UFRJ Ter e Haver existenciais na fala culta de Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre: do social ao linguístico Priscila Guimarães Batista Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas, na Área de Língua Portuguesa. Orientador: Dinah Maria Isensee Callou Rio de Janeiro Agosto de 2012 Ter e Haver existenciais na fala culta de Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre: do social ao linguístico Priscila Guimarães Batista Orientador: Profª. Doutora Dinah Maria Isensse Callou Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte integrante dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas, na Área de Concentração Língua Portuguesa. Examinada por: _______________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Dinah Maria Isensee Callou – UFRJ (Orientador) _______________________________________________________________ Professora Doutora Marcia Cristina de Brito Rumeu – UFMG _______________________________________________________________ Professor Doutor Afranio Gonçalves Barbosa – UFRJ (Língua Portuguesa) _______________________________________________________________ Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ (Suplente) _______________________________________________________________ Professora Doutora Ângela Marina Bravin dos Santos – UFRRJ (Suplente) Rio de Janeiro Agosto de 2012 BATISTA, Priscila Guimarães Ter e Haver existenciais na fala culta de Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre: do social ao linguístico. Priscila Guimarães Batista - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2012. xi, 70 f. Orientador: Profª Dr.ª Dinah Maria Isensse Callou Dissertação (Mestrado) – UFRJ / FL / Departamento de Letras Vernáculas – Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), 2012. Referências Bibliográficas: f. 71-76. 1. Ter e haver. 2. Construções existenciais. I. Callou, Dinah. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Ter e Haver existenciais na fala culta do PB: do social ao linguístico. A meus pais, com carinho. Agradecimentos À Dinah Callou, pela dedicação, incentivo, confiança e por despertar o interesse pela pesquisa. Sem dúvida, a pessoa que mais me ajudou a seguir em frente nessa jornada. À amiga e companheira de pesquisa, Vivian Paixão, por tornar mais divertidos os momentos de trabalho, por se mostrar sempre disposta a ajudar e por estar junto nas horas mais tensas. A todos os amigos, professores e alunos que contribuíram das mais variadas formas para a minha caminhada. SINOPSE Variação de uso dos verbos ter e haver, em estruturas existenciais. Análise em tempo real de curta duração (tendência), com base em amostras de fala, à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística variacionista e do auxílio da história social. v RESUMO BATISTA, Priscila Guimarães. Ter e Haver existenciais na fala culta de Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre: do social ao linguístico. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. O trabalho aborda a variação de ter e haver, em construções existenciais prototípicas, examinando se a distribuição dos verbos pode refletir a sócio-história das comunidades analisadas. Verifica-se, ainda, se os fatores que atuam em uma cidade, aplicamse às outras. Essas formas estão em variação, no contexto existencial, desde o século XVI e, embora já se registre o sucesso de ter, haver ainda se mantém em alguns ambientes específicos. Para melhor compreensão do fenômeno, faz-se um levantamento em gramáticas antigas e atuais, destacando o que já foi dito sobre as existenciais. Parte-se dos pressupostos da sociolinguística variacionista laboviana (Labov, 1994) e recorre-se a um olhar da história social. Analisa-se a fala culta de três capitais brasileiras – Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador – em dois momentos diferentes, um estudo de tendência, a fim de compor o que Labov denominou análise em tempo real de curta duração. As amostras compõem o acervo do Projeto NURC e são estratificadas por idade e gênero, para melhor compreensão dos fenômenos. Observa-se que o avanço de ter, na fala, é generalizado e que o verbo haver apresenta maiores taxas de uso em falantes mais idosos e, preferencialmente, os do sexo masculino. Fatores linguísticos também estão relacionados à manutenção de haver: quando o verbo se encontra no pretérito perfeito e os argumentos são abstratos e/ou do tipo evento, a preferência por ter é menor. Além disso, ao que parece, cidades com maiores índices de desenvolvimento, em comparação com as que apresentam indicadores sociais mais baixos, tendem a utilizar o verbo ter com menor frequência. vi ABSTRACT BATISTA, Priscila Guimarães. Ter e Haver existenciais na fala culta de Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre: do social ao linguístico. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. This paper focuses on the distribution of the verbs ter and haver, in prototypical existencial sentences. The replacement of haver by ter and a possible embedding between the use of ter and the social history of each analyzed community are investigated. These forms are in variation since the XVI century. A search on old traditional grammars makes possible to improve the understanding of the phenomenon. The analyses are based on the sociolinguistics theory (Labov, 1994) and reforced by the social history view. The study focuses on the historical, social and structural constraints involved in the competition between the two verbal forms. The samples consist of informal standard speech from Rio de Janeiro, Porto Alegre and Salvador, stratified according to age and gender. The corpora were recorded in the 70’s and in the 90’s for a trend study. The results show that, in spoken language, the use of the verb ter is generalized and that the highest percentage of haver is registered on elder people. The most significant conditioning factors are verb tense, semantic nature of the internal argument, age group – by decade – and economic and social development of the community. The rates of haver are also conditioned by the social indicators of the cities. vii SUMÁRIO LISTA DE TABELAS .............................................................................................................x LISTA DE FIGURAS ............................................................................................................ xi INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1 1. APRESENTAÇÃO DO TEMA: OS VERBOS TER E HAVER...................................... 4 1.1 TER E HAVER POSSESSIVOS …............................................................................. 5 1.2 TER / HAVER + PARTICÍPIO PASSADO............................................................... 7 1.3 OS VERBOS-SUPORTE..........................................................................................10 1.4 OS MODAIS.............................................................................................................12 1.5 AS ESTRUTURAS EXISTENCIAIS.......................................................................14 2. VERBOS EXISTENCIAIS: UM PERCURSO HISTÓRICO....................................... 21 2.1. TER E HAVER EM GRAMÁTICAS TRADICIONAIS E DESCRITIVAS........... 22 2.1.1 Fernão de Oliveira e João de Barros...................................................... 23 2.1.2 Jerônimo Contador de Argote................................................................ 24 2.1.3 Antonio José Lobato................................................................................ 26 2.1.4 Jerônimo Soares Barbosa ....................................................................... 27 2.1.5 Francisco José Freire (Candido Lusitano) ........................................... 28 2.1.6 Cunha & Cintra, Bechara e Rocha Lima ............................................. 30 2.1.7 Mira Mateus ............................................................................................ 32 2.3 O QUE DIZEM AS ANÁLISES LINGUÍSTICAS ............................................... 32 3. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ................................................... 39 3.1 A SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA......................................................... 39 3.2 A HISTÓRIA SOCIAL ........................................................................................... 42 3.3 DESCRIÇÃO SÓCIO HISTORICA DAS COMUNIDADES EM ANÁLISE........ 45 3.4 OS CORPORA ......................................................................................................... 49 3.5 DAS VARIÁVEIS E SUAS HIPÓTESES............................................................... 49 4. ANÁLISE DOS DADOS ................................................................................................... 51 4.1 OS DADOS DO RIO DE JANEIRO ...................................................................... 59 4.2 OS DADOS DE SALVADOR ................................................................................ 62 4.3 OS DADOS DE PORTO ALEGRE ........................................................................ 65 5. CONCLUSÕES ................................................................................................................. 68 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 71 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Frequência de ter e haver, em estruturas de posse (apud Mattos e Silva 2002a)........................................................................................................................................ 7 Tabela 2: Distribuição de ter e haver por século e por possibilidade de flexão (Almeida, 2006:87).................................................................................................................................... 9 Tabela 3: Estatutos sintáticos de ETD-ter e ETD-haver (Avelar, 2011). .............................. 20 Tabela 4: Distribuição dos verbos existenciais em João de Barros (Retirado de Mattos e Silva, 2002a:137)..................................................................................................................... 34 Tabela 5: População livre, segundo raça, sexo e capitania (dados IBGE) ............................. 43 Tabela 6: Escravos desembarcados no Brasil (Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Database)................................................................................................................................. 46 Tabela 7: Dados demográficos de Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro (Dados: IBGE e PNUD)..................................................................................................................................... 48 Tabela 8: Ter, por faixa etária e década. ................................................................................ 57 Tabela 9: Relação ter x dados sociais .................................................................................... 58 Tabela 10: Ter e haver por tempo verbal no inquérito 255 (homem – faixa 3) ..................... 61 Tabela 11: Uso de ter associado aos fatores linguísticos, em Salvador.................................. 64 x LISTA DE FIGURAS Figura 1: Frequência de construções existenciais possessivas na fala culta carioca entre indivíduos de três faixas etárias (década de 70 e 90) – Retirado de Callou & Avelar (2002: 95)............................................................................................................................................ 19 Figura 2: Ter/haver temporais na fala culta carioca (adaptado de Batista, 2008).................. 20 Figura 3: Ter e haver existenciais: do século XVI ao XX ..................................................... 35 Figura 4: Ter e haver na fala e na escrita – Retirado de Avelar (2006a)................................ 37 Figura 5: Ter e Haver nos corpora analisados ....................................................................... 51 Figura 6: Frequência de haver, por cidade e tempo verbal, em ambas as décadas ................ 54 Figura 7: Natureza semântica do argumento interno ao verbo ter ......................................... 55 Figura 8: Ter, por faixa etária e cidade................................................................................... 56 Figuras 9 e 10: O uso de ter por faixa etária e sexo, nas décadas de 70 e 90, no Rio de Janeiro. .................................................................................................................................... 60 Figura 11: Uso de ter, por tempo verbal e década ................................................................. 62 Figura 12: Ter, por faixa etária e década em Salvador .......................................................... 63 Figuras 13 e 14: Distribuição de ter, por faixa e sexo, nas décadas de 70 e 90...................... 63 Figura 15: Uso de ter por faixa etária e década, em Porto Alegre.......................................... 65 Figuras 16 e 17: Uso de ter por faixa, sexo e década, em Porto Alegre................................. 66 Figura 18: Distribuição de ter por década, tempo e modo verbais..........................................67 xi INTRODUÇÃO A variação linguística no português do Brasil, assim como em qualquer língua, é fato incontestável. Qualquer falante, especialista ou não, é capaz de perceber que existem variações em todos os níveis, seja fonético – mais flagrante – seja morfológico, sintático, ou semântico. Os verbos ter e haver apresentam um histórico de variação que vem desde o português arcaico e segue pelo português contemporâneo. No campo existencial, essa disputa é acirrada, pois, embora se comente o sucesso de ter, haver ainda permanece em alguns casos – principalmente nas estruturas que indicam tempo decorrido (há dois anos, há muito tempo) e na modalidade escrita da língua. Apoiado teórica e metodologicamente nos pressupostos da sociolinguística laboviana e com um olhar voltado para os estudos da história social, o objetivo deste trabalho é mostrar como se dá o processo de variação entre os verbos ter e haver, em contextos existenciais, na fala culta do português brasileiro, considerando os fatores linguísticos e extralinguísticos que contribuem para a preferência por uma forma em detrimento da outra. A substituição de haver por ter é registrada em todas as regiões do Brasil e em todas as classes sociais, apenas com diferenças na frequência de uso. Faz-se uma análise comparativa entre dois momentos distintos – décadas de 70 e 90 – enfocando três capitais brasileiras (Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador). O objetivo de comparar as três cidades é buscar, na sócio-história das comunidades, fatores que as aproximem ou afastem para verificar se é possível estabelecer uma relação entre a variação de ter e haver -- como um fenômeno específico que apontaria para algo mais geral -- e dados da formação do português brasileiro. A pesquisa vem sendo desenvolvida desde 2008, com pequenos trabalhos sobre o tema, ora enfatizando as expressões de tempo decorrido, ora a pluralização das sentenças existenciais prototípicas e ora a distribuição destas construções. Foram realizados trabalhos com corpora desde o português clássico (Tycho Brahe)1 até o 1 www.tycho.iel.unicamp.br 1 português moderno (NURC). Todos esses estudos realizados contribuem para a melhor compreensão do fenômeno, principalmente sob uma visão diacrônica. O interesse pelo tema decorre do fato de as sentenças existenciais se apresentarem de modo distinto, tanto sintática, quanto semanticamente. Dentre tais construções, pode-se observar comportamentos diferentes dos verbos. Essa complexidade característica das estruturas existenciais desperta a curiosidade e faz com que, frequentemente, as pesquisas sobre o tema sigam novos rumos. No primeiro capítulo, apresentam-se os verbos ter e haver, comentando o avanço de ter – fato já atestado por muitos pesquisadores – e descrevendo as diversas estruturas de que fazem parte. Essa apresentação contém um breve histórico da distribuição dos dois verbos nos diferentes contextos. No segundo capítulo, são enfatizadas as construções existenciais. Faz-se um percurso histórico das existenciais, apontando como era/é seu uso desde o latim até os dias de hoje. Apresenta-se um panorama histórico da tradição gramatical, de modo que se percebam as diversas categorizações e afirmações feitas ao longo dos séculos sobre as sentenças existenciais. Faz-se também uma exposição das observações feitas em gramáticas descritivas mais atuais. Por fim, nesse capítulo, comentam-se os resultados obtidos nas pesquisas mais significativas sobre o tema, possibilitando uma comparação com os resultados obtidos nesta nova pesquisa. No terceiro capítulo, são abordadas as questões teóricas e metodológicas deste trabalho. A sociolinguística laboviana, associada a questões mais recentes da história social, constitui a base teórica da pesquisa. O programa VARBRUL é utilizado para auxiliar o tratamento estatístico dos dados selecionados. Nesse capítulo é descrito o corpus utilizado, além das variáveis consideradas para a análise. No quarto capítulo são apresentados a análise dos dados e os resultados obtidos. Também aí se faz uma comparação entre os resultados desta pesquisa e aqueles provenientes de estudos anteriores, apresentados no segundo capítulo. 