BibleCast #20a – A Bíblia no Banco dos Réus

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A Bíblia no Banco dos Réus - Parte A
Muitas das dúvidas levantadas com relação à autenticidade e origem da bíblia, sempre tão
comuns entre o meio secular, são comuns também a muitos dos cristãos.
Então, o presente texto usa, além de fontes bíblicas, o conhecimento arqueológico e o
conhecimento obtido por meio da crítica textual, que não é um ramo de estudo cristão, muito
pelo contrário.
Vamos começar analisando o que a bíblia fala de si mesmo, para depois usar outras fontes.
Em II Timóteo 3:16 a bíblia se declara como sendo toda inspirada por Deus e útil para ensino,
repreensão, correção. Onde Deus falava com pessoas escolhidas por ele, e esse então
escreviam em sua linguagem (a linguagem do escritor e não de Deus) as mensagens divinas.
Em II Pedro 1:21 o texto bíblico diz que as mensagens não eram dadas por vontade humana,
mas dada por inspiração divina, e em João 17:17 Jesus diz que a bíblia é a definição da
verdade.
O que acontece é que, não são todos que acreditam ou tem fé nisso. Isso é para os que já têm
fé na bíblia, é muita ingenuidade dos cristãos acharem que as pessoas vão acreditar somente
com base nessas afirmações. Para os que conseguem acreditar, isso já é o suficiente, mas não
para todos. A bíblia se declara inspirada por Deus, mas acontece que o Corão, a Torá, o livro
dos hindus, e todos os outros livros sagrados se declaram assim também.
Quanto da bíblia pode ser verdadeiro depois de 2000 anos? Quando a bíblia diz que é
inspirada, ela estava falando do texto da época, que é diferente do texto de hoje, na verdade
se resumia apenas ao antigo testamento.
Então será que tem um jeito de ter certeza, ou mais firmeza para crer nisso?
Paulo escreveu seus livros, Daniel escreveu seu livro, enfim, cada um escreveu seu livro, mas
onde estão esses livros hoje? Os originais (também chamados de autógrafos) ficaram aonde?
Aí é que está! Eles não estão. Esses livros os originais não existem mais. Eles se perderam com
o tempo. Pense em sua certidão de nascimento e como ela ficou velhinha com o tempo, agora
imagine se um papiro duraria tanto tempo assim sendo manuseado. Um pergaminho duraria
quanto tempo, sendo lido e manuseado a todo o momento?
Então, várias pessoas foram efetuando cópias ao passar dos séculos. Os chamados copistas e
escribas iam copiando novos rolos e/ou pergaminhos conforme a necessidade. E se
analisarmos as cópias existentes hoje, encontraremos o que é chamado de variante.
A variante é uma diferença entre um copista e outro. Pode ser que, apesar de todo zelo dos
copistas, alguns tenham errado uma palavra, ou adicionado notas de rodapé. E temos que
lembrar também que são várias pessoas copiando ao mesmo tempo em vários lugares
diferentes. No novo testamento, existe inclusive, cópia em massa, onde um ditava e vários
escreviam.
E é através dessas cópias é que chegamos ao que era original, e essa análise é feita através da
disciplina secular chamada Crítica Textual. Essa é a mesma disciplina acadêmica usada para
analisar Platão, por exemplo.
Mas antes de usar essa ferramenta no texto bíblico é interessante saber de onde vem o que
temos como sendo o cânone sagrado de hoje em dia.
Canon é uma palavra grega para norma, padrão ou regra. Usada também para definir uma lista
de livros ou documentos de um autor. No caso o cânon bíblico é o ajuntamento dos livros dito
inspirados.
Então, quem foi o cara que sentou em uma mesa e definiu o que seria o cânon bíblico? Bom...
Não foi assim.
A canonização dos livros foi um processo que durou séculos e não foi obra de uma pessoa,
NEM de um concílio em particular, como às vezes é dito por alguns. Não veio um anjo do céu e
disse: ESSES SÃO OS LIVROS DE DEUS. Não foi assim.
Veja bem, estamos falando da bíblia e do cristianismo, então quando vemos Jesus citando
textos bíblicos fica fácil saber qual era o cânone sagrado à época de Cristo. É só olhar para qual
a bíblia usada por Jesus e teremos quais são os livros do antigo testamento.
O cânone usado por Jesus era o cânon dos judeus. Nos dias de Jesus já havia três cânones.
