o CONFLITO DE DOIS PARADIGMAS: Habermas e Heidegger Bartolomeu Leite da Silva' RESUMO Este trabalho aborda a noção de paradigma de Heidegger e Habermas, comparando-os na sua estrutura e aplicabilidade a uma leitura razoável de problemas filosóficos. Mostra-se, assim, que estes paradigmas estão atrelados às concepções de razão que cada qual defende. Mostra, a seguir, algumas inconseqüências da concepção de Habermas perante o paradigma de Heidegger. Palavras-cbave: Paradigma, Fundamentação, Teoriado conhecimento. ABSTRACT This paper shows the conception of paradigm in Habermas and Heidegger works. It compares its structure and applicability to a reasonable lecture on philosophic problems. It shows, in this way, that such paradigms are linked to particular reason conceptions. At following, it shows some inconsequences of the Habermas' conception of reason. Key words: Paradigm, Foundation, Knowledge Theory. 1 INTRODUÇÃO Este artigo poderia receber o seguinte subtítulo: "Considerações críticas sobre a compreensão habennasiana de Heidegger na obra 'O discurso filosófico da modemidade', capoVI: A corrosão crítico-metafisica do racionalismo ocidental: Heidegger". É sobre ele que versa o trabalho como um todo. Este texto habermasiano se apresenta grosso modo em duas partes: . Professor do Departamento 22 na primeira parte Habermas tenta reconstruir os passos fundamentais do discurso heideggeriano acerca da metafísica. Baseia-se para tal, sobretudo na obra "Was ist Metaphysik?" de Heidegger. Para completar esta tarefa, Habennas vai buscar algumas citações de Ser e Tempo a fim de fundamentar suas desconfianças reconstrutivas do pensamento que propõe uma desconstrução da metafísica. Na de Filosofia da UFMA. Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. 1 INTRODUÇÃO Este artigo poderia receber o seguinte subtítulo: "Considerações críticas sobre a compreensão habermasiana de Heidegger na obra 'O discurso filosófico da modernidade', capo VI: A corrosão crí tico-metafísica do racionalismo ocidental: Heidegger". É sobre ele que versa o trabalho como um todo. Este texto habermasiano se apresenta grosso modo em duas partes: na primeira parte Habermas tenta reconstruir os passos fundamentais do discurso heideggeriano acerca da metafísica. Baseia-se para tal, sobretudo na obra "Was ist Metaphysik?" de Heidegger. Para completar esta tarefa, Habermas vai buscar algumas citações de Ser e Tempo a fim de fundamentar suas desconfianças reconstrutivas do pensamento que propõe uma desconstrução da meta física. Na segunda parte do texto Habermas aplica as categorias reconstruídas do discurso de Heidegger ao contexto do Führer - Social-Democracia na Alemanha dos anos 30, numa vinculação explícita com o movimento fascista. O objetivo deste texto não é reconstruir nenhum dos dois discursos nem apresentar alternativa. Isto porque a forma de leitura embargada por Habermas no texto em estudo aparece um tanto problemática, impossível, portanto, de reconstrução e reconciliação com uma leitura razoável de Ser e Tempo. Nosso objetivo é, pois mostrar a forma com que Habermas lê o discurso heideggeriano acerca da metafísica, mostrando o erro grave da leitura e a pobreza da interpretação. Faremos isso comparando os paradigmas que cada qual segue, bem como suas concepções de razão, para mostrar algumas inconseqüências da concepção de Habermas perante o paradigma de Heidegger, a fim de mostrar a aceitabilidade do paradigma heideggeriano frente ao paradigma habermasiano. 2 O PARADIGMA FILOSÓFICO DE HABERMAS E SUA COMPREENSÃO DE HEIDEGGER Habermas situa-se dentro da tradição do idealismo alemão, melhor dito, dentro do racionalismo ocidental modemo]. Seu paradigma de leitura e crítica de Heidegger é a filosofia da consciência, embora ele não o admita explicitamente, preferindo falar de uma razão comunicativa como paradigma. Concordemos, no momento, por conveniência de discurso. Neste sentido, a razão comunicativa é apresentada como uma superação crítica do subjetivismo característico da filosofia da consciência, sobretudo na forma apresentada por Kant na formulação do imperativo categórico. Admitido, pois, este paradigma da razão comunicativa, Habermas começa situando Heidegger dentro do discurso filosófico da modernidade. Heidegger teria efetuado mais uma tentativa fracassada de transpor o solipsismo do sujeito em relação ao objeto para um campo de interação mediada pelo ser e pelo tempo. Com isso, Heidegger estaria 'Herbanas pretende, no Prefácio a Conhecimento e Interesse, galgar os degraus abandonados da reflexão ele. Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. 23 mais próximo do nihilismo de Nietzsche do que de uma filosofia com sentido próprio e inaugurador de um novo paradigma. Aqui Habermas opera com uma compreensão historicista, resquícios de sua reconstrução do materialismo histórico, do sonho perdido, cuja compreensão nega, a contra desejo, um possível horizonte humano para a razão comunicativa (esfera do mundo da vida), no sentido em que ele não consegue enxergar o movimento do pensamento de Heidegger e da própria filosofia fora da linhagem do idealismo alemão da modernidade. Ele não aceita que Heidegger tenta redirecionar o destino da filosofia para um lugar que lhe é próprio e que até então não fora assumido desde uma perspectiva humana do tempo e do ser. Uma espécie de pecado eurocêntrico de Husserl: esclarecimento e Europa coincidem. Filosofia como um todo. e modernidade coincidem. Habermas lê Heidegger às avessas e contra as intenções programáticas de Ser e Tempo, que se apresenta com uma arquitetônica impossível de ser considerada em suas partes: em Seis estudos sobre Ser e Tempo, Ernildo Stein apresenta a obra como tendo uma estrutura interna impossível de ser ignorada, cuja estruturação passa pelo parágrafo da Cura, a nova metáfora com que Heidegger vai coroar a análise preparatória do ser-aí, e ao mesmo tempo ponto de passagem para a fimdação de uma ontologia que exclui a fundamentação de modelo teológico e fundação do tipo sujeito-objeto. Segundo nossa compreensão do texto de Stein, se a leitura não consegue chegar 24 a estabelecer essa ligação, ou tomar a Cura como pano de fundo, pouco se conseguirá ver dos reais objetivos de Heidegger, pelo que, como Habermas, compreende-se mal a sua obra. Habermas lê Heidegger a partir do idealismo alemão, ignorando a possível compreensão que Heidegger tentou esboçar acerca deste discurso filosófico, como de outros. Ainda que esta compreensão estivesse enredada em um beco sem saída, Habermas teria cometido no mínimo um erro metodológico. Fica fácil, dessa forma, de acuar o discurso heideggeriano num beco sem saída, da forma como Habermas o entende em O Discurso Filosófico da Modernidade (Cap. Sobre Heidegger). Ou seja, em relação à filosofia da consciência de fato a problemática geral de Ser e Tempo fica desprovida dos mecanismos clássicos (parece um discurso arbitrário) que conferem a ligação real entre sujeito e objeto. Isto acontece pelo fato de que Heidegger entende a filosofia de fora das formas clássicas até então apresentadas pela história dá filosofia, inaugurando com isso uma nova fase para a filosofia da história e para a história da filosofia. Habermas labora em erro no sentido em que sujeito e objeto são vistos por Heidegger apenas como modos de ser do ente que conhece o ser, uma totalidade possível, quer dizer, a teoria do conhecimento não é a chave de acesso ao mundo da consciência nem à consciência do mundo, mas ela é uma possibilidade antes da efetividade, um modo de ser do ser. Usando agora uma linguagem figurativa, diríamos que se Heidegger Cad. Pesq., São Luis, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. estivesse se afogando Habermas tentaria salvá-lo puxando-o para o fundo do mar, crente de que ali seria a superficie. Habermas, portanto, faz uma leitura suicida de Heidegger ao interpretá-I o a partir da tradição KantHegel. Habermas sente saudade e não consegue ler Heidegger sem o deslize dialético (interação lingüística, diria ele!) característico da filosofia do sujeito, deslize esse que o empurra para um terreno escorregadio do qual jamais ele consegue sair, quando compreendeu a modernidade como um projeto inacabado. A razão esperançada (pragmática universal) que reaparece com Habermas é uma razão que se ilude a si própria e não consegue ir adiante do destino irônico e fatal que Adorno e Horkheimer lhe predisseram, pois que não compreende o mundo como horizonte de possibilidade do ser, mas como