2082 A GRAMÁTICA DA ORAÇÃO: ARGUMENTOS NUCLEARES VS. ARGUMENTOS OBLÍQUOS Maria Angélica Furtado da Cunha – UFRN/CNPq Introdução Este trabalho focaliza a gramática da oração, mais particularmente, o conjunto de relações que se estabelecem entre um verbo e seus argumentos, conhecido como estrutura argumental (EA). Essas relações se manifestam em diferentes níveis lingüisticos. De uma perspectiva sintática, a estrutura argumental especifica o número e as relações gramaticais (sujeito, objeto direto etc.) dos argumentos de um verbo. De uma perspectiva semântica, focaliza os papéis temáticos (agente, paciente etc.) que são atribuídos aos argumentos de um verbo. De uma perspectiva cognitiva, codifica cenas que são fundamentais à experiência humana, isto é, reflete uma estrutura de expectativas desencadeadas pelo verbo. Por último, de uma perspectiva pragmática, descreve os diferentes modos em que essencialmente a mesma informação, ou o mesmo conteúdo semântico-proposicional, pode ser estruturada a fim de refletir seu status informacional. O objetivo desta pesquisa é investigar o status argumental da relação gramatical objeto indireto no português, questão diretamente relacionada à distinção entre argumentos nucleares e oblíquos (core vs. oblique arguments). De um modo geral, os argumentos nucleares codificam os participantes implicados na situação descrita pelo verbo; os argumentos oblíquos representam entidades que não têm uma participação direta no evento, mas que fazem parte do seu contexto. Em termos tipológicos, os dois tipos de argumento apresentam diferença de comportamento sintático, semântico e discursivo-pragmático. Do ponto de vista sintático, essa classificação distingue argumentos através do modo como são codificados: aqueles que não são precedidos por preposição (sujeito, objeto direto) e argumentos preposicionados (objeto indireto, locativos, agente da passiva etc.). Semanticamente, os argumentos nucleares desempenham papéis obrigatórios previstos na moldura de caso (case frame) do verbo, enquanto os argumentos oblíquos são circunstanciais. Para decidir se a relação gramatical ‘objeto indireto’ em português representa um argumento nuclear ou oblíquo é necessário levar em conta não apenas propriedades semânticas, mas principalmente propriedades discursivo-pragmáticas. Este trabalho propõe-se discutir essas questões, apoiado na concepção de que a gramática de uma língua é o resultado da estruturação de aspectos comunicativos e cognitivos da linguagem, envolvidos nas interações lingüísticas diárias. A análise está orientada pelos pressupostos teóricos-metodológicos da Lingüística Funcional e da Lingüística Cognitiva, que concebem a língua como um complexo mosaico de atividades cognitivas e sociocomunicativas e reconhecem o estatuto fundamental das funções da língua na descrição das suas formas. Assume-se, portanto, que a categorização conceptual e a categorização lingüística são análogas, ou seja, o conhecimento do mundo e o conhecimento lingüístico seguem, essencialmente, os mesmos padrões. De acordo com essa visão, as línguas são moldadas pela interação complexa de princípios cognitivos e funcionais que desempenham um papel na mudança lingüística, na aquisição e no uso da língua. Como as línguas se assemelham muito no que diz respeito às relações gramaticais que exibem, admite-se que essas semelhanças são o resultado desses princípios cognitivos e funcionais. Metodologicamente, a pesquisa conjuga fatores quantitativos e qualitativos no exame do objeto de estudo. Os dados empíricos correspondem a oito narrativas faladas e suas correspondentes escritas extraídas do Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), produzidas por quatro estudantes do terceiro ano do ensino médio. Cabe esclarecer que as narrativas orais correspondem a narrativas conversacionais, ou seja, narrativas em que há tomada de turno, mas o narrador mantém o turno a maior parte do tempo. O material 2083 analisado consiste de 28.717 palavras, sendo 26.069 dos textos falados e 2.648 dos textos escritos correspondentes. Para este estudo, limitei-me a investigar os verbos transitivos cuja moldura semântica implica a existência de um argumento objeto direto e envolve também um argumento objeto indireto, ou seja, os verbos que a gramática tradicional classifica como bitransitivos. A partir da análise desse material, foi possível verificar tendências recorrentes no discurso no que diz respeito ao comportamento do objeto indireto com esse tipo de verbo. 