2 Nas conclusões, retoma-se o tema de forma breve e enumeram-se os resultados gerais da pesquisa realizada, apontando sugestões para uma possível continuação do trabalho. 3 1. APRESENTAÇÃO DO TEMA: OS VERBOS TER E HAVER O uso de ter e haver tem sido sistematicamente estudado, sob as mais diversas perspectivas, em todo tipo de estrutura de que participam: a) estruturas em que atuam como verbos plenos, indicando o valor de posse; b) estruturas em que acompanham verbo no particípio passado, ora flexionado, adjetivando o complemento direto, ora não flexionado, formando os tempos compostos; c) estruturas chamadas modais, em que acompanham uma preposição (de / que) e um verbo no infinitivo, indicando noções de futuridade e/ou obrigatoriedade; d) estruturas nas quais atuam como verbos funcionais, mantendo o sentido de posse e/ou existência, mas acompanhando substantivos de caráter [+ abstrato]. Nessas estruturas, denominadas verbos-suporte ou leves, o verbo forma com o substantivo uma lexia complexa, em que se transfere o papel de núcleo do predicado para os constituintes à sua direita, funcionando o verbo apenas como indicador das categorias de pessoa, número, tempo e modo. e) estruturas designadas existenciais, em que o verbo não seleciona argumento externo e denota a existência de algo. Como se pode observar, os verbos ter e haver são polifuncionais, uma vez que atuam nas mais diversas estruturas. Tal característica faz com que, frequentemente, voltem a ser objeto de estudo. Nas pesquisas realizadas sobre o tema, costuma-se destacar a substituição de haver por ter em todas as estruturas de que participam. Os trabalhos de Mattos e Silva (1997, 1996, 1989) são os primeiros a apontar consistentemente para a variação de haver e ter, já no português arcaico. Comentando o comportamento de ter e haver em meados do século XVI, Mattos e Silva (2002a:139) diz: “esses verbos, em momentos diferentes, mas paralelos, pelo menos do que se pôde depreender da documentação examinada, seguem percursos análogos, com evidente recesso histórico de haver e sucesso de ter”. 4 1.1 Ter e haver em estruturas de posse As estruturas de posse caracterizam-se por apresentar um esquema X TER/HAVER Y (Callou & Avelar, 2002a), no qual X funciona como argumento externo (sujeito) e Y como argumento interno (objeto direto). Semanticamente, exprimem posse de uma entidade por outra. Costuma-se fazer uma distinção entre a natureza semântica do complemento do verbo, caracterizando três tipos diferentes de posse: Propriedades inerentes ao possuidor (haver/ter anos; haver/ter olhos); Propriedades adquiríveis imateriais (haver/ter fé; haver/ter vergonha); e Propriedades adquiríveis materiais (haver/ter casa; haver/ter dinheiro). A invasão de ter nos campos de haver tem início nas estruturas possessivas. Eleuterio (2003) explica que, no português medieval, haver, correspondente a habere, no latim, possuía a acepção de ‘adquirir’, ‘alcançar’, ‘obter’, enquanto ter (no latim, tenere) expressava uma posse secundária, ‘manter’, ‘guardar’, ‘possuir’. Os fragmentos abaixo, retirados de Eleuterio (op. cit.: 112) ilustram esses usos: (...) filho que EI da raĩa / filho que OUVER da raĩa / ata quando AJA revora / decimas que eu TENHO apartadas en tesouros per meu reino / (...) E mando que aqueste AUER dos meus filhos que o TENHAM aquestes dous arcebispos con aquestes cinque bispos, ata quando AJAN revora / (...) E mando que quen quer que TENHA meu tesouro ou meus tesouros a dia de mia morte, que os dê a departir [a]questes dous arcebispos. Circunstancialmente, havia uma troca de um pelo outro, embora se mantivesse nítida a diferença semântica. A proximidade entre as acepções dos verbos e essa alternância no uso são indicados como possíveis causas para que ter passasse a ser cada vez mais frequente, até suplantar o lugar de haver possessivo. 5 O verbo haver, inicialmente um verbo de posse, praticamente não participa mais de estruturas desse tipo desde o século XVI, quando foi substituído paulatinamente pelo verbo ter. Os exemplos (1) e (2)2 ilustram o uso de haver em contexto possessivo (século XVI), enquanto (3) e (4) mostram ter-possessivo, forma categórica atualmente: (1) de maneira que não possa AVER detença nem dillaçam (Carta 330 de 1541); (2) nom levaram provisões minhas, e que nom sabeis se am d’AVER ordenado nesta viagem (Carta 331 de 1541). (3) Eu hoje não TENHO mais amigo nenhum antigo, só tenho amigo novo, o único amigo antigo que eu tenho é um primo-irmão meu, o resto tudo morreu. (Inq. 255 – RJ/70) (4) Eu TENHO poucas recordações da infância. (Inq. 001 – RJ/90) A essa mudança sedimentada no domínio da posse, Mattos e Silva (1996) associa uma mudança de estágios da língua em meados do século XVI – mais especificamente, em 1540 – e afirma que o desaparecimento do verbo haver possessivo e o surgimento de ter existencial, assim como outros fenômenos, podem ser indícios de uma nova fase do português. Sabe-se que nenhuma mudança linguística, no entanto, ocorre de modo abrupto. As mudanças são lentas e se processam primeiro em uns contextos, para depois atingir outros. Mattos e Silva (2002a) destaca que ter penetrou, primeiramente, nas estruturas de posses materiais, depois atingiu as estruturas de posses imateriais e, por último, se processou naquelas do tipo posse inerente. A tabela abaixo ilustra como se deu esse avanço. 2 Exemplos retirados de Mattos e Silva (2002b) 6 Século Contexto XIII XIV 1500 1540 haver 70% 20% 11% Ø ter 30% 80% 89% 100% haver 85% 80% 45% 2% PAI ter 15% 20% 55% 98% Tabela 1: Frequência de ter e haver, em estruturas de posse (apud Mattos e Silva 2002a)3 PAM Durante a mudança, registram-se casos em que o verbo haver permite uma interpretação tanto possessiva quanto existencial. Por não ser possível definir se o verbo é existencial ou possessivo, a essas ocorrências foi dada pela aquela autora a denominação de ‘contextos opacos’, e podem ser ilustradas pelos exemplos 4 a seguir: (5) E dando ordem a algumas cousas daquela fortaleza, e despedindo um catur, que ali achou, com cartas a Martim Affonso de Mello Juzarte, capitão de Ormuz, pera que em agosto lhe mandasse todo o rendimento da alfândega que HOUVESSE, escrevendo a El Rei, e ao Guazil cartas de oferecimento. (Décadas, Diogo do Couto - 1542) (6) He por natureza tao humilde, e rasteira, que se nao TIVER quem lhe dê a mao, nunca se alevantara do pé da terra. (A arte de furtar, Manuel da Costa – 1601) Os contextos opacos são importantes para estudar a penetração de haver no campo existencial. A ausência ou a dificuldade de localizar um sujeito associado ao verbo permitem a nova interpretação. 1.2 Ter / haver + particípio passado As estruturas em que ter/haver acompanham um verbo na forma participial podem ser consideradas resquícios do padrão oracional latino, decorrente dos temas infectum e perfectum (Eleuterio, 2003). Na evolução da língua, esses tempos foram passando por reorganizações semânticas e morfossintáticas, de modo que se podem 3 PAM – Propriedades adquiríveis materiais; PAI – Propriedades adquiríveis imateriais. 4 Exemplos retirados de Batista (2009). 7 estabelecer, em momentos distintos, diferentes formas de interpretação do complexo formado por ter/haver + particípio passado + complemento direto. Inicialmente, a forma verbal no particípio estava relacionada ao complemento direto, funcionando como um adjetivador do nome (exemplos 7 e 8)5. Desse modo, o verbo apresentava desinências de gênero e número de acordo com o objeto a que se referia. Nesse tipo de estrutura, os verbos ter/haver ainda guardavam seu sentido de posse: ter/haver [SN]compl.dir.. O sintagma nominal em questão era composto por substantivo + verbo no particípio passado flexionado. (7) assi pode homem entender a homildade ou a soberbia que no su coraçon TEN ASCONDUDA. [DSG, 14, 21] (8) Con lagrimas continuadas TEENDO as maos ALCADAS ao ceo [MSJ,1, fol. 89v] Dentre as formas em que o particípio se encontrava marcado, Almeida (2006) destaca que havia uma ambiguidade, uma vez que era possível observar construções em que o verbo principal assumia o papel de núcleo do predicado, com o valor de posse, mas também casos em que o verbo estava semanticamente esvaziado. Eleuterio (2003:143), citando o termo utilizado por Mattoso Câmara para se referir a tais fatos, explica: Esse termo se aplica a fatos gramaticais meramente mórficos, sem correspondência a uma noção ou categoria gramatical, isto é, a forma particular não traz mais em si uma significação gramatical específica, mas se mantém por razões de diacronia. Assim, a flexão de particípio seria uma servidão gramatical que teria retardado a evolução formal da língua em face da evolução semântica geral provocada por mudanças na cultura. Os falantes foram perdendo a consciência da diferença expressa entre as duas formas, à medida que essa nova construção de valor permansivo foi substituindo o antigo perfeito, reduzido a passado concluso. A esses usos está associado o surgimento das estruturas de tempo composto. 5 Exemplos retirados de Almeida (2006). 8 No latim, as categorias de tempo, modo e aspecto, assim como as de número e pessoa, eram marcadas morfologicamente. Com a perda das marcas de aspecto, começam a surgir as conjugações perifrásticas. Estas assumem o papel antes desempenhado morfologicamente, expressando, além de tempo e modo, a categoria de aspecto (Almeida, 2006). Durante esse processo, coexistiram as formas em que ora o particípio estava flexionado, ora não flexionado (observar frequências na tabela 2). Com a perda da flexão, o particípio passa a se associar ao verbo haver, e a expressão verbal subordina o complemento. Tabela 2: Distribuição de ter e haver por século e por possibilidade de flexão (Almeida, 2006:87) Somente quando o particípio deixa de ser flexionado é que se pode falar em ter/haver como verbos auxiliares. Eleutério (2003) destaca a diferença de significação entre estruturas [+] flexão e [-] flexão: eu tinha uma carta guardada na manga / eu tinha guardado uma carta na manga. O momento em que começa a variação entre as duas formas ainda é incerto para os historiadores da língua. Mattos e Silva (1997) atribui ao século XIII a emergência dos tempos compostos. Atualmente, ter/haver são considerados auxiliares e figuram na formação de tempos compostos. A ordem dessas construções é fixa TER/HAVER + particípio 9 passado e há uma preferência pelo verbo ter. Semanticamente, os tempos compostos acrescentam à ideia básica do verbo principal a noção de conclusão. (9) Também gosto muito de vinhos. Talvez porque o meu pai TENHA se DEDICADO à viti... vinicultura então aprecio muito os vinhos. (Inq. 020 – POA/90) (10) ainda se ganhava dinheiro com mais facilidade no posto de gasolina e os efeitos da guerra ainda não HAVIAM ATINGIDO tanto o comércio. (Inq. 028 – RJ/90) 1.3 Os verbos-suporte As estruturas com verbo-suporte são normalmente formadas com terpossessivo/existencial ou haver-existencial. A diferença entre os possessivos/existenciais e os verbos-suporte é que, nestes, o argumento interno Y possui, obrigatoriamente, o traço [+abstrato] e o papel de núcleo do predicado transferese para os constituintes à sua direita, funcionando o verbo apenas como indicador das categorias de pessoa, número, tempo e modo. Semanticamente, o verbo-suporte é responsável por suprir, junto com o sintagma nominal adjacente, a necessidade de itens lexicais para expressar certas ideias. Em muitos casos, a lexia formada com o verbo-suporte não é substituível por um verbo pleno correspondente (exemplo 11). (11) Você voa mais baixo, você TEM CONDIÇÃO de . . . . de ver muito mais. (Inq. 002-R – SSA/90) (11’) * Você voa mais baixo, você ??? de ver muito mais. Entretanto, há casos em que pode ser feita a substituição, sem que haja alteração no sentido, e ainda assim os verbos sejam considerados como suporte (exemplo 12). 10 (12) Eu vou dormir eu ligo o radinho estou sempre com rádio ligado, mas não que eu TIVESSE uma PREFERÊNCIA anteriormente pelo rádio. (Inq. 121 – POA/70) (12’) Eu vou dormir eu ligo o radinho estou sempre com rádio ligado, mas não que eu PREFERISSE anteriormente O rádio. No que tange à configuração sintática das estruturas com verbos-suporte, Neves (1996:203) destaca: Examinando-se os pares formados em português pelas construções com verbo-suporte, de um lado, e as construções com verbos plenos correspondentes, de outro, verifica-se que o contraste entre esses enunciados em relação parafrástica não implica diferenciação sintática no restante da oração. O modo de representação do complemento, porém, é sintaticamente diferente, nos dois tipos de enunciado, nos casos em que o verbo simples é transitivo direto, já que, na construção com verbo-suporte, o complemento se comporta sintaticamente como complemento de nome, isto é, ele é regido por preposição. Observando os exemplo (12) e (12’), a substituição por verbo pleno, altera a estrutura sintática do complemento. Já os exemplos (13) e (13’) mantêm o mesmo padrão. (13) Num país em desenvolvimento nós TERÍAMOS também a NECESSIDADE de médicos, arquitetos e principalmente problema ligado à parte assim de tecnologia. (Inq. 008 – POA/70) (13’) Num país em desenvolvimento nós NECESSITARÍAMOS também de médicos, arquitetos e principalmente problema ligado à parte assim de tecnologia. Outro ponto importante quanto às construções com verbo-suporte é a possibilidade de inserção de elementos intervenientes entre o verbo e o objeto. A existência de graus de funcionalidade do verbo estaria relacionada à possibilidade de 11 aceitação de determinantes, sem acarretar na perda do status dos verbos, embora estes adquiram um traço [+ específico]. Alguns substantivos abstratos apresentam uma relação tão estreita com o verbo que, ainda com elementos intervenientes, mantêm sua prototipicidade. (14) Olha, acho que tem que HAVER um EQUILÍBRIO, eu acho que tem que se dar limites, que hoje em dia acho que não está acontecendo muito isso (Inq. 014N – SSA/90) Segundo Neves (1996, 2000), o uso de verbo-suporte em lugar de um verbo pleno correlato pode corresponder a uma opção do emissor por efeitos pragmáticos e maior precisão semântica ou referenciação textual. Para a autora “a combinação semântica do verbo-suporte com o nome complemento resulta numa predicação de tipo semântico diferente daquele que o verbo obtém nas construções em que não é suporte” (NEVES, 1996:210). Historicamente, Mattos e Silva (2002a:139) sugere o século XV como o momento em que surge a variação ter/haver nas construções de verbo suporte. Atualmente, ambos são utilizados para compor a lexia, como mostraram os exemplos acima. 