propriedade do próprio ser, o mundo objetificado. Habermas atribui a Heidegger um erro que é só seu: permanecer no mesmo modelo de fundamentação da filosofia do sujeito; é só de Habermas porque este muda apenas a feição do paradigma, mas não o próprio paradigma, fato que para Heidegger está muito claro desde o início. O modelo de fundamentação habermasiano segue o modelo de fundamentação teológico, como Hegel colocara em relação a Kant, segundo o próprio Habermas: "O iluminismo é apenas a outra face da ortodoxia. Tal como esta persiste na positividade das doutrinas aquela insiste na objetividade dos mandamentos da razão ... "2. Teológico porque Habermas enxerga esse modelo nos outros, e tenta sair dele propondo o paradigma da razão comunicativa, ao introduzir o conceito de intersubjetividade, mas acaba caindo para aquém das pretensões da filosofia transcendental de Kant, no terror prático' como chamará LOPARIC (1990, p.112). A expressão maior de Habermas que resume a sua compreensão de Heidegger está na ligação entre o dionisíaco nietzscheano, figurado pelo ser-aí, diferença ontológica, indo ao encontro do ser para formar uma totalidade perdida, recuperar o sonho, capaz de salvar o sentido da vida e do mundo do ser-aí. Habermas chama o ser-aí "pastor do ser". Ora, primeiro Habermas identifica implicitamente, e sem nenhuma mediação, a compreensão de ser-aí com o "existente", como sendo o homem. Essa identificação não é possível, pois ela faz parte do universo da filosofia do sujeito objetificadora das coisas. Identificar objetificar [o homem]. E objetificar o homem só é possível pela única consciência no mundo capaz disso. O próprio homem se objetificar é impossível; seria algo como na situação em que consigo enxergar meu próprio olho, ou fechar uma gaveta e trancar a chave. Eis um dos traços 'Ver Heidegger, M. Ser e Tempo. § 42. Ver também Stein, E. Seis Estudos sobre Ser e Tempo, 5°. capo 'Terror prático: é uma expressão criada por' Welmer, e aparece em HABEMAS (1999, p.105ss). Ela expressa o fracasso das teorias marxianas frente às suas suas realizações práticas. LOPARlC (1990) a usa num debate com Haberrnas, e ironicamente refere-se a uma autocontradição no pensamento deste autor, no sentido em que a ética do discurso, dada a sua insuficiência kantiana, não conduzirá a uma sociedade democrática, como o supõe Habermas, mas a uma ditadura do melhor argumento. Cad: Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. 25 com que Heidegger inaugura um novo paradigma para a filosofia, cuja percepção é por Habermas totalmente ignorada. O ponto mais importante da obra de Heidegger, do qual falaremos adiante, passa despercebido por Habermas, motivo que ironicamente diríamos que ele só leu, sem muitas evidências de que tenha compreendido, a primeira parte de Ser e Tempo, visto que não faz referências explícitas aos parágrafos 42 e 45 de Ser e Tempo, segundo Stein, respectivamente o parágrafo conclusivo da primeira parte, o novo ponto de fundação para uma ontologia fundamental, e o parágrafo da circularidade hermenêutica, que coloca o homem, enquanto ser-aí, o algo enquanto algo, como ponto de passagem - ponto de chegada e ponto de partida - para uma compreensão do sentido do ser. O conceito de "cuidado" constitui um novo ponto de partida para a fundação da ontologia fundamental,ou uma antropologia dogmática; uma teoria do homem a partir da sua própria condição humana, do mundo e de seu conhecimento do mundo se dá a partir desse conceito', sem o qual toda a obra Ser e Tempo perde sua magnitude. Habermas parece não compreender isso e julga Heidegger de assassinar a metafisica "com boas intenções", ao confundir os conceitos de ôntico (seraí) e ontológico (o ser). Naturalmente Habermas entende o conceito de metafísica diferentemente de Heidegger, embora não perceba nem o admita, e atribua sua própria concepção a Heidegger. Metafísica compreendida ainda aristotelicamente no 26 sentido de uma razão-substância. Tudo que Heidegger desejaria que fosse esclarecido de uma vez por todas era a questão não apenas da razão-substância, mas também da razão objetifícadora,ou, para falar como Kant, responder à questão "o que é homem". Para isso, Heidegger procura instaurar um novo ponto de partida que não se apóie em pressupostos que provoquem conseqüências desastrosas para o ente humano. Quer dizer, um novo modelo de fundamentação isento de pressupostos suspeitos, diferente, portanto, dos modelos aceitos pela metafísica clássica e pela filosofia do sujeito. 