DIVULGAÇÃO TÉCNICA Vírus da diarréia viral bovina (BVDV). VÍRUS DA DIARRÉIA VIRAL BOVINA (BVDV) E.F. Flores Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva, Faixa de Camobi, km 9, CEP 97105-900, Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: [email protected] RESUMO O vírus da diarréia viral bovina (BVDV) possui distribuição mundial e é considerado o agente viral mais importante de bovinos, após o vírus da febre aftosa. A infecção tem sido descrita no Brasil desde o final da década de 60 e está amplamente difundida nos rebanhos de leite e corte. A infecção pelo BVDV tem sido associada a uma ampla variedade de manifestações, que incluem desde infecções inaparentes até enfermidades altamente fatais, como a Doença das Mucosas (DM). Doença respiratória, gastroentérica, trombocitopenia e hemorragias, e quadros crônicos de imunosupressão estão entre as manifestações clínicas da infecção. A infecção de fêmeas gestantes pode resultar em perdas embrionárias e fetais, como reabsorção embrionária, abortos, mumificações, malformações congênitas, natimortalidade e o nascimento de bezerros fracos e inviáveis. A infecção fetal entre os dias 40 e 120 de gestação freqüentemente resulta na produção de bezerros imunotolerantes, persistentemente, infectados (PI). Os bezerros PI constituem-se no ponto-chave da epidemiologia da infecção, pois são soronegativos, muitas vezes saudáveis e eliminam o vírus continuamente em secreções e excreções. Os isolados de campo do BVDV apresentam uma grande variabilidade antigênica, e até o presente dois grupos sorológicos distintos já foram identificados: BVDV tipos I e II. O diagnóstico da infecção pode ser realizado por detecção de vírus e/ou produtos virais em secreções, sangue e tecidos, além de exames sorológicos. O controle pode ser realizado com ou sem o uso de vacinação, dependendo do histórico clínico e virológico e do risco de introdução do agente no rebanho. Várias vacinas contendo o vírus inativado têm sido utilizadas para controlar as perdas causadas pelo BVDV no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Vírus da diarréia viral bovina, BVDV, bovinos, perdas reprodutivas. ABSTRACT BOVINE VIRAL DIARRHEA VIRUS. Bovine viral diarrhea virus (BVDV) is distributed worldwide among the cattle population and is considered the most important virus of cattle in countries free of foot and mouth disease virus. BVDV infection has been described in Brazil since the late 60s and is currently widespread among Brazilian beef and dairy cattle. The infection has been associated with several manifestations, ranging from subclinical infections to the deadly mucosal disease (MD). Respiratory, gastroenteric disease, thrombocytopenia, chronic cases of immunosupression are among the clinical manifestations of the infection. The infection of pregnant, seronegative cows may result in embryonic and fetal losses such as resorption and abortions, mummification, congenital malformations, stillbirths and the birth of weak and unviable calves. Fetal infection between days 40 and 120 of pregnancy frequently results in the production of immunotolerant, persistently infected (PI) calves. PI calves are the key to the epidemiology of BVDV infection since they are generally seronegative, frequently healthy and shed virus in large amounts in secretions and excretions. BVDV field isolates display a high antigenic variability and two major serological groups have been identified to date: BVDV types I and II. The diagnosis of the infections can be accomplished by detection of virus and/or viral products in secretions, blood and tissues, and by serological methods as well. BVDV infection may be controlled with or without the use of vaccination, depending on the epidemiological status of the herd. Several inactivated vaccines are currently in use to reduce the losses associated with BVDV infection in Brazil. KEY WORDS: Bovine viral diarrhea