1. Breve Resenha do Tratamento do Objeto Indireto na Literatura Nesta seção, faço um apanhado do que alguns estudiosos afirmam tanto sobre as características dos objetos direto e indireto, quanto sobre a diferença entre argumentos nucleares e oblíquos. Cunha e Cintra (1985) distinguem, na oração, os termos integrantes (os complementos verbais, como o objeto direto e indireto) dos termos acessórios (os adjuntos adnominal e adverbial). Segundo esses autores, a preposição que encabeça um adjunto adverbial possui claro valor significativo, enquanto a que introduz um objeto indireto apresenta acentuado esvaziamento de sentido, servindo apenas como um elo sintático. Para Andrews (1985), assim como para Cunha e Cintra, a distinção entre papéis participatórios e circunstanciais está estreitamente relacionada à distinção entre complementos e adjuntos, estes últimos regidos por preposição. Souza e Silva e Koch (1989) sustentam que a distinção entre OD e OI pode ser considerada como relativamente secundária, já que ambos são complementos verbais, sendo a presença ou a ausência de preposição condicionada apenas pelo próprio verbo. Para elas, esse fato não parece constituir razão suficiente para se distinguirem dois tipos diferentes de relação entre o verbo e o seu complemento. A distinção se justifica apenas no caso de verbos que exigem dois complementos (OD e OI, como é o caso dos verbos foco deste trabalho), em que o primeiro (OD) funciona como o alvo sobre o qual recai o processo verbal ou o resultado desse processo, e o segundo (OI), como o destinatário ou o beneficiário. Conforme Matthews (1981), nocional ou semanticamente o objeto indireto (OI) é um argumento do verbo, embora mantenha com ele uma relação mais frouxa do que o objeto direto. Apresenta semelhanças com outros elementos que são mais circunstanciais (como o argumento beneficiário, por exemplo). Para Comrie (1981), um argumento nuclear mantém uma relação gramatical com o verbo, enquanto oblíquos, não. Esse autor esclarece que uma relação gramatical deve ser sintaticamente significativa na língua, isto é, deve ser sempre expressa pela mesma codificação sintática. É o que acontece com o OI em português, que é sempre introduzido por preposição, exceto nos casos em que é codificado por um pronome átono. De um ponto de vista pragmático, Du Bois (2003) sustenta que a informação introduzida por um oblíquo tende a ser menos tópica e mais efêmera no discurso, constituindo, no mais das vezes, uma menção única. Para Dutra (2004), os rótulos ‘direto’ e ‘indireto’ traduzem, respectivamente, proximidade e distância entre verbo e complemento verbal: enquanto o objeto direto (OD) é, via de regra, fisicamente alterado (ou afetado, em meus termos) pela ação expressa pelo verbo transitivo, o OI é tido como recipiente ou recebedor da ação verbal. Note-se que os vocábulos ‘proximidade’ e ‘distância’, utilizados por Dutra, tanto podem se referir à proximidade/distância física – ou sintática (dada a presença da preposição antes do OI) – entre o verbo e o argumento, quanto à proximidade/distância conceitual – ou semântica (dado o afetamento do OD, mas não do OI). Rocha Lima (1998) e Said Ali (1971) fazem distinção entre o objeto indireto e o complemento relativo. Para Rocha Lima, o OI representa o ser animado a que se dirige ou destina a ação ou estado que o processo verbal expressa. Como casos incontroversos de OI, aponta 2084 aqueles que servem de complemento a verbos acompanhados de OD (foco deste trabalho), representando o elemento onde termina a ação. Cita, como exemplo, os verbos bitransitivos, como dar, oferecer, dizer, perguntar etc. Por sua vez, o complemento relativo é ligado ao verbo por uma preposição determinada (a, com, de, em etc.) e integra, com o valor de OD, a predicação de um verbo de significação relativa. Acrescenta, ainda, que o complemento relativo distingue-se nitidamente do OI pelas seguintes circunstâncias: a) não representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ela se realiza, mas denota, como o OD, o ser sobre o qual recai a ação; b) não corresponde, na 3ª pessoa, às formas pronominais átonas lhe/s, e sim às formas tônicas ele/s, ela/s, precedidas de preposição, como em: assistir a um baile = assistir a ele; precisar de conselhos = precisar deles; gostar de uvas = gostar