ROCK´N´ROLL ENQUANTO DISCURSO DE LIBERDADE: UM ESTUDO DE CASO DO FILME EASY RIDER – SEM DESTINO Fabrício Basílio - IACS-UFF1 Juliana Vinuto - IACS-UFF2 Introdução De certo modo, como Buck Henry coloca, Sem Destino não tinha autor, era a caligrafia automática da contracultura. Ele diz: “Ninguém sabia quem tinha escrito o filme, ninguém sabia quem tinha dirigido, ninguém sabia quem tinha montado. Era para Rip estar no filme, mas em vez disso lá estava Jack. Parecia que tinha sido feito com pedaços de um monte de outros filmes costurados juntos ao som das melhores canções dos anos 60. Mas abriu um caminho. Agora os filhos de Dylan estavam no comando. (BISKIND,2013,pg,67) Dois jovens atravessando o sul dos Estados Unidos em suas motos envenenadas. Com essa premissa despretensiosa, Peter Fonda e Dennis Hopper lançam em 1969 Easy Rider – Sem Destino, um filme de estética visual transgressora, porta–voz da contra cultura dos anos 60 e da transformação cinematográfica que alteraria a lógica ideológica de Hollywood. No filme, após comprarem cocaína no México e a revenderem por uma fortuna em Los Angeles, Billy, interpretado por Hopper, e Wyatt, interpretado Fonda, escondem o dinheiro restante em suas motos recém-compradas e acreditando terem resolvido seus problemas financeiros, partem em uma jornada até a festa carnavalesca do Mardi Grass em Nova Orleans. No caminho, encontram com uma família de pequenos agricultores, visitam a uma comunidade hippie e dão uma carona ao advogado alcoólatra George Hanson, interpretado por Jack Nicholson, tudo isso regado por paisagens deslumbrantes, caipiras de direita e experiências alucinógenas com LSD. 1 2 [email protected] – [email protected] Lançado num contexto histórico comum a guerra fria e a guerra do Vietnã, e no mesmo ano do lendário festival de rock Woodostck, que reuniu mais de meio milhão pessoas na cidade rural de Bethel no estado de Nova York, Easy Rider ecoa de forma até então inédita em Hollywood elementos base da contracultura como o uso de drogas, o rompimento com as instituições e a ascensão do rock como representante cultural do movimento que clamava por paz e amor, ao mesmo tempo em que imprime um tom pessimista a continuidade do mesmo, seja pelo causador do incidente incitante do filme - ou seja, é o a acumulo de capital pela venda da cocaína que permite o suposto sentimento de liberdade dos protagonistas -, seja pela resolução de sua trama, o que pode ser resumido pela emblemática frase de Wyatt: “Nós estragamos tudo” Além disso, se faz necessário ressaltar como o uso de drogas além de força motriz para a narrativa foi essencial para a concepção da obra e posteriormente para sua repercussão. Primeiro pela própria explicação de sua origem por Peter Fonda, segundo ele: “Eu estava meio doidão e olhei para… uma foto de Anjos Selvagens3, eu e Bruce Dern numa moto (...) E de repente eu pensei: é isso aí, esse é o western moderno, dois caras atravessando o país de moto… e talvez eles tenham feito uma super-transação e estejam cheios de grana.” (BISKIND,2013,pg,38). Dessa maneira, além de confirmar o possível uso de drogas por Fonda, a citação ainda permite uma outra colocação, pois lançado no mesmo ano em que Jonh Wayne, ator símbolo do gênero de western, receberia o Oscar, por sua atuação no faroeste Bravura Indômita (1969), Fonda e Dennis Hopper, que foi convidado pelo amigo para atuar e dirigir o longa-metragem, nomearam seus personagens a partir de figuras verídicas e muito exploradas no gênero do faroeste: o bandido Billy de Kid e pelo xerife Wyatt Earp. Ainda no âmbito das drogas, ressalta-se o rigor da dupla, na escolha do narcótico que poderia estabelecer uma condição financeira confortável para os personagens, para eles uma única de venda de maconha não imbricaria em tamanho ganho financeiro, já a heroína teve sua utilização vetada por, segundo eles, exercer uma conotação negativa quanto ao seu uso. Dessa maneira, optou-se pela cocaína, substituída durante as filmagens por bicarbonato de sódio, a droga ainda de circulação restrita na época, o que se deve principalmente ao seu alto valor, ganhou as ruas na década de 70. Segundo Hopper (BISKIND,2013) Easy Rider é 3 Dirigido pelo lendário Roger Corman, Os Anjos Selvagens (Wild Angels, The, 1966), conta a história de um grupo de motociclistas chefiados pelo personagem de Fonda, que se envolvem