- Havia o cânone dos judeus palestinos que moravam em Israel e era composto pelos 39 livros
do antigo testamento. (Por que não incluía do novo testamento? Porque não existia novo
testamento ainda.).
- Havia o cânone chamado de Septuaginta, ou cânon alexandrino. Veja então que a
septuaginta que citamos hoje já existia àquela época. Era composta pelos 39 livros do antigo
testamento e mais os livros chamados apócrifos (ou deuterocanonicos). Esse era aceito pelos
judeus da dispersão (aqueles que viviam fora de Israel)
- Por fim, havia o cânone dos saduceus, composto apenas pelo Pentateuco (Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio).
Para falar um pouco mais da septuaginta, cabe lembrar que os apócrifos são os livros que não
são aceitos como inspirados divinamente, e apócrifo significa oculto, escondido. Os apócrifos
são os livros escritos pelos judeus da dispersão entre 200 a.C. e 100 D.C.
Existem vários apócrifos e não somente aqueles que temos hoje nas bíblias católicas. Só para
dar exemplo tínhamos apócrifos também do novo testamento como o Apocalipse de Paulo, de
Pedro, de Tomé, tinha o Pastor de Hermas, etc.
A septuaginta era a versão dos setenta anciãos, escrita em Alexandria no Egito e foi compilada
aproximadamente entre 284 e 247 a.C. durante o reinado de Ptolomeu II. Ela foi à primeira
tradução do hebraico para o grego, antes mesmo de Jesus.
Então chegamos ao tempo de Cristo com um cânone que foi sendo formado naturalmente
com o passar do tempo. Veja que existiam os profetas aceitos pelo povo, Samuel, por
exemplo, e quando algum deles escrevia um livro ou carta, esses textos entravam para a
cultura local. Depois que Samuel morre, as pessoas ficam com o livro contendo seus
ensinamentos e acontecimentos da vida para a posteridade.
Moisés, por exemplo, escreveu os cinco primeiros livros da bíblia mais o livro de Jó (além de
salmos). Depois que ele morreu, as pessoas conservaram esses escritos. E assim o cânone do
antigo testamento foi sendo formado naturalmente. E a cada novo profeta ele era provado
pelos escritos antigos já aceitos. É claro que por isso vários livros foram rejeitados, pois não
eram coerentes o que já estava escrito, ou mesmo contradizia o texto.
Havia inclusive os livros pseudoepígrafos, escritos por pessoas comuns e que eram colocados
como sendo de autoria de personalidades bíblicas para que fossem considerados como de
algum valor, como o livro de Enoque, por exemplo. E como sabemos que o livro de Enoque não
foi escrito por Enoque? Crítica Textual e análise de contradições.
O cânon do antigo testamento, tradicionalmente aceito, foi completado nos dias de Esdras e
Neemias. Depois disso nenhum livro dito inspirado foi confirmado. É o chamado período do
silêncio, onde Israel ficou 400 anos sem profetas.
É interessante dizer também, e isso pode até assustar alguns, que nem todos os livros dos
profetas entendidos como inspirados estão na bíblia. Primeiro existiram profetas que não
escreveram nada e houve casos (como o profeta Natan, por exemplo) em os livros escritos por
esses profetas simplesmente se perderam.
Alguns mais fervorosos da fé podem dizer que isso foi providência divina, mas a verdade é que
isso não interessa. O livro desapareceu com o tempo e se perdeu, não dando mais para falar
sobre ele.
Ainda existe o caso dos livros que foram escritos, mas continham informações relevantes
apenas para um momento/local/pessoa que não foram incluídos. Como uma carta ou algo
assim. Só para ter ideia do tema, Paulo mandou quatro cartas aos coríntios, das quais somente
duas temos a inclusão no cânone bíblico.
As teorias de conspiração acham que está todo mundo errado o tempo todo, mas a verdade é
que não há uma resposta definitiva para a razão de tais textos não estarem na bíblia. Podemos
fazer conjecturas, mas não afirmar.
Outros livros inspirados que não temos mais acesso são textos de Samuel, crônicas de Gade, o
livro de Aías, textos do profeta Ido.
A formação do cânon do Novo Testamento começa com Marcion natural da Ásia Menor que
hoje é a Turquia.
Esse Marcion tinha ideias gnósticas. Basicamente o gnosticismo era uma mistura de
cristianismo com religião grega. Explicando de maneira resumida e simplista, os gnósticos
criam que havia um Deus Todo Poderoso e esse Deus era tão poderoso que dEle emanava
poder. Essas ondas de poder emanadas eram denominadas Eons (ᴁons).