virus, BVDV, cattle, reproductive losses. Biológico, São Paulo, v.65, n.1/2, p.3-9, jan./dez., 2003 3 4 E.F. Flores A denominação "Diarréia Viral Bovina" abrange uma série de manifestações clínico-patológicas causadas por um agente viral denominado vírus da diarréia viral bovina (bovine viral diarrhea virus, BVDV) (BAKER, 1990). Essa denominação deve-se ao fato do agente ter sido inicialmente identificado em casos de doença gastroentérica em bovinos. Posteriormente, a infecção foi associada a uma ampla variedade de sinais clínicos, incluindo doença respiratória, digestiva, reprodutiva, hemorrágica, cutânea e imunossupressão. Embora possa estar associado a diferentes manifestações clínicas, a maioria das infecções de animais imunocompetentes pelo BVDV parece cursar sem sintomatologia clínica aparente (BAKER, 1990; BOTTON et al., 1998; FLORES et al., 1999). Pelas conseqüências epidemiológicas e clínico-patológicas da infecção de fêmeas bovinas prenhes, o BVDV é considerado um vírus de importância predominantemente reprodutiva. O BVDV pertence à família Flaviviridae, gênero Pestivirus, que ainda abriga dois outros vírus antigenicamente relacionados: o vírus da peste suína clássica (CSFV) e o vírus da doença da fronteira dos ovinos (BDV). Os pestivírus são vírus pequenos (4060 nm), envelopados e contém como genoma uma molécula de RNA, fita simples, polaridade positiva, de aproximadamente 12.5 kb. De acordo com a capacidade de produzir citopatologia em cultivos celulares, os isolados de BVDV podem ser classificados em citopatogênico (CP) e não citopatogênico (NCP). A grande maioria dos vírus de campo são NCP, enquanto amostras CP são isoladas quase que exclusivamente de animais acometidos da Doença das Mucosas (DM). Os isolados de campo apresentam uma grande variabilidade antigênica, sendo que dois grupos antigênicos principais já foram identificados: BVDV tipo I e BVDV tipo II. Os vírus do genótipo BVDV-I representam a maioria dos vírus vacinais e das cepas de referência, enquanto os BVDV-II foram identificados recentemente em surtos de BVD aguda e doença hemorrágica na América do Norte. No entanto, atualmente, sabe-se que nem todos os BVDV-II são altamente patogênicos. Nos Estados Unidos, aproximadamente 50% dos isolados de campo são BVDV-II, sendo que muitos destes são pouco patogênicos ou mesmo avirulentos. Por isso, BVDV tipo II não deve ser considerado como sinônimo de alta virulência. Os dois tipos do BVDV já foram identificados no Brasil (BOTTON et al., 1998; FLORES et al., 1999), sendo que muitos isolados brasileiros apresentam uma grande variabilidade antigênica, apresentando diferenças importantes com as cepas americanas e européias (BOTTON et al., 1998). Recentemente, o BVDV-I foi subdividido em dois subtipos (Ia e Ib) e o BVDV-II em BVDV-IIa e IIb, de acordo com diferenças genômicas e antigênicas. EPIDEMIOLOGIA O BVDV tem distribuição mundial e é considerado um dos principais patógenos de bovinos. No Brasil, vários relatos clínicos e sorológicos demonstram a presença da infecção desde o final dos anos 60. O primeiro isolamento do vírus no país, a partir do soro de um bezerro, foi realizado em 1974 no Rio Grande do Sul (VIDOR, 1979). Desde então, vários estudos soroepidemiológicos, relatos clínicos e isolamentos de vírus têm demonstrado que a infecção está amplamente difundida no rebanho bovino brasileiro (BOTTON et al., 1998; MULLER et al., 1988; OLIVEIRA et al., 1996; VIDOR, 1979). No Rio Grande do Sul foram relatados três surtos de doenças com quadro clínico-patológico compatível com a infecção pelo vírus da BVD. Em um surto em vacas em lactação, os animais apresentaram sinais clínicos e lesões semelhantes às observadas na forma tradicional de BVD, com diarréia e úlceras na mucosa oral. Nesse surto, a morbidade foi de 8,9% e a mortalidade de 1,37% (RIET-CORREA, 1983). Nos outros dois surtos, compatíveis com a forma hemorrágica, observaram-se