em um frenética perseguição com policiais. responsável direto pela introdução da droga no cenário Hippie, para ele o surgimento da droga nas ruas tinha ligação direta com a influência do filme. Além de declarações polêmicas, Hopper era conhecido por seu temperamento explosivo e pelo abusivo uso de drogas e álcool, dessa forma o contrato estabelecido por Fonda com a produtora americana AIP manteve o projeto do filme praticamente congelado. Nesse momento, surge Raybert, o produtor que tinha feito fortuna com a produção da série de TV Monkees e que se mostrou disposto a financiar o filme e dar total liberdade a dupla criativa. Assim, com um orçamento modesto, se comparado com as produções hollywoodianas da época, e diversas dificuldades de set, como o roubo das motos no final das filmagens, mas ao mesmo tempo com opções estéticas subversivas, que iam desde a utilização de películas manchadas até o descaso com as discrepâncias que a iluminação natural geraria em uma determinada sequência, Easy Rider alcança uma expressiva bilheteria. Além do retorno em bilheteria, Easy Rider ainda ganharia duas indicações no Oscar de 1970: melhor roteiro original e de melhor ator coadjuvante para Jack Nicholson. Ademais Dennis Hopper ganharia o premio em Cannes de melhor diretor estreante. Com isso, finaliza-se uma breve apresentação sobre o filme. A partir dessa relação o artigo se envereda por análises sociológicas e cinematográficas que permitam evidenciar como o discurso de liberdade é trabalhado em Easy Rider. Para isso, se lança mão do conceito de discurso de Foucault e da influência do rock, principalmente, enquanto música não diegética, no sentido de explorar facetas, que incluam o gênero musical na construção de um discurso fílmico associado à liberdade. Foucault e o conceito de discurso Antes de tentar compreender o que o discurso cinematográfico no filme Easy Rider pode iluminar no que tange à liberdade de sua época, faz-se importante problematizar o próprio conceito de discurso, que será trabalhado aqui a partir da obra de Michel Foucault (1999; 1979). Este autor argumenta que os discursos revelam uma determinada verdade, permitindo-se visualizar relações políticas onde usualmente não são percebidas. Nesse sentido, pode-se considerar os discursos como uma consequência e uma necessidade do poder: “O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1979, pág. 8). O poder, ao defender determinado ponto de vista através de discursos, permite visualizar relações de saber-poder inerentes a sua produção, ou seja, quem emite discursos necessariamente defende uma posição, usualmente vinculada à determinada posição de poder, sendo possível desse modo perceber os discursos enquanto práticas sociais. Nesse sentido, ao se propor aqui utilizar-se do filme Easy Rider como um possível objeto analítico para se compreender as representações sociais sobre liberdade de sua época, não se objetiva revelar a liberdade real, mas desconstruí-la enquanto discurso, já que parte-se do pressuposto que a realidade dos objetos não pode ser analisada em sua totalidade. Ou seja, intenciona-se verificar quais as ideias relacionadas à ideia de liberdade que estão expostas nessa obra de arte, já que todo discurso é produzido em um tempo e um espaço delimitados, por determinados atores sociais e sobre a influência de um contexto histórico, social e político, o que permite vincular sentido às ideias discursadas. Nesse sentido, pretende-se aqui mostrar que não há uma dicotomia entre uma realidade e sua interpretação, ou uma evidência direta entre o objeto referido e sua codificação verbal, mostrando que os discursos sobre liberdade em Easy Rider possui uma materialidade, sendo interessante para analisar não apenas o que e a liberdade em si, mas sua construção social. É a partir desse pano de fundo que Foucault se questiona sobre as razões para que determinados discursos sejam aceitos como verdadeiros, em detrimento de outros. O autor alega que em todo discurso há uma “vontade de verdade”, que necessariamente opõe o verdadeiro ao falso, expondo uma luta na qual tem mais poder aqueles que têm maiores possibilidades de impor sua vontade de verdade. Tal vontade, portanto, necessita ser questionada a fim de compreender as condições necessárias do nascimento de seus discursos, do que é considerado verdadeiro para os grupos sociais. Neste