1.4 Os modais Segundo Quirk (1985, apud Neves, 1996a) “a modalidade pode ser definida como o modo pelo qual o significado de uma frase é qualificado de forma a refletir o julgamento do falante sobre a probabilidade de ser verdadeira a proposição por ela expressa”. Dentre inúmeras formas de modalizar um discurso (advérbios, locuções, verbos de conteúdo modalizante), encontram-se as perífrases com ter e haver, que manejam as noções de obrigatoriedade e futuridade, respectivamente. As estruturas de valor modal são caracterizadas pelo padrão HAVER/TER + DE/QUE Y, em que Y corresponde a um verbo no infinitivo. Durante um período, 12 foram consideradas formas de futuro, principalmente por indicarem a projeção do falante sobre a resolução futura do ato expresso. (15) Eu acho assim que eles TINHAM QUE DAR condições a que o adolescente tivesse pensamento. (Inq. 38 – POA/90) Pode-se questionar a equivalência semântica entre as construções formadas por haver e aquelas formadas por ter. Para Mattos e Silva (1996), haver de expressaria exclusivamente futuridade, e ter de representaria, além da noção de futuridade, a obrigatoriedade. Paralelamente, Mateus et alii (2003) não incluem haver de entre os verbos modais, assim como Oliveira (2006), ao abordar as formas perifrásticas de futuro, não trabalha as construções com ter de, analisando apenas as estruturas haver de + infinitivo. Diacronicamente, as formas de futuro expressas por haver de são fundamentais no processo de formação do futuro sintético do português. No latim, o futuro em –bo foi sendo substituído pela forma analítica [V + habere]. Como o latim admitia certa flexibilidade na ordem dos constituintes, a perífrase verbal podia ocorrer com o verbo principal antes ou após habere (amare habeo / habeo amare). Da primeira construção, resultou o futuro sintético (amar-hei > amarei), enquanto da segunda estrutura resultaram as formas de modalização (hei de amar) e o futuro analítico, geralmente formado pelo verbo ir + infinitivo, atualmente preferido pelos falantes. No português arcaico, segundo documenta Mattos e Silva (1996), apenas haver era usado como ‘auxiliar aspectual de futuridade’. De acordo com dados de trabalhos da autora, ao menos nos Diálogos de São Gregório e na Carta de Caminha, ainda não havia a variação entre ter e haver nesse tipo de construção. A variação começa a surgir em meados do século XVI (Mattos e Silva, 2002a), mas não exatamente com os mesmos valores semânticos. Na Gramática de João de Barros (1540), o autor destaca que o tempo vindoiro é composto pelo verbo haver mais a preposição de, seguidos de um verbo no infinitivo. O verbo ter ocuparia as estruturas de passado composto. Atualmente, nota-se a preferência 13 por ter, tanto na expressão do futuro, quanto do passado, usado majoritariamente com a conjunção que, que se encontra em variação com a preposição padrão de. (16) Todo...não sei se é porque os professores de lá são... eh... megalomaníacos, mas todo dia TINHA QUE TER um dinheiro pra comprar material. (Inq. 003-N – SSA/90) 1.5 As estruturas existenciais Por volta do século XVI, quando ter se torna o verbo padrão para expressar a posse, começa também a penetrar o campo das existenciais. Consequentemente, haver, que já havia suplantado o uso do verbo ser como existencial prototípico, começa a dividir certos contextos com a forma inovadora ter. Tem início uma mudança que pode ser englobada dentre os aspectos que permitem distinguir uma norma linguística brasileira distinta da de Portugal (Callou e Avelar, 2001). As construções existenciais, em geral, são caracterizadas pelo esquema Ø TER/HAVER Y, no qual Y equivale ao argumento interno (objeto direto) dos verbos. Costumam ser denominadas construções impessoais pelas gramáticas normativas, uma vez que não apresentam sujeito, mantendo-se invariáveis na 3ª pessoa do singular. Semanticamente, pode-se dizer que as estruturas existenciais indicam a existência de algo, embora já se saiba que tal definição, tendo em vista as diversas ocorrências desse tipo de estrutura, seja incompleta. As existenciais apresentam configurações distintas, podendo, muitas vezes, ter seu sentido original esvaziado. Os exemplos abaixo, nos quais os verbos destacados são agrupados às existenciais, ilustram essa diferença: (17) Está HAVENDO uma competição pra cada uma levar pra sua universidade. (Inq. 38 – POA/90) (18) Num jantar que houve do prefeito, TINHA uns fazendeiros de cacau. (Inq. 38 – POA/90) 14 (19) Eu acho assim, por exemplo, eu acho que... HAVIA naquela época com o projeto Rondom, uma meta de fazer os alunos, no final do ano, passarem um período na universidade. (Inq. 38 – POA/90) (20) TINHA gente que não trabalhava, TINHA gente que era folgada, TINHA de tudo. (Inq. 38 – POA/90) (21) Minha mãe me conta, né, as mesmas histórias HÁ bastante tempo. (Inq. 28 – POA/90) Note-se que, em cada exemplo, o verbo possui uma significação diferente. Em (17), o verbo haver está sendo usado com o sentido de acontecer, ocorrer; em (18), ter admite substituição por estar; no exemplo (19), haver possui a acepção de existir; em (20), ter tem seu sentido esvaziado, atuando como um operador discursivo de caráter [+ funcional]; e, em (21), haver indica tempo decorrido, podendo ser substituído por fazer. Para uma simples conferência, foram consultadas quatro pessoas de nível superior. Elas deveriam substituir os verbos destacados por outro correspondente, que não fosse haver ou ter. Além disso, deveriam apontar em qual dos exemplos apresentaram mais dificuldade de encontrar um sinônimo. As respostas foram bem parecidas: em (17), falaram em acontecendo, ocorrendo e “rolando”; para substituir tinha, em (18), todos sugeriram o verbo estar; em (19), surgiram como opções existia e acontecia; para (21), todos sugeriram fazer; e quanto a (20), foi categórica a dificuldade de encontrar um sinônimo – uma pessoa sugeriu que substituísse por existir apenas a primeira ocorrência e que omitisse as outras duas ocorrências. De todas as estruturas com ter e haver, as existenciais podem ser consideradas as mais complexas, por possibilitarem o agrupamento das sentenças em subgrupos, cada qual com sua especificidade. Devido a diferenças estruturais e/ou semânticas entre os diversos contextos existenciais, costuma-se fazer uma classificação das estruturas em i) expressões de tempo decorrido (ETDs); ii) construções em que há um sujeito expletivo ocupando a posição do argumento externo (existenciais possessivas); e iii) as existenciais prototípicas (CEs). Na pesquisa, é enfocado o último tipo, embora não se deixe de comentar a distribuição das outras categorias no português culto brasileiro. 15 As CEs se enquadram na definição tradicional de sentenças existenciais e podem ser representadas pelos exemplos abaixo: (22) O primeiro festival que HOUVE há dois anos atrás eu acompanhei todinho. (Inq. 121 – POA/70) (23) Olha eu acho que tanto no rádio como na televisão de vez em quando TEM publicidade demais, propaganda demais. (Inq. 121 – POA/70) (24) Em relação a transportes HÁ dois aspectos que a gente deve abordar... Um é o transporte diário, é para atender as necessidades de trabalho é... em que naturalmente que eu prefiro o transporte particular não é ? (Inq. 027 – RJ/90) (25) Sem a ajuda de um remedinho eu não consigo... Então TEM um remédio chamado zomeride que o médico receitou e a princípio eu achei que ele estava me dando dor de cabeça. (Inq. 019 – RJ/90) Embora os verbos existenciais, especialmente o verbo haver, sejam considerados impessoais, durante um longo período da tradição gramatical, o complemento de haver era interpretado como sujeito, ocasionando, assim, a concordância do verbo com o nominativo. Os casos em que não se flexionava o verbo eram considerados idiotismos da língua. Atualmente, observa-se de oitiva que a concordância é realizada, principalmente em contextos nos quais o falante se encontra numa situação formal e quer ser bem avaliado (por exemplo, nos discursos políticos). Por não ser um verbo tão utilizado na fala casual, o falante acaba por levar o verbo ao plural, assim como ocorre com existir e, muitas vezes, com ter existencial. Pode-se pensar em algo como uma hipercorreção. Apesar dessa percepção, em dados de fala espontânea do NURC-RJ, foram encontradas apenas duas ocorrências: (26) com as embaixadas que HAVIAM então, a Embaixada Inglesa, a Embaixada Portuguesa. (Inq. 133 – RJ/70) (27) E os cachorros que sempre... sempre... HAVIAM muitos lá, bassês, conhece? (Inq. 189 – RJ/70) 16 Outra característica importante das existenciais prototípicas é a presença de uma expressão locativa ou temporal na sentença (exemplos 22 e 23). Segundo Lyons (1979), para afirmar que alguma coisa existiu, é necessário complementar com informações sobre quando ou em que lugar ela existiu. No português arcaico, tais expressões podiam ser consideradas obrigatórias, segundo Mattos e Silva. No entanto, como se pode ver nos exemplos (24) e (25), essa complementação é facultativa no português brasileiro atual. A obrigatoriedade das expressões locativas pode estar relacionada a uma transformação nas sentenças existenciais. De acordo com Eleuterio (2003:168), A ausência de um substantivo funcionando como sujeito seria proveniente de um processo anterior de impessoalização da frase, dito de outro modo, um processo de transformação. As orações impessoais com o verbo haver seriam o resultado da passagem do sujeito a complemento de lugar; dessa maneira, o verbo haver teria adquirido a função de indicar existência, anteriormente exercida pelo verbo esse. Tomando por base o pensamento da autora, pode-se dizer que, atualmente, não haveria obrigatoriedade, uma vez que a noção de existência representada por ter e haver não só está já está cristalizada, como também está tendo seu uso expandido para outros domínios semânticos. Por a mudança estar completa, não há mais o rigor estrutural das expressões locativas, advindas do período de transição. Pensando no processo de transformação descrito pela autora, torna-se palpável a ideia de que o português atual estaria passando por processo inverso. Se, no português arcaico, o sujeito passou a ser interpretado como complemento locativo, agora o complemento de lugar está aparecendo, com uma frequência razoável na posição de sujeito, como mostram os exemplos (28) e (28’), retirados de Callou e Avelar (2011). (28) No Brasil TEM praias belíssimas. EXISTENCIAL LOCATIVA (28’) O Brasil TEM praias belíssimas. POSSESSIVA 17 No exemplo (28), faz-se uma reanálise do complemento locativo, que passa a ser realizado como um sujeito oracional. O verbo da nova sentença adquire estrutura e sentido de posse e é tradicionalmente classificado de possessivo. Caso semelhante ocorre com os exemplos (29) e (30). A construção existencial, nesse caso, mantém o sentido original, porém, devido à inserção de um termo na posição do argumento externo, a estrutura sintática passa a ser a de um verbo de posse. (29) Eu acho que hoje em dia já tá bem diversificado, você, quando VOCÊ TEM shoppings, até inclusive na, que a gente considerava zona norte, né, tipo Madureira, Méier. (Inq. 012 – RJ/90) (30) Vou vendo onde que a coisa mais me agrada e vou comprando. Evidente que A PESSOA TEM umas que são mais simpáticas, né? Butique, por exemplo, EU TENHO uma que é, é em Ipanema. (Inq. 140 – RJ/90) Esse fenômeno pode estar apontando para uma mudança no parâmetro do sujeito nulo. Segundo Duarte (1999), o português brasileiro estaria se tornando uma língua de sujeito preenchido. Tal fato se relacionaria à redução do quadro dos paradigmas flexionais – a perda da desinência -s de segunda pessoa e o uso do pronome a gente em lugar de nós. Duarte mostra que o preenchimento da posição de sujeito se iniciou em estruturas de referência definida e parece estar sendo implementado nas estruturas de sujeito não referencial, caso das construções existenciais. À luz da teoria variacionista, que aponta como uma questão central o encaixamento da mudança, a autora mostra que a mudança na representação do sujeito de verbos existenciais não é uma alteração isolada, mas sim decorrente de outras mudanças e que a realização de pronomes plenos em estruturas existenciais é resultado dessas alterações. É frequente a ocorrência de construções como (29) e (30), em que a noção de existência está vinculada à estrutura de um verbo de posse (cf. gráfico1). A presença de um pronome pessoal – em geral, ‘você’ e ‘a gente’ – em posição pré-verbal aproxima tais estruturas às possessivas, embora semanticamente estejam mais próximas das 18 existenciais. Devido a tais características, Callou e Avelar (2011) denominam essas sentenças de ‘orações existenciais possessivas’. Gráfico 1: Frequência de construções existenciais possessivas na fala culta carioca entre indivíduos de três faixas etárias (década de 70 e 90) – Retirado de Callou & Avelar (2002: 95). Outro subgrupo das construções existenciais é o formado pelas expressões de tempo decorrido. Assim como as existenciais prototípicas, as ETDs apresentam-se sob a forma Ø HAVER/TER Y, em que Y equivale ao argumento interno (objeto direto) dos verbos. A diferença restringe-se ao valor semântico de Y, que é sempre referente a um período – definido ou não – de tempo (anos, meses, tempo, dias). Essas estruturas indicam, semanticamente, a ideia de tempo decorrido e são agrupadas às existenciais, uma vez que ter/haver-temporal é, sintaticamente, um predicador de um lugar e, semanticamente, confere sentido de existência de tempo decorrido ao fato indicado pelo discurso (Batista, 2008). (31) O que me informaram é que antigamente havia mesmo ali... muito mato isso HÁ muitos anos atrás, né? (Inq. 048 – POA/70) Ao analisar o grupo das existenciais, observa-se que as construções temporais – há muito tempo, há dias –, tanto na fala quanto na escrita, representam o contexto de maior resistência à penetração de ter. O gráfico abaixo ilustra os percentuais de ter e haver temporais na fala culta carioca, nas décadas de 70 e 90. 19 Gráfico 2: Ter/haver temporais na fala culta carioca (adaptado de Batista, 2008) Segundo alguns autores (Paiva, 2010; Móia, 1998), essas expressões temporais com haver teriam sofrido processo de gramaticalização, passando a ser interpretadas como adjuntos adverbiais de tempo, funcionalmente próximos à preposição desde. Tal fato justificaria a discrepância existente entre os percentuais de ter e haver nas ETDs. Avelar (2011) destaca ainda outros motivos que podem contribuir para a manutenção de haver. A tabela abaixo apresenta os fatores analisados pelo autor. Percebe-se que o verbo haver é mais tolerante a alguns aspectos, tendo, por consequência, maior adesão pelos falantes. ETD-ter ETD-haver a. Posposição do advérbio atrás ?? ok b. Modificação adnominal Ok c. Preenchimento de sujeito Ok d. Deslocamento de termos Ok interrogativos e. Clivagem Ok f. Dispensa de que quando em Ok posição inicial Tabela 3: Estatutos sintáticos de ETD-ter e ETD-haver (Avelar, 2011). Ainda que haver se mantenha com mais força nas expressões de tempo, nota-se, pelo gráfico 2, um leve aumento percentual na frequência de ter nessas estruturas, o que leva a pensar numa possível substituição, embora mais lenta nesse contexto. 20 2. VERBOS EXISTENCIAIS: UM PERCURSO HISTÓRICO Para traçar o percurso histórico dos verbos ter e haver, faz-se necessário retomar suas acepções originais. O verbo haver origina-se da forma latina habere, que significava ‘ter’, ‘possuir’ (tener, poseer). Ter, do latim tenere, indicava a noção de ‘manter’, ‘reter’ (mantener, retener). Pode-se dizer que seus significados se cruzam, pois, para que algo seja mantido/retido, é preciso que, anteriormente, seja possuído. A história dos dois verbos se entrelaça e é possível perceber isso ao observar as definições dos verbos em dicionários. Corominas & Pascual (1980), nos verbetes de ter e haver, mencionam o retrocesso deste e a invasão daquele. Atribui-se ao século XIII o primeiro registro de ter com o valor de posse, contexto até então restrito a haver. No entanto, segundo os etimologistas, já se podiam encontrar exemplos em documentos espanhóis. No português brasileiro, mantém-se o século XIII como marca da entrada de ter. A proximidade de suas acepções, associada às modificações por que a língua passa, fez com que o uso desses verbos começasse a ser confundido. Embora conscientes dos sentidos originais das duas formas, os falantes – como é comum em atividades linguísticas – foram ressignificando os vocábulos. Assim, ter penetrou, aos poucos, o campo das estruturas de posse, enquanto haver se difundiu como a forma inovadora das estruturas existenciais. Atualmente, não se encontram mais exemplos de haver indicando posse6. A noção de existência no português era expressa, originariamente, pelo verbo ser (do latim, esse, sedere). Conforme haver foi perdendo o significado de posse, foi adquirindo sentido existencial, sendo estabelecida uma variação entre ser e haver, que perdurou até o século XVI. Essa ressemantização de haver gerou também uma alteração em sua configuração sintática. Enquanto expressava posse, era um verbo de dois 6 Embora não seja mais usado nem reconhecido pelos falantes, ainda se registra, por muito tempo, a acepção de haver como um verbo possessivo. Fernandes (1942) descreve alguns sentidos para o vocábulo, dentre os quais o primeiro a ser citado é o de ‘ter’, ‘possuir’. Falantes não especialistas desconhecem tal uso do verbo. 21 argumentos, porém, ao passar a existencial, transforma-se em um verbo monoargumental (Eleuterio, 2003). Aos poucos, ter, que já predominava como verbo de posse, começa a dividir com haver a significação existencial. Os dois verbos permanecem em variação até hoje, com predominância deste na escrita e daquele na fala, principalmente dos indivíduos mais jovens. Além da questão da frequência das formas verbais, alvo principal dos estudos, também são pesquisados outros fatores referentes aos verbos existenciais: elementos linguísticos e extralinguísticos favorecedores de um ou outro vocábulo, descrição sintática e a concordância do verbo haver com seu complemento. A seguir, faz-se uma revisão da tradição gramatical, no que diz respeito ao uso de ter e haver como verbos indicadores de existência. 2.1. Ter e haver em gramáticas tradicionais e descritivas Uma consulta às gramáticas antigas é fundamental para que o pesquisador tome conhecimento da norma e das reflexões feitas em estágios anteriores da língua. Além de permitir o acesso às reflexões linguísticas, os compêndios formam, juntamente com outros documentos da época, uma excelente fonte de dados. Durante o percurso da tradição gramatical, algumas afirmações foram feitas acerca de ter e haver em contextos existenciais; contestava-se a flexão de haver, entre outros aspectos. Como as primeiras gramáticas da língua portuguesa ainda tomavam como modelo as gramáticas latinas, a estrutura dos compêndios baseava-se principalmente na concepção do certo e do errado. Foram examinadas as gramáticas de Fernão de Oliveira (1536), João de Barros (1540), Jerônimo Contador de Argote (1725), Antonio José dos Reis Lobato (1770), Jerônimo Soares Barbosa (1822) e a de Francisco José Freire (1842), também conhecido por Candido Lusitano. Em relação a ter e haver, há alguns pontos comuns nas obras e outros mais explorados por uns autores que por outros. Poucos são os que mencionam, 22 especificamente, o uso existencial dos verbos; quando o fazem, em geral, é para expor a impessoalidade de haver, comentando a flexão inadequada do verbo. 