lesões hemorrágicas nas mucosas e serosas do trato digestivo e, em alguns casos, em músculos, além de úlceras na mucosa do trato digestivo; a letalidade foi próxima a 10% (BARROS, comunicação pessoal). O BVDV-II já foi isolado de casos de animais adultos com diarréia e ulcerações na mucosa oral e intestino e de fetos normais coletados em matadouros (FLORES et al., 1999). No Brasil, já foram isolados aproximadamente 80 amostras virais até o presente, sendo que soro fetal, abortos, animais persistentemente infectados, casos clínicos digestivos têm sido as origens mais comuns de isolamento de BVDV em nosso país. A enfermidade já foi também diagnosticada em outros países do Mercosul (WEIBLEN, 1966). A situação epidemiológica atual da infecção no país ainda é pouco conhecida. Isso se deve, em parte, ao pequeno número de laboratórios que realiza o diagnóstico da infecção. Informações de veterinários de campo indicam que é provável que ocorra um maior número de casos sem diagnóstico, especialmente da forma reprodutiva. Da mesma forma, é possível que ocorra subnotificação, com grande parte dos diagnósticos sendo realizados a campo, sem confirmação laboratorial. Vários estudos sorológicos revelaram uma prevalência de anticorpos que varia entre de menos de 10% em gado de corte a mais de 70% em gado de leite. No RS, aproximadamente 35% dos bovinos e mais de 70% das propriedades já tiveram contato com o vírus. No entanto, o uso da vacinação nos últimos anos têm mascarado a atual situação da infecção, pois parte considerável dos animais sorologicamente positivos pode ser devido à vacinação. Um estudo recente detectou anticorpos contra o BVDV no leite de tarros de 1.128 rebanhos no RS (dentre Biológico, São Paulo, v.65, n.1/2, p.3-9, jan./dez., 2003 Vírus da diarréia viral bovina (BVDV). 11.171 pesquisados), indicando a ampla distribuição do vírus. A principal fonte de infecção para outros animais são os animais persistentemente infectados (PI). Estes podem ser gerados quando fêmeas prenhes são infectadas entre os dias 40 e 120 de gestação, quando a infecção fetal resulta na produção de bezerros imunotolerantes. Nos Estados Unidos, a freqüência de animais PI nos rebanhos varia entre 0,5 e 1,0%. Os bezerros PI podem ser clinicamente normais (embora sejam freqüentemente fracos e com desenvolvimento retardado) e excretam o vírus em grandes quantidades em secreções e excreções. A transmissão ocorre por contato direto (focinho-focinho, coito e mucosamucosa) ou indireto (focinho-secreções/excreções, focinho-feto abortado/placenta e contato com secreções/excreções). Transmissão através de agulhas/ material cirúrgico contaminado, luvas de palpação e por sêmen contaminado também pode ocorrer. Os animais PI representam o ponto-chave da epidemiologia da infecção pela sua importância na perpetuação e disseminação do vírus; e por isso constituem-se no alvo principal de medidas de combate ao agente. Além dos animais PI, que excretam o vírus durante toda a vida, animais que são infectados também podem excretar o vírus por alguns dias durante a infecção aguda. PATOGENIA, SINAIS CLÍNICOS E PATOLOGIA As conseqüências clínico-patológicas da infecção pelo BVDV variam principalmente de acordo com a idade e/ou categoria de animal que o vírus infecta. Para melhor compreender as várias formas da infecção, as síndromes produzidas serão divididas de acordo com essas diferentes categorias. Infecção aguda em animais não prenhes A infecção de animais imunocompetentes, após o seu nascimento é, na maioria das vezes assintomática. Eventualmente, pode cursar com quadros febris suaves, que podem passar desapercebidos. Algumas cepas de maior patogenicidade podem provocar um curto período febril, acompanhado por hipersalivação, descarga nasal, tosse e diarréia. Sinais de infecção respiratória também podem ser observados. Lesões ulcerativas na mucosa oral podem estar presentes. A enfermidade é