VERBO LEVE-NOME DERIVADO

Propaganda
1858
PREDICADOS COMPLEXOS DO TIPO <VERBO LEVE-NOME DERIVADO>:
UMA ANÁLISE BASEADA EM CORPORA*
Inês Duarte – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-CLUL
Madalena Colaço – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-CLUL
Anabela Gonçalves – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-CLUL
Amália Mendes – CLUL
Matilde Miguel – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-CLUL
0 Introdução
Na literatura sobre predicados complexos, assume-se a existência de um subtipo que envolve a
presença de um verbo leve e de um nome. A definição formal deste tipo de predicados complexos
depende do modo como os verbos leves são entendidos. De acordo com alguns autores (Gross 1981;
Grimshaw & Mester 1988), os verbos leves são elementos funcionais, semanticamente deficitários,
funcionando sobretudo como hospedeiros dos traços de tempo e concordância. Noutras abordagens
(Hook 1974; Abeillé, Godard & Sag 1998), os verbos leves são classificados como auxiliares, uma vez
que não têm propriedades de selecção semântica. Finalmente, autores como Samek-Ludovici (2003),
entre outros, rejeitam a classificação destes verbos como itens funcionais ou auxiliares, considerando
que se trata de verbos com uma estrutura plenamente especificada para o argumento externo,
correspondendo o argumento interno a uma variável não especificada.
Para além de não existir unanimidade na classificação dos verbos leves, também a forma como
se considera que o verbo leve e o nome derivado contribuem para a selecção de argumentos e de
funções temáticas tem sido alvo de propostas diversas. Assim, ou se considera que existe transferência
de argumentos (argument transfer, Grimshaw & Mester 1988), ou unificação de argumentos
(argument unification, Butt, 1995) ou, ainda, combinação de Estrutura Conceptual Lexical, conjugada
com transferência de argumentos (Samek-Ludovici, 2003).
Neste trabalho, centramo-nos nas construções com predicados complexos do Português europeu
(PE) que envolvem um verbo leve e um nome deverbal, como em (1), e numa subclasse desta
construção, com verbo leve e nome deverbal psicológico (isto é, um nome que denota uma emoção ou
sentimento), como em (2):
(1) A Maria deu um passeio com o Paulo.
(2) A Maria tem receio de trovoadas.
[Predicado complexo: dar um passeio]
[Predicado complexo: ter receio]
As nossas questões centrais são as seguintes:
(i)
Que tipo de propriedades – aspectuais, semânticas e/ou sintácticas – subjazem à relação entre o
verbo e o nome?
(ii) Existe uma relação sistemática entre as propriedades de selecção categorial e semântica do
verbo e as do nome?
(iii) De que forma a estrutura argumental do verbo leve e a do nome derivado contribuem para a
caracterização do predicado complexo e como se combinam?
Defenderemos que em PE tanto o verbo leve como o nome derivado contribuem para as
propriedades do predicado complexo, pelo que a estrutura argumental e a atribuição de papéis
temáticos são determinadas simultaneamente pelos dois constituintes, através da combinação das suas
estruturas temáticas (cf. Grimshaw & Mester 1988; Butt 1995; Samek-Ludovici 2003; Duarte,
Gonçalves & Miguel 2006, entre outros).
A análise deste tipo de predicados complexos baseia-se em dados de PE do Corpus de
Referência do Português Contemporâneo (CRPC), compilado pelo grupo RePort do CLUL e que
contém actualmente cerca de 350 milhões de palavras de diferentes registos e variedades. Um
1859
subcorpus do CRPC de 1 milhão de palavras anotadas morfologicamente, o Corpus CINTIL1, também
serviu de base às pesquisas e possibilitou a procura de sequências sintácticas específicas e produtivas
em termos de predicados complexos. Pretende-se ainda completar a anotação morfológica de uma
parte deste corpus de 1 milhão, etiquetando os predicados complexos que nela ocorrem de acordo com
a tipologia entretanto desenvolvida. O estudo destes dados será crucial para uma definição de verbo
leve e de predicado complexo.