3 O PARADIGMA FILOSÓFICO DE HEIDEGGER Ao discutirmos o paradigma filosófico de Habermas, tivemos a dificuldade em situá-lo ou na filosofia da consciência ou na filosofia da linguagem, e mediante esta dificuldade optamos por falar na razão comunicativa como paradigma. Esta dificuldade deveu-se, sobretudo, ao fato de que Habermas se .ressente ainda de uma espécie de filosofia primeira, uma filosofia fundamental, natural de quem se move no espaço da filosofia da consciência. Para a exposição do paradigma heideggeriano, trazemos em conta esta questão, visto que em Heidegger não há esse ressentimento pela filosofia fundamental, (pelo fundamento, sim), mas há uma tentativa explícita de redirnensionar a questão do fundamento não mais no sentido da tradição metafisica de Aristóteles, mas numa Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. I, p. 22-30,jan./jun. 2002. direção que aponta para o sentido do ser. Dizemos assim que também em Heidegger (ainda) há a preocupação com o fundamento, mas um fundamento que tenta colocar-se a si mesmo, pôrse a si mesmo, sem ficar devedor de quaisquer pressupostos (alienáveis) do ser, cujo fundamento se dá mediante a condição (relação) do ser com (no) o tempo. Isto se tomará possível na medida em que Heidegger postula o ser como "acontecimento", "ser no mundo", 'jogado no mundo", que gera a sua condição de possibilidade e dela depende em forma de circularidade clarificadora da sua relação com o mundo. Tomaremos como base de nossa exposição a obra Ser e Tempo (M. Heidegger), e a obra Seis Estudos sobre Ser e Tempo (E. Stein). Heidegger tem o cuidado de no início da exposição da questão ser e tempo distinguir entre ente e ser, ôntico e ontológico, (§§ 2-4). Trata-se daquilo que para Aristóteles se dá como evidência (o ser se diz de várias maneiras). Heidegger não se move dentro da evidência, mas dentro da circularidade" própria do ser que sempre mais o explicita. Grosso modo, para Aristóteles há ainda diferença ontológica entre ente e ser (Tomás de Aquino diz melhor: essência e existência), ao passo que em Heidegger haverá uma complementaridade de sentido e estrutura de interdependência explícita, no sentido em que ela não é pressuposta, mas real, atual e necessária. A essa interdependência E. Stein chamará "círculo hermenêutico", nos Seis estudos, assumindo este círculo hermenêutico a condição de "teorema da frnitude" juntamente com a "diferença ontológica" que dão suporte à questão do ser". Fundamentalmente o que está emjogo não é mais uma fundamentação como na filosofia da consciência e na metafisica, tendo em vista que nestas a forma de fundamentação se dá exclusivamente pela postulação (criação) de uma instância exterior que sirva de base de sustentação ao modelo fundacionalista que se pretende, onde sobretudo o raciocínio se efetua por meio da objetificação. Primeiro se cria o modelo, arbitrariamente, depois nele tenta se colocar a questão do ser e sua origem, numa tentativa fraca de explicitá-Io. Por exemplo, em Kant o Transcendental pretende explicar todo o universo do ser e do conhecimento {responder a questão "o que o homem" = o ser), mas primeiro ele é pressupost06. O fato novo que Heidegger nos traz é quando o ser é questionado a partir do tempo, ficando-nos clara assim a possibilidade de uma resposta à ques- 'Evidência e Circularidade parecem termos correlatos. Evidência é um termo empregado pela filosofia da consciência, principalmente em Descartes, onde opera uma espécie de método dedutivo. Pressupõe, portanto, separação entre consciência e mundo, sujeito e objeto. Circularidade é um termo empregado por Heidegger para indicar o movimento hermenêutico com que se compreende o ser. Veja nota adiante sobre o § 45 de ST.5' 'Ver Stein, E.. "Possibilidades da antropologia filosófica a partir da analítica existencial". Revista Verilas., pág. 35. 'Não queremos aqui avaliar o potencial de fundamentação do Transcendental, mas tanto ou quanto sua forma. Pois é sabido dos ganhos que a forma de fundamentação kantiana trouxe para a filosofia, apesar da perda de mundo, fato que com sucesso Heidegger recupera com a questão Ser e Tempo. Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. 27 tão que desde sempre incomodou a filosofia: o ser. Portanto Heidegger tenta não pressupor nada, mas partir do próprio ser e sua condição, (pressuposto real, apriorístico e não apofântico), sua estrutura no mundo, na sua relação com a temporalidade, a finitude. Para esta tarefa, será preciso o recurso de um novo método, a fenomenologia hermenêutica transcendental', que na base de suas análises sobre o ser trará o Dasein (cura), o ser aí na sua condição no mundo. A estrutura de ser do dasein será a estrutura do mundo, não como puro espelho, mas no sentido de que o mundo é aquilo que o ser nos mostra através deste ente especial, a cura (Dasein), donde o teorema da circularidade hermenêutica; Ou seja: compreendendo-me como ser no mundo compreendo ao mesmo tempo o ser e só compreendendo o ser é que consigo compreender-me como ser no mundo. Poderíamos aqui falar num ente especial, o homem, e num ente geral como ser, o mundo, mas esta forma de compreensão assassina o pensamento de Heidegger e a sua pretensão de explicitar a questão ser e tempo. Seria, noutras palavras, uma tremenda perda de espaço, visto que esta forma de pensamento remete ao modelo de fundamentação objetivista das tradições fundamentalistas. A este espaço novo onde se move o ser na sua compreen- são STEIN (1990, p.39) chamará de encurtamento hermenêutico. Assim está definido: A compreensão do ser nos leva a um caminho de duas mãos: sem compreensão não há ente. Nosso acesso aos entes só nos é possível porque o Dasein compreende o ser e não porque temos um outro fundamento para o conhecimento dos entes. Cremos que com essa forma de compreensão do pensamento de Heidegger evita-se o fundamento primeiro ao mesmo tempo em que não se isenta da questão de fundamento. Segundo Stein (1990, p.39): quando Heidegger introduz um ente privilegiado, o Dasein, aparece um novo nível de problematização do ser. O ser não se dá mais isolado como objeto a ser conhecido; mas ele faz parte da condição essencial do ser humano. Para evitar controvérsias, falaríamos de um fundamento originário, o ser no mundo em sua condição inevitável. Ou seja, não mais se explica o ser como no objetivismo metafísico, categorizado e temporalizado, como fundamentado em algo que lhe justifica a existência, como Deus, por exemplo, mas como espontaneidade da existência. Essa espontaneidade não é casual 'Em suas discussões em Seis Estudos, pág. 83, Stein não nomeia um método, preferindo apenas falar de uma circu/aridade hermenêutica. "O § 45 se constitui no § do método. É nele que se prepara a questão que ST arrasta consigo irrespondida desde o início. Qual o método com que opera ST? ... O § 45 é o § da situação hermenêutica. Ele é o ponto de chegada e o ponto de partida, estranhamente situado no meio do texto." Na evolução do .pensamento deste autor observamos que esta dificuldade pareceu resolvida ao falar das "possibilidade de uma antropologia filosófica a partir da analítica existencial", num artigo publicado em Veritas, pág. 43, onde o método é nomeado como "fenomenologia hermenêutica transcendental" 28 Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. nem causal, mas se evidencia a si própria através da circularidade hermenêutica. O espaço hermenêutico, lugar onde se mostra e acontece o ente, revelando com isso o ser e o si mesmo (selbst), mostrou o ser na sua radicalidade, na sua frnitude (infrnita?), na sua relação com a temporalidade no mundo, a situação do ser no mundo. Temos agora um ser despido e jogado na sua nudez, não no sentido do castigo bíblico "jogado fora do paraíso", mas colocado no mundo da realidade que se constitui como único horizonte de possibilidade de sua existência, sem escolha, paraíso ou inferno, gerandose a si mesmo. O ser apenas jogado no mundo. A sua opção pelo mundo é o mundo, ou seja, o mundo é sua condição. É claro que apanhamos aqui muito grosseiramente os passos de toda a preparação da analítica existencial que Heidegger executa, a análise preparatória da questão do ser, mas também não queremos "reconstruir" passo a passo Heidegger". Apenas salientar a sua "compreensão de razão" racionalidade capaz de contrapor-se à concepção de Habermas, conforme nosso objetivo inicial no capítulo. 