autolimitante, cursando com alta morbidade e letalidade muito baixa ou ausente. Mortalidade considerável pode ocasionalmente ocorrer em animais jovens, principalmente, associada ao BVDVII. A infecção pode acometer todas as categorias animais, principalmente bezerros maiores de 6 meses. O BVDV é também imunossupressor, podendo predispor os animais infectados a sofrer infecções por outros agentes patogênicos. Assim, casos de enfermidade entérica ou respiratória por outros patógenos podem ser potencializados durante a infecção aguda pelo BVDV (KIRKLAND et al., 1990; WRAY & ROEDER, 1987). Enfermidade respiratória crônica, associada a diferentes bactérias, e quadros persistentes de dermatite também têm sido associados à infecção pelo BVDV em bezerros confinados. As cepas de BVDV-II têm sido freqüentemente associadas à BVD aguda, à doença respiratória severa, e algumas vezes à síndrome hemorrágica que cursa com trombocitopenia. Além de bovinos jovens, pode afetar bovinos adultos e tem alta letalidade, principalmente em animais jovens (USDA, 1994). Alguns animais morrem de forma hiperaguda. Surtos com 40% de morbidade e 10% de mortalidade, com sinais de diarréia, pirexia e agalactia em bovinos adultos foram, também, diagnosticados como BVDV-II (S W E E C K E R et al., 1983). Novamente, embora freqüentemente associados a doença severa, cepas de BVDV-II podem ser pouco ou nada virulentas, a exemplo da maioria das cepas de BVDV-I. Infecção aguda em animais prenhes e enfermidade reprodutiva Após a infecção de fêmeas prenhes, o BVDV é capaz de atravessar a placenta e infectar o feto. A infecção fetal é responsável pelos maiores impactos econômicos causados pelo vírus. As conseqüências da infecção fetal são determinadas pelo estágio de gestação em que a fêmea é infectada, pelo biotipo (CP/ NCP) e pela cepa do vírus. Como conseqüências da infecção transplacentária, podem ocorrer reabsorção embrionária (com retorno ao cio em intervalos regulares ou iregulares), abortos, mumificação fetal, natimortos, nascimento de bezerros fracos e inviáveis, que morrem em seguida ou têm crescimento retardado; ou nascimento de animais PI. A morte fetal ocorre, geralmente, até o 4º mês de gestação, mas a expulsão do feto pode ocorrer de alguns dias a meses após a infecção. Infecções após o 4º mês podem ocasionar nascimentos de bezerros fracos, mas raramente levam ao aborto. Em geral, abortos em qualquer fase de gestação podem ser atribuídos ao BVDV. A ocorrência de malformações fetais é um achado muito comum em rebanhos infectados e geralmente ocorre quando a infecção ocorre entre 100-150 dias de gestação. As malformações principais podem ser encontradas no sistema nervoso central (hipoplasia cerebelar, microcefalia, hidranencefalia, mielinização deficiente na medula espinhal) e nos olhos (atrofia ou displasia da retina, catarata, microftalmia), podendo observar-se, ainda aplasia tímica, braquignatismo, retardo de crescimento e artrogripose. Em muitos Biológico, São Paulo, v.65, n.1/2, p.3-9, jan./dez., 2003 5 6 E.F. Flores rebanhos, as malformações são os únicos achados que sugerem a presença do vírus nos rebanhos. De especial interesse epidemiológico é a infecção fetal entre os dias 40-120 da gestação por cepas NCP que gera animais PI. Os fetos que resistem à infecção freqüentemente se tornam imunotolerantes ao vírus. Podem nascer e se desenvolver normalmente, apesar de alguns nascerem fracos e morrerem nos primeiros dias de vida. Os animais PI permanecem portadores do vírus por toda a vida e geralmente não apresentam anticorpos contra o vírus. Por isso, são dificilmente detectados por métodos sorológicos. Alguns animais PI, no entanto, podem possuir títulos baixos de anticorpos, principalmente, se infectados com amostras heterólogas de vírus. A infecção destes animais PI por cepas citopatogênicas, originadas por mutações do vírus original ou por vírus proveniente de outros animais, determina