delas. Para Said Ali, certos verbos transitivos, tais como dar, entregar, pedir, mostrar etc, mesmo que codificados com OD, requerem ainda outro substantivo que designe o ente a quem a ação se destina. Este é o OI, usado para designar o ente a quem a ação “aproveita ou deaproveita”. Os verbos que são usados com um complemento preposicionado, como depender de alguma cousa, precisar de alguém ou de alguma cousa, concordar com uma opinião, são os intransitivos relativos. O termo regido de preposição, com que se completa o sentido desses verbos, recebe o nome de OI. Perini (2008, p. 155) é mais radical ao afirmar que a função de objeto indireto é “outro cesto de despejo da sintaxe tradicional”. Conforme esse lingüista, o OI, como em “Meu avô gostava de vinho”, pode ser descrito como complemento regido de preposição. Note-se, contudo, que o exemplo citado corresponde ao que Rocha Lima (1998) e Said Ali (1971) classificariam como complemento relativo. Perini não faz menção ao complemento preposicionado dos chamados verbos bitransitivos. Em suma, todos os autores resenhados apontam critérios sintáticos (ausência versus presença de preposição) e/ou semânticos (tipo de participação no evento denotado pelo verbo) na distinção quer entre OD e OI, quer entre argumentos nucleares e oblíquos. O OD se liga ao verbo sem preposição e representa o alvo do processo verbal, o elemento afetado, o que o classifica como um argumento nuclear. Por outro lado, o OI, apesar de ligar-se ao verbo através de preposição, é o destinatário do processo, o que significa que é um participante diretamente envolvido no evento expresso. A não correlação entre os critérios sintático e semântico no comportamento do OI faz surgir a questão: o OI é um argumento nuclear ou oblíquo? Com base nessas colocações, defendo que, no português, o OI representa uma categoria híbrida, nãodiscreta: apesar de ligado ao verbo por preposição, é também previsto na moldura semântica do verbo. 2. O Objeto Indireto no Corpus D&G No corpus sob análise, foram encontradas 65 ocorrências (54 na fala e 11 na escrita) de orações cujos verbos são acompanhados por SN objeto direto mais SPrep que tradicionalmente é classificado como objeto indireto. Dado o volume textual pesquisado (28.717 palavras), note-se que verbos com essa configuração de três argumentos não são muito freqüentes no uso interacional da língua. Seguindo a distinção, proposta por Rocha Lima e Said Ali, entre objeto indireto e complemento relativo, separei seis orações na fala e uma na escrita cujo SPrep corresponde a um complemento relativo. Alguns exemplos são:1 (1) o que que diferenciou esse congresso dos outros? que pelo o que eu sei você gostou muito desse ... (D&G, p. 275, língua falada). 1 Nos exemplos, o verbo biargumental está sublinhado, o OD está em itálico e o SPrep (Comp Relativo ou OI), em negrito. 2085 (2) Nesse congresso existe variás premiações entre elas a de melhor "unijovem"(união de jovens), como todo mundo, eu estava trabalhando para ajudar a minha unijovem a ganhar o prêmio. (D&G, p. 204, língua escrita). Em (1), o SPrep negritado é não humano e não representa o recipiente da ação verbal. Além disso, a preposição de que antecede o SPrep é regida pelo verbo diferenciar. Complementos relativos como esse totalizam três ocorrências. Em (2), o elemento em negrito é uma oração, o que afasta esse dado de todas as características apontadas para o OI. As três ocorrências restantes de Comp Relativo são desse tipo. Neste trabalho, as orações com SPrep complemento relativo não são examinadas. Os 58 dados restantes mostram que os verbos triargumentais representam um típico evento de transferência, em que um agente animado (SUJEITO) transfere (= afeta, causando a mudança de localização ou estado) um elemento paciente (OD) para uma entidade humana recipiente (OI). Esse tipo de verbo predomina tanto na fala (30 casos) quanto na escrita (7 casos). Vejam-se os exemplos: (3) então eu observei isso em uma pessoa ... aí a gente queria entregar o prêmio a essa pessoa ... (D&G, p. 180, língua falada). (4) ... mas aí ele falou com ela e disse que tinham que aceitar né ... tendo em vista que eles estavam oferecendo tanto dinheiro pra eles ... aí eles aceitaram né ... (D&G, p. 277, língua falada). (5) (...) a peça retratava exatamente a tentativa de mostrar a esses jovens a verdade da Bíblia (...). (D&G, p. 298, língua escrita). (6) Eu tive uma crise de garganta muito grande, daquelas, que eu não podia engolir a saliva e nessa fase ele me deu muito apoio (...).