2.1.1 Fernão de Oliveira e João de Barros As primeiras gramáticas da língua portuguesa surgem no século XVI, com Fernão de Oliveira (Grammatica da lingoagem portuguesa, 1536) e João de Barros (Grammatica da língua portuguesa, 1540). Segundo Leite (2007), essas obras estão inseridas no segundo momento da gramaticografia portuguesa, o qual se caracterizava pelo humanismo da época. Há uma discussão acerca dos primeiros gramáticos, uma vez que são notadas diferenças significativas entre suas obras. Fernão de Oliveira é considerado um gramático, estudioso da língua, enquanto de João de Barros dizem ser um historiador que escreveu sobre a língua. A diferença é que o primeiro [Fernão de Oliveira], segundo o ponto de vista da época e, também, segundo o ponto de vista conservador, foi “assistemático”, descrevendo a língua mais livremente, indutivamente, analisando a realidade linguística, por meio dos exemplos que observou e recolheu, sem submeter sua análise, rigidamente, ao modelo das “artes” latinas. O segundo [João de Barros], ao contrário, foi sistemático, tinha nas mãos a teoria e o modelo para descrever a língua, o da gramática greco-latina e, de posse dele, dedutivamente, aplicou definições e classificações, para todas as partes do discurso, e formulou (forjou) para cada uma delas, exemplos que pudessem confirmá-las. (LEITE, 2007: 92) Como se pode observar, a Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira, distingue-se por seu caráter descritivo inovador para a época. O autor, embora tenha como referência a arte greco-latina, norteia sua gramática pelo uso sincrônico da língua. Não foram encontradas, na obra de Fernão de Oliveira, alusões aos verbos ter e haver como existenciais. O gramático menciona a divisão dos verbos em substantivos e adjetivos, fala dos modos, tempos, números e pessoas dos verbos, mas não chega a aprofundar o assunto. A gramática de João de Barros, diferentemente da de Fernão de Oliveira, baseiase diretamente no modelo greco-latino. No capítulo em que trata dos verbos, faz uma distinção entre verbos substantivos e adjetivos, considerando substantivo o verbo ser, 23 por demonstrar o “ser pessoal da cousa, como quando digo: eu sou criatura racional” (Buescu, 1971: 14). Logo abaixo, destaca a repartição dos verbos em pessoais e impessoais, apresentando a definição de verbo impessoal: “Chamam os latinos verbo impessoal todo aquele que se conjuga pelas terceiras pessoas do número do singular e não tem primeira nem segunda pessoa. Estes verbos impessoais são em duas maneiras: a uns, chama da voz ativa e a outros da voz passiva” (Buescu, 1971: 15). Mais adiante, João de Barros cita o verbo haver, ilustrando alguns de seus usos – o autor cita exemplos de verbos suporte e de modalização, na construção da ideia de futuridade – sem, no entanto, mencionar o valor existencial que pode assumir. 2.1.2 Jerônimo Contador de Argote Jerônimo Contador de Argote, gramático do século XVIII, escreve sua gramática em forma de diálogos entre um mestre e seu discípulo. Logo na introdução, o autor aponta que, embora sua gramática seja portuguesa no nome, nas regras e nas palavras, tem a intenção de retomar as regras latinas. Assim, informa ao leitor o modelo em que se baseia, e reserva um trecho de sua gramática aos idiotismos, que são as particularidades do português que não se encontram em harmonia com a gramática latina. Argote, ao tratar dos verbos, define-os como uma palavra significativa que tem pessoas, números, modos, tempos e que não se declina por casos. Abaixo, algumas considerações feitas pelo autor. Embora apenas uma mencione o uso impessoal/existencial de haver, as outras se mostram importantes por revelar um pensamento distinto do comum: a) Reconhece a existência de apenas dois verbos auxiliares: ser e ter ou haver. Desse modo, torna os dois últimos equivalentes. Embora aponte a alternância entre ter e haver, costuma apresentar, nos exemplos, ter na formação de tempos compostos de passado e haver na de futuro; 24 b) Destaca o uso do particípio passado sem flexão, salientando que o mesmo não concorda com o sujeito plural, nem com o complemento feminino em Nós temos comprado a lança. c) Considera a não concordância de haver em contexto existencial com seu nominativo plural um idiotismo, o que seria uma característica da língua portuguesa (cf. imagem 1). Imagem 1: Apontamento sobre a concordância de haver com seu nominativo (retirado de Argote, 1725) Tal observação do autor destaca que a não concordância era peculiar ao português, mas não à língua latina. A concordância de haver, atualmente, é vista como um desvio da norma pelas gramáticas tradicionais, mas é observada – embora com baixa frequência7 – na fala culta do português brasileiro. Para Argote, seria um idiotismo não concordar com o nominativo, mas a interpretação atual não é a mesma, uma vez que, na verdade, o argumento que vem após o verbo não é um nominativo, mas sim um acusativo, portanto, um argumento interno. 7 Batista (2009b) registrou um percentual de 4% na fala de Rio de Janeiro e Salvador (dados Nurc). 25 2.1.3 Antonio José Lobato Lobato, na introdução de sua gramática, expõe a necessidade de uma gramática para o uso sem erros da língua, deixando explícita a referência às gramáticas latinas, assim como a maioria dos gramáticos o faz. O autor cita, ainda, a opinião de João de Barros e Argote acerca da necessidade de ensinar a gramática portuguesa nas escolas. Tal fato faz pensar que estes gramáticos sejam, de certo modo, uma influência a Lobato. No capítulo em que trata do verbo e de suas conjugações, divide o verbo em ativos e passivos, destacando que ambos possuem conjugação por modos, tempos e pessoas. Ao se propor a apontar a conjugação dos verbos regulares, primeiro conjuga os verbos ser, ter e haver, embora sejam irregulares, por serem estes verbos auxiliares, importantes para a formação dos tempos compostos. Ponto importante na gramática de Lobato para este trabalho está na seção em que aborda a concordância do verbo haver com o seu nominativo. O gramático afirma que o verbo concorda com o seu nominativo, como nas gramáticas latinas. No entanto, vê a questão sob um outro ângulo. Parece que não se observa a dita regra no verbo haver, quando pelo costume da língua lhe ajuntamos na terceira pessoa do singular nominativo do plural, como v. g. quando dizemos: Há muitos homens, que amam as ciências; onde parece que ao verbo há na terceira pessoa do singular do presente do indicativo lhe serve de nominativo o substantivo homens no numero plural: porém não é assim, por faltarem palavras, que se subentendem, e quer dizer: há numero de pessoas, que são muitos homens, que amam as ciências, onde claramente se vê que ao verbo há só lhe serve de nominativo o substantivo oculto número, com quem concorda em estar no número singular, e na terceira pessoa. (LOBATO, 1770:197) Ao tratar da não concordância de haver com seu nominativo, Lobato procura explicar um mecanismo da língua pelo qual o falante omite um termo no singular, de sentido genérico, antes do termo plural, isto é, por uma elipse. A concordância seria estabelecida, no caso, com o termo elíptico. 26 2.1.4 Jerônimo Soares Barbosa Outra gramática examinada foi a de Soares Barbosa. Ele foi um gramático distinto, que serviu de fonte para grandes estudiosos da língua, como Júlio Ribeiro, João Ribeiro e Said Ali (Eleuterio, 2003). Sua gramática foi editada diversas vezes, o que concretiza sua importância no meio linguístico. Para Soares Barbosa, falar em verbos requer que se fale, indispensavelmente, no verbo ser. Já no início do capítulo IV, ao definir o que é verbo, diz: o verbo é uma parte conjuntiva do discurso, a qual serve para atar o atributo da proposição com o seu sujeito debaixo de todas suas relações pessoais e numerais, enunciando por diferentes modos a coexistência e identidade de um com outro por ordem aos diferentes tempos, e maneiras de existir. (SOARES BARBOSA, 1822: 191) Partindo desse discurso, observa-se que, para o autor, a ideia de verbo passa, antes de tudo, pela relação de cópula. Uma oração seria composta, basicamente, por sujeito, cópula e predicado nominal. Nesse sentido, o verbo ser – único verbo substantivo da língua – representa o núcleo de seu pensamento linguístico. Para Eleuterio (2003), tal pensamento está vinculado às ideias vigentes à época. Soares Barbosa, ao pensar os verbos centrados no verbo ser, demonstra a influência que tem dos autores franceses, gramáticos de Port Royal8. Por ser o centro das orações, segundo o gramático, com o verbo ser “se podem formar todas as sortes de orações; e todas as que se fazem por outros verbos, se resolvem por este em última análise” (Soares Barbosa, 1822: 192). Ou seja, todas as orações com verbos adjetivos (por exemplo, Eu amo) poderiam ser substituídas, sem perda de sentido, por predicados nominais formados por ser + adjetivo, em que este é derivado do verbo adjetivo (Eu sou amante). Isso é possível porque, para Soares Barbosa, o verbo adjetivo nada mais é que a redução do verbo substantivo e do atributo que a ele se junta. 8 A gramática de Port Royal, no século XVII, exerceu forte influência sobre os gramáticos da época. A junção de gramática e lógica concebia a ideia de oração formada por sujeito, cópula e predicado, ideia em que se baseou Soares Barbosa. 27 Após falar dos verbos auxiliares, o gramático menciona a significação primitiva desses verbos (haver, ter e estar). Comenta que apresentam sentidos diferentes, deixando subentendido o esvaziamento por que passa o verbo auxiliar. Ao exemplificar a acepção original dos verbos, dá exemplos de ter e haver como verbos de posse, embora, na época, o campo da posse já fosse predominantemente ocupado pelo verbo ter. Destaca também que os auxiliares, embora afastados de seu sentido original ainda mantenham um resquício de sua significação, algo como uma posse virtual metafórica. Soares Barbosa comenta a significação existencial do verbo haver, como impessoal. No entanto, reforça que, embora denote existência, haver não pode ocupar na oração o lugar do verbo substantivo, porque aquele exprime apenas uma existência absoluta, diferentemente do verbo ser, que indica a coexistência do sujeito e do atributo da proposição. 2.1.5 Francisco José Freire (Candido Lusitano) Na introdução, Candido Lusitano diz que sua obra é baseada nas lições passadas por autores clássicos da língua. Mais adiante, antes de citar os autores que considera mais clássicos ou menos, comenta que há pessoas que baseiam seu modo de falar no uso corrente da língua. Embora reconheça a importância de observar o uso corrente, destaca que não há apenas uma maneira de usar a língua, isto é, há um modo associado ao “vulgo ignorante” e outro falado por pessoas que buscam a pureza. Assim, se propõe a classificar os autores em mais e menos clássicos, a fim de indicar quais são as formas apropriadas de falar a língua portuguesa. Candido Lusitano divide a gramática em três partes: uma em que trata do valor/significado das palavras e à correção delas; a segunda parte dedica à pronúncia; e a terceira destina-se, como o autor diz, à linguagem antiga, além de abordar outras reflexões sobre as duas primeiras partes. Basicamente, a obra se restringe a uma listagem de palavras, em que são apontados os usos baseados em autores clássicos. Em alguns momentos, há reflexões mais gerais. 28 Em relação aos verbos ter e haver, cabe destacar a opinião do autor em relação à concordância de haver impessoal com o nominativo que lhe acompanha. Abaixo, um trecho de sua gramática: Imagem 2: Concordância de haver com o nominativo – Candido Lusitano (1842:69) Note-se que Candido Lusitano, assim como Argote, considera um idiotismo a não concordância do verbo haver com seu argumento e mostra que alguns falantes, ditos ignorantes, tomam por erro essa particularidade do verbo haver. O autor aponta ainda que tal peculiaridade é observada também nos autores clássicos. Outro ponto interessante diz respeito ao uso de haver diante de substantivos, em estruturas que hoje são denominadas de verbo suporte. Ao falar sobre o uso da preposição de em construções com o verbo dever, o gramático faz uma oposição: enquanto o uso da partícula é obrigatório em expressões modais compostas por dever + de + verbo principal, não se deve usá-la após o verbo haver, quando este é seguido de alguns substantivos abstratos. Cita como exemplo a expressão há mister, explica que mister significa ‘necessidade’ e, em seguida, expõe que, nesses casos, haver equivale a ter, ou seja, tem valor de posse. 29 2.1.6 Cunha e Cintra, Bechara e Rocha Lima Cunha e Cintra (1985) abordam de maneira mais aprofundada o verbo haver, ao dedicarem a esse verbo um tópico especial, denominado Sintaxe do verbo haver. Os autores afirmam que haver pode ser usado em todas as pessoas – quando atuam como verbos auxiliares ou como verbos de posse – ou somente na 3ª pessoa do singular, atuando como verbo impessoal, indicando existência ou tempo decorrido. Ao falar de haver impessoal, os autores destacam que não se deve usar o verbo no plural e não apontam para a impressão dos falantes, como apontou Candido Lusitano. Ao que parece, tal particularidade do português vai, aos poucos, se tornando mais natural. Isso mostra que já não se interpretava mais a estrutura sintática de haver como antigamente. O momento em que tal norma começa a ser contrariada ainda não é claro, como afirma Ivo Castro (2003: 13): Desconheço as circunstâncias exactas em que se inseriu na gramática portuguesa a idéia de que haver com o sentido de "existir, ter existência" é um verbo exclusivamente impessoal, quando pelo menos alguns escritores e muitos falantes pensam e agem de outro modo. No capítulo em que trata dos dos termos essenciais da oração, Bechara divide os tipos de sujeito das orações e cita as orações sem sujeito: “Há orações que encerram apenas a declaração contida no predicado, sem que se cogite de atribuí-la a nenhum sujeito” (Bechara, 1992:200). Comenta que os verbos que participam delas são chamados impessoais e cita, entre seus exemplos, o verbo haver no sentido existencial (Há bons livros na sua bilbioteca). Em uma observação, o autor faz duas declarações importantes: a primeira destaca que alguns autores consideram como impessoal o verbo haver quando indicador de tempo, sugerindo que o autor tenha uma opinião diferente acerca dessas construções; a segunda diz respeito à variação de ter e haver como impessoal, na “linguagem familiar do Brasil”. 30 Na linguagem familiar do Brasil é frequente o emprego do verbo ter como impessoal, à maneira de haver: Há bons livros na biblioteca / tem bons livros na biblioteca. Em tal construção parece ter-se originado uma mudança na formulação da frase A bilioteca tem bons livros, auxiliada por vários outros casos em que haver e ter têm aplicações comuns. A gramática normativa, entretanto, pede se evite este emprego de ter impessoal. Em linguagem coloquial, escritores modernos já agasalharam esta construção. (BECHARA, 1992:202) Bechara, nesse trecho, aponta para o caso das existenciais locativas, que foi mencionado no capítulo anterior. O autor destaca que essas construções podem ser resultado de uma reestruturação das construções possessivas que apresentam sujeito com um traço [+ locativo]. Além disso, pode-se perceber que, embora o uso de ter já estivesse difundido, ainda havia uma resistência por parte da gramática normativa em aceitar tal emprego. No item em que aborda a concordância com os verbos impessoais, Bechara tece a mesma consideração que Cunha & Cintra. O gramático diz que “nas orações sem sujeito o verbo assume a forma de 3ª pessoa do singular (há vários nomes aqui; deve haver cinco premiados; não o vejo há três meses)” (Bechara, 1992: 308). Observa-se que, apesar de antes não ter englobado os verbos indicadores de tempo decorrido entre os impessoais, cita-os nos exemplos da concordância. Bechara chega a falar de exemplos literários em que o verbo haver se encontra no plural. No entanto, diz o autor que esse uso não “ganhou foros de cidade”. Rocha Lima, ao classificar os verbos em anômalos, defectivos e abundantes, divide os defectivos em impessoais, unipessoais e em um terceiro grupo formado por verbos que carecem de algumas de suas formas, por razões de eufonia. Neste capítulo, não é citado o verbo haver, mas no capítulo sobre concordância verbal, Rocha Lima dedica uma seção aos verbos impessoais, incluindo aí o verbo haver, significando a existência de uma pessoa ou coisa. No capítulo em que trata dos termos da oração, Rocha Lima menciona a existência de orações sem sujeito, que são aquelas que denotam fenômenos da natureza e as que têm os verbos haver, fazer, ser, empregados impessoalmente em construções como há grande poetas no Brasil. 