UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – SER NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE TEORIA SOCIAL, TRABALHO E SERVIÇO SOCIAL - NUTSS PROJETO DE PESQUISA e EXTENSÃO Serviço Social e Movimentos sociais: A pesquisa e extensão com organizações da classe trabalhadora no Brasil Pesquisadores: Prof.ª Me. Morena Marques (UNIRIO) Prof.ª Dr.ª Adrianyce Angélica de Souza (UFF) Prof.ª Dr.ª Daniela Neves de Souza (UnB) Rio de Janeiro 2015 1. INTRODUÇÃO Transformações históricas alteraram a face do capitalismo e de nossas sociedades na América Latina nas últimas quatro décadas. Em resposta a uma onda longa recessiva de crises, o capitalismo avançou em sua vocação de internacionalizar a produção e os mercados, aprofundando o desenvolvimento desigual entre as nações e no seu interior entre classes e grupos sociais no âmago das relações entre imperialismo e dependência. A mundialização do capital tem profundas repercussões na órbita das políticas públicas, em suas conhecidas diretrizes de focalização, descentralização, desfinanciamento e regressão do legado dos direitos do trabalho. Ela também redimensiona as requisições dirigidas aos assistentes sociais, as bases materiais e organizacionais de suas atividades, e as condições e relações de trabalho por meio das quais se realiza esse trabalho especializado. Ela afeta radicalmente as condições de vida, de trabalho, assim como as expressões políticas e culturais dos distintos segmentos de trabalhadores aos quais se dirige a atividade profissional. Decorre também a radicalização das desigualdades em um contexto difuso na organização das lutas sociais ante os dilemas do desemprego, da desregulamentação das relações de trabalho, da privatização e focalização dos serviços e políticas sociais e da (re)concentração da propriedade fundiária aberta ao grande capital internacional. A questão social é indissociável da sociabilidade capitalista e envolve um cenário de lutas políticas e culturais contra as desigualdades socialmente produzidas. Suas expressões condensam múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais, relações com o meio ambiente e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural – enraizada na produção social contraposta à apropriação privada do trabalho, a questão social atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta cotidiana pela sobrevivência e pela realização de direitos. Pesquisar cada vez mais o Serviço Social no marco das relações sociais capitalistas e os determinantes que o circunscrevem e condicionam se torna, assim, uma tarefa necessária ao espaço acadêmico e profissional. É nesta perspectiva que este núcleo de estudos aponta duas esferas distintas e complementares para as suas ações: 1. A pesquisa sobre a relação contemporânea do Serviço Social com os Movimentos Sociais, a partir das experiências de pesquisa e extensão desenvolvidas pelo Serviço Social nos últimos dez anos. 2. A atividade de extensão do Serviço Social junto ao movimento popular de saúde através da experiência de assessoria/consultoria - considerada um instrumento importante para articulação profissional às lutas sociais contemporâneas. Desta forma, este projeto tem por temática central a pesquisa e extensão acerca da relação entre o Serviço Social e os movimentos sociais, buscando nitidamente se opor a uma tendência de enorme receptividade por parte do Serviço Social no trato à questão social: das ideias neoconservadoras, que subtraem dos trabalhadores seu caráter classista, fragmentando-os segundo as suas identidades e privações, descolados da totalidade que constitui e condiciona suas demandas e lutas, de inegável raiz material e histórica. Por fim, consideramos a investigação dessa relação pertinente tanto do ponto de vista da prática profissional (posto que, numa perspectiva crítica, o trabalho dos assistentes sociais envolve a elaboração de estratégias de intervenção que requerem um vínculo orgânico com os interesses dos trabalhadores), quanto do debate acadêmico (visto a necessidade de ampliarmos as investigações sobre o próprio Serviço Social e as expressões de inconformismo oriundas da questão social). 