Por sua vez essas emanações do Deus Supremo eram tão poderosas que davam vida, criando
assim outros seres que também eram deuses menores, e quanto mais longe essa emanação
chegasse criando vida, mais fraco era o deus menor criado por ela. Uma dessas ondas e
emanações do Deus Supremo chegou muito longe e criou o deus menor Demiurgo, que foi
quem criou o nosso planeta. Essa é a razão de haver morte e sofrimento na Terra, pois
Demiurgo não tinha habilidade para criar (era meio trapalhão).
Esse Demiurgo norteia a visão de Deus no Antigo Testamento para os gnósticos. Pense nEle
como o Jar Jar Bings dos deuses (para os fãs da nova saga de Star Wars, se é que é possível).
Então o que Demiurgo fez? Ele criou a matéria, aí o Deus supremo pra resolver a bagunça do
Demiurgo mandou um Deus mais poderoso. Esse outro Deus é Cristo, que vem e escolhe uma
pessoa aqui na Terra, que é Jesus, e no dia do batismo de Jesus, Cristo (que é o Deus maior que
Demiurgo) entra em Jesus (vemos aqui a dicotomia grega de mundo físico e mundo das ideias).
O gnosticismo separava Jesus do Cristo, e na cruz, o Cristo teria saído de Jesus É por isso que
Jesus teria falado: Deus meu, porquê me desamparaste! (Eloi, Eloi, lamá sabactani) É como se
o Cristo viesse e na hora do problema deixasse Jesus na mão.
O que Cristo veio fazer aqui? Ele teria vindo contar a verdadeira história de que o Deus do
Antigo Testamento era um Deus atrapalhado, um Deus mal, e que a Salvação se daria pelo
conhecimento dessa história. Onde se usa a frase de Cristo: “E conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará”.
Dessa ideia gnóstica que sai o docetismo, que diz quase a mesma coisa, só que eles alegam
que Jesus era apenas uma ilusão (?!?). Ou seja, os docetas eram um grupo de grupo de
gnósticos.
Essa ideia do gnosticismo, foi, na época do novo testamento amplamente atacada, pelos
próprios escritores da bíblia.
A pergunta que fica é: o que tudo isso tem haver com o cânon bíblico?
Marcion era gnóstico e nutria a ideia de que tudo que era matéria era mal, baseando isso na
filosofia grega de Platão (salvo engano). É por isso que Paulo em I Timóteo 4 adverte contra
esse tipo de pensamento, dizendo “tudo que Deus criou é bom, e recebido com ação de graças
nada é recusável”. Paulo refuta a ideia gnóstica que foi Demiurgo que criou a matéria que ela é
má.
Sendo assim, uma ideia engraçada do gnosticismo é que todos os heróis do antigo testamento
estavam enganados pois serviam a Demiurgo. Os verdadeiros heróis seriam os vilões (!?!?!?!).
Recentemente foi descoberto o evangelho de Judas que trata justamente dessa ideia gnóstica,
onde Judas seria o herói e não o traidor. Judas conhecia o verdadeiro Deus então ele sabia que
teria que cumprir isso entregando Cristo para a morte. Uma ideia gnóstica.
Com esse conhecimento das coisas, o camarada chamado Marcion rejeitou os livros da bíblia,
recomendando que fossem aceitos apenas 11 livros da bíblia (10 cartas de Paulo e o evangelho
de Lucas). Ele rejeitou tudo que havia relacionado ao antigo testamento pregando que o Deus
do novo testamento seria m Deus diferente (veja que esse pensamento persiste até hoje).
É óbvio que a igreja combateu tal ensino, sendo obrigada a tomar uma posição pela primeira
vez. Até então, não havia sido necessário tomar uma posição pois tudo ocorria naturalmente,
mas por causa do ataque de Marcion ao cânon a igreja se manifestou oficialmente. Só
lembrando que a igreja nessa época não era uma instituição e sim os cristãos livres.
Com isso surgiu o cânon Muratoriano (170 a 210 d.C) um dos mais antigos e que não incluía as
cartas de Pedro ou de Tiago, mas incluía Sabedoria de Salomão e o Pastor de Hermas
(apócrifos), e embora de aceitar os dois últimos recomendava-se que não fosse lido
publicamente (!?).