31 2.1.7 Mira Mateus Mira Mateus et alii (1983) agrupa os verbos impessoais aos unipessoais, pelo fato de ambos se caracterizarem pelo seu emprego apenas na 3ª pessoa. No entanto, entre os unipessoais, aceita-se a 3ª pessoa do plural; já os impessoais não são flexionados, ao menos em teoria. Apesar de considerá-los como uma única categoria, as autoras observam haver entre eles diferenças sintáticas e semânticas. Em relação aos argumentos selecionados, os verbos impessoais requerem apenas argumento interno, na função de objeto direto; os meteorológicos não selecionam argumentos; e os outros tipos de verbos (os que indicam vozes de animais, necessidade ou converniência e os verbos acontecer, constar, concernir, etc.) apresentam apenas um argumento externo, que funciona como sujeito, o qual indica se o verbo permanece no singular ou vai para o plural. Estes últimos verbos são considerados inacusativos, por não atribuírem caso acusativo. 2.2 O que dizem as análises linguísticas Diversos trabalhos vêm sendo realizados sobre as estruturas existenciais, com objetivos variados: expor a substituição de haver por ter a partir do século XVI, descrever a configuração sintática e verificar como se dá a variação no português contemporâneo têm sido os mais explorados. Nesta seção, faz-se um apanhado dos resultados dessas pesquisas, que apresentam enfoques diferentes, de modo a reunir as convenções que há acerca de ter e haver existenciais. O trabalho de Franchi et alii (1998) é notável, uma vez que apresenta uma análise inovadora da sintaxe das orações impessoais com ter e haver, destacando pontos importantes sobre o objeto desta pesquisa. Os autores comparam as propriedades sintáticas dos verbos ergativos com sujeito posposto e as das construções existenciais prototípicas para mostrar que eles não se enquadram no mesmo grupo de sentenças. Primeiramente, chamam a atenção para o fato de o constituinte à esquerda do verbo – quando presente – ser um adjunto de lugar ou de tempo, e o SN-argumento ser 32 interno ao sintagma verbal, sem que o verbo atribua ao SN um papel temático, ou seja, sem estabelecer relação de predicação. No caso das existenciais, para Franchi et alii, a predicação se estabelece entre os elementos da coda. Nesse trabalho, os autores denominam os verbos ter e haver existenciais de verbos funcionais por estarem esvaziados de seus sentidos originais. Para eles, “a extensão do conteúdo semântico expresso pelo verbo ter favorece o uso como verbo funcional” (Franchi et alii, 1998: 111), por ele ser responsável pela dêixis temporal e pela quantificação aspectual da oração. Em outro ponto, destacam a insuficiência da definição das sentenças existenciais como indicadoras de existência. Os autores propõem uma reformulação de alguns exemplos com verbos existenciais, de modo que se mantenha a noção de existência, mas a estrutura seja alterada (Muitas vezes, tem lugares por aí que [os casebres] não têm [telha] / Muitas vezes, em lugares por aí, os casebres não têm telhas). Assim, salientase que a função das construções existenciais vai além da noção semântica básica que carregam. Os autores defendem que seja considerado o que denominam de semântica instrucional ou discursiva, ou seja, o modo como as construções existenciais organizam o discurso. Seguindo outra linha, Mattos e Silva, responsável por grande parte das pesquisas acerca de ter e haver, escreve em 2002 um trabalho em que analisa o uso variável desses verbos, em contexto existencial. Utiliza como corpora a Obra Pedagógica de João de Barros9, a Cartinha, datada de 1539 e a Primeira e a Segunda Décadas da Ásia, de 1552 e 1553. A autora escreve, na mesma publicação, um artigo que apresenta o fenômeno analisado agora nas Cartas de D. João III, escritas entre 1540 e 1553. No primeiro trabalho, a autora introduz a seção em que comenta os verbos existenciais, fazendo um levantamento da frequência de ser, haver e ter em documentos anteriores a João de Barros já analisados por ela. 9 Inclui a Grammatica da língua portuguesa, o Diálogo em louvor da nossa lingoagem e o Diálogo da viçiosa vergonha 33 No extenso corpus por mim pesquisado do século XIII (1997) e já referido, encontrei a predominância de ser como verbo “existencial” (ser 56% e haver 44%), notando-se que a seleção de ser se verificou preferencialmente em documentos notariais (no Testamento de Afonso II, na documentação notarial editada por Clarinda Maia, no Foro Real de Afonso X) e a de haver, predominando nas Cantigas de Santa Maria, documento literário, portanto. Embora não tenha feito uma quantificação dos verbos existenciais no estudo dos Diálogos de São Gregório (1989: 182-193), encontrei apenas haver como “existencial” e uma ocorrência, em que já o verbo ter pode ser interpretado como existencial. (Mattos e Silva, 2002a: 135) Esse trecho permite que se tenha uma noção de como se deu o avanço de haver e, posteriormente, o de ter no campo semântico existencial. Mattos e Silva (2002a) aponta que, em João de Barros, já são registrados usos de ter, embora ainda em baixa frequência. A tabela abaixo mostra como se dava a distribuição: GLP ORT DLNL 01 0 0 ser 10 02 08 haver 01 01 0 ter 12 03 08 total Tabela 4: Distribuição dos verbos existenciais em João de 137) DVV Déc. I 0 05 25 34 0 02 25 41 Barros (Retirado de Mattos e Total 06 79 04 89 Silva, 2002a: Em Mattos e Silva (2002b), os resultados são semelhantes: o percentual de ter é incipiente. São levantados 12 dados, dos quais 11 com o verbo haver e apenas 1 com o verbo ter. Ainda assim, esse único dado de ter é considerado ambíguo, uma vez que pode ser interpretado como verbo de posse. Em pesquisa realizada em 2009, Batista analisou quatro narrativas dos séculos XVI a XIX, extraídas do corpus histórico do português Tycho Brahe. O objetivo era verificar a frequência dos dois verbos em estruturas existenciais. O resultado vai de encontro com o que apresentou Mattos e Silva (2002a e b) e pode ser sistematizado com o seguinte gráfico: 34 Gráfico 3: Ter e haver existenciais: do século XVI ao XX (retirado de Batista, 2009). Note-se que o percentual de ter ainda é baixo. Os documentos analisados, além de serem escritos, eram do início do século XX. Aos poucos, esse percentual foi aumentando e atualmente já chega a 70% em dados de fala. Avelar (2006b) propõe algumas hipóteses que favoreceriam a supressão do verbo haver. Uma delas é a de que haver esteja sendo usado não mais como um verbo funcional, mas sim como um verbo substantivo, de acordo com pressupostos da Morfologia Distribuída. Para Avelar, estaria ocorrendo uma especialização semântica de haver, o que reduz o campo de atuação do verbo. Para sustentar essa ideia, examina a frequência dos verbos ter, haver, existir e acontecer em contextos existenciais na fala de jovens cariocas (dados extraídos do NURC-RJ). O autor registra que, depois de existir, haver é o menos utilizado por essa faixa etária. Ao analisar os dados, Avelar verifica que o verbo haver está associado a contextos específicos, ligados ao tempo verbal10 e à natureza semântica do argumento interno, enquanto ter apresenta um uso mais generalizado, demonstrando sua ampla funcionalidade. os contrastes no uso de ter e haver parecem estar, em última instância, atrelados a condicionamentos para o uso de haver que passam pela particularidade do tempo expresso no verbo e, de 10 Apesar de o pretérito perfeito favorecer o uso de haver, não foram registradas ocorrências do verbo nesse tempo, na amostra examinada. 35 acordo com a análise de Callou & Avelar (2000), pela especificidade semântica do argumento interno. Diferentemente, não existem condicionamentos pontuais para ter, cujo uso é generalizado. A oposição indicia que haver deixou de ser um item funcional, adquirindo um perfil substantivo, com tendência à especialização em certos tipos de contextos existenciais. (AVELAR, 2006: 62) Avelar considera em seu artigo alguns grupos de sentidos para as existenciais: as canônicas, que podem ser substituídas por existir, e estruturas com ter que são passíveis de troca com os verbos acontecer, dar e estar com. Para o autor, o fato de estes verbos não poderem ser alternados entre si demonstra o esvaziamento de ter – e, simultaneamente, sua maior funcionalidade. Outra hipótese citada por Avelar – abordada por Callou e Avelar (2007) – trata a supressão de haver como um fenômeno ‘encaixado’ em um conjunto de mudanças no português brasileiro. O processo estaria atrelado ao enfraquecimento do paradigma flexional do PB, que restringiria o uso do sujeito nulo referencial. Desse modo, por os falantes não associarem um sujeito a haver, o verbo tende ao desuso, abrindo caminhos ao verbo ter. Os trabalhos sobre ter e haver existenciais (Avelar, 2005, 2006a; Callou e Avelar, 2001, 2002a, 2011; Callou e Almeida, 2008; e outros) costumam apontar como fatores condicionantes para o uso de haver, entre outros, i) o tempo verbal: o pretérito perfeito é o tempo que apresenta os maiores índices de haver, levando a pensar que o verbo em questão está associado a textos narrativos; ii) a especificidade semântica do argumento interno: argumentos imateriais, de caráter [+ abstrato] e [+ evento] são os que mais favorecem o uso de haver; iii) a idade do falante: falantes mais velhos tendem a preservar o verbo em suas falas, enquanto os jovens, na fala, quase não o utilizam; iv) o grau de escolaridade: falantes com mais estudos têm maiores chances de usar o verbo haver. Não se deve analisar esses fatores isoladamente. Versões de Programas estatísticos como VARBRUL (Pintzuk, 1988), Goldvarb (2001, X) permitem que se faça um cruzamento entre as variáveis independentes, de modo que o pesquisador 36 consiga visualizar fatores que, ocorrendo juntos, favorecerão ainda mais a realização do fenômeno analisado. A modalidade do texto é outro fator importante. Se na fala o percentual de haver é bem reduzido, o mesmo não se pode dizer da escrita formal. Avelar (2006a) destaca a oposição entre os índices de fala e escrita. Nesta, o uso de haver chega a 86%; naquela, registram-se apenas 13%. O gráfico abaixo deixa bem clara essa inversão. Gráfico 4: Ter e haver na fala e na escrita – Retirado de Avelar (2006a) O autor pontua que tal discrepância pode estar relacionada ao aprendizado da escrita, que, em geral, toma por base estágios anteriores da língua. Para fundamentar tal argumento, baseia-se em Kato (2005) que problematiza os termos gramática nuclear e gramática periférica. Simplificadamente, pode-se dizer que esta envolveria um aprendizado artificial da língua, enquanto aquela engloba o aprendizado natural da língua, a gramática internalizada. Pensando o fenômeno de ter e haver no português brasileiro, haver faria parte da gramática periférica do falante, uma vez que ele só entra em contato com a forma conservadora através do aprendizado da escrita, ficando seu uso bastante restrito em dados de fala. Quanto à concordância de haver com seu argumento, alguns trabalhos se debruçam sobre o tema. Como foi visto, os gramáticos mais antigos consideravam a flexão de haver uma regra a seguir, enquanto as gramáticas mais recentes (do século 37 XX em diante) já condenam tal uso. Demello (1991) aponta que o fenômeno também é registrado em alguns lugares da América espanhola. Partindo dessas observações, Martins e Callou (2008) analisaram dados de fala do português brasileiro e do espanhol de Madri e Buenos Aires e confrontaram os resultados com os de Demello (1991), Bentivoglio (1992) e Diaz-Campos (2003). Constatou-se um percentual muito baixo em português (menos de 3%) e variável no espanhol, a depender da localidade. Na Colômbia, por exemplo, parece ser frequente a pluralização. 38 3. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS “A língua é um fato social”. Tal afirmação já está difundida entre as diversas correntes linguísticas, principalmente entre os sociolinguistas. A ideia de examinar a língua sob uma ótica não só (intra)linguística, mas também social, extralinguística, surge com a sociolinguística. Os fatores como idade, gênero, região e escolaridade do falante – geralmente controlados numa pesquisa sociolinguística – são essenciais para uma análise variacionista. No entanto, sabe-se que esses índices por si só ainda não dizem muita coisa. Na tentativa de observar a variação por um viés diferente do que se costuma fazer, analisam-se, neste trabalho, alguns dados da sócio-história das comunidades examinadas. Portanto, busca-se fazer uma associação entre a teoria da sociolinguística variacionista (Weinreich, Labov e Herzog, 1968; Labov, 1994) e os estudos sobre história social que têm sido realizados ultimamente (Callou, 2012; Callou e Avelar, 2002b; Callou, Barbosa e Lopes, 2006; Mattos e Silva, 2008). Embora os trabalhos sobre história social não utilizem uma teoria historiográfica, tanto a historiografia, quanto a etnografia podem ser consideradas ciências auxiliares aos estudos linguísticos. Acredita-se que a análise de dados sócio-históricos possa enriquecer qualquer estudo linguístico que enfoque o social como motivação para a mudança linguística. 3.1 A Sociolinguística Variacionista A variabilidade das línguas é um fato atestado. O modo como a mudança se processa constitui um dos pontos centrais de estudos que visam a desvendar porque uma determinada mudança ocorre em tal lugar e tempo, mas não em outros. Por bastante tempo, admitia-se ser impossível analisar a mudança enquanto ela ainda não estava concluída. Após diversos estudos, principalmente depois da obra de Weinreich, Labov e Herzog (1968), a sociolinguística começou a difundir a possibilidade de observar uma mudança linguística durante sua implementação, mesmo 39 aquelas ainda incipientes, quebrando o pressuposto estruturalista de que só seria possível detectar a mudança após a sua conclusão. A concepção de língua como um organismo social norteia a análise linguística, uma vez que, ao invés de se estudarem apenas fatores internos ao sistema, serão considerados também os fatores externos ou sociais. A sociolinguística dá um salto nessa questão, pois enxerga a variação atrelada à sociedade e, partindo desse casamento, tenta prever os rumos a serem tomados pela língua. Ao propor uma teoria da mudança que abarque fatores sociais, Weinreich, Labov e Herzog (1968) levam em conta cinco questões, consideradas fundamentais no sentido de apontar as causas e os rumos de uma mudança. Para a sociolinguística, qualquer trabalho sobre mudança deve responder às seguintes questões: (i) a restrição (fatores que restringem ou interferem no processo de mudança); (ii) a transição (período entre dois estágios de uma língua, isto é, o curso da mudança de uma etapa x para uma etapa y); (iii) o encaixamento (relação com outras mudanças – sociais ou linguísticas – que estejam ocorrendo na língua e ou na sociedade, isto é como determinada mudança se encaixa em outras); (iv) a implementação (como se processa a mudança em determinado lugar e época e não em outros); e (v) a avaliação (julgamento de determinado uso linguístico feito pelos falantes, isto é, como aquela mudança é avaliada pelos indivíduos pertencentes a uma comunidade de fala). Labov (1994) propõe que o estudo da mudança linguística seja feito a partir de recortes temporais, desenvolvendo, assim, as metodologias dos chamados tempo real e tempo aparente. A primeira consiste em observar a língua verticalmente, confrontando estágios distintos da língua, ou seja, através do tempo. A segunda, em analisar um momento da língua, por meio da distribuição de fenômenos por faixas etárias, que permitiria pressupor mudanças no tempo. 40 A análise em tempo real pode ser feita em curta ou longa duração. A primeira observa um fenômeno em dois momentos distintos de tempo, como, por exemplo, na análise do uso de ter e haver, tema desta pesquisa, no espaço de duas décadas. Se o enfoque se dá na comunidade o estudo seria de tendência, se no indivíduo, de painel 11. Labov salienta ainda que, para a pesquisa ser mais consistente, deve-se conjugar as duas metodologias (tempo real e tempo aparente), a fim de distinguir entre uma variação estável e uma mudança em progresso. Segundo o autor, haveria quatro resultados possíveis: se a comunidade e o indivíduo não alteram o seu comportamento, haveria estabilidade; se a comunidade se mantém estável e o indivíduo altera o seu comportamento (é instável), haveria gradação etária, isto é, o indivíduo assume o comportamento da faixa em que se insere; se a comunidade é instável e o indivíduo é estável (leva o seu comportamento), haveria uma mudança geracional; se os dois mudam, haveria uma mudança total na comunidade. A análise variacionista parte, primeiramente, (i) da escolha de um fenômeno variável, (ii) da definição de uma variável dependente, seu objeto de estudo, e (iii) da seleção das variáveis independentes, fatores que interferem no uso de uma ou outra variante. A definição de regra variável proposta por Labov pressupõe duas ou mais formas de realização para expressar o mesmo valor de verdade. Lavandera (1978) questionou tal conceito argumentando que o mesmo valor de verdade se aplicaria somente às variáveis fonológicas, não podendo ser aplicado a fenômenos sintáticos. Para solucionar o problema, propôs o critério de comparabilidade funcional, segundo o qual variantes sintáticas poderiam ser funcionalmente equivalentes. Para completar a análise variacionista, utiliza-se a ferramenta estatística VARBRUL, que permite a apreciação da influência das variáveis independentes sobre aquelas variantes. O linguista deve associar os resultados quantitativos gerados pelo programa às suas formulações iniciais, que correspondem a uma metodologia 11 Nesse trabalho, será utilizado apenas o estudo de tendência, como parte de uma análise em tempo real de curta duração. 