1
A noção de verbo leve
1.1. Verbos leves como predicadores
O termo verbo leve aparece, de forma consistente, em Jespersen (1909/1949), que define este
tipo de verbos como um elemento meramente funcional, isto é, que ocorre na frase apenas como forma
de fornecer as marcas de tempo e de concordância tipicamente associadas às formas verbais. Esta
perspectiva, posteriormente defendida em Gross (1981), Cattell (1984) e Grimshaw & Mester (1988),
entre outros, coloca pelo menos dois problemas (cf. Duarte, Gonçalves e Miguel 2006): em primeiro
lugar, não tem em conta o facto de os verbos leves poderem exibir uma estrutura argumental idêntica à
dos verbos plenos homónimos, ou seja, seleccionarem o mesmo número de argumentos que estes
últimos:
(3)
(4)
a. O Pedro deu um empurrão à Maria.
b. Foi um empurrão que o Pedro deu à Maria.
c. Foi à Maria que o Pedro deu um empurrão.
a. Aquele aluno dá preocupações ao professor.
b. São preocupações que aquele aluno dá ao professor.
c. É ao professor que aquele aluno dá preocupações.
O segundo contra-argumento à abordagem estritamente funcional dos verbos leves consiste no
facto de, em contextos em que o verbo leve é ditransitivo, a preposição que introduz o segundo
argumento interno poder corresponder à que se encontra especificada na grelha temática do verbo
pleno homónimo, podendo não coincidir com a preposição que introduz o argumento interno do nome
deverbal:
(5)
a. Aquilo já não era o que dá prestígio à/*da fundação
b. o prestígio *à/da fundação
Autores como Hook (1974) e Abeillé, Godard & Sag (1998) caracterizam os verbos leves como
auxiliares. Distanciando-se da perspectiva meramente funcional de Jespersen, estes autores continuam,
no entanto, a recusar o estatuto de predicador aos verbos leves. Com efeito, consideram que a única
função deste tipo de verbos é a de fornecer informação estritamente aspectual, existindo um único
sujeito na frase, como acontece nos contextos em que ocorrem os auxiliares típicos. Tal abordagem
não está, contudo, isenta de problemas (cf. Duarte, Gonçalves & Miguel 2006). Em primeiro lugar, é
incapaz de dar conta do facto de, contrariamente aos auxiliares, os verbos leves imporem restrições de
natureza semântica ao predicador nominal com o qual se combinam, como se ilustra em (6):
(6) a. O João deu uma olhadela ao livro.
b. *O João deu uma promessa à Maria.
c. *O João deu um desmaio.
Este comportamento contrasta com o dos auxiliares. Exemplificando, um verbo como olhar
pode co-ocorrer com o auxiliar ter (7a), mas o nome deverbal olhadela não pode combinar-se com o
verbo leve ter (7b):
1
O corpus CINTIL, Corpus Internacional de Português, tem um milhão de palavras, metade de texto escrito e metade de transcrições de
oralidade, e está anotado com informação de categoria de palavras, de flexão e de entidades nomeadas. Foi compilado e anotado no âmbito
do projecto TAGSHARE (Tagging and Shallow Morpho-syntactic Processing Tools and Resources), coordenado pelo Departamento de
Informática da Universidade de Lisboa, com parceria do CLUL, e financiado pela FCT (POSI/PLP/47058/2002).
1860
(7)
a. O Pedro tem olhado para o livro.
b. *O Pedro tem uma olhadela ao livro.
Em segundo lugar, os verbos leves, mas não os auxiliares, impõem restrições de selecção
semântica ao sujeito; vejam-se, para este efeito, as frases (8) e (9): em (8), a ocorrência de sujeitos
animados e não animados dá origem a frases gramaticais, independentemente da presença do auxiliar
ter, sendo o verbo empurrar o elemento predicativo, que restringe os traços semânticos do sujeito;
pelo contrário, os mesmos sujeitos não podem ocorrer nas sequências de (9), ainda que o nome com o
qual o verbo leve se combina seja derivado do verbo empurrar, pelo que mantém as suas propriedades
argumentais.