Orígenes de Alexandria, em 254 d.C., dizia que havia duas classes de livros, os reconhecidos e
os discutidos. Os já reconhecidos eram os quatro evangelhos, 14 cartas de Paulo, Atos dos
Apóstolos, I Pedro, I João e Apocalipse de João. Os discutidos eram Tiago, II e III João, II Pedro,
Judas, Epístola de Barnabé e o Pastor de Hermas.
Depois, Eusébio de Cesaréia em 326, peça fundamental no concílio de Nicéa (só para
conhecimento: o ponto principal do concílio de Nicéia não era a discussão dos livros bíblicos),
dividiu a lista de livros em três categorias, os reconhecidos (4 evangelhos, 14 cartas de Paulo,
Atos dos Apóstolos, I Pedro, I João e Apocalipse de João), os discutidos (Tiago, II e III João, II
Pedro e Judas), e os espúrios (Epístola de Barnabé, Pastor de Hermas, Atos de Paulo,
Apocalipse de Pedro, Didaquê e o Evangelho Segundo os Hebreus).
Foi somente no século quatro que o cânon do novo testamento foi fixado e tornado
praticamente universal. O documento mais antigo que contém uma lista com os nomes dos 27
livros aceitos na atualidade é a Carta de Atanásio (Bispo de Alexandria) enviada às igrejas em
367 d.C.
O cânon de Atanásio acabou sendo adotado pela cristandade em toda parte, sendo ratificado
depois nos concílios de Hipona (em 393) e o de Cártago (em 397). Cabe lembrar que os
concílios apenas oficializavam o que já era a opinião geral das igrejas, eles não eram a
autoridade da época.
Quais eram as regras que as igrejas usaram para aceitar esses livros? As regras que eram
usadas podemos (devemos) usar hoje em dia, se quisermos ter certeza da inspiração desses
livros. Portanto, se você tem interesse em saber se um livro é ou não inspirado divinamente,
não deve apenas confiar no que foi dito até aqui, mas colocar esses livros em prova, e para isso
pode usar as regras a seguir.
Primeiro era visto a inspiração do livro, seu valor intrínseco. O livro era julgado pelo que ele
dizia, por seu conteúdo. Muitas pessoas alegam que os livros não são inspirados, mas sequer
leram seu texto. Essa é a primeira regra, julgue pelo seu conteúdo.
O segundo, era a aceitação universal e não apenas regional. Ou seja, o conteúdo deveria ser
bem julgado por várias pessoas em várias partes. Essa é a razão de alguns livros terem
demorado em ser aceitos, pois deveria ocorrer ampla circulação e aceitação desses escritos.
O terceiro ponto é a coerência da doutrina, que é um dos mais importantes pois os livros não
deveriam apresentar ideias divergentes entre si. Só para citar alguns exemplos de por que os
apócrifos não são aceitos, o livro de Tobias, no capítulo 12 verso 9, por exemplo, diz que a
esmola apaga os pecados, ou seja, uma indulgência, o ato de dar esmola salva a pessoa.
Outro exemplo é o Evangelho de Tomé que diz que Jesus matou um menino durante sua
infância em uma brincadeira de pique-esconde. O livro de Tobias 6:8 também traz uma
mandinga com peixe para espantar demônios.
Enfim, a doutrina tinha que ser coerente com o restante, nem com o que Cristo aceitava que
era o torá judaico.
O quarto ponto, ou quarta regra era a autoria, era verificado ser o texto era dos apóstolos ou
dos discípulos, pois eles eram testemunhas oculares dos fatos e por isso eles autoridade em
seu período. Por exemplo, eles diziam que Jesus morreu e ressuscitou, e se isso fosse mentira
as pessoas iriam acusar essa mentira, pois eram contemporâneos aos fatos.
Se falamos uma mentira em nossa geração, ela nos recrimina. Seria o mesmo que dizer hoje
que o Lula foi deposto em 2010 por exemplo. A autoria deles era aceita, pois além de terem
passado pelas experiências, eles também passaram pelo crivo da análise de sua geração.
Nós não encontramos textos da época que condenem o que esses homens diziam, pelo
contrário, encontramos textos de outras pessoas, inclusive não cristãos que confirmam a
autenticidade de informações desses relatos, como por exemplo, Flávio Josefo.
Hoje é possível reconstruir toda a bíblia, apenas com escritos de outras pessoas da época
citando a bíblia.
E assim termina a formação do cânone bíblico.
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