41 qualitativa. As duas análises conjugadas permitem a visualização global do fenômeno variável. 3.2 A história social12 O panorama atual do português brasileiro reflete questões relacionadas à colonização do Brasil – que, como se sabe, não ocorreu de modo homogêneo em todo o território – assim como questões naturais de variabilidade, inerentes a qualquer língua. Essa colonização diversificada requer uma análise mais detalhada de fatores como demografia, mobilidade, escolaridade, continuum rural-urbano, entre outros, para que não se atribua a comunidades de origens e percursos distintos o mesmo tratamento. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a população que encontraram era majoritariamente indígena. Esses índios falavam milhares de línguas e, aos poucos, foram entrando em contato com a língua portuguesa. Até meados do século XVIII, a língua predominante no Brasil era a língua geral. Com a colonização europeia, esse painel foi sendo modificado. O percentual de brancos e de negros escravos crescia cada vez mais, enquanto o número de índios ia sendo reduzido. Havia uma política de trazer escravos de grupos linguísticos diferentes, a fim de evitar possíveis rebeliões. Desse modo, aumentava-se o número de línguas faladas em território brasileiro. Os poucos índios que sobreviviam fugiam para lugares mais afastados e os negros fugidos também procuravam se esconder, formando comunidades quilombolas. Não se deve esquecer também que os negros não eram distribuídos igualmente pelo país. Em geral, concentravam-se no Rio de Janeiro, na Bahia e em Minas Gerais, devido aos ciclos econômicos dessas regiões (café, açúcar e ouro, respectivamente). Durante o período de 1772 a 1782, Minas Gerais, a maior de todas [as capitanias] (20,5% do total geral), somava 319.769 12 Por opção, não será explorada a discussão acerca das origens do português brasileiro. Assume-se aqui um equilíbrio entre as duas principais opiniões (Naro & Scherre, 2009; Lucchesi, Baxter & Ribeiro, 2009). 42 pessoas em suas terras. Em Ouro Preto, sua cidade mais próspera, viviam, já em 1740, cerca de 20.000 almas. Na Bahia, segunda capitania brasileira em termos populacionais, dos 288.848 habitantes (18,5% da colônia), 39.209 moravam em Salvador. Isto em 1780. (...) Na capitania do Rio de Janeiro estavam 215.678 pessoas (13,8% da população oficial). Na capital homônima, residiam, em 1780, 38.707 pessoas. (CALLOU, 2012) O primeiro recenseamento feito pelo IBGE data de 1872 e fornece de modo simplificado a distribuição populacional por região, permitindo que se tenha uma noção de como era a demografia das comunidades. O quadro abaixo, retirado de Callou (2012), mostra a distribuição da população, por raça, sexo e província. Amazonas Pará Maranhão Piauhy Ceara Rio Grande do Norte Parahyba Pernambuco Alagoas Sergipe Bahia Espirito Santo Município Neutro Rio de Janeiro São Paulo Parana Santa Catarina Rio Grande do Sul Minas Gerais Goyas Matto Grosso TOTAL: 8.419672 Branco 6911 49663 52267 22208 136940 52835 73475 149930 45343 24358 178605 13555 96255 100595 221260 35930 63502 136094 421801 21152 9027 1971772 HOMENS Pardo Preto 4210 711 46899 9200 71662 12504 53474 7505 172841 14424 42213 12202 89921 11155 194897 80795 98916 8220 89524 9321 287131 137674 9648 3895 22762 14198 61542 29517 76288 29512 15358 3292 5941 2199 24487 17828 302948 105507 42482 9088 10827 3861 1673971 472008 Caboclo 19151 22827 5509 7135 26701 5471 4882 5943 3105 1536 27043 3009 665 4152 21244 4718 1446 12613 17276 2246 4270 200948 Branco 4300 42971 51246 21239 131896 49630 71246 141229 43455 25420 152874 13027 55544 142680 212172 33702 62440 122273 400126 20777 8210 1815517 MULHERES Pardo Preto 306 625 46828 7629 72699 12780 53191 7357 166325 14510 41877 11163 88675 10661 192054 30901 101283 8087 42059 9851 278573 127153 10881 3443 22083 14268 59703 28198 75018 27027 15278 3449 5796 2048 24179 16444 295865 101647 43907 8087 10087 3214 1650307 449142 Caboclo 17677 21762 5434 6318 26186 5568 4685 5862 3259 1551 22839 2520 258 3700 18221 4369 1446 13104 15040 2004 4248 186007 Tabela 5: População livre, segundo raça, sexo e capitania. (Dados IBGE). Esse perfil demográfico influenciou bastante a situação de contato linguístico no Brasil. Algumas regiões apresentavam mais negros, ao passo que outras eram constituídas, basicamente, por brancos. O número de negros das cidades – em geral, menor que o dos outros grupos raciais – vivia em periferias e não possuía muito acesso às atividades comerciais. Alguns poucos viviam na casa de seus senhores, onde tinham maior contato com o português. 43 Assim se constituía o perfil demográfico do Brasil. Com o advento do transporte ferroviário, as pessoas aumentaram o seu poder de mobilidade e, com isso, aquela primeira concentração de senhores na capital, aos poucos, foi se espalhando. Callou e Avelar (2002b) apontam esse fato como importante para a cidade do Rio de Janeiro, mas se pode estender a todo Brasil e aos demais meios de transporte. Quanto mais se propagavam os transportes, maior a mobilidade, primeiramente, da elite e, depois, da burguesia. A mobilidade favorecia (e favorece ainda) o contato de pessoas de diferentes regiões, neutralizando muitas diferenças, não só linguísticas, mas também de cultura. A mobilidade é fundamental para que haja um intercâmbio cultural. Ela, de certa forma, contribui para uma uniformização da língua, sem acabar com suas diferenças, que a tornam tão heterogênea. Outro fator que foi citado como fundamental é a escolarização. Primeiramente, num sentido mais geral, pode se apontar a importância da escolarização como vetor de propagação da norma e da consequente uniformização linguística. A escola, espaço prototípico para o ensino da língua, contribui para a difusão da língua pelas diversas camadas sociais. Deve-se lembrar, entretanto, que o acesso às escolas nunca foi igual entre as classes alta e baixa. Assim, ao mesmo tempo em que promove uma uniformização, mantém a divergência entre as classes. A escolarização não deve ser pensada somente na atualidade; o que acontece no século XXI é espelho do que aconteceu no século XX e assim por diante. A mudança ocorre aos poucos, mas sempre há uma relação do presente com o passado. Tanto na hora de trabalhar com dados linguísticos quanto com dados sociais, essa relação presente x passado deve ser considerada. Após essa breve exposição dos fatores sócio históricos do Brasil, nota-se que tais elementos não podem ser desconsiderados no estudo do português brasileiro. Uma língua de múltiplas origens – o termo ‘origens’ merece um reforço, para lembrar que não se deve falar numa origem, mas sim em diversas origens – requer um estudo mais detalhado de sua formação. 44 3.3 Descrição sócio histórica das comunidades em análise 13 As capitais analisadas neste trabalho – Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre – possuem formação e desenvolvimento diferentes, devido ao momento em que ocorre a colonização, ao tipo de economia explorada e a outros diversos motivos. Um panorama breve de suas histórias se faz necessário para compreender os dados demográficos atuais. A cidade do Rio de Janeiro foi fundada em 1565, por Estácio de Sá, com o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro. Devido a sua situação geográfica e econômica, desenvolveu-se como porto – exportando, principalmente, o açúcar – e em 1763 se tornou a capital do país, permanecendo até a criação de Brasília (1960). Com a vinda da família real, em 1808, o Rio de Janeiro atraiu milhares de pessoas, desencadeando uma valorização das terras e um aumento do comércio internacional. Linguisticamente, o momento também foi muito importante. A fixação da corte no Rio promove mudanças de costumes: os indivíduos passam a se basear nos portugueses, com o pensamento de que seus costumes fossem superiores; o primeiro jornal impresso do Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro, é publicado. A cidade destacavase cada vez mais como centro econômico do país. O desenvolvimento da economia requeria mão-de-obra e, para isso, Portugal enviava milhares de escravos em navios negreiros. A população era bastante plural, pois além dos escravos, vinham pessoas de diversos lugares em busca de melhores condições. Ainda assim, a maioria da população era não-branca, o que diversificava o contato entre as línguas (Mattos e Silva, 2004). O crescimento da cidade acarretou também uma segregação sócio-espacial, pois os portugueses ocupavam as regiões mais centrais, deixando as áreas mais afastadas para os mais pobres. Essa divisão espacial influencia a configuração de um painel linguístico polarizado, que se caracteriza pela oposição entre a língua das altas camadas e das baixas camadas. 13 Para esta seção foram utilizados documentos do IBGE com informações históricas sobre as cidades analisadas. Foram pesquisados os censos demográficos de 1970 e 1991, além de outros arquivos disponíveis na biblioteca digital do instituto (http://biblioteca.ibge.gov.br/). 45 Com o progresso da mobilidade social, as classes mais altas passam a ocupar outros lugares – primeiramente, a orla – e começa a haver uma maior interação entre as pessoas que frequentavam o centro urbano e aquelas das zonas mais rurais, de origem popular. Conforme aumenta o contato entre os diferentes grupos, delineia-se a polarização sociolinguística, não apenas marcada por dois falares, mas sim por diversos falares que convivem e se renovam a todo momento (Callou, Barbosa & Lopes, 2006). A tabela seguinte indica o número de escravos africanos desembarcados no Brasil, por região. Note-se que os maiores contingentes de africanos desembarcaram na Bahia e no sudeste do Brasil, com destaque para o período de 1801 a 1850, no sudeste. Essas taxas mais altas nesse período podem ser associadas à chegada da família real. Brazil Totals Amazonia Bahia Pernambuco South-east Unspecified 1561-1575 0 0 2,461 0 0 2,461 1576-1600 0 5,647 16,11 3,955 0 25,712 1601-1625 0 46,278 76,773 32,395 735 156,181 1626-1650 0 69,029 20,118 48,317 1,134 138,598 1651-1675 0 93,854 40,671 67,88 0 202,405 1676-1700 1,096 103,035 82,775 72,123 0 259,029 1701-1725 2,513 183,56 110,748 120,898 3,092 420,811 1726-1750 1,668 230,73 73,43 159,523 2,501 467,852 1751-1775 22,47 176,069 70,38 204,676 1,419 475,014 1776-1800 44,63 223,79 74,505 270,157 8,074 621,156 1801-1825 59,303 254,357 168,186 498,976 25,612 1,006,435 1826-1850 10,094 157,677 87,804 775,518 7,481 1,038,574 1851-1856 0 981 350 5,568 0 6,899 Totals 141,774 824,312 50,048 4,821,127 1,545,006 2,259,987 Tabela 6: Escravos desembarcados no Brasil (Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Database)14. Esse panorama plural se estende a todo o Brasil – embora em tempos e de modos diferentes. Em Salvador, por exemplo, a polarização linguística também se verifica, mas as condições não são as mesmas do Rio de Janeiro. A cidade, fundada em 1549 como 14 www.slavevoyages.org. Site indicado pelo professor Luiz Felipe Alencastro durante curso ministrado na Fundação Casa de Ruy Barbosa. O site tem um perfil bastante interativo, permitindo que o interessado gere tabelas de acordo com seus objetivos. 46 capital do Brasil, foi palco de grandes invasões que buscavam dominar a região. A plantação de cana-de-açúcar atraía estrangeiros e exigia mão-de-obra. Assim como no Rio de Janeiro, na capital baiana também chegavam milhares de escravos, como se pode ver na tabela acima. Em 1763, Salvador deixa de ser a capital do país. A cidade foi perdendo a sua importância na economia, pois os interesses estavam voltados para o sudeste do Brasil, onde se desenvolvia o ciclo do ouro. Pelo quadro 1, é possível perceber a configuração étnica e, consequentemente, social da região. Em 1872, apenas 28% dos habitantes eram brancos; os outros 72% distribuíam-se entre negros, pardos e caboclos. Estes, em geral, pertenciam às camadas mais baixas, logo tinham pouco estudo e pouco contato com as variedades mais prestigiadas da língua. Nessas cidades onde o tráfico de escravos foi intenso, o português manteve um contato mais forte com outras línguas. O convívio linguístico, associado a outros fatores, fazia com que a língua portuguesa fosse, paulatinamente, se diferenciando do modelo europeu. Por esse fato, fala-se em português no Brasil e português do Brasil. Até certo momento, ainda não se podia chamar de português brasileiro a língua que se falava; era, o português europeu no Brasil. Aos poucos, essa língua foi ganhando um formato brasileiro e, a partir do século XVIII, já se pode falar num português do Brasil. Se no Rio de Janeiro e em Salvador, a entrada de escravos foi grande, o mesmo não se pode dizer de Porto Alegre. A colonização da cidade apresentou-se de modo bem diferente. Caracteriza-se pela colonização tardia – apenas em meados do século XVIII começou a se expandir – e pelo perfil dos imigrantes, casais açorianos em sua maioria. A atual região de Porto Alegre era primitivamente povoada por povos indígenas. Dividia-se em três sesmarias – São José, Nossa Senhora de Santana e São Gonçalo – dentre as quais a principal era de Nossa Senhora de Santana, que foi onde começou o povoamento da capital gaúcha. Sua localização favorecia a chegada de navios, o que acelerou o desenvolvimento da cidade. O rápido desenvolvimento fez com que, já em 1827, fosse criado o primeiro jornal, o “Diário de Porto Alegre”. A imprensa é um fator de grande influência na difusão da língua. Desse modo, a população recém instalada na capital já possuía acesso 47 mais fácil à língua padrão. Enquanto nas outras capitais foi preciso cerca de dois séculos para a primeira publicação (1808), Porto Alegre teve a sua logo no início de seu desenvolvimento. Retomando o quadro 1, verifica-se que o percentual de brancos varia bastante de uma cidade para outra. O Rio de Janeiro apresenta uma população branca estimada em 51%, enquanto em Porto Alegre e Salvador registram-se percentuais opostos: 28% de brancos nesta e 71% naquela. Os percentuais étnicos por si só ainda são insuficientes para a caracterização das comunidades. A tabela abaixo mostra outros índices importantes para a análise linguística. Dados Demográficos Rio de Janeiro 1970 1990 4 251 918 5 480 768 Porto Alegre 1970 1990 885 545 1 263 403 Salvador 1970 1990 1 007 195 2 075 272 População Residente 3 283 600 4 503 109 686 477 1 050 336 650 579 1 467 593 População (77%) (82%) (77%) (83%) (65%) (71%) Alfabetizada 1 800 822 1 517 232 397 329 514 361 348 072 646 821 População (42%) (28%) (45%) (41%) (35%) (31%) Imigrada 0,702 0,808 -0,824 0,580 0,793 IDH Tabela 7: Dados demográficos de Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro (Dados: IBGE e PNUD15) Como se pode ver, a cidade de Salvador apresentava, na década de 70, uma população alfabetizada de aproximadamente 65% do total, ao passo que Rio de Janeiro e Porto Alegre já apresentavam taxas de 77%. Embora tenha se desenvolvido nesse período de 20 anos, em 1990 ainda não atinge os percentuais que as outras capitais exibiam ainda na década de 70. Observando o IDH, nota-se que Porto Alegre ocupa a posição mais alta. No ranking dos municípios brasileiros, a cidade está em 9º lugar. O Rio de Janeiro vem em 60º e Salvador, embora seja uma capital, aparece na lista em 475º, depois de pequenas cidades do Mato Grosso, por exemplo. Mais a frente, esses dados serão utilizados a fim de estabelecer uma relação entre a posição ocupada pelas cidades e o uso do verbo haver. 15 Os IDHs da década de 70 foram retirados de Callou e Almeida (2008). 48 3.4 Os corpora Os dados utilizados no trabalho pertencem ao acervo do Projeto NURC (Norma Urbana Culta). O projeto conta com três tipos de inquéritos – diálogo entre informante e documentador (DID), diálogo entre dois informantes (D2) e elocuções formais (EF) – e contempla cinco capitais brasileiras (Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo)16. As entrevistas estão divididas por gênero e faixa etária e foram gravadas nas décadas de 70 e 90. As gravações dos anos 90 dividem-se em amostra complementar – novos informantes – e amostra recontato – informantes das faixas 1 e 2, gravados na década de 70 e recontatados vinte anos depois. Essas condições permitem a observação da mudança linguística, através de estudos de tendência (comunidade) e estudos de painel (indivíduo), nos termos de Labov (1994). Para esta pesquisa foram utilizadas entrevistas de ambas as décadas, das cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador, por serem as únicas a apresentarem o corpus da década de 90. A escolha das localidades se deu, também, a partir da hipótese de que os padrões de distribuição de uso das formas verbais poderiam ser explicados pela sócio-história das comunidades, suas características demográficas e o poder identificador do dialeto. Inicialmente, pretendia-se trabalhar apenas com dados de Rio de Janeiro e Salvador, devido à dificuldade em conseguir as gravações de 90 da cidade de Porto Alegre17. 