2. PROBLEMATIZAÇÃO É conhecida em muitas análises e investigações marcadas pela teoria crítica, uma ampla investida ideológica por parte do capital e do Estado voltada à cooptação dos trabalhadores, agora travestidos em “parceiros” solidários aos projetos do grande capital e do Estado. Essa investida é acentuada pela “assistencialização” da pobreza contra o direito ao trabalho, transversal às políticas e programas sociais focalizados, dirigidos aos segmentos mais pauperizados dos trabalhadores, com marcantes incidências na capacidade de mobilização e organização em defesa dos direitos. Como as competências profissionais postas e criadas pelos assistentes sociais expressam a historicidade da profissão, elas também se preservam, se transformam, redimensionando-se ao se alterarem as condições históricas de sua efetivação. Esse cenário avesso aos direitos nos interpela. Atesta, contraditoriamente, a urgência de seu debate e de lutas em sua defesa, em uma época que descaracterizou a cidadania ao associá-la ao consumo, ao mundo do dinheiro e à posse das mercadorias. Mas, ao mesmo tempo, essa sociedade apresenta um terreno minado de resistências e lutas travadas no dia-a-dia de uma conjuntura adversa para os trabalhadores, as quais carecem de maior organicidade para terem força na cena pública. Neste contexto regressivo, a classe trabalhadora reage, a exemplo das jornadas de lutas e manifestações que se abriram desde junho de 2013 ocorridas no país que se gestaram, sobretudo, contra o aumento de tarifas dos transportes coletivos, os altos recursos investidos para sediar a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, bem como outras reivindicações, como pela defesa da educação e da saúde. Poderiam ser citadas, entre muitas outras: as lutas dos trabalhadores sem terra pela reforma agrária; dos trabalhadores sem teto nas cidades; dos assalariados rurais e urbanos; o movimento das nações indígenas pela preservação de seu patrimônio material e cultural; dos quilombolas em defesa de suas terras e de sua identidade, das mulheres do campo e da cidade pelo reconhecimento de seus direitos; dos velhos trabalhadores, hoje aposentados; dos afrodescendentes, pela preservação de suas raízes e direitos; e as expressões culturais de contestação da juventude trabalhadora da periferia das grandes cidades. Essa multiplicidade de sujeitos e de formas de luta tem uma trama comum, oculta na diversidade de suas expressões: a trama dos destituídos de todas as formas de propriedade afora a sua força de trabalho – o conjunto dos membros das classes trabalhadores forjados na sociabilidade sob o comando do capital. Foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública, exigindo a interferência do Estado no reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos, consubstanciados nas políticas e serviços sociais, mediações fundamentais para o trabalho do assistente social. Verifica-se também a crescente apropriação do Estado pelos interesses do capital. Os dois elementos em que se apoiam as finanças – as dívidas públicas e o mercado acionário das empresas –, só sobrevivem com decisão política dos Estados e o suporte das políticas fiscais e monetárias. Eles encontram-se na raiz de uma dupla via de redução do padrão de vida do conjunto dos trabalhadores, com o efetivo impulso dos Estados nacionais: por um lado a privatização do Estado, o desmonte das políticas públicas e a mercantilização dos serviços, a chamada flexibilização da legislação protetora do trabalho; por outro lado a imposição da redução dos custos empresariais para salvaguardar as taxas de lucratividade, e com elas a reestruturação produtiva centrada menos no avanço tecnológico e fundamentalmente na redução dos custos do chamado “fator trabalho” com elevação das taxas de exploração. Esse processo afeta a cultura com mercantilização universal e descartabilidade, superficialidade e banalização da vida. Gera transformações nas esferas dos valores e da ética orientada por valores radicalmente humanos e atinge a cultura e contestam as interpretações que cultivam as grandes perspectivas de análises da sociedade em detrimento de discursos individualistas e pesquisas fragmentadas da vida social. Ao analisar essas tendências estruturais da conjuntura atual entendemos que há, dentro de um mesmo movimento, processos que tendem a ser tratados e mistificados de forma isolada e autônoma: a contrarreforma do Estado, a reestruturação produtiva, a questão social, a ideologia neoliberal e concepções pós-modernas. As conquistas sociais acumuladas têm sido transformadas em causa de “gastos sociais excedentes” que se encontrariam na raiz da crise fiscal dos Estados. A contrapartida tem sido a difusão da ideia liberal de que o “bem-estar social” pertence ao foro privado dos indivíduos, famílias e comunidades. A intervenção do Estado no atendimento às necessidades sociais é pouco recomendada, transferida ao mercado e à filantropia, como alternativas aos direitos sociais que só existem na esfera política. Após essa breve problematização das condições societárias nas quais