Poderia ser justificável esta operação se uma parcela de recursos da reserva internacional brasileira fosse, via um fundo soberano, aplicado em ações novas da Vale. Digo isto porque, se a Vale não distribuir dividendos por três anos, as preferenciais ganham direito a voto e a CVRD será uma empresa controlada por bancos estrangeiros. Posso simular uma situação em que a crise americana seja acompanhada por uma redução do crescimento chinês. Isto jogará para baixo o preço do minério de ferro e metais. A Vale, muito endividada, poderá ser pressionada. Os bancos do exterior certamente gostariam de dispor da Vale para negociá-la com outro grupo minerador. O Bradesco fez uma das suas melhores aplicações patrimoniais quando adquiriu as ações da Vale, porém é um banco que terá que competir com bancos que estão se agigantando no Brasil. Não será contra uma boa venda de sua posição na Vale. O Bradesco não pretende viver de dividendos da Vale, mas crescer mais como banco que seus competidores. Finalmente, o presidente está certo quando fala dos interesses nacionais. A desnacionalização da Vale é ameaçadora para o Brasil, pois a CVRD é nossa principal presença na província mineral de Carajás e poderá ser a alavanca em relação a outras reservas minerais da Amazônia. A Vale deve ser objeto de planejamento estratégico para o país. Surgiu quando os brasileiros quiseram reter para si os ganhos com minério de ferro. Arthur Bernardes dizia que, sem siderurgia, o Brasil ficaria apenas com os buracos das minas esgotadas. Creio que a CSN ficou separada da CVRD porque, naquele tempo, se conferia à siderurgia o papel central de desenvolvimento empresarial do Brasil. A Vale, com lucidez, investiu na Companhia Siderúrgica de Tubarão. Num ato insensato, vendeu a CST, que hoje está em mãos do grupo siderúrgico hindu Mittal; posteriormente, em um ziguezague, associou-se ao Grupo Thyssen para reproduzir a CST. O governo, estimulado por Lula, não pode comprar gato por lebre. Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira do Instituto de Economia da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) (endereço eletrônico: [email protected]). Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 13 fevereiro de 2008.