3.5 Das variáveis e suas hipóteses Para a análise dos dados, foram consideradas cinco variáveis independentes, além dos dados de demografia, escolarização e desenvolvimento, referentes à história social das comunidades estudadas. Dentre as variáveis independentes, quatro foram 16 O acervo do Rio de Janeiro está disponível em www.letras.ufrj.br/nurc-rj e o das outras capitais apenas em versão impressa. 17 Arquivos somente em áudio. 49 escolhidas a fim de fazer uma comparação com os resultados expostos na seção 3.2, e uma (gênero) foi selecionada independentemente de outras pesquisas. As variáveis são: 1) Faixa etária: de acordo com as pesquisas realizadas até o momento, haver seria mais utilizado por indivíduos da faixa 3 (acima de 56 anos), enquanto na fala de jovens estaria desaparecendo (cerca de 2%, em Callou e Avelar, 2001); 2) Década da gravação: pelo que se observa, a frequência de ter aumenta com o passar do tempo. Por isso, controla-se se o dado é da década de 70 ou 90. 3) Sexo: embora tal fator não costume se destacar nas pesquisas, frequentemente aparece como influenciador de outros fenômenos. Segundo Callou e Almeida (2008), há uma inversão quanto aos percentuais usados por homens e mulheres em Salvador e Rio de Janeiro, o que não permitiria, em princípio, uma generalização. 4) Tempo verbal: selecionado em todas as pesquisas sobre o tema, objetiva-se confirmar se o pretérito perfeito favoreceria o uso de haver. Como mostrou Avelar (2006b), nesse tempo verbal, haver costuma admitir a substituição pelo verbo acontecer, sendo usado principalmente diante de argumentos tomados por ‘evento’; 5) Natureza semântica do argumento interno: nos trabalhos examinados, os argumentos de caráter abstrato e evento favorecem o uso de haver, embora não chegue a ultrapassar os percentuais de ter. 6) Cidade do falante: observa-se que a variação regional é influente em diversos fenômenos e, em relação a ter e haver existenciais, já foi notado (Callou e Almeida, 2008) que, ao menos entre Salvador e Rio de Janeiro há uma diferença quanto à frequência das formas verbais. Cidades com indicadores sociais mais nítidos (Rio de Janeiro e Porto Alegre) tenderiam a apresentar maiores índices de haver (cf. tabela 07, p.48). 50 4. ANÁLISE DOS DADOS A fim de verificar a distribuição dos verbos ter e haver em tempo real de curta duração, foram analisados 1283 dados de construções existenciais prototípicas, distribuídas entre as décadas de 70 e 90. O interesse principal do trabalho é associar os percentuais encontrados em cada cidade examinada (Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador) aos dados de sua demografia. Além disso, busca-se confirmar as variáveis selecionadas em outros trabalhos realizados sobre o tema. A forma inovadora ter foi sempre usada como valor de aplicação na entrada dos dados nos programas do Varbrul. Alguns cruzamentos binários foram efetuados, para melhor visualização da influência de variáveis independentes. Observa-se uma grande diferença entre o uso das variantes, como já era esperado. Ter, forma mais frequente na fala, apresenta um percentual geral18 de 75%, contra 25% de haver. Entre as cidades, há diferenças quanto à taxa de uso de ter. O gráfico abaixo ilustra essa distribuição, por cidade e década: Gráfico 5: Frequência de Ter, nas décadas de 70, em POA, RJ e SSA. Conforme apontado em outras pesquisas, o fenômeno analisado se caracteriza por um retrocesso de haver e progresso de ter. Com o passar do tempo, este verbo passa 18 O percentual geral foi calculado sem que se fizesse uma distinção de cidade ou década da gravação. 51 a dominar cada vez mais ambientes, deixando aquele restrito a contextos específicos. Em um espaço curto de vinte anos, já se pode notar o avanço de ter. A expansão de ter vem sendo observada desde o século XVI, quando começa a atuar como verbo existencial, e ainda hoje é percebida. Callou e Avelar (2001) mencionam ser esse um dos fatos que distinguem o português brasileiro do português europeu. No entanto, a mudança ainda está em progresso. Observa-se que a difusão de ter se dá nas três comunidades analisadas, assim como em outras abordadas em pesquisas anteriores (Avelar, 2006a; Callou e Avelar, 2002). Fato que ajuda a entender a invasão de ter foi mencionado por Avelar (2006b) e Franchi et alii (1998). Os autores apontam para a funcionalidade do verbo ter. Haver, por outro lado, não se mostraria tão funcional e sua frequência de uso seria consideravelmente menor. Assim, alguns contextos ficam restritos à forma inovadora, permitindo que se destaque o caráter discursivo de ter. (32) Na televisão TEM poucos musicais, TEM o Moacir Franco, antes TINHA aquele... com a Marília também. (DID 121 – POA/70) – Faixa 1 (32’)* Na televisão HÁ poucos musicais, HÁ o Moacir Franco, antes HAVIA aquele... com a Marília também. (33) TEM muito sorteio lá durante o jantar. TEM... sorteio e prêmios bons de viagens, às vezes TEM... TEM fogão, agora vai TER um dia trinta... vai TER um outro, mas nós não vamos porque meu marido se incomodou outra vez. (DID 045 – POA/70) – Faixa 2 (33’)* HÁ muito sorteio lá durante o jantar. HÁ... sorteio e prêmios bons de viagens, às vezes HÁ... HÁ fogão, agora vai HAVER um dia trinta... vai HAVER um outro, mas nós não vamos porque meu marido se incomodou outra vez. (34) Não TEM muito Costa parente... TEM o auditor da Varig Abílio José da Costa Filho, TEM o Arnaldo José da Costa Filho, esse português legítimo. (DID 341 – POA/70) – Faixa 3 52 (34’)* Não HÁ muito Costa parente... HÁ o auditor da Varig Abílio José da Costa Filho, HÁ o Arnaldo José da Costa Filho, esse português legítimo. Nos exemplos acima, faz-se uma enumeração marcada pelo verbo ter19. Reproduz-se, em seguida, como seriam essas construções com haver; elas não parecem tão naturais, mas não se fez o controle da avaliação de falantes, o que poderia ser interessante para verificar se, conscientemente, eles usariam o verbo conservador. Procurou-se selecionar um exemplo de cada faixa, a fim de mostrar que isso ocorre em todas as idades, apenas com diferenças na frequência. Pode-se pensar que esses contextos, por apresentarem o verbo repetidamente, aumentem bastante o número absoluto de ter, inclusive na terceira faixa, que ainda apresenta os maiores índices de haver. Quanto ao tempo verbal, confirmou-se o que já fora mostrado em outras pesquisas: o passado favorece o uso de haver, especialmente o pretérito perfeito, nas três comunidades analisadas. Para Avelar (2006b), a forma houve pode estar sendo interpretada não como uma conjugação de haver. O autor narra a experiência que teve com um aluno, que pergunta como se conjuga o verbo houver. Para ele, haver e houver eram itens de significados diversos: “Se digo há, estou dizendo que algo existe; se digo houve, estou dizendo que algo aconteceu. Se existir e acontecer são diferentes, por que haver e houver são um mesmo verbo?” (AVELAR, 2006b: 49). 19 Não foram encontrados registros de haver em construções desse tipo. 53 Tempo Verbal 65% 57% 70% 60% 50% 40% 30% 43% 35% 30% 30% 24% Rio de Janeiro 15% 20% Porto Alegre 12% Salvador 10% 0% Presente Pretérito Perfeito Pretérito Imperfeito Gráfico 6: Frequência de haver, por cidade e tempo verbal, em ambas as décadas. Destacaram-se apenas os tempos pretéritos – perfeito e imperfeito – e o presente do indicativo, por terem sido os mais recorrentes. Os percentuais de haver com os demais tempos verbais foram muito baixos. Outro fator controlado foi a especificidade semântica do argumento interno. Registrou-se que esse argumento que acompanha o verbo haver é geralmente [+abstrato] ou [+evento]. Tal fato leva a crer que o SN de natureza evento pressupõe um verbo com o sentido de acontecer, ocorrer, uma vez que, quando se fala em um evento, fala-se sobre o seu acontecimento. Nos dados analisados por Avelar (2006b: 62), notouse que haver no pretérito perfeito é preferencialmente interpretado como acontecer. Um outro fato interessante é que, entre as construções no presente e no pretérito imperfeito, que correspondem à maioria (208 entre as 245 levantadas), ter pode ser trocado por haver ou existir na maioria dos casos (154 em 208), mas não por acontecer (31 em 208). Este contraste sugere que, se no pretérito perfeito haver é preferencialmente interpretado como acontecer (ainda que não tenha ocorrido haver em tal tempo entre os mais jovens), no presente e no imperfeito é preferencialmente interpretado como existir. Assim, com o verbo sendo preferencialmente interpretado como acontecer, faz sentido que ele seja usado diante de argumentos do tipo evento. Partindo dessas considerações, pode-se postular que os dois fatores – tempo pretérito perfeito e argumento [+ evento] – atuam em interdependência, ou seja, em geral, a ocorrência de 54 um leva ao outro e vice-versa. Os percentuais obtidos acerca da natureza semântica podem ser observados no gráfico a seguir: 90% 90% 80% 88% 85% 81% 83% 76% 63% 70% 56% 47% 60% 50% 52% 55% 39% 40% RJ SSA POA 30% 20% 10% 0% Material Humano Evento Abstrato Gráfico 7: Natureza semântica do argumento interno ao verbo ter. Observa-se que os maiores percentuais de ter ocorrem com o argumento [+ material] e [+ humano]. Os menores – e consequentemente onde haver persiste – encontram-se na natureza [+ abstrato] e [+ evento]. Portanto, afirma-se que haver é mais produtivo, dentre os quatro tipos de argumento, com os dois últimos citados. A ocorrência maior de ter com argumentos de natureza evento em Porto Alegre já havia sido registrada por Callou e Duarte (2004), ao analisarem o uso de ter-existencial na década de 70, nas cinco cidades abrangidas pelo projeto NURC. As autoras registraram, em Porto Alegre e Recife, os maiores índices de ter com argumentos do tipo evento. A faixa etária dos falantes também é um fator de extrema importância para a ocorrência do fenômeno em análise. O uso de haver está se sedimentando, aos poucos, permanecendo na fala das pessoas mais velhas. Pode-se pensar na hipótese postulada por Labov ao tratar a mudança em tempo aparente: o estado atual da língua de um falante adulto reflete o estado da língua adquirida quando o falante tinha aproximadamente 15 anos de idade. Assim, sendo, a fala de uma pessoa com sessenta hoje representa a língua de quarenta anos atrás, enquanto outra pessoa com quarenta anos hoje nos revela a língua de há apenas vinte e cinco anos. (NARO, 1994: 82) 55 Assim, os falantes mais velhos representam a língua adquirida há mais tempo que, como foi possível notar no gráfico 4, apresentava maiores taxas de haver. Na década de 90, a primeira faixa apresentou o uso quase categórico de ter. Encontraram-se duas ocorrências em Salvador e apenas uma na fala do Rio de Janeiro. Nos três dados, o verbo haver aparece no presente do indicativo, tempo que não costuma favorecer o uso do verbo, e com argumento evento e abstrato, estes favorecedores do verbo. (35) Comércio também né, é uma... Uma coisa até interessante que é um dos comércios que eu acho mais, versáteis aqui, você tem a possibilidade de, compra, de, de opção, é o lado positivo né, o lado negativo é essa super população, as pessoas e com isso as pessoas ficam mais agressivas, HÁ mais assaltos, mais roubos, mais, enfim é mais tumulto. (DID 02C – RJ/90) (36) Segundo grau, HÁ um certo distanciamento e tal... (DID 06N – SSA/90) Note-se que, nas três cidades, houve um decréscimo no uso de ter da primeira para a terceira faixa. As cidades apresentam particularidades, mas numa visão global, todas apontam para o que fora mostrado em outros trabalhos. 100% 80% 89% 85% 84% 91% 82% 69% 60% 65% 59% 49% 40% RJ POA SSA 20% 0% Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Gráfico 8: Ter, por faixa etária e cidade. Observa-se que, na faixa 1, as três cidades exibem o mesmo comportamento. As diferenças encontram-se nas faixas 2 e 3. Na faixa 2, o uso de ter é diferenciado em Salvador, uma vez que o percentual do verbo supera o da faixa 1. Nas outras cidades, o 56 intervalo entre as faixas 1 e 2 é decrescente, o que seria mais esperado. Já na faixa 3, o Rio de Janeiro apresenta uma taxa bem baixa do verbo ter (apenas 49%). Essas diferenças podem estar relacionadas a algum falante, cujo comportamento esteja muito distante do padrão dos outros indivíduos. Tais casos são analisados nas seções de cada cidade. Examinando de perto cada faixa etária, por década, tem-se a distribuição abaixo, que indica como a idade opera na mudança. Note-se que os percentuais aumentam de uma década para outra, porém diminui da faixa 1 para a faixa 3. Década de 70 Década de 90 Faixa 1 82% 99% Faixa 2 73% 77% Faixa 3 59% 68% Tabela 8: Ter, por faixa etária e década. Quanto ao sexo dos falantes, na distribuição geral dos dados, observou-se que os homens exibem os maiores percentuais de haver, embora não haja muita variação. A diferença é de seis pontos percentuais – 28%, na fala masculina, contra 22% entre as mulheres. Apenas no Rio de Janeiro, as mulheres usam mais haver que os homens – 35% contra 23%. Cheshire (2004) pontua que as mulheres costumam apresentar as formas padrão, principalmente, quando se trata de uma mudança de cima para baixo (Princípio Ia de Labov, 1990). Ao mesmo tempo, destaca que as mulheres, numa mudança de baixo para cima, tendem a usar mais as formas inovadoras (Princípio II de Labov, 1990). No caso de ter e haver, pode-se dizer que vale o princípio II, uma vez que a mudança se dá num sentido não padrão. Em geral, costuma-se atribuir a variação por gênero ao mercado de trabalho. Alguns autores (Fasold, 1990; Trudgill, 1972 apud Cheshire, 2004) defendem que as mulheres utilizam as formas padrão por uma necessidade de adquirir status social por sua postura, diferentemente dos homens que o adquirem por sua ocupação. Tal fato 57 varia de acordo com a localidade e a classe social a que pertence o falante e não pode ser tomado isoladamente. No decorrer do trabalho, foram levantadas questões sobre a flexão de haver em concordância com o argumento plural e sobre a presença de expressões adverbiais locativas e/ou temporais junto dos verbos. Esses fatos não se mostraram relevantes para esta pesquisa, pois só foram registradas duas ocorrências de haver no plural, já citadas anteriormente, e a distribuição das expressões não influenciou o uso de um ou outro verbo. Considerando os dados demográficos e a história das três comunidades, parece haver uma proporcionalidade inversa entre o uso de ter e o perfil da cidade, isto é, quanto maiores os indicadores sociais, menor a frequência do verbo. Para confirmação, observa-se a tabela abaixo, que aponta a relação entre o desenvolvimento das cidades e o uso de ter-existencial. Dados Demográficos População Residente População Alfabetizada População Imigrada IDH Ter Rio de Janeiro 1970 1990 Porto Alegre 1970 1990 4 251 918 5 480 768 885 545 1 263 403 3 283 600 (77%) 1 800 822 (42%) 0,702 63% 4 503 109 686 477 1 050 336 (77%) (82%) (83%) 1 517 232 397 329 514 361 (28%) (45%) (41%) 0,808 -0,824 69% 76% 78% Tabela 9: Relação ter x dados sociais Salvador 1970 1990 1 007 195 2 075 272 650 579 (65%) 348 072 (35%) 0,580 74% 1 467 593 (71%) 646 821 (65%) 0,793 86% A tabela mostra que em Salvador, cidade com percentual menor de população alfabetizada, verifica-se o avanço mais rápido de ter. Rio de Janeiro e Porto Alegre apresentam o mesmo percentual de alfabetizados. Nota-se, no entanto, uma difusão mais lenta em Porto Alegre – nove pontos percentuais de 70 para 90, contra treze pontos, no Rio de Janeiro – o que pode remeter a uma possível alteração na distribuição dos verbos nos dias atuais. Para comprovar, seriam necessárias novas gravações, a fim de comparar o avanço nas duas comunidades. 58 Além disso, é necessário lembrar que houve uma mudança no quadro percentual da população urbana e rural, mudança essa que não ocorreu ao mesmo tempo em todo o país. O fenômeno teve início na Região Sudeste, na década de 50 e somente atingiu as outras regiões – e não da mesma forma – na década de 70. Por enquanto, o que se pode fazer é analisar o desenvolvimento das cidades mais de perto. Para isso, fez-se um levantamento da população residente e da população alfabetizada, nas duas capitais, na década de 80. Observa-se que, embora os percentuais estejam muito próximos, a cidade de Porto Alegre registra um desenvolvimento mais acelerado no período de 80-90, aumentando sua população alfabetizada em quatro pontos percentuais. O Rio de Janeiro, nessa mesma faixa de tempo, apresenta um crescimento de dois pontos percentuais. O IDH municipal também evidencia um desenvolvimento mais rápido em Porto Alegre. O verbo mostra uma expansão, que é menor nas cidades mais desenvolvidas, levando a crer que, em certo momento, os percentuais de ter, no Rio de Janeiro, ultrapassarão os de Porto Alegre. 