(8)
(9)
a. O João tinha empurrado o carro que estava estacionado.
b. A chuva tinha empurrado o carro que estava estacionado.
a. O João deu um empurrão ao carro que estava estacionado.
b. *A chuva deu um empurrão ao carro que estava estacionado.
Finalmente, dados do Chinês-Mandarim e de línguas Indo-Iranianas (Butt & Lahiri 1998; Butt
2003) mostram que os verbos leves mantêm preservadas as suas propriedades ao longo da história
dessas línguas, facto incompatível com a ideia de que estes verbos tendem a ser gramaticalizados.
(10) tato
maḳ̣ sikoddiya
então
mosca voando
“Então a mosca voou”
gata
ir.PartPas
(Sânscrito)
(Pañcatantra 122; apud Butt, 2003: 11)
(11) kabutre
pombo.masc.pl.nom voar
“Os pombos voaram.”
ur ga-ye
ir-Perf.masc.pl
(Urdu Moderno)
(Butt, 2003: 11)
As três últimas propriedades referidas subjazem à perspectiva de que os verbos leves se
comportam como predicadores, como defendido, entre outros, em Rosen (1990), Alsina (1996), Butt
& Geuder (2001), Butt (2003), Samek-Lodovici (2003), Scher (2003, 2006) e Duarte, Gonçalves &
Miguel (2006).
1.2. Propriedades da sequência <V leve + N deverbal> em Português europeu
A propriedade da sequência <V leve + N deverbal> mais frequentemente referida na literatura é
a possibilidade de a parafrasear pelo verbo principal que constitui a base derivante do nome (cf. (12),
(13) e (14)):
(12)
(13)
(14)
a. O primeiro-ministro fez um discurso na ONU.
b. O primeiro-ministro discursou na ONU.
a. O João deu uma escovadela ao / no fato.
b. O João escovou o fato.
a. O Rui tem receio de ser despedido.
b. O Rui receia ser despedido.
Para além disso, como referido na secção 2, o verbo leve pode preservar a estrutura argumental
do verbo principal de que é homónimo. Assim, o verbo leve dar, em (15b), realiza-se como um
predicado de três lugares, como o verbo principal em (15a); por seu turno, o verbo leve fazer, em
(16b), comporta-se como um predicado de dois lugares, como acontece com o verbo principal (cf.
1861
(16a)). Em predicados complexos com nomes deverbais psicológicos, o verbo dar também mantém a
sua estrutura argumental, como se pode observar em (17):
(15)
(16)
(17)
a. O Pedro deu uma gravata ao pai.
b. O Pedro deu uma olhadela ao texto.
a. O Pedro fez uma casa enorme.
b. O Pedro fez um sorriso triste.
a. O Pedro deu uma gravata ao pai.
b. O Pedro deu preocupações ao pai.
A semelhança entre os verbos leves e os principais de que são homónimos é ainda visível no
facto de os primeiros preservarem parte do significado dos segundos. Considere-se, a título ilustrativo,
o verbo dar. Enquanto verbo principal (cf. (18)), dar exprime uma mudança de localização da entidade
y, que estava na posse de x e que passou para a posse de z, por acção intencional de x. Neste caso,
existe um controlador, uma mudança de localização e uma transferência2.
(18) O Joãox deu uma gravatay ao paiz.
A presença de um controlador, x, e a ideia de transferência de x para z são elementos de
significado do verbo pleno preservados pelo verbo leve, como se infere de (19a). Em (19b), com nome
psicológico, mantém-se igualmente a ideia de transferência de x para z, embora neste caso o sujeito
não seja uma entidade controladora, mas sim uma entidade causadora ou desencadeadora do evento,
preservando portanto a noção de fonte associada ao argumento externo de dar3.
(19)
a. O Joãox deu um abraçoy ao paiz.
b. O Joãox deu preocupaçõesy ao paiz.
No que diz respeito à relação entre o verbo leve e o nome derivado com que se combina,
verifica-se que o primeiro é sensível à estrutura argumental e à aktionsart do segundo. Relativamente
ao primeiro ponto, exemplos como os de (20) a (22) mostram que nomes derivados de verbos que
requerem um argumento que denote a fonte se combinam preferencialmente com os verbos leves dar e
fazer4:
(20)
(21)
(22)
a. O João deu uma olhadela ao livro.
b. O João fez uma promessa à Maria.
a. O João deu um assobio.
b. O João fez um sorriso triste.
a. *O João deu um desmaio ligeiro.
b. *O João fez um desmaio ligeiro.
