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Cetoacidose Diabética e Estado
Hiperosmolar Não-cetótico
Josivan Gomes de Lima
Lúcia Helena Coelho Nóbrega
Apesar de apresentarem patogêneses semelhantes, cetoacidose diabética (CAD) e estado hiperosmolar não-cetótico (EHNC) serão descritos, para
fins didáticos, separadamente.
FATORES PRECIPITANTES: REGRA
DOS IS (FIG. 14.2)
Cetoacidose diabética é uma complicação aguda relativamente freqüente e grave quando não
conduzida adequadamente. Tem prevalência elevada
principalmente em pacientes mais jovens, os quais
podem iniciar o quadro clínico de diabetes já com
episódio de CAD. Só após o início do uso clínico
da insulina (1922) é que a mortalidade, que era de
100%, decaiu para 29% (1932) e, posteriormente,
para 5% (1960).
Habitualmente, fatores extrínsecos que levam à
deficiência absoluta ou relativa de insulina desencadeiam a CAD. A determinação de tais fatores é
importante para que se possa corrigi-los, evitando
assim a perpetuação do quadro de cetose. No jovem, início de diabetes e a dose insuficiente de insulina são os fatores mais freqüentes, enquanto que
no paciente adulto ou idoso eventos intercorrentes
como infarto agudo do miocárdio, acidente vascular
cerebral e infecções, são mais freqüentes.
Outros fatores não citados são: traumas, uso de
medicações como corticóides, cirurgias, queimaduras, além de outras endocrinopatias como síndrome
de Cushing.
Fig. 14.1 — Cetoacidose diabética: introdução.
Fig. 14.2 — Fatores precipitantes: regra dos Is.
INTRODUÇÃO (FIG. 14.1)
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PATOGÊNESE
I NSULINA X
(FIG. 14.3)
HORMÔNIOS CONTRA -REGULADORES
Normalmente existe um equilíbrio entre as ações
da insulina e dos hormônios contra-reguladores, principalmente o glucagon. Os fatores precipitantes
descritos anteriormente desencadeiam uma deficiência absoluta (por exemplo, dose insuficiente) ou
relativa (por exemplo, elevação de hormônios contra-insulínicos) de insulina, levando assim a um
desequilíbrio nas ações destes hormônios, tendendo
então à hiperglicemia (glicogenólise e gliconeogênese)
e cetogênese (lipólise). Pacientes diabéticos devido
à pancreatectomia têm menor predisposição a desenvolver CAD mostrando a importância dos hormônios contra-reguladores (glucagon) na patogênese
da CAD.
Fig. 14.4 — Patogênese da CAD: hiperglicemia e cetonemia.
Ag = ácidos graxos.
levando a um agravamento da hiperglicemia e da
cetonemia; a melhora do quadro com a simples
reidratação do paciente confirma tal assertiva.
CETOGÊNESE (FIG. 14.5)
Fig. 14.3 — Patogênese da CAD: insulina e hormônios contrareguladores.
A carnitina palmitil acil transferase 1 (CPT1) é
a enzima passo limitante na cetogênese. Na pessoa
normal, a insulina estimula a ação da malonil coenzima
A e, na presença desta coenzima há uma diminuição da CPT1, impedindo assim o desvio desta via
para a produção de cetonas. A ausência da insulina, entretanto, induz a uma diminuição da malonil
coenzima A, potencializando, via CPT1, a cetogênese.
Três corpos cetônicos principais são formados:
acetoacetato, b-hidroxibutirato, em maiores concentrações e a acetona; esta é mais volátil e origina o
hálito cetônico.
HIPERGLICEMIA E CETONEMIA (FIG. 14.4)
Tanto a hiperglicemia quanto a cetonemia têm,
basicamente, nas suas gêneses, mecanismos semelhantes: o déficit de insulina, além de aumentar a
produção de glicose (através da quebra do glicogênio
acumulado e da gliconeogênese hepática) e de cetonas
(utilizando substratos provenientes da lipólise), diminui suas utilizações periféricas. A glicosúria e a
cetonúria são, até certo ponto, mecanismos de defesa do organismo para evitar o acúmulo destas
substâncias no sangue. Porém, uma vez instalada a
desidratação, há uma diminuição da perfusão renal,
Fig. 14.5 — Patogênese da CAD: cetogênese.