se desenvolve a face contemporânea da sociabilidade capitalista, passaremos a problematizar o desenvolvimento sócio-histórico da profissão, afim de conhecer os determinantes que irão incidir na relação Serviço Social e movimentos sociais. O Serviço Social brasileiro vem desenvolvendo, desde finais da década de 1960, um processo de renovação das suas bases originárias conservadoras, que é designado na literatura dedicada ao estudo desse tema como “Serviço Social tradicional” 1 (Netto, 1994, 2005; Iamamoto, 1995). Essa renovação já foi fruto de vários estudos e debates no interior da profissão; todavia, a pesquisa de Netto (1994) é central para desvelar a dinâmica histórica e profissional dessa renovação nos marcos da ditadura do grande capital. O processo de renovação do Serviço Social no Brasil desenvolveu-se sob o signo da autocracia burguesa instaurada no país em abril de 1964. Um movimento reacionário civil-militar derrubou o governo constitucional e instaurou uma ditadura que durou por vinte anos. A ditadura burguesa representava os interesses do grande capital monopolista nacional e internacional, inscrita no contexto de golpes que abalaram o cenário latino-americano – golpes que concretizaram um amplo movimento contrarrevolucionário para expandir os interesses dos grandes monopólios e abafar qualquer tentativa de ruptura social com a ordem burguesa nessas regiões. “Movendose na moldura de uma substancial alteração na divisão internacional do trabalho, os 1 Na análise de Netto o “Serviço Social tradicional” refere-se a uma “prática empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada, orientada por uma ética liberal-burguesa, que, de um ponto de vista claramente funcionalista, visava enfrentar as incidências psicossociais da “questão social” sobre os indivíduos e grupos, sempre pressuposta a ordenação capitalista da vida social como um dado factual ineliminável” (2005, p. 06). centros imperialistas, sob a hegemonia norte-americana, patrocinaram, especialmente no curso dos anos sessenta, uma contrarrevolução preventiva em escala planetária” (Netto, 1994:p.16). A contrarrevolução preventiva posta em movimento apresentava finalidades muito articuladas e interdependentes, que podem ser assim sumariadas: adequar o desenvolvimento nacional ao padrão econômico capitalista, marcado pelo aprofundamento da internacionalização do capital; neutralizar os protagonistas sociopolíticos qualificados em fazer qualquer resistência ao enquadramento, ainda mais subalterno, do país no sistema capitalista; e, por fim, apoiar nas diversas partes do mundo grupos e tendências contrárias a qualquer perspectiva revolucionária e socialista (Netto, 1994). Esta forma particular da dominação burguesa no Brasil teve resultados diretos no processo de renovação profissional. A ditadura realizou, como indica Netto (1994), uma “modernização conservadora” que estimulou, particularmente, o desenvolvimento industrial e acadêmico do país, que tiveram íntima determinação para o Serviço Social: o primeiro introduziu demandas renovadas ao trabalho profissional catalisadas pela classe dominante e pelos interesses dos trabalhadores; e o segundo propiciou ao Serviço Social uma consolidação nas instituições de ensino e pesquisas acadêmicas. Dessa forma, a renovação, dos anos 1960 a 1975, realizou-se, predominantemente2, a partir da incorporação pela profissão de diretrizes desenvolvimentistas e modernizantes que adequaram a profissão às exigências do projeto social da ditadura. Essa tendência, qualificada por Netto (1994) como a perspectiva profissional modernizadora3, diversificou o perfil profissional, jogando para debaixo do tapete sua face tradicionalista, e articulou o conservadorismo a novos parâmetros teóricos e técnicos de clara inspiração funcionalista, requisitando uma fundamentação “científica” para o Serviço Social que redimensionasse metodologicamente as práticas profissionais. É somente a partir da segunda metade dos anos setenta que a renovação profissional aponta para rumos mais críticos com a herança tradicionalista e propõe um projeto profissional de ruptura4, marcado pelo contexto da auto reforma da ditadura e 2 É importante destacar aqui a exceção do grupo que se organizou, nesse período na Universidade Católica de Minas Gerais, e constituiu uma experiência de formação profissional que ficou conhecida na literatura profissional de “Método BH”, de inspiração na tradição marxista. 