4.1 Os dados do Rio de Janeiro A década de 70 do Rio de Janeiro representa, nos corpora analisados, o contexto em que mais se verifica o uso de haver. Os 63% de ter apontam a preferência por este verbo na oralidade, embora ainda haja uma resistência considerável de haver. Já na década de 90, a variação entre ter e haver se mostra um pouco mais avançada. Num período de vinte anos, o percentual de ter sobe de 63% para 76%, aumento considerável. Os fatores que impulsionam a mudança, de um lado e, de outro, os que fazem com que ela não se complete, mantêm-se inalteráveis no intervalo de tempo analisado. O que ocorre é uma variação na frequência. Para observar o avanço de ter, comparam-se as frequências do verbo haver nos dois momentos, verificando as distribuições por faixa etária e por sexo. Observam-se, ainda, como fatores linguísticos atuam nesse corpus. Como foi dito anteriormente, no Rio, as mulheres são responsáveis pelas maiores taxas de haver. Na década de 70, registra-se um uso de 38% do verbo. O fator 59 sexo mantém a mesma distribuição, com um recesso no uso de haver, tanto pelos homens (20%), quanto pelas mulheres (30%). Pode-se concluir que, no Rio de Janeiro, as mulheres são responsáveis por frear a mudança. Para melhor observar o fenômeno, fez-se um cruzamento entre as variáveis sexo e idade. Em ambas as décadas, verificou-se uma disparidade entre os grupos: as mulheres da faixa 3 apresentam um percentual muito baixo de ter. Observa-se também que, entre os homens, a faixa 3 da década de 70 é a responsável pela maior parte dos dados com ter. Os gráficos a seguir ilustram a distribuição e permitem uma comparação. Gráficos 9 e 10: O uso de ter por faixa etária e sexo, nas décadas de 70 e 90, no Rio de Janeiro. Para entender melhor o que ocorre na década de 70, examinaram-se os inquéritos da terceira faixa, tanto de fala feminina, quanto de fala masculina. Dois inquéritos foram essenciais para a distribuição observada no gráfico. Os inquéritos 255 e 259 apresentam taxas discrepantes quanto ao uso dos verbos. O informante homem exibe um uso muito alto de ter, enquanto a mulher usa o verbo haver em todos os contextos. Abaixo, uma análise dessas entrevistas. Entre as mulheres, embora o uso do verbo diminua conforme a faixa, buscou-se uma explicação para uma queda tão brusca entre as faixas 2 e 3. Ao analisar o inquérito 259, notou-se uma generalização de haver. O verbo é utilizado em todos os tempos verbais verificados na entrevista – presente, pretéritos perfeito e imperfeito e modo subjuntivo – apresentando um percentual menor que o de ter apenas no presente do indicativo (56% de ter contra 44% de haver). O uso foi categórico no pretérito perfeito e chegou a 65% no imperfeito. 60 Na fala masculina, registrou-se o contrário: o inquérito 255 mostra que esse informante quase não usa o verbo haver. Entretanto, não ocorre uma generalização de contextos, como no caso das mulheres. Verificou-se que só há dados no presente do indicativo e do subjuntivo e no pretérito imperfeito. Como foi visto na seção anterior, o tempo que favorece o uso de haver é o pretérito perfeito, que não foi encontrado na entrevista. Esse fato pode ter ocasionado a baixa frequência de haver. Ainda assim, observa-se um percentual considerável nos tempos registrados. Tabela 10: Ter e haver por tempo verbal no inquérito 255 (homem – faixa 3) Na década de 90, a diferença maior se encontra na faixa 3, com haver superando ter. Entre as mulheres, o percentual cai para 24% devido a uma informante que apresenta apenas 8% de ter. Essa informante influenciou bastante a análise, fazendo com que, da década de 70 para a de 90, houvesse uma queda no uso de ter, o que não se verifica nos padrões. Vale destacar que a disparidade ocorreu, em ambas as décadas, com informantes mulheres já na terceira faixa. Um questionamento é cabível: não estariam essas mulheres preocupadas em projetar uma imagem positiva diante dos locutores? Não há como afirmar, mas não se deve descartar a possibilidade. Em relação aos fatores linguísticos, não houve muita diferença entre os dados e o padrão já apresentado. A natureza semântica do argumento interno se mostrou relevante: os tipos abstrato e evento são os que mais favorecem o uso de haver (61% e 53%, respectivamente). Os argumentos de caráter humano e material favorecem ter, com apenas 37% e 10% de haver, respectivamente. Quanto ao tempo verbal, o pretérito se mostrou influente na manutenção de haver, seguido pelo pretérito infinito e pelo imperfeito. Este é comum em narrativas, 61 tipo predominante nas entrevistas. O tempo presente, embora apareça bastante, é contexto que favorece o verbo ter. Os outros tempos verbais não aparecem com muita frequência nos corpora e, por esse motivo, não foram incluídos ao gráfico. 100% 80% 60% 40% Década de 70 Década de 90 76% 86% 70% 68% 55% 45% 30% 20% 20% 0% Gráfico 11: Uso de ter, por tempo verbal e década. Pode-se perceber que as ocorrências de pretérito perfeito levam ao uso do verbo haver, nas duas décadas. Na amostra da década de 90, o tempo não é muito recorrente (apenas 15 dados), mas em 70% dos casos apresenta-se com haver. Outro tempo que pouco aparece, mas que registra uma vitória de haver é o infinitivo. Devido à baixa frequência deste tempo, torna-se difícil fazer generalizações. O presente do indicativo, por outro lado, desfavorece o uso do verbo. Enquanto na década de 70 haver aparecia em 24% dos dados, nos anos 90, registraram-se apenas 14%. 4.2 Os dados de Salvador A década de 70 em Salvador caracteriza-se por um alto nível de ter, se comparado ao da cidade do Rio de Janeiro. Registravam-se, a essa altura, 74% de ter, num total de 317 dados. Esse percentual só é atingido pelo Rio de Janeiro, como foi visto, nos anos 90. Se a década de 70 já apresenta uma taxa avançada de ter, nos anos 90 esse avanço tende a aumentar, chegando a 85%. A faixa etária se mostra bastante relevante no uso de ter. Observando o gráfico, percebe-se um aumento entre as faixas da década de 70 para a de 90. A faixa 1, principal propagadora do verbo ter, apresenta um salto de vinte e cinco pontos 62 percentuais. O aumento na terceira faixa não é tão grande, mas se mostra considerável, pois de 52% avança para 64%. Na faixa 2 a mudança é ainda pequena: apenas três pontos percentuais – de 89% para 92%. Gráfico 12: Ter, por faixa etária e década em Salvador. O que chama atenção nos dados é o fato de, na década de 70, a faixa 2 apresentar um percentual de ter maior que o da faixa 1. Em relação ao fator sexo, as mulheres soteropolitanas são responsáveis pela resistência de haver, apenas num primeiro momento. Na década de 70, verifica-se um percentual de 61% de ter na fala das mulheres, contra 83% entre os homens. Observando a influência da faixa etária sobre o fator sexo, nota-se que alguns casos são assistemáticos, tomando por base os padrões de outros trabalhos. Em 70, as mulheres da faixa 1 apresentam um comportamento atípico, registrando apenas 31% de ter. Déc. 70 Homem Mulher 120% 100% 120% 92% 100% 96% 80% 80% 83% 60% 40% 20% 31% Homem Déc. 90 65% 60% 35% 40% 100% 100% 94% 90% 96% 45% 20% 0% 0% Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Gráficos 13 e 14: Distribuição de ter, por faixa e sexo, nas décadas de 70 e 90. 63 Já na década de 90, são elas as que impulsionam a mudança, atingindo 99%. Nas faixas 1 e 2, o uso de ter é categórico e na faixa 3 chega a 96%. Entre os homens, os percentuais não ultrapassam 94%, com os idosos exibindo apenas 45% de ter. Os fatores linguísticos relevantes novamente foram o tempo verbal e a especificidade semântica do argumento interno. Ao observar o funcionamento desses dois fatores em conjunto, notou-se que o presente do indicativo foi relevante com os argumentos abstrato e evento, assim como o pretérito perfeito. Os maiores percentuais de ter estão nesses contexto, em Salvador, na década de 70. Tabela 11: Uso de ter associado aos fatores linguísticos tempo verbal e natureza do argumento interno, em Salvador. Foram destacados em vermelho os percentuais de ter iguais ou menores que 60%, por representarem, em paralelo, as maiores taxas de haver. Observa-se que os argumentos de tipo abstrato e evento são contextos em que haver ainda aparece consideravelmente. Já em relação ao tempo verbal, não há uma concentração em apenas duas variáveis. Embora o presente e o pretérito se mostrem relevantes na resistência de haver, o infinitivo e o imperfeito, na década de 70 e 90, respectivamente, também exibem taxas de ter não muito altas (60% e 21%). Enquanto a influência do perfeito coincide com resultados de outras pesquisas (Callou e Avelar, 2002; Callou e Duarte, 2004), o presente, em geral, é um tempo que apresenta o verbo ter de forma bastante produtiva. Aqui, embora se registre altos índices de ter no presente com argumentos do tipo animado e material, principalmente, ainda se notam taxas elevadas de haver com os argumentos de especificidade abstrato e evento. A produtividade dos argumentos, por sua vez, se mantém como nas referências citadas, 64 o que leva a supor uma força maior deste fator. Basta olhar a tabela e ver que SNsobjeto de caráter abstrato ou evento se repetem com tempos e momentos diferentes. 4.3 Os dados de Porto Alegre Porto Alegre, dentre as três cidades, é a de colonização mais recente e diferenciada – o processo não se baseou na vinda de escravos, mas sim no povoamento por casais açorianos. Esse fato pode ser um dos responsáveis pelos percentuais de ter, próximos aos do Rio de Janeiro, cidade que abriga uma população quatro vezes maior que a de Porto Alegre. Na década de 70, a capital gaúcha apresentava 69% de ter, situando-se entre as outras capitais. Em 90, registram-se 78%, apenas dois pontos percentuais a mais que o Rio de Janeiro. O gráfico abaixo mostra como ocorria a distribuição por faixas etárias. Década de 70 Década de 90 120% 100% 100% 71% 80% 60% 75% 65% 74% 56% 40% 20% 0% Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Gráfico 15: Uso de ter por faixa etária e década, em Porto Alegre. Observa-se que a faixa 2 se mantém quase inalterada, exibindo uma diminuição em seis pontos percentuais dos anos 70 para os anos 90. Nas outras faixas, nota-se o avanço do verbo conforme o período, apresentando as maiores taxas na faixa 1 (75% e 100%). Contrastando com os dados de Salvador, verifica-se uma inversão no desempenho da faixa 2. Enquanto na capital baiana, os falantes da segunda faixa ampliam o uso de ter, na capital sulista os percentuais se mantêm abaixo de 80%. 65 Quanto ao sexo, há dois pontos interessantes para destacar: a) na década de 70, homens e mulheres das faixas 1 e 2 apresentam comportamentos bem diferenciados. Apenas na faixa 3 esses perfis se aproximam; b) as faixas 1 e 2, na década de 90, mostram percentuais muito próximos, distinguindo-se apenas no grupo dos idosos, com um salto entre as mulheres. Ainda assim, as mulheres seguem mantendo as maiores taxas de ter (apenas na faixa 3 dos anos 70 são superadas pelos homens) em ambas as décadas. Em 70, registra-se um percentual 87%, contra 46% dos homens. Em 90, os homens sobem para 73%, mas as mulheres ainda lideram, com uma taxa de 84%. Torna-se difícil explicar a distribuição dos verbos ao considerar os fatores sexo e idade em conjunto, pois, de uma década para a outra, há praticamente uma inversão nos padrões. Gráficos 16 e 17: Uso de ter por faixa, sexo e década, em Porto Alegre. Quanto aos fatores linguísticos, se mostram relevantes o tempo pretérito perfeito, o modo subjuntivo e as formas nominais. Dentre os tipos de argumento interno, destacaram-se o abstrato e o evento, este já apresentando 72% de ter. No intervalo analisado, nota-se uma pequena diferença percentual. O uso de ter aumenta de um momento para o outro, mantendo um certo padrão. Apenas no modo subjuntivo nota-se um grande salto nas taxas. Em todos os outros, o avanço é discreto. 66 Gráfico 18: Distribuição de ter por década e tempo e modo verbais. Dentre as três cidades, Porto Alegre é a que apresenta uma distribuição mais regular quanto ao tempo verbal. Todos os tempos e modos apontam para a difusão de ter, com os menores percentuais indicando os contextos de resistência de haver. 67 5. CONCLUSÕES Neste trabalho, propôs-se analisar, à luz da teoria da Variação e Mudança, as construções existenciais formadas pelos verbos ter e haver, nas décadas de 70 e 90, nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. Associaram-se os resultados aos dados demográficos dessas capitais, a fim de confirmar a hipótese de que cidades com desenvolvimento mais avançado apresentariam as menores taxas de ter. Após a análise, foi possível confirmar que os fatores apontados em trabalhos anteriores (Leite e Callou, 2002; Callou e Duarte, 2004; Callou e Avelar, 2002a) atuam também nessas entrevistas examinadas. Os fatores linguísticos significantes são o tempo verbal e a natureza semântica do argumento interno. Como fatores extralinguísticos, influenciam a faixa etária do falante, o nível de escolarização, e a origem do falante. Notou-se, ainda, a relação entre a história social da cidade e o avanço de ter. Esse fato aponta para a importância de se considerar aspectos da colonização das cidades, assim como dados atuais de sua demografia. Registrou-se uma grande diferença entre os dados de Salvador e os do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Estas duas capitais apresentam percentuais semelhantes (cerca de 75% de ter), com maior expansão de ter – de 70 para 90 – na capital carioca. Já a cidade baiana exibe um percentual de 84%. Paralelamente, Salvador é a cidade em que se registram menores IDH e população alfabetizada. O fato de o uso de haver estar atrelado ao aprendizado da escrita mostra-se saliente quando se consideram os dados demográficos. Os países com maiores níveis de escolarização e desenvolvimento – indicadores de maior qualidade no ensino – apresentam ainda percentuais significativos de haver, principalmente na terceira faixa. Registraram-se algumas diferenças no comportamento das cidades, o que permitiu chegar a algumas constatações: a) Dos anos 70 para os anos 90, o uso de ter passa por um aumento, indicando uma possível mudança em curso. A história dos verbos permite observar que, no contexto de posse, o verbo ter se tornou categórico, enquanto em outras estruturas, encontram-se em 68 variação até os dias de hoje, com uma leve retração na frequência de haver. Ao que tudo indica, as sentenças existenciais se encaixam nesta última situação, devido ao ensino que prega o uso conservador; b) O tempo verbal pretérito perfeito e o argumento interno de caráter [+ abstrato] e [+ evento] foram selecionados em todas as amostras. Como foi dito, o fato de ter, no pretérito, não admitir a substituição por acontecer diminui a produtividade desse verbo em tal contexto. Haver, geralmente interpretado como acontecer, no perfeito, assume a maior parte das construções nesse tempo, indo de encontro ao que mostrara Avelar (2006b); c) A presença de expressões locativas não se mostrou relevante para a opção por uma ou outra forma verbal; os percentuais de ter ultrapassaram os 70% tanto na presença, quanto na ausência dos sintagmas adverbiais; d) A faixa 1 é a responsável pelos maiores percentuais de ter, confirmando os resultados de pesquisas anteriores. Em alguns momentos e cidades, isto não se confirmou. Em Salvador, por exemplo, na década de 70 os adultos da segunda faixa apresentam as taxas mais altas; e) O fator sexo atua de modo diferente nas cidades: no Rio de Janeiro, os homens usam mais o verbo ter; em Salvador, há uma diferença entre os períodos analisados – na década de 70, os homens usam mais ter, enquanto em 90, as mulheres atingem 99%, ultrapassando os homens; já em Porto Alegre, as mulheres usam mais a forma inovadora; f) Os dados demográficos apontam para uma proporcionalidade entre os índices. Cidades com desenvolvimento mais avançado – caso de Rio de Janeiro e Porto Alegre – tendem a manter o verbo haver, enquanto as cidades menos desenvolvidas registram taxas menores da forma conservadora; 69 g) O uso de haver em construções existenciais pode ser interpretado como uma habilidade adquirida durante o aprendizado da escrita, o que indica a participação do verbo na gramática periférica (Kato, 2005). Desse modo, o uso maior de haver em Porto Alegre e no Rio de Janeiro pode ser atribuído também aos seus índices de escolarização (83% e 82%, respectivamente), em oposição a um menor uso da forma verbal na cidade de Salvador – onde o percentual de escolarização ainda se encontra em 71%. Com a análise, confirmaram-se algumas hipóteses, descartaram-se outras e levantaram-se novas: que rumo estão tomando as construções existenciais no português brasileiro? Pode-se pensar na supressão de haver? O item ter pode estar se gramaticalizando em determinados contextos? Como disse Drummond, “no meio do caminho, tinha uma pedra”; na verdade, sempre terá/haverá/terão/haverão muitas pedras. Cabe aos pesquisadores guardar todas essas pedras para analisa-las e entender o motivo pelo qual elas aparecem em seu caminho. 70 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGOTE, Contador de. (1725). Regras da Lingua Portugueza, espelho da Latina. Lisboa Occidental, na officina da Musica. ALMEIDA, E. S. (2006). 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