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SUMÁRIO (FIG . 14.6)
A deficiência de insulina e o excesso dos hormônios contra-insulínicos estimulam a lipólise via lipase
hormônio sensível; originam-se ácidos graxos livres
que devido à insulinopenia não são reesterificados
como era de se esperar, mas são utilizados como
substrato para gliconeogênese e cetogênese hepáticas. Através da b-oxidação há formação de cetonas
e de VLDL. Este, em elevadas concentrações, dá
aspecto leitoso ao soro e pode causar lipemia retinal.
No músculo, há proteinólise com liberação de
aminoácidos que também servem de substrato para
a síntese de glicose hepática e também há uma
significante diminuição da captação de glicose, contribuindo para a hiperglicemia.
No nível renal, a glicosúria causa uma diurese
osmótica e a cetonúria leva a perda de bases, contribuindo então para a desidratação e a acidose.
Fig. 14.6 — Patogênese da CAD: sumário.
Fig. 14.7 — Quadro clínico.
eletrólitos. Pneumonia e derrame pleural podem não
ser evidentes até que se hidrate o paciente.
A dor abdominal, quando presente, pode ser confundida com um quadro de abdome agudo cirúrgico, principalmente se coexistem leucocitose e
hiperamilasemia. A melhora relativamente rápida
depois de estabelecido o tratamento clínico afasta
esta possibilidade e faz o diagnóstico diferencial.
O diagnóstico clínico em pacientes idosos pode
ser difícil: a respiração de Kussmaul pode ser confundida com sinal de insuficiência cardíaca; a poliúria
pode estar ausente devido a nefropatia e a alteração no nível de consciência pode ser atribuída à
própria idade.
Coma só ocorrerá se a osmolaridade plasmática
for maior que 330 ou 340mOsm/L, de modo que, na
ausência de hiperosmolaridade, outras causas como
meningite e AVC devem ser investigadas. O pH não
tem nenhuma relação com o estado mental do paciente.
QUADRO CLÍNICO (FIG. 14.7)
DIAGNÓSTICO
Ao contrário da hipoglicemia, a CAD tem início
mais insidioso, sendo geralmente precedida por um
ou mais dias de sintomatologia de descompensação
diabética como poliúria, polidipsia, astenia e náuseas.
A desidratação é inicialmente intracelular, podendo
os sinais clínicos só aparecer em estágios mais avançados. A polidipsia é um mecanismo de defesa através
do qual o organismo tenta manter uma hidratação
admissível, porém tal mecanismo é perdido à medida que o paciente apresenta vômitos, o que, além
de piorar a desidratação, piora também a perda de
AVALIAÇÃO
INICIAL
(FIG . 14.8)
A anamnese muitas vezes não é possível devido
à desorientação do paciente; nestes casos, deve-se
procurar informações com os acompanhantes: início do quadro, sinais de descompensação e fatores
precipitantes devem ser investigados. Leucocitose
com desvio à esquerda decorre da hemodiluição,
porém valores maiores que 25.000/ml podem indicar a presença de infecção.
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loca água para o plasma, levando a uma pseudohiponatremia.
Sempre durante o curso da CAD existe um déficit total de potássio, pelos seguintes mecanismos:
(1) com a acidose há uma troca do K + intracelular
pelo H + extracelular na tentativa de compensar a
acidose; (2) o K + normalmente entra na célula, por
estímulo da insulina, juntamente com a glicose e a
insulinopenia dificulta tal ação; (3) o acúmulo do
K + no extracelular leva à perda renal no néfron
distal; (4) a depleção de água e sódio estimula a
aldosterona induzindo um hiperaldosteronismo secundário que retém sódio e libera potássio no nível renal.
Fig. 14.8 — Avaliação inicial.
O eletrocardiograma (ECG) é útil para afastar
ou confirmar isquemia/infarto silencioso, bem como
para avaliação inicial da potassemia (até que se
tenham as primeiras medidas sangüíneas). Radiografia
de tórax, culturas e análise do líquor são usadas na
investigação de infecções.