3 A perspectiva modernizadora, nos termos de Netto “constitui a primeira expressão do processo de renovação do Serviço Social no Brasil. Emergente desde o encontro de Porto Alegre, em 1965, ela encontra sua formulação afirmada nos resultado do primeiro “Seminário de Teorização do Serviço Social”, promovido pelo CBCISS na estância hidromineral de Araxá (MG), entre 19 e 26 de março de 1967” (1994, p. 164). 4 Essa tendência do processo de renovação profissional foi denominado, novamente por Netto, como “a intenção de ruptura”, porque o e autor entendia que havia um processo em andamento de ruptura com as bases tradicionais, mas carecia ainda de aprofundamento teórico-metodológico da perspectiva que lhe inspirava, o marxismo. E essa tendência continha em “seu projeto as diretrizes para romper substantivamente com o tradicionalismo e suas implicações teórico-metodológicas e prático-profissionais” (1994, p. 250). pelo avanço das forças sociais democráticas na cena política nacional. A passagem dos anos 1970 aos 1980, animada a cena política com a reorganização do movimento operário e sindical e o avanço das lutas democráticas, instaurou novas determinações concretas para a parcela profissional que se organizava alinhada às demandas populares e na ruptura com o tradicionalismo. Os assistentes sociais passaram, dessa forma, a investir em duas frentes: na organização da categoria profissional e na formação acadêmica. Na primeira frente de auto-organização, o Serviço Social realizou um significativo deslocamento político, caracterizado pela ruptura política com as vanguardas profissionais conservadoras, e pôs no centro do debate da organização profissional a defesa dos interesses das classes trabalhadoras, no marco do que ficou conhecido nos circuitos profissionais como o “Congresso da Virada”, em 1979: A categoria presente no III CBAS em 1979, no Congresso da Virada, deliberou, sob a coordenação e direção do CENEAS, por uma direção sóciopolítica de seu projeto profissional comprometido com a classe trabalhadora. Isso somente foi possível pelo fato da reorganização político-sindical da categoria se inscrever no processo crescente de mobilização e de lutas, que articulavam as questões específicas da categoria às lutas políticas mais amplas, o que lhe conferia representatividade e legitimidade (Abramides e Cabral, 2009, p.56). Cabe ressaltar que o Congresso da Virada apenas foi possível em sua radicalidade pela relação orgânica que então se constituía entre os segmentos mais organizados da categoria profissional (com especial destaque aos assistentes sociais inseridos no movimento sindical), e as lutas mais amplas dos trabalhadores. Não é por menos que o final da década de 1970 foi significativa em mudanças não apenas para os assistentes sociais, mas representou um marco histórico para reorganização sindical e popular dos trabalhadores em todo o país. A exemplo, apenas no ano de 1979 foram registrados mais de 430 greves, quase todas de longa duração e que mobilizaram cerca de três milhões e meio de trabalhadores de diferentes categorias. Segundo Netto (2009, p.27), é precisamente sob o impacto da reinserção do proletariado na arena política, no quadro da mobilização anti-ditatorial de amplos contingentes assalariados, da mobilização de setores pequeno-burgueses, inclusive burgueses, e, na sequência quase imediata, da declaração da anistia, que o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (III CBAS) traz à cena política as tendências democráticas contidas e reprimidas no Serviço Social. É preciso sublinhar que a existência desse conjunto profissional que dá substância crítica ao Serviço Social possuía uma composição política e teórica diversificada, marcada pela existência de propostas profissionais concorrentes e por polêmicas e debates que explicitam a característica da sua pluralidade, dispondo de um polo com a permanência e proliferação de tendências teóricas e políticas conservadoras e tecnicistas, que se alimentaram da herança conservadora imanente à dimensão sincrética da prática profissional e do contexto sócio-político regressivo e avesso às pautas progressistas. “Seria um equívoco imaginar que este ‘Serviço Social crítico’ é a expressão de todo o Serviço Social no Brasil. O panorama profissional brasileiro é muito diversificado, contando com tendências conservadoras (em algumas dimensões, reacionárias) e neoconservadoras.” (Netto, 2005, p. 18). A década de 1980 foi marcada pela renovação do Serviço Social brasileiro com a reorganização da categoria profissional em suas entidades representativas (CENEAS, CFAS e ABESS), bem como, uma releitura de seu significado sócio histórico em bases marxistas, destacando-se pela primeira vez no universo profissional uma apropriação mais consolidada do conjunto teórico-metodológico