o aparecimento da doença das mucosas (DM). A DM geralmente afeta animais entre os 6 meses e 2 anos de idade. Em fêmeas infectadas nos dias que antecedem, ou nos primeiros dias após a cobertura, pode ocorrer infertilidade com repetição de cio (WHITMORE et al., 1996). Essas alterações, no entanto, são passageiras e o animal volta a ciclar e conceber em serviços posteriores. Em touros, tanto na infecção aguda quanto na infecção persistente, podem ocorrer alterações na qualidade do sêmen, caracterizadas por diminuição na motilidade e anomalias morfológicas (REVELLI et al., 1988). Animais PI e doença das mucosas (DM) Estima-se que entre 2 e 5% dos fetos infectados no útero pelo BVDV permanece infectado persistentemente (PI, imunotolerante ao vírus). Alguns destes animais podem ter uma vida normal, com desenvolvimento corporal pleno e capazes de exercer suas funções reprodutivas normalmente. A maioria, no entanto, pode apresentar retardo de crescimento e morte precoce e alterações reprodutivas. Nos PI que atingem a idade reprodutiva, as fêmeas podem apresentar perdas embrionárias e fetais, e os machos podem apresentar alteração na qualidade do sêmen. No entanto, a maioria dos bezerros PI desenvolve um quadro clínico severo, denominado de doença das mucosas (DM) e morre antes dos 2 anos de idade. A DM é a forma mais grave da infecção pelo BVDV. Ela ocorre em animais persistentemente infectados (infectados intrauterinamente e que nascem portadores) que são sobre-infectados por cepas citopatogênicas. A origem destas cepas citopatogênicas é questionada, mas parece que elas são originadas por mutações nas cepas não-citopatogênicas que provocaram a infecção persistente, ou seja, elas teriam uma origem endógena (H AWARD et al ., 1987). Infecção com cepas não- citopatogênicas derivadas de outros animais, e antigenicamente semelhantes ao vírus original, também tem sido relatada. A DM ocorre com baixa morbidade, em torno de 1 e 2% do rebanho e altíssima letalidade (próximo de 100%). Ocorre com maior freqüência em bovinos com 6 meses a dois anos e geralmente tem um curso agudo, embora casos crônicos já tenham sido descritos. Na forma aguda, a enfermidade se caracteriza por febre (40-41º C), salivação, descarga nasal e ocular, diarréia profusa hemorrágica, desidratação, depressão e morte. Laminite e coronite podem ser vistas. Os animais afetados apresentam severa leucopenia. Na necropsia observam-se úlceras e erosões em toda a mucosa do trato digestivo. No esôfago, essas lesões apresentam-se no sentido longitudinal com aspecto de "arranhão de gato". As papilas ruminais apresentam-se diminuídas de tamanho. O conteúdo intestinal é escuro e aquoso e observa-se enterite catarral ou hemorrágica. As placas de Peyer estão edematosas, hemorrágicas e necróticas. Histologicamente, observam-se necrose das placas de Peyer, dos centros germinativos do baço e linfonodos, e edema, degeneração balonosa, necrose e infiltrado inflamatório nas mucosas do trato digestivo. A BVD aguda, causada principalmente por BVDV-II apresenta-se clinicamente muito semelhante à DM. No entanto, diferencia-se pelos seguintes aspectos: a DM geralmente afeta um ou poucos animais, e ocorre somente em animais persistentemente infectados. Na DM, podem ser detectados os dois biotipos do vírus, o citopatogênico e o não-citopatogênico. A BVD aguda pelo BVDV-II geralmente acomete vários animais do rebanho, e nesses casos apenas a cepa nãocitopatogênica é detectada. Então, o isolamento de BVDV citopatogênico pode ser considerado um marcador da DM. Na forma crônica, menos comum, os sinais clínicos são inespecíficos. Observa-se inapetência, perda de peso e apatia progressiva. A diarréia pode ser contínua ou intermitente. Algumas vezes, há descarga nasal e descarga ocular persistente. Áreas alopécicas e de hiperqueratinização podem aparecer, geralmente, no pescoço. Lesões erosivas crônicas podem ser vistas