AVALIAÇÃO
LABORATORIAL
(FIG . 14.9)
Inicialmente a hiperglicemia exerce ação osmótica
e atrai água do intracelular para o extracelular, diluindo as concentrações de sódio, de modo que suas
determinações devem ser corrigidas de acordo com
a glicemia. A glicosúria, através da diurese osmótica
e conseqüente perda urinária de sódio e água, também contribui para a alteração na natremia. A
hiperlipidemia, que já é evidente através da inspeção macroscópica da amostra do soro, também des-
Fig. 14.9 — Avaliação laboratorial.
DIAGNÓSTICO
DIFERENCIAL
(FIG . 14.10)
Apesar da tríade clássica (hiperglicemia, cetose,
acidose) habitualmente estar presente, qualquer um
deles pode estar ausente sem, no entanto, invalidar
o diagnóstico.
Uma hidratação adequada, elevada taxa de filtração glomerular (TFG) ou uso de dose insuficiente insulina (apenas suficiente para diminuir a glicemia,
mas não a cetogênese) são compatíveis com CAD
com níveis glicêmicos pouco elevados ou normais.
A perda de H + induzida por vômitos intensos, pelo
uso de diuréticos ou em pacientes com hiperaldosteronismo primário ou síndrome de Cushing, quando o sódio é reabsorvido no nível renal em troca do
K + e do H +, podem causar CAD com alcalose.
Habitualmente, a relação acetoacetato: b-OH
butirato é de 1:5, porém quando há hipoxemia tissular,
esta relação aumenta para 1:20 e como o método
Fig. 14.10 — Diagnóstico diferencial.
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do nitroprussiato para dosagem de cetonas não detecta b-OH butirato, valores falsamente baixos de
cetonas são obtidos.
TRATAMENTO
H IDRATAÇÃO (FIG . 14.11)
Apesar da grande maioria dos médicos se preocupar basicamente com a hiperglicemia, ela não é
o fator primordial e nem deve ser diminuída rapidamente devido ao risco de edema cerebral. A prioridade inicial é a hidratação adequada que pode, por
si só, já causar uma diminuição significativa da
glicemia devido ao fator diluicional (diminui glicose
e hormônios contra-reguladores) e ao aumento da
TFG (aumenta glicosúria).
REPOSIÇÕES (F IG. 14.12)
Insulina
Na fase aguda deve-se evitar a via subcutânea
(SC) para a administração de insulina devido à absorção errática. Se não houver bomba de infusão disponível, utilizar via intramuscular (IM). A insulina
administrada intravenosa (IV) tem meia vida curta
(5-10 minutos), de modo que, após o controle do
quadro, a insulina venosa só deve ser suspensa uma
a duas horas após a administração da insulina subcutânea.
A meta é diminuir em torno de 10% da glicemia
na primeira hora. Caso tal resultado não seja alcançado, deve-se dobrar a dose administrada inicialmente, bem como afastar a possibilidade de
infecção como fator precipitante e agravante da
hiperglicemia. Por outro lado, uma queda na glicemia
maior que 100mg%/hora aumenta o risco de
hipoglicemia e edema cerebral, devendo ser evitada. Pacientes idosos geralmente precisam de doses menores.
Potássio
Fig. 14.11 — Tratamento: hidratação. G = glicose; SG = soro
glicosado; SF = soro fisiológico.
O potássio geralmente diminui já nas primeiras horas de tratamento, pois entra na célula juntamente com a glicose induzida pela insulina, assim como também pela expansão do volume
extracelular com a hidratação. No entanto, só deve
ser administrado se o paciente tem adequada
diurese.
A osmolaridade plasmática pode ser obtida indiretamente a partir dos valores do sódio, glicose e
uréia; valores maiores que 340 mOsm/l ou natremia
corrigida>140 mEq/l indicam desidratação importante
(quanto mais elevada a natremia, maior a desidratação). Se a natremia estiver elevada (>150 mEq/
l), deve-se trocar o soro fisiológico isotônico para
hipotônico.
Quando a glicemia atingir níveis menores que
250mg/dl, deve-se adicionar soro glicosilado (1U de
insulina queima aproximadamente 3g de glicose) para
permitir a continuação da infusão da insulina a fim
de diminuir a cetogênese, mas também para evitar
o aparecimento de edema cerebral.