(D&G, p. 266, língua escrita). Outro tipo de verbo que ocorre freqüentemente com OD e OI é o verbo dicendi,2 que expressa uma atividade que pode ser metaforicamente interpretada como um evento de transferência, em que aquilo que é dito (OD efetuado) é transferido para um interlocutor (OI recipiente). No corpus, os verbos dicendi correspondem a 18 dados na fala e 3 na escrita, como em: (7) ele passou muitos dias assim ... sabe? aéreo ... (...) e num dizia pra onde ia ... saía sem camisa ... ia pro supermercado fazer feira ... ia assim por instinto ... sabe? num dizia nada pra ninguém ... (D&G, p. 224, língua falada). (8) então seu amigo começou a dá em cima dela, mais ela não aceitou, mas seu amigo contou-lhe uma estória mentirosa (...).(D&G, p. 266, língua escrita) É possível, portanto, agrupar os verbos de transferência (dar, entregar, oferecer, mostrar, por exemplo) com os verbos dicendi (dizer, contar, perguntar, pedir) na medida em que, semanticamente, eles compartilham o mesmo conjunto de papéis participantes: agente, paciente e recipiente. Em outras palavras, esses verbos têm a mesma estrutura argumental. De um ponto de vista semântico, todos os 58 objetos indiretos examinados são humanos e desempenham o papel temático de recipiente da ação denotada pelo verbo, como se pode ver nos dados de (3-8). No que diz respeito à perspectiva pragmática, dos 48 objetos indiretos na fala, 44 codificam informação textual (exs. 3, 4, 5, 8) ou situacionalmente (exs. 6, 9) dada, logo, persistente/contínua nas narrativas, o que evidencia sua natureza de argumento nuclear. Destes, 33 são morfologicamente expressos por pronome pessoal, o que enfatiza sua persistência e, conseqüentemente, sua importância discursiva. Nas narrativas faladas, somente 4 objetos 2 A respeito dos verbos dicendi ou de enunciação, ver Furtado da Cunha, 2006. 2086 indiretos introduzem informação nova no texto. Dos 10 objetos indiretos na escrita, todos representam informação velha, sendo 3 deles morfologicamente expressos por pronome pessoal. Como exemplo de OI codificado por pronome pessoal, observe-se as orações em (4, 6, 8) acima, além de (9). OI dado mas expresso por Prep + SN está exemplificado em (3, 5, 7) e (10). (9) ... você poderia assim me contar uma [experiência] que realmente marcou? (D&G, p. 175, lingua falada). (10) ... esse rapaz chegou pra Isabel pra pedir pra ela responder as cartas pra amiga ... né ... (D&G, p. 183, lingua falada). A seguir, uma oração com OI informacionalmente novo, morfologicamente expressos por Prep + SN, além de (7), acima. (11) então eu observei isso em uma pessoa ... aí a gente queria entregar o prêmio a uma pessoa ... a gente vai chamar o pastor Martins que é pastor da igreja pra entregar o prêmio a essa pessoa” ... (D&G, p. 180, língua falada). Com relação à preposição mais freqüentemente usada para introduzir o SPrep objeto indireto, no corpus analisado predomina pra/para, tanto na fala (27 casos), quanto na escrita (5 casos). Com os verbos dicendi, só ocorre pra/para. A predominância dessa preposição confirma o papel temático de recipiente do elemento que ela introduz, uma vez que seu sentido primeiro indica direção. A segunda preposição mais freqüente é a, que também sinaliza movimento direcionado. Por definição, o papel temático recipiente descreve o destinatário da ação verbal. Considerações Finais · · · Com base nos dados aqui analisados, é possível caracterizar o OI prototípico como: Nível sintático: SPrep Nível semântico: Recipiente humano (dativo). Nível discursivo: Informação dada, referente contínuo Em português, pode-se argumentar que o objeto indireto é um argumento nuclear, dadas não apenas suas propriedades semânticas (participante implicado no evento denotado pelo verbo), mas principalmente suas propriedades discursivo-pragmáticas (informação dada, contínua). Como prevê a orientação da Lingüística Funcional, o objeto indireto, no português, não é uma categoria discreta, homogênea: há um contínuo que vai do OI prototípico (menos marcado) ao menos típico (mais marcado) do ângulo semântico assim como do discursivo. Generalizando, prediz-se que subtipos de SPrep têm propriedades semânticas, discursivas e gramaticais diferentes. Esse ponto deve ser reforçado quando a análise se debruçar sobre os chamados verbos