contexto, cada época tem sua vontade de verdade, que existe enquanto sistema de exclusão, justamente por desconsiderar os discursos contrários ao discurso hegemônico. Ou seja, Easy Rider é considerado neste trabalho como uma obra que só pode expor seu discurso sobre liberdade por estar localizado em um determinado momento histórico, e que ao mesmo tempo luta contra outros discursos sobre liberdade possíveis. Por isso, Foucault defende que a sociedade é perpassada por disputas pelo poder, ou seja, de disputas pelo que seria o discurso verdadeiro. No próprio filme pode-se observar discursos contrários à representação de liberdade evidenciada nos protagonistas, através da fala de policiais, homens em um bar, etc. Visualiza-se assim poderes que invalidam a todo o momento os discursos, sejam estes hegemônicos ou não, porém, os protagonistas, pelo menos por alguns momentos, confiscam o poder de definição de verdade dominante, inclusive comportamento que acarreta em sérias consequências, como a mortes de ambos os personagens. Foucault nos apresenta o argumento de que em toda sociedade a produção de discursos é controlada, com o objetivo de combater os contra-poderes existentes na sociedade. Análise da música em Sem Destino Voltando-se para o rock ’n’ roll enquanto ritmo musical do final dos anos 60, o artigo debruça-se sobre a trilha musical organizada para o filme, de modo a evidenciar características melódicas e poéticas que em consonância com os elementos da obra construam um discurso de liberdade. Dessa forma, uma particularidade da trilha sonora surge no fato de o longa-metragem não ter tido uma trilha composta especialmente para o filme. Inicialmente, a banda Crosby, Stills & Nash estava a cargo de produzir a trilha, porém, imposições do sempre explosivo Dennis Hopper impediram que o contrato com a banda fosse assinado. Dessa forma, Easy Rider, que já estava com o prazo de entrega atrasado, acabou primando em sua trilha musical por composições já lançadas na época. Como revela Peter Biskind em seu livro Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood: Na maior parte do filme, Hopper e Fonda usaram as músicas que estavam na trilha temporária. Foi um dos primeiros casos de um filme impulsionado pela poderosa força do rock’n’roll dos anos 60 e, no futuro, o rock se tornaria um elemento fundamental em filmes como Loucuras de Verão, Caminhos Perigosos e Apocalypse Now. (2013, pg.66) Como explanado por Biskind a ausência de uma trilha composta particularmente para o filme acabou por agregar grande valor à obra, que passava a contar com bandas como Steppenwolf, The Byrds e Jimi Hendrix Experience e a letra de Bob Dylan emprestada para os vocais de Roger McGuinn em It's Alright, Ma (I'm Only Bleeding). Assim, a temática empregada nas canções que vão desde a comunhão do homem com a natureza até a subversão da ordem, se alia ao discurso visual, criando composições quase sempre remetentes à jornada dos motociclistas pela estrada. Na mais famosa delas, Born to Be Wild surge para embalar os créditos inicias enquanto Fonda e Hopper desfilam pela estrada em suas motocicletas o que elevou a música ao status de eterno hino dos motoqueiros. Se por um lado a trilha sonora optou por uma miscelânea de composições contemporâneas ao filme, por outro a forma de inserção das músicas na narrativa se adequou a duas formas de emissão, até certo ponto convencionais: uma menos verificada remetente a músicas diegéticas, e outra, majoritária, referente à utilização de músicas não diegéticas. Dessa forma, o excesso de músicas não diegéticas em Easy Rider é plausível dentro de uma narrativa encenada constantemente na estrada, no campo e em localidades nos quais imperam a ausência de energia elétrica, que, portanto, impedem a aparição de uma fonte emissora de som em quadro, como um rádio ou um jukebox. Em uma das poucas sequências em que a música diegética surge, na qual os motociclistas, em companhia de George, param em uma lanchonete após um longo tempo na estrada, esta funciona como plano de fundo para a ação centrada em três grupos, sentados cada um em uma mesa: os protagonistas que esperam para serem atendidos; um grupo de meninas adolescentes, em meio a um mar de garrafas de refrigerante, e que demostram clara simpatia aos viajantes e por fim, um grupo de homens da região, somado pela presença do xerife