4CONCLUSÃO A leitura da questão ser e tempo de Heidegger feita por Habermas é feita em conformidade com o paradigma da filosofia da consciência, fato que para Heidegger desde muito tempo lhe pareceu problemático (o paradigma). Habermas se movimenta dentro do campo da objetivação e Heidegger quer exatamente superar este paradigma visto que se toma problemático no tratamento dispensado ao ser, por colocar ainda a separação epistemológica e ontológica entre o ser e o ente. É, assim, uma leitura duvidosa e arriscada, pois este paradigma do qual parte Habermas é não apenas cronologicamente inviável, mas sobretudo um paradigma considerado vencido por Heidegger, fato pressuposto na elaboração de Ser e Tempo. Toma-se inconveniente a leitura de Habermas pelo fato de ele introduzir elementos que a priori Heidegger já os exclui do seu campo de discussões, e mesmo tentou trabalhar prescindindo de tais elementos. O fato de Heidegger ainda não ter se libertado das muitas terminologias da tradição, que certamente lhe angustiara, não significa a falta de clareza quanto aos seus objetivos, acertos e ganhos que efetuou em relação ao pensamento objetificador. O fato de ainda Heidegger se mover no terreno terminológico da tradição não autoriza, por isso, a Habermas, afirmar que ele ainda está preso ao discurso ontológico da metafisica clássica ou ao discurso moderno; isto constitui uma conclusão apressada, portanto, desautorizada. Como elemento que nos autoriza esta afirmação, tomamos a nova compreensão heideggeriana do ser, o ser como Cuidado (Sorge), Cura. Esta leitura só é possível de ser feita se to- 'A esse respeito Stein se pronuncia que radicalmente não é possível essa possibilidade, visto que não pode haver sinonímia perfeita. Uma argumentação aparece num artigo seu, intitulado: "Não podemos dizer as mesmas coisas com outras palavras" gentilmente cedido em sala de aula. Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002. 29 mannos Ser e Tempo no seu conjunto e nas suas intenções programáticas, e não apenas parar na primeira parte do Tratado. Certamente o § 42, parágrafo da Cura, com que Heidegger coroa a análise preparatória da questão do ser e aponta para a nova etapa da elaboração da questão do ser, um parágrafo de passagem obrigatória, já constitui indício suficiente para perceber o quanto foi projeto de Heidegger superar o discurso comum e ingênuo acerca do ser. Heidegger inaugura de fato um novo paradigma, pois neste se exclui qualquer fundamento exterior ao ser, qualquer adjetivo que lhe indique origem exterior, seja Deus ou Mundo. Segundo Stein (1990, p.85): A definição de homem como cuidado, que é o resultado da analítica existencial provisória, já supõe um corte que denomino, na falta de um termo mais adequado, de encurtamento hermenêutico. Ao definir o homem como cuidado, Heidegger já praticou a exclusão do mundo teológico e a forclusão do mundo natural de sua filosofia. Dessa forma, pode parecer problemático, inicialmente, o novo paradigma inaugurado por Heidegger, mas com certeza bastante recuperador dos espaços perdidos com a filosofia moderna, ou com o pensamento objetificador em geral, onde tudo é reduzido a uma das esferas do conhecimento, de tal modo que não se pode compreender uma parte sem excluir tantas outras. REFERÊNCIAS HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e . interesse. Tradução de José N. Heck. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 368p . LOPARlC, Z. "Habermas e o terror prático". Revista Manuscrito, [S.L], v.13, n.2, p.l11-116, 1990. .Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. 325p. STEIN. Emildo. Seis estudos sobre Ser e Tempo. 2.ed., Petrópolis: Vozes, 1990. 136p. .Teoría de Ia acción comunicativa, r. Madrid: Taurus Ediciones, 1999. 520p. __ ."Possibilidades da antropologia filosófica a partir da analítica existencial". Revista Veritas. Departamento de Filosofia da PUCRS, Porto Alegre, v.45, n.l , p.37-50, mar. 2000. HEIDEGGER, M. EI·Ser y el Tiempo Tradução de José Gaos. México: Fondo de Cultura Económico, 2000. 480p. 30 Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002.