transitivos indiretos (como gostar, ajudar, assistir, obedecer etc), próxima etapa da pesquisa. Resta, também, analisar o papel temático do SPrep complemento desses verbos. Parece não haver um conjunto fixo de critérios para decidir se o OI é um argumento nuclear ou oblíquo em termos de tipologia lingüística. O exame dessa e de outras relações gramaticais deve-se limitar a uma língua em particular, já que as formas pelas quais as relações gramaticais são codificadas variam de língua para língua. Há, contudo, tendências recorrentes para esse tipo de SPrep no uso efetivo de uma dada língua. De acordo com o quadro teórico que se segue neste trabalho, as correlações entre forma e função são probabilísticas, e não categóricas. A questão crucial tem a ver com o critério selecionado para definir o status de argumento nuclear vs. oblíquo: a presença da preposição (critério sintático) não justifica o tratamento do OI, em português, como um argumento oblíquo, periférico (critério semântico), dadas as características semânticas discursivas (informação dada, contínua) desse elemento. 2087 Na determinação do caráter nuclear vs. oblíquo de um argumento alguns aspectos devem ser levados em consideração: i) os argumentos nucleares são mais salientes do ponto de vista cognitivo, em termos da conceitualização dos tipos de evento cuja ocorrência constitui uma dada experiência mental (cf ONO; THOMPSON, 1995; LANGACKER, 1987). Isso significa que esses argumentos desempenham um papel mais central nos eventos descritos pela oração. Para Croft (1991), tipicamente eles são os iniciadores ou pontos de chegada, como o OI recipiente, na nossa representação mental dos eventos causais; ii) essa saliência cognitiva se reflete na semâtica verbal: a valência de um verbo é definida por argumentos nucleares, enquanto argumentos obliquos podem ou não estar envolvidos na valência. A interrelação entre motivações semânticas e discursivo-pragmáticas que atuam na distinção nuclear vs. obliquo pode ser interpretada do seguinte modo: os iniciadores (agentes ou outros causativos) e pontos de chegada (pacientes e recipientes) de eventos são aquelas entidades sobre as quais os humanos falam mais, aquelas que eles querem que seus ouvintes rastreiem, e são também aquelas a que as gramáticas das línguas naturais atribuem papéis nucleares. Desse modo, os padrões gramaticais estão estreitamente relacionados a, e podem ser explicados em termos da, estrutura do discurso. As categorias de fluxo da informação (como dado, novo, disponível, inferível. Cf. PRINCE, 1981) são relevantes na determinação entre argumento nuclear vs. obliquo, uma vez que o fluxo da informação reflete aspectos cognitivos e sociais do modo como as pessoas embalam o conteúdo ideacional à medida que se comunicam. Assim, a identificabilidade de um referente tem a ver com aquilo que o falante assume que seu ouvinte pode identificar. O estado de ativação de um referente na mente dos interlocutores se relaciona com o modelo do falante a respeito do estado cognitivo corrente do ouvinte (ativo, semi-ativo, inativo. Cf. CHAFE, 1994). Por último, a possibilidade de rastreamento de um participante no discurso dá conta tanto da introdução de um referente no contexto comunicativo como da continuidade de uma menção anterior. Fica, assim, comprovada a interrelação entre propriedades semânticas do OI e suas propriedades de fluxo da informação. A conjugação dessas propriedades parece ser decisiva na caracterização do objeto indireto como um argumento nuclear em português. Referências ANDREWS, A. The major functions of the noun phrase. In: SHOPEN, T. (Ed.). Language typology and syntactic description. v. I: Clause structure. Cambridge: CUP, p. 62-154, 1985. CHAFE, W. Discourse, consciouness and time: the flow of displacement of conscious experience in speaking and writing. Chicago: University of Chicago Press, 1994. COMRIE, B. Language universals and linguistic typology. Chicago: The University of Chicago Press, 1981. CROFT, W. Syntactic categories and grammatical relations. The cognitive organization of information. Chicago: University of Chicago Press, 1991. CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DU BOIS, J. W. Discourse and grammar. In: TOMASELLO, M. (Ed.). The new psychology of language. v. 2. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 2003. DUTRA, R. 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