da cidade e que são claramente preconceituosos a cerca dos aspectos estéticos e comportamentais dos protagonistas. Dessa forma, “o rock” emitido pela jukebox, Let's Turkey Trot de Little Eva, não pode se identificar com três grupos tão contrastante, ainda mais pensando-se que tratando-se de uma máquina de escolher músicas, se supõe que mesmo fora de quadro, um dos dois grupos já presentes no local, quando iniciada a ação, adolescentes e homens da cidade, teria escolhido a canção. Assim sendo, essa música é utilizada narrativamente de forma similar as emanações não diegéticas (como se verá adiante), de modo a causar identificação com os personagens, porém diferentemente das letras que permeiam a narrativa de Billy e Wyatt pela estrada, a música de Little Eva de letra alusiva ao método de dança, se identifica obrigatoriamente com o grupo de meninas adolescentes. Já a música não diegética aplicada em vários momentos da trama é construída de forma a soar quando os protagonistas surgem na estrada e a silenciar quando da saída desses para as margens da rodovia, adquirindo em Easy Rider, imediata consonância com os eventos passados ou presentes da trama, ou seja, por mais que a música do filme apareça, quase sempre, em longas sequências de grande semelhança imagética, esta busca necessariamente ratificar ou remeter a ações narrativas. Para isso, Hopper se faz de uma estrutura audiovisual comum aos videoclipes, na qual a música não esta subordinada às outras fontes sonora- ruídos e diálogos – mas sim reforçada de modo a silenciar as fontes emissoras concorrentes. Dessa forma, não ouvimos durante a jornada dos personagens pela estrada, o som de suas vozes e tão pouco o ruído do motor das motos, ou mesmo, a ambiência que os cerca. O que se assemelha ao conceito de “máscara sonora”, de Michell Chion, argumentado por Arlindo Machado: Determinados sons que não convêm aos interesses enunciativos da instância audiente podem ser ofuscados pela elevação de um ruído de fundo (...) ou inclusive suprimidos sumariamente, enquanto os sons que interessam podem ser destacados dentro da escala das hierarquias significantes. Chion chama esse processo de cache sonore ("máscara sonora"), termo assimilado do conceito baziniano de plano como "máscara" (aquilo que recorta um fragmento de imagem do restante do ambiente visual). (MACHADO,2007, pg,120) Dessa forma, a combinação entre música e imagem representa a concepção cultural de seus protagonistas, de uma forma que não poderia, pela trajetória dos personagens, ser provada em quadro. Pois, vale lembrar que em nenhum momento é feita qualquer menção dos protagonistas quanto ao rock, seja como gênero musical, seja como repertório de alguma banda. Assim, o rock 'n' roll surge no filme como uma forma de resumir o sentido de contracultura e da liberdade expressos pelo enredo, ao mesmo tempo em que se configura como um leitmotiv para a liberdade causada por viajar de moto por estradas deslumbrantes e, principalmente, sem uma preocupação exacerbada com o amanhã. Essa função da musica é ainda mais reforçada, pensando-se que está, normalmente, não rivaliza com as ações do filme que se passam fora da estrada. Nesse âmbito, nota-se que situações como o uso de drogas ou o sexo descompromissado, quase nunca são embaladas por música, com exceção, da sequência em que os protagonistas fazem sexo com duas hippies em um açude, porém, até mesmo essa sequência se inicia como uma jornada até o ponto desejado, e sendo assim mesmo não estando em suas motos os personagens se submetem a uma sensação psicológica similar a jornada estrada a fora. Também fugindo dessa concepção da música associada à estrada e a reforçar o discurso de liberdade imposto pela imagem, surge no inicio da trama os acordes e a melodia de The Pusher, interpretada pela banda Steppenwolf, essa música eclode no filme, no momento em que Billy e Wyatt, após comprarem cocaína no México a revendem a um milionário, são finalmente pagos pelo tráfico de drogas. Dessa maneira, a música surge reforçando a atividade ilegal executada pelos personagens, ao mesmo tempo em que imprimi uma contradição entre a imagem e a música, já que, se a montagem demonstra uma relação de causa e efeito entre a conquista financeira e a compra das motocicletas, ou seja, mostra a droga como causadora da sensação de liberdade, a música de refrão: “God