marxista, mesmo que muito diversificada e com apropriações teóricas em níveis distintos no seu conjunto. Sem dúvidas podemos afirmar que a relação fecunda com o marxismo tem possibilitado o crescimento maduro e produtivo do Serviço Social. Os assistentes sociais ingressaram nos anos 1990 como uma categoria profissional que investe na pesquisa, que reflete a realidade brasileira, e que investiga o trabalho profissional do assistente social. Esse Serviço Social de inspiração crítica a partir da tradição marxista vem dando concretude, nos últimos vinte anos, ao chamado Projeto Ético-Político do Serviço Social brasileiro. A referência ao Serviço Social na década de 1980 e a sua aproximação ao marxismo de Marx é importante, posto que nos oferece a referência inicial para compreendermos o universo profissional que surge nos anos seguintes, particularmente o que se convencionou chamar de projeto ético-político da profissão. O resultado político e teórico das reflexões e lutas empreendidas pelo conjunto dos profissionais engajados nesse amadurecimento crítico está hoje expresso e vem fomentando o conjunto das reflexões críticas no interior da profissão, particularmente sobre a sua contemporaneidade. Segundo Iamamoto, um dos desafios do Serviço Social na atualidade É redescobrir alternativas e possibilidades para o trabalho profissional, traçar horizontes para a formulação de propostas que façam frente à questão social e que sejam solidárias com o modo de vida daqueles que a vivenciam, não só como vítimas, mas como sujeitos que lutam pela preservação e conquista da sua vida, da sua humanidade. Essa discussão é parte dos rumos perseguidos pelo trabalho profissional contemporâneo (1998, p. 75). Na década de 1990, ancorado no fôlego com que as lutas populares demonstraram nos anos imediatamente anteriores, foi possível que a maturidade teórica e política que vem caracterizando o processo profissional de ruptura com o conservadorismo ganhasse hegemonia teórico-política nos circuitos do Serviço Social brasileiro. O Serviço Social se põe crítico e ativo, desenvolvendo um conjunto de ações políticas de resistência na implementação do projeto ético-político, com grande destaque na atuação organizativa do conjunto profissional, em especial das suas entidades representativas como o Conselho Federal de Serviço Social – CFESS e Conselhos Regionais de Serviço Social – CRESS, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS (antiga ABESS), e as entidades estudantis, em especial a Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social – ENESSO. Assumir uma postura em defesa dos trabalhadores levou o Serviço Social a consolidar uma orientação ético-política que se tornou central no Código de Ética Profissional de 1993 e orientou a construção da Lei de Regulamentação da Profissão (8662/93)5. Dessa forma, o que nos parece importante é problematizar como esse compromisso ético-político com os interesses da classe trabalhadora, expresso na “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero”, se faz presente na formação e trabalho dos assistentes sociais no período contemporâneo, diante de um contexto adverso de precarização do ensino superior, criminalização da pobreza e ofensiva à organização popular. 2.1 A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde: um espaço potencial para assessoria do Serviço Social à organização popular O objeto deste projeto de pesquisa e extensão – a relação do Serviço Social com os Movimentos sociais – não se restringe ao estudo acerca da produção teórica e ações produzidas pela categoria profissional em torno da temática movimentos sociais. Como 5 No campo da formação profissional foi empreendida uma nova jornada de pesquisas e discussões que matizaram ainda mais uma perspectiva estratégica para a formação dos assistentes sociais, definindo as expressões da questão social enquanto objeto sobre o qual incide a intervenção profissional e elegendo o chamado “processo de trabalho e Serviço Social”, centrado nas análises do trabalho profissional, como espinha dorsal do novo currículo aprovando, assim, as Diretrizes Curriculares da ABEPSS em 1996, através de muita discussão coletiva com as unidades de formação acadêmica de todo o país. um dos eixos propostos para ação do NUTSS, busca-se uma real atividade de práxis, que envolva tanto a produção de conhecimento, como uma atuação cotidiana e sistemática de docentes e discentes junto ao desafio da organização popular. Para tanto, elencamos como sujeito deste projeto de extensão o movimento popular de saúde através da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde6 