na mucosa oral e na pele. Laminite, necrose interdigital e deformação do casco podem também ocorrer. Esses animais podem sobreviver por muitos meses e geralmente morrem após debilitação progressiva. DIAGNÓSTICO Deve-se suspeitar de infecção pelo BVDV sempre que houver perdas embrionárias, abortos, malformações fetais, nascimento de animais fracos, morte perinatal. Além disso, casos de doença entérica Biológico, São Paulo, v.65, n.1/2, p.3-9, jan./dez., 2003 Vírus da diarréia viral bovina (BVDV). e/ou respiratória com componentes hemorrágicos (melena, petéquias em mucosas, serosas etc), além de erosões e ulcerações no trato digestivo também são sugestivos da infecção pelo BVDV. Estas manifestações podem ocorrer isoladamente, mas a ocorrência das diferentes formas, em forma insidiosa e simultânea, é indicativa da ocorrência da enfermidade. Essas manifestações ocorrem principalmente, mas não exclusivamente em animais jovens. Bezerros fracos, com crescimento retardado e predisposição a outras enfermidades devem ser considerados potencialmente suspeitos de serem animais PI. Os casos de DM caracterizam-se pela alta letalidade, baixa morbidade e por lesões erosivas nas mucosas digestivas. Esta enfermidade faz parte do complexo de doenças vesiculares e erosivas, necessitando diagnóstico diferencial especialmente de febre aftosa. É necessário realizar o diagnóstico diferencial da forma trombocitopênica de outras enfermidades hemorrágicas como a intoxicação aguda por Pteridium aquilinum. Os materiais de eleição para o diagnóstico da infecção pelo vírus da BVD devem ser: sangue com anticoagulante (para detecção de animais PI ou de animais na infecção aguda), soro (preferencialmente pareado), órgãos (baço, timo, intestino e linfonodos), fetos e envoltórios fetais (placenta e placentomas), além de órgãos ou tecidos com lesões macroscópicas. Para o isolamento viral, os órgãos ou tecidos devem ser remetidos em gelo; para histopatologia, fragmentos dos tecidos com lesões devem ser conservados em formalina à 10%. No caso de animais doentes suspeitos, o sangue com anticoagulante é o material preferencial. O teste padrão de diagnóstico é o isolamento do agente em cultivos celulares seguido por identificação por imunofluorescência (IFA) e/ou imunoperoxidase (IPX). Células de origem bovina, particularmente as primárias, são bastante sensíveis ao vírus. O sangue (especialmente os leucócitos) de animais infectados de forma aguda ou persistente é muito rico em vírus. Para este fim, o material precisa ser coletado de forma asséptica, pois a contaminação bacteriana pode inviabilizar o isolamento. Devido a possibilidade da presença de cepas não-citopatogênicas, todos os materiais que forem negativos para efeito citopático nos cultivos celulares, precisam ser testados por métodos que demonstrem a presença de antígenos viraisl antes de serem diagnosticados como negativos. Os métodos mais utilizados neste caso são a IFA e IPX. Além do isolamento, antígenos virais podem ser demonstrados em tecidos (fetos abortados, placentomas, fragmentos de tecidos coletados na necropsia) por IFA e IPX. Um teste de ELISA de captura de antígeno, destinado a detectar proteínas virais no soro de animais PI que apresenta boa especificidade e sensibilidade, e pode ser realizado facilmente em um grande número de amostras (BOLIN, 1995). Biópsias de pele (coletadas na orelha) para a detecção de antígenos virais por IPX ou ELISA têm sido utilizadas recentemente na América do Norte para a triagem e detecção de animais PI. Isolamento do vírus ou detecção de RNA viral por PCR no leite têm sido utilizados para identificar rebanhos leiteiros infectados. O diagnóstico sorológico geralmente é realizado pela técnica de soroneutralização (SN) ou ELISA. A identificação de soropositividade de um animal indica apenas exposição prévia ao agente. Animais infectados de forma aguda, soroconvertem 14-20 dias após a