Fig. 14.12 — Tratamento: reposições.
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Bicarbonato
O bicarbonato parece ter mais desvantagens que
vantagens, não melhorando a recuperação do paciente e nem o seu prognóstico. Seu uso, portanto, está
reservado aos casos de acidose severa com pH menor
que 7,0.
Estudos randomizados também não mostram benefício na reposição de fosfato. Possíveis indicações
para sua administração seriam anemia, insuficiência cardíaca, pneumonia e fosfatemia < 1mg/dl, já
que a hipofosfatemia pode causar anemia hemolítica,
insuficiência respiratória e disfunção cardíaca.
COMPLICAÇÕES (FIG. 14.13)
O edema cerebral, apesar de raro (acomete 0,7
a 1% das crianças, e é mais raro ainda em adultos), tem elevada mortalidade que chega a 80%. Deve
ser suspeitado se o estado mental piora quando
deveria melhorar ou quando há sinais de alterações
neurológicas. A tomografia computadorizada confirma
o diagnóstico e o tratamento deve ser feito com
manitol, entubação e hiperventilação.
Dispnéia súbita, hipoxemia e infiltrado pulmonar
difuso caracteriza o quadro de Síndrome da angústia respiratória do adulto (SARA). Edema pulmonar
ocorre mais comumente em idosos e/ou com doença cardíaca.
A desidratação e o aumento da viscosidade e da
coagulabilidade sangüínea predispõem à trombose e
deve-se considerar heparinização profilática principalmente em pacientes acima de 50 anos.
Mucormicose (infecção fúngica) cursa com dor
facial, secreção nasal sanguinolenta, edema de órbita e comprometimento da visão. Anfotericina B é
o tratamento de escolha.
ESTADO HIPEROSMOLAR NÃO
CETÓTICO (EHNC) (FIG. 14.14)
Acomete muito mais freqüentemente pacientes
idosos acima de 60 anos; um dos fatores agravantes é a perda da percepção da sede que permite a
instalação mais rápida da desidratação pela diurese
osmótica com perda de até 25% do peso corporal.
A fisiopatologia é semelhante a da CAD. No entanto, há maiores concentrações de insulina na veia
porta, menos hormônios contra-insulínicos e menos
ácidos graxos livres, pois a hiperosmolaridade suprime a lipólise. Dessa forma, não ocorre cetogênese
hepática.
Devido ao déficit moderado de insulina, o início
do quadro clínico é mais lento que na CAD. Alterações neurológicas como convulsões, hemiparesia,
hemianopsia, nistagmo, sinal de Babinski etc. podem
estar presentes. Deve haver elevado grau de suspeição para se fazer o diagnóstico precoce.
Fig. 14.14 — Estado hiperosmolar não-cetótico (EHNC).
DIFERENÇAS ENTRE CAD E EHNC (FIG. 14.15)
Fig. 14.13 — Complicações.
As peculiaridades da CAD e do EHNC podem
ser vistas neste slide. O tratamento não difere muito
entre eles, porém no EHNC geralmente a necessidade de insulina é menor e, como são pacientes idosos,
necessita-se de heparinização. A reidratação tam-
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bém deve ser menos intensa e feita com cautela
devido à possibilidade de doença cardíaca e/ou renal nestes pacientes.
LITERATURA RECOMENDADA
Fig. 14.15 — Diferenças entre CAD e EHNC.
1.
Lebovitz HE. Diabetic ketoacidosis. Lancet 345:767-772, 1995.
2.
Kitabchi AE, Wall BM. Cetoacidose diabética. Clínicas Médicas da América do Norte (1): 9-36, 1995.
3.
Butkiewcz EK et al. Insulin therapy for diabetic ketoacidosis.
Diabetes Care 18(8):1187:1190, 1995.
4.
Matz R. Management of hyperosmolar hyperglycemic
syndrome. Am Fam Physician 60:1468-76, 1999.
5.
Balasubramanyam A et al. New Profiles of Diabetic
Ketoacidosis. Arch Intern Med. 159:2317-2322, 1999.
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