Damn, The Pusher ... I said God damn, God damn The Pusher man” , claramente se mostra contrária a atividade executada pelos personagens. Entretanto, a maioria das ocorrências sonoras de músicas não diegéticas imprimem consonância com a ação representada. O que pode ser visto, por exemplo, na sequência sonorizada por Wasn't Born To Follow, interpretada pelo The Birds, em que a letra psicodélica descreve uma jornada por um relevo mágico recoberto por florestas cujas árvores “...have leaves of prisms and break the light in colors” enquanto a imagem revela as motos viajando por um relevo arborizado e com recorrente introdução das cores básicas do arco-íris, proporcionadas pelo direcionamento da câmera, de encontro ao sol, o que intensifica o efeito de flare na lente da câmera. Ou mesmo, na cena em que George, sobre a moto de Wyatt, chacoalha os braços de modo a imitar um pássaro batendo suas asas, o que colabora com a debochada música que percorre a cena: If You Want To Be A Bird Wild Blue Yonder. Outra construção audiovisual pertinente ocorre entre, a clássica cena em que os personagens fumam baseado em volta de uma fogueira e a sequencia posterior, quando estes voltam para a estrada. Na primeira, George se mostra receoso ao uso de maconha, revelando seus anseios em viciar-se, o que se será quebrado no final da cena, quando o personagem faz mirabolantes observações sobre os extraterrestres enquanto traga o incessantemente o cigarro de maconha, a ponto de esquecer-se de passa-lo para seus companheiros. Já a sequência seguinte retrata os personagens urinando na beira da estrada ao som de Don t Borgart Me (Don t Bogart That Joint), que faz notória alusão ao modo de se usar maconha, e, portanto, estabelece conexão com a ação executada anteriormente pelos personagens. Aliás, o personagem de Jack Nicholson é responsável por verbalizar a concepção de liberdade defendida em Easy Rider, ao analisar o preconceito executado pelos habitantes da região sobre os protagonistas, que lhe impediram, até mesmo, de conseguir um quarto de motel. George é categórico a afirmar que as pessoas possuem medo da sensação de liberdade que os motociclistas representam para ele, o conceito de liberdade preso em amarras capitalistas, se destrói na presença dos personagens, que dessa forma se tornam alvo da fúria de pessoas que tem sua noção de liberdade abalada pela inserção de novas possibilidades de existência, o que vai de encontro a contracultura e ao final da sequência, na qual, um ataque noturno empreendido por moradores da região leva George ao óbito. Considerações finais Enquanto que no Dicionário a palavra liberdade tem um sentido normativo, percebe-se que no filme Easy Rider há um sentido muito mais ligado às esferas econômicas e simbólicas. No dicionário consta a seguinte definição: “Direito de proceder conforme nos pareça, contanto que esse direito não vá contra o direito de outrem”. Porém, evidencia-se no filme que o exercício de liberdade é muito mais multifacetado do que essa simples definição, dado que é conquistado de forma mais complexa e tem como oposição indivíduos e instituições que não apenas respondem a supostas transgressões de seus próprios direitos. Um primeiro ponto a ser levantado nesse debate é o que se pode visualizar, no filme, como o momento inicial que permite a vivência libertária dos atores principais: o trabalho. Por mais alternativo que possa parecer o ato de vender drogas para se ter possibilidade de viajar pelo país, ainda assim trata-se de um comércio que, de alguma forma, simboliza a necessidade de haver um capital inicial para poder ser livre. Não é possível saber se essa era a intenção dos diretores, porém, ao evidenciar a necessidade de possuir dinheiro para poder viver livremente liga-se a representação social de liberdade a uma dimensão econômica, na qual aqueles que não têm a possibilidade de angariar esse pecúlio teriam menores possibilidades de serem livres. É uma representação parecida com a conhecida frase brasileira: “dinheiro não compra felicidade, manda buscar”. Nesse sentido, não é o dinheiro em si que daria liberdade ao indivíduo, mas a possibilidade de coisas a serem feitas a partir de uma situação financeira confortável, ou seja, o dinheiro traria liberdade no momento em que possibilita experiências de vida, e não quando é poupado. Em suma, ao mesmo tempo em que