e a sua articulação regional (o Fórum de Saúde do Rio de Janeiro7). A escolha por este movimento social não se dá por menos. Trata-se de um espaço inovador no âmbito da organização popular, pois, ao se tratar de uma “frente”, esta aglutina diferentes organizações – sindicatos, centrais sindicais, fóruns de saúde, partidos, movimentos sociais, associações e projetos universitários – em torno de uma pauta específica: a luta anti-privatista. Ao contrário do que recorrentemente é deflagrado pela literatura pósmoderna, esta articulação em “rede” não tem se demonstrado “fluída” ou mesmo espontaneísta, ao contrário, trata-se de uma organização com nítido caráter de classe, de identidade anticapitalista e cujas ações vinculam-se às lutas gerais dos trabalhadores. Entre as motivações para atividade de extensão universitária junto a este sujeito coletivo está a significativa participação da categoria profissional nas lutas em defesa da saúde pública. Os assistentes sociais têm-se feito presentes na organização dos Fóruns de Saúde estaduais e municipais e na construção da Frente Nacional, sobretudo, através da atuação do conjunto CFESS/CRESS e ABEPSS e da coordenação de projetos universitários com Fóruns de Saúde8. 6 Inicialmente, foi denominada de “Frente Nacional Contra as OSs e pela procedência da ADI 1.923/98”, fruto da articulação dos Fóruns de Saúde dos estados de Alagoas, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e do município de Londrina pela procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), contrária à Lei 9.637/98 que cria as Organizações Sociais (OSs), que tramitava no Supremo Tribunal Federal (STF) para julgamento desde 1998. Afim de mobilizar o conjunto da sociedade, foi construído um abaixo-assinado on-line pela procedência da ADI 1.923/98, que mobilizou mais de 10.000 signatários, e uma Carta aos Ministros do STF com mais de 400 assinaturas de entidades. Além disso, acompanhou a votação da ADI n. 1.923/98 no plenário do STF, em 31 de março de 2011 e tem realizado a partir de 2011, Ato Estaduais de comemoração ao Dia Mundial da Saúde (07 de abril), bem como diversas manifestações estaduais contra a privatização da saúde. 7 O Fórum de Saúde do Rio de Janeiro foi criado no ano de 2005, frente à crise da saúde pública no Rio de Janeiro. Em 2007, transformou-se em Fórum em Defesa do Serviço Público e Contra as Fundações de Direito Privado. Este foi o caminho de unidade encontrado pelo movimento para intervir no processo de tramitação do Projeto de Lei que autorizou a criação de Fundações Estatais de Direito Privado para gerir os hospitais do estado. Em janeiro de 2009 o Fórum foi recriado para dar seguimento à luta contra a privatização da saúde, sobretudo, no que diz respeito a mobilização contrária às Organizações Sociais (OSs) e a EBSERH. O Fórum se reúne mensalmente, na última terça-feira de cada mês, na UERJ. 8 Dentre os projetos universitários destacamos o Projeto Políticas Públicas de Saúde (PPPS/UERJ), sob a coordenação da Profª Drª Maria Inês Bravo e o Observatório de Políticas Públicas e Lutas Sociais (POLUS /UFAL), sob a coordenação da Profª Drª Maria Valéria Correia. A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde e os Fóruns que a integram são caracterizados enquanto “mecanismos de controle democrático não institucionalizado” (BRAVO, 2014, p.75), de caráter autônomo frente ao Estado e instituições. Este movimento tem por objetivos os pressupostos presentes no projeto da Reforma Sanitária brasileira: a defesa do SUS público, estatal, sob administração direta do Estado, gratuito, para todos e com controle social; e a luta contra a privatização da saúde. Segundo uma perspectiva de totalidade – onde a saúde se articulada a pauta por melhores condições de vida e de trabalho – estão sendo criados e estimulados outros mecanismos de participação para fortalecer a luta por saúde, com especial destaque aos Fóruns de Saúde estaduais, municipais e os comitês locais contra a privatização. As conquistas alcançadas pela Frente, tangem ao espaço de mobilização e articulação da luta popular, a saber: a constituição de Fóruns de Saúde em mais de vinte estados brasileiros: Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, além de dezesseis fóruns estaduais criados a partir de 2011. Também foi responsável por mobilizar diversas forças sociais, tais como: sindicatos de funcionários públicos; algumas centrais sindicais (CSP-Conlutas; Intersindical); pesquisadores de diversas universidades (UERJ, UFRJ, USP, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ, CESTEH/ENSP/FIOCRUZ, UFF, UFAL, UEL, UnB, UFBA, UFRN, entre