infecção inicial. Nestes animais a sorologia pareada, ou seja, a coleta de soro no momento da suspeita clínica e uma segunda coleta 15-20 dias após pode indicar a infecção pelo vírus. A elevação dos títulos de anticorpos em pelo menos 4 vezes indica que o animal estava infectado pelo vírus no momento da primeira coleta. Animais PI geralmente não apresentam anticorpos no soro já que não são capazes de responder imunologicamente ao vírus. A sorologia, com amostras únicas, não pareadas, tem valor diagnóstico limitado nas infecções pelo BVDV, pois indica apenas que houve exposição prévia. Exames sorológicos de rebanhos, devido à prática de vacinação, têm valor epidemiológico limitado, e servem unicamente para verificar-se o status sorológico e a possível presença do vírus no rebanho. A detecção e quantificação de anticorpos em amostras de leite coletadas de tarros nos locais de coleta ou na indústria tem sido utilizada para a identificação de rebanhos com atividade viral. CONTROLE E PROFILAXIA O controle da infeccão pelo BVD pode ser efetuado com ou sem vacinação. Controle com vacinação Indicado para rebanhos com alta rotatividade de animais, rebanhos com sorologia positiva, com histórico de doença clínica ou reprodutiva compatível e com confirmação virológica de BVDV. Também é indicado para propriedades de terminação de novilhos, onde novilhos de várias procedências são colocados juntos. Rebanhos leiteiros com constante a nexação de animais, troca de reprodutores, etc. Também podem ser aconselhados a fazer vacinação. No Brasil, todas as vacinas para o BVDV disponíveis atualmente são inativadas, com adjuvante oleoso ou hidróxido de alumínio. Geralmente, essas vacinas são associadas a vacinas para outros agentes infecciosos como o herpesvírus bovino-1, vírus da Parainfluenza-3 e vírus respiratório sincicial (BRSV). Vacinas Biológico, São Paulo, v.65, n.1/2, p.3-9, jan./dez., 2003 7 8 E.F. Flores inativadas geralmente induzem resposta sorológica moderada e de curta duração. Por isso, para uma resposta adequada são aconselhadas revacinações periódicas. A vacinação deve seguir o esquema indicado pelos fabricantes. Geralmente, os bezerros são vacinados aos 4-6 meses e revacinados 30 a 40 dias após. Alguns animais podem ainda possuir anticorpos maternos nessa idade. Assim, é recomendada uma revacinação aos 8-12 meses. Revacinações a cada 6-12 meses devem ser realizadas para manutenção da imunidade. Não há um esquema ideal, porém, um mínimo de uma dose anual é necessária. No caso das fêmeas, recomenda-se revacinação previamente à temporada de monta (2-3 semanas antes da cobertura). As vacinas oleosas devem requerer menor número de revacinações, porém, não há dados sobre o esquema de vacinação a utilizar. Para aumentar a amplitude antigênica da imunização, recomenda-se utilizar vacinas com cepas regionais ou a rotação de vacinas produzidas a partir de diferentes cepas (BOLIN, 1995). Do ponto de vista prático, poder-se-ia fazer a primovacinação com uma determinada vacina e revacinações com vacinas de outros fabricantes. Vacinas produzidas com cepas tipo I em geral induzem proteção parcial ou incompleta contra cepas de BVDV-II. No Brasil, atualmente só uma vacina contém o BVDV-II, embora existam cepas de BVDV-II circulando na população bovina. Recentemente, alguns laboratórios estão tentando licenciar vacinas contendo os dois genótipos (BVDV-I e II) no país. Como regra geral, as vacinas contra o BVDV podem induzir boa proteção contra a doença clínica, mas são usualmente ineficazes em proteger os fetos de infecção transplacentária. Em recente estudo realizado no Setor de Virologia da UFSM, foram testadas três vacinas comerciais contra o BVDV. Todas elas induziram títulos baixos a moderados de anticorpos, e em apenas uma parcela dos animais. Os títulos foram menores e menos freqüentes contra o BVDV-II. Esses resultados questionam sobre a eficácia dessas vacinas. Da mesma