evidencia a sociedade capitalista na qual os personagens estão inseridos, permite problematizar a função do dinheiro na vida das pessoas, dado que este permite uma existência livre desde que seja usado a favor da experiência vivida. Outro ponto interessante que tange a ideia de liberdade representada no filme é a necessidade de se adotar uma postura autônoma e independente frente às instituições de nossa sociedade, abrindo espaços para recusa de certos dogmas que produzem restrições na vida cotidiana. A utilização de uma estética visual transgressora, a existência de personagens ligados à contracultura, a instrumentalização de uma lógica ideológica contrária às instituições estabelecidas, o uso de drogas, dentre diversos outros pontos expostos na obra de arte, possibilita espaços de liberdade cotidiana, existente nos espaços vazios de poder. Porém, a existência desses espaços não acarreta, por si só, uma vida livre, dado que o campo da liberdade é o da prática, da reprodução, da luta constante por cada vez mais espaços de liberdade. Tal argumentação está muito próxima da definição de liberdade dada por Michel Foucault (2006, pág. 267), como é possível observar no seguinte trecho: Se tomamos o exemplo da sexualidade, é verdade que foi necessário um certo número de liberações em relação ao poder do macho, que foi preciso se liberar de uma moral opressiva relativa tanto à heterossexualidade quanto à homossexualidade, mas essa liberação não faz surgir o ser feliz e pleno de uma sexualidade na qual o sujeito tivesse atingido uma relação completa e satisfatória. A liberação abre um campo para novas relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade. Nesse sentido, percebe-se que nas mais diversas esferas sociais, há necessidade de embate constante para manter e reproduzir novos espaços de liberdades, já que esta não existe por si só, mas nas batalhas cotidianas consta o status quo. Dessa forma, quando George, ao inferir a cerca do estereótipo de liberdade de Billy e Wyatt, indica que ambos correm perigo em uma região deverás tradicionalista, não está mais do que evidenciando o quanto diferentes vertentes ideológicas geram conflito no filme. Assim, os personagens que após dias de estrada continuam sem encontrar um local que lhes cabe, partem para outra jornada, dessa vez para outro extremo dos Estados Unidos, a Florida. Se o tom do filme muda após a morte do advogado alcoólatra, o que fica evidente na angustiante viagem com LSD no cemitério em Nova Orleans. É na volta do Mardi Gras que a consciência da jornada atinge Wyatt, o que é intensificado por mais clipe, sonorizado pela belíssima It´s Alright Ma (I’m Only Bleeding), só que dessa vez, a música não traz em sua letra um discurso de liberdade, mas sim versos angustiantes que se fundem a busca dos protagonistas por um sentido em sua jornada. Por fim, o clímax pessimista revela os percalços enfrentados pela aplicação de uma de liberdade limitada, já que, nem ao menos pode se externar em um espaço público no qual estejam garantidas as condições mínimas para seu exercício. Assim, a resistência à liberdade dos protagonistas surge como a defesa de um status quo fincado em uma sociedade americana preconceituosa. O que pode ser visto nos xingamentos dos fazendeiros, que perguntam, antes de atirar em Billy, o porquê dele não cortar o cabelo. Ademais, apenas a fumaça gerada pelas motos destruídas, e junto com elas o dinheiro que proporcionou a jornada. Tudo isso filmado em uma linda tomada de helicóptero com o auxilio da belíssima canção Ballad Of Easy Rider. Referências BISKIND, Peter. Como a geração sexo-drogas e rock’n’roll salvou Hollywood. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, edição digital 2013. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. __________. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986. __________. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. __________. As Palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ____. Ética, Política e Sexualidade. In: Ditos e escritos volume. 2. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. MACHADO, Arlindo. 2007. O ponto de escuta. In: O sujeito na tela. Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus. RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social: Revista de sociologia da USP. São Paulo, 7 (1-2): 67-82, outubro de 1995.