Pelo contrário, o verbo leve ter combina-se preferencialmente com nomes derivados de verbos
que não seleccionam argumento fonte (cf. (23)). Pode, no entanto, combinar-se com nomes deste tipo
se o evento encaixado for um processo culminado e tiver uma leitura de estado resultante. Compare-
2
Cf., entre outros, Dowty (1979) e Butt & Geuder (2001).
A componente eventiva dos verbos causativos pode assumir a forma de mudança de estado (como em matar), de lugar (como em colocar)
ou de posse (como em dar). Como veremos adiante, os verbos leves homónimos de verbos plenos causativos podem sofrer alterações no tipo
de mudança, em função dos nomes deverbais com os quais se combinam.
4
Note-se, no entanto, que é possível combinar o verbo leve dar com um nome derivado de um verbo cujo argumento tem o papel temático
de Tema:
(i)a. O João deu uma queda.
b. O João caiu.
O facto de dar se poder combinar com eventos que envolvam maior dinamismo poderá explicar o contraste entre dar uma queda e *dar um
desmaio. Por seu lado, a gramaticalidade de exemplos como fazer um arranhão ou fazer uma ferida decorre de processos de alternância
verbal, que ocorrem igualmente com verbos plenos (cf. Dowty 1991; Reinhart 2000 e Duarte, Colaço, Gonçalves, Mendes & Miguel (em
preparação)).
3
1862
se, assim, (24) e (25b), em que a leitura de processo culminado não é obtida, com (25a), em que a
mesma leitura está disponível.
(23)
(24)
(25)
a. O João teve um desmaio (ligeiro/prolongado).
b. *O João teve uma promessa à Maria.
a. *O João teve uma intervenção demorada no debate.
b. *A Maria teve uma arrumadela ao quarto.
a. ?A cidade teve uma destruição total.
b. *A cidade teve uma destruição total em três dias.
Como já referimos, os nomes psicológicos podem ocorrer em predicados complexos com o
verbo dar (cf. (26a)), por terem um argumento que denota a entidade causadora ou desencadeadora da
emoção e que, por isso, se aproxima da noção de fonte. Ora, os nomes psicológicos entram igualmente
em predicados complexos com o verbo ter, embora seleccionem esse argumento fonte, como em
(26b).
(26) a. Aquele aluno dá muitas preocupações ao professor.
b. O professor tem muitas preocupações com aquele aluno.
Estes dados levam-nos a rever as nossas observações anteriores sobre o verbo ter. Na verdade,
este verbo leve também se pode combinar com nomes derivados de verbos que seleccionam o
argumento fonte, mesmo que o evento encaixado não seja do tipo processo culminado. No entanto,
enquanto em construções com o verbo leve dar esse argumento fonte é alinhado com a função de
sujeito, com o verbo leve ter, a fonte ocorre como complemento preposicionado e o Tema ou o
Experienciador têm função de sujeito, como em (26b).
As construções com os verbos dar e ter apresentam, assim, duas realizações sintácticas de uma
mesma estrutura argumental, com diferentes alinhamentos dos papéis semânticos. O predicado
complexo formado por dar equivale à construção transitiva causativa com o verbo preocupar (cf.
(27a)), enquanto o predicado complexo com o verbo ter se aproxima da construção anticausativa
pronominal com o mesmo verbo, como em (27b).5
(27) a. Aquele aluno preocupa o professor.
b. O professor preocupa-se com aquele aluno.
Os predicados complexos com dar e ter permitem, portanto, aos nomes psicológicos (deverbais
ou não) ocorrerem nas mesmas duas construções disponíveis para os verbos psicológicos com o
Experienciador alinhado com a função de objecto, em que ter corresponde à alternância anticausativa
pronominal. Assim, retomando o primeiro critério apresentado, o da paráfrase, o predicado complexo
com verbo leve dar e nome psicológico (