outras), executivas de estudantes (Medicina, Enfermagem, Serviço Social, Farmácia, Nutrição); Coletivo de Residentes; movimentos sociais (MST, MTST), além de outras frentes: Frente de Drogas e Direitos Humanos e a Frente Independente Popular (FIP). Cabe destacar também a realização pela Frente de cinco seminários nacionais entre os anos de 2011 à 2015, além de debates e manifestações locais contra a implementação das Organizações Sociais (OS) e da Empresa Brasileira de Serviço Hospitalares (EBSERH). Enquanto estratégias de luta, a Frente Nacional tem estruturado as suas ações da seguinte forma: No campo jurídico - articulações com os Ministérios Públicos Estaduais e Federal, TCE (Tribunal de Contas do Estado) e TCU (Tribunal de Contas da União) com construção de ações civis públicas; e promoção de campanhas públicas pela ação Direta de Inconstitucionalidade (da Lei 9.637/98 que cria as OSs e elaboração da ADI 4.895/2013 contra a EBSERH). No parlamento - articulando e pressionando os parlamentares a fim de impedir o processo de privatização da saúde, por meio de manifestações nas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas nas sessões de votação dos Projetos que privatizam a saúde; além de participação em audiências públicas. Na sociedade - realizando encontros e debates sobre a privatização com os trabalhadores da saúde e usuários do SUS. Nas ruas – através da organização de atos e manifestações. A exemplo, a Frente tem participado dos Atos do Dia Mundial da Saúde, da Luta Antimanicomial, do Dia Internacional de Luta das Mulheres, do Dia do Trabalhador e do Grito dos Excluídos. Nos espaços de controle social - através da pressão e participação nos Conselhos e Conferências contra os “novos” modelos de gestão. No âmbito da formação - com a promoção de cursos, debates, realização de projetos de pesquisas e extensão junto aos Fóruns de Saúde. O projeto de extensão ora apresentado tem por perspectiva uma ação de assessoria junto ao movimento popular de saúde, participando ativamente nas ações desenvolvidas pela Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, principalmente, no que diz respeito às atividades de formação e mobilização. Para tanto, compreendendo assessoria como um novo espaço para atuação do Serviço Social: Definimos assessoria/consultoria como aquela ação que é desenvolvida por um profissional com conhecimento na área, que toma a realidade como objeto de estudo e detém uma intenção de alteração da realidade. O assessor não é aquele que intervém, deve sim, propor caminhos e estratégias ao profissional ou à equipe que assessora e estes têm autonomia em acatar ou não as suas proposições. Portanto, o assessor deve ser alguém estudioso, permanentemente atualizado e com capacidade de apresentar claramente as suas proposições. (MATOS, 2010, p.31) Assim, concordamos com Matos (2010, p.31) que “naturalmente o trabalho de assessoria não passa por uma neutralidade. Ao contrário, a assessoria inexoravelmente desenvolvida pelos assistentes sociais vai expressar uma concepção de profissão e de mundo”. Se compreendemos a profissão a partir de princípios como a “ampliação e consolidação da cidadania”, a “defesa e aprofundamento da democracia” e o “posicionamento em favor da equidade e justiça social”, a atuação em defesa de direitos e garantias sociais fundamentais, como o acesso público e universal à saúde, torna-se uma atividade legítima não apenas para a formação profissional, mas necessária à universidade pública e o conjunto da sociedade. 3. OBJETIVOS 1. Construir atividade periódica de extensão do curso de Serviço Social da Unirio com a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde e o Fórum de Saúde, afim de contribuir com a formação e organização desta organização popular. 1.1 Objetivos Específicos Estabelecer mecanismos de articulação entre ensino, pesquisa e extensão com as demandas dos trabalhadores; Fomentar o trabalho interdisciplinar e interinstitucional; Analisar as transformações sócio históricas e seus impactos sobre a Política de Saúde, o Serviço Social e os Movimentos Sociais no Brasil; Assessorar os movimentos sociais e demais sujeitos envolvidos nas lutas pela saúde pública; 2. Identificar o estado da arte acerca da relação contemporânea do Serviço Social com os Movimentos Sociais nos últimos dez anos, a partir das ações promovidas pelo conjunto CFESS/CRESS e ABEPSS junto a organizações da classe trabalhadora e experiências de pesquisa e extensão desenvolvidas pelo Serviço Social. 2.1 Objetivos específicos Verificar as campanhas, publicações e ações efetuadas pelo conjunto CFESS, CRESS e ABEPSS envolvendo movimentos sociais. Verificar as sistematizações já existentes na área acerca do objeto em questão, sobretudo, o que foi produzido pelo GTP da ABEPSS de Movimentos Sociais. Identificar as temáticas existentes nos projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos (ex: movimento feminista, urbano, rural, etc.). Identificar as perspectivas teórico-metodológicas que incidem na análise dos movimentos sociais pelos assistentes sociais; Mapear o perfil dos profissionais que desenvolvem ações de formação e trabalho junto aos movimentos sociais; 4. METODOLOGIA 1. Construir atividade periódica de extensão do curso de Serviço Social da Unirio com a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde e o Fórum de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Esta atividade de extensão consiste nas seguintes ações: Participar das reuniões da Frente Nacional e do Fórum de Saúde, sendo a primeira um encontro mensal e de caráter virtual com integrantes dos diversos fóruns e movimentos sociais que compõe a Frente no país; e, a segunda, a reunião do Fórum de Saúde/RJ que ocorre quinzenalmente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Contribuir com a promoção de cursos/debates junto aos trabalhadores e usuários do SUS, bem como, o auxílio ao processo de mobilização e articulação dos sujeitos coletivos na luta em defesa da saúde pública. Constituir espaço de estudo e diálogo entre docente, discentes e movimentos integrantes do Fórum sobre Educação Popular e trabalho de base. 2. Identificar o estado da arte acerca da relação contemporânea do Serviço Social com os Movimentos Sociais. Para Marx, o método que cientificamente dá conta de analisar um objeto é aquele que parte do concreto, compreendendo este como a síntese de diversos elementos do real, realizando um movimento de desconstrução de representações caóticas, por meio de abstrações até chegar aos fatores que estão na base determinante concreta. Segundo o autor: “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (Marx, 1978, p. 116). Partindo dessa compreensão, para analisar a relação entre o Serviço Social e os movimentos sociais, utilizar-se-á da pesquisa documental e bibliográfica, ressaltando a dimensão essencialmente teórica do nosso estudo. Ressaltamos como caminho necessário à pesquisa: Recorrer aos estudos existentes já sistematizados, daí a importância de acessar a produção realizada pelo GTP de movimentos sociais da ABEPSS. Identificar os Diretórios de Pesquisas e projetos de extensão cadastrados no CNPQ atuantes junto à temática. Identificar as organizações pesquisadas pelos assistentes sociais, as diferentes perspectivas teórico-metodológicas que incidem na análise dos movimentos sociais e o perfil dos profissionais que desenvolvem ações em parceria com estas organizações; Verificar os documentos e campanhas produzidas pelas entidades organizativas da categoria profissional (CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO) em apoio ou parceria com organizações da classe trabalhadora. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMIDES, M. Beatriz C.; CABRAL M. do Socorro Reis. O Novo Sindicalismo e o Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1995. ABEPSS. Diretrizes Gerais para o curso de Serviço Social. ABEPSS: Rio de Janeiro, 1996. BRAVO, M. I. S.; MENEZES, J. S. B. A Saúde nos Governos do Partido dos Trabalhadores e as Lutas Sociais Contra A Privatização. 1º Ed. Rio de Janeiro: FAPERJ/UERJ. BRAVO, M. I.; MATOS, M. C. Assessoria, Consultoria e Serviço Social. 2º Ed. São Paulo: Cortez, 2010. CFESS. Código de Ética do/a Assistente Social. Lei 8.662/93 de Regulamentação da Profissão. 9º Ed. Brasília: CFESS, 2011. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992. IAMAMOTO, V. L e CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação teórico-metodológica. São Paulo, Cortez/CELATS, 1982. MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo, Cortez, 2007. ________.O Serviço Social e a Tradição Marxista. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, 1989. ________. Notas sobre o marxismo e Serviço Social, suas relações no Brasil e a questão de seu ensino. São Paulo, Caderno ABESS, 1995. ________. A construção do Projeto Ético Político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: CEFESS/ABEPSS; CEAD/UNB (Org.). Crise contemporânea, questão social e Serviço Social. Capacitação em Serviço Social e política social. Brasília: CEAD/UNB, 1999. ________. Transformações societárias e Serviço Social: Notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil. São Paulo, Serviço Social e Sociedade, 1996.