forma, nenhuma dessas vacinas foi capaz de proteger fetos ovinos frente a inoculação experimental. Embora ainda não estejam licenciadas no Brasil, as vacinas com vírus vivo modificado são mais eficazes na indução de proteção. No SV/UFSM, foi desenvolvida uma vacina experimental com cepas brasileiras de BVDV-I e BVDV-II. Essa vacina induziu títulos altos de anticorpos em todos os animais vacinados e foi capaz de proteger os fetos de infecção transplacentária. Portanto, a tendência é a de que as vacinas com vírus vivo modificado, há décadas em uso nos Estados Unidos, eventualmente venham a ser licenciadas no Brasil. Enfatizando novamente: controle com vacinação deve ser usado em rebanhos em que haja risco real de introdução do agente, ou em que o agente já tenha se manifestado. Nesses casos, deve-se seguir estritamente as instruções do fabricante em relação à dose, via de aplicação e intervalos para revacinações. Controle sem vacinação É indicado para rebanhos fechados, sem o ingresso freqüente de animais. Rebanhos extensivos de gado de corte geralmente enquadram-se nessa categoria. Também indicado para rebanhos cujos parâmetros reprodutivos e clínicos não registrem eventos sugestivos da infecção pelo BVDV. Rebanhos com sorologia negativa, e cujo ingresso de animais seja raro ou eventual também não correm grande risco de introdução do agente. Nesses casos, pode-se utilizar o controle sem vacinação, que objetiva manter o status negativo do rebanho. Nesses rebanhos (sem animais PI, sem sorologia, sem sinais clínicos e reprodutivos sugestivos do BVDV) e que se deseje evitar a introdução da infecção sem vacinação, recomenda-se testar para vírus todo e qualquer animal antes de ingressar na propriedade. Através dessa medida, podem-se manter rebanhos livres da infecção, pois a principal forma de introdução da infecção é através de animais infectados (na fase aguda ou persistente). Vacas prenhes e bezerros devem ser especialmente testados, pois representam importantes formas de introdução de vírus nos rebanhos. Em rebanhos suspeitos de possuírem animais PI, ou com histórico de casos clínicos suspeitos de BVDV, o controle baseia-se na detecção e eliminação dos animais infectados persistentes (PI). Diversos métodos têm sido descritos para identificação dos animais PI, entre eles o mais utilizado é o isolamento do vírus em cultivo celular. Considera-se o animal persistentemente infectado quando se obtém o isolamento viral a partir de duas coletas de sangue separadas, no mínimo, por 3 semanas. Para isso, deve-se enviar sangue com anticoagulante para o diagnóstico. Uma vez identificados esses animais devem ser descartados, pois são as fontes de infecção. Deve-se suspeitar da existência de animais PI em rebanhos cujos problemas reprodutivos e clínicos compatíveis com o BVDV sejam freqüentes e após a confirmação laboratorial. Nesses rebanhos, todos os animais com idade entre 6 meses e 2 anos devem ser testados para a presença de vírus. Outras técnicas, como PCR, ELISA de captura, e imunohistoquímica em biópsias de pele estão sendo desenvolvidas para facilitar e baratear a identificação de animais infectados persistentemente. Biológico, São Paulo, v.65, n.1/2, p.3-9, jan./dez., 2003 Vírus da diarréia viral bovina (BVDV). Em resumo, o controle da infecção baseia-se na vacinação (nos casos recomendados), procurando-se manter níveis altos de anticorpos; em medidas de prevenção para impedir a entrada de animais infectados em rebanhos livres; e na identificação e remoção de animais PI (em rebanhos que possuam esses animais). Em qualquer caso, a decisão de vacinar ou não deve ser muito criteriosa, devido ao custo e à eficácia questionável das vacinas. Em grande parte dos casos, um bom controle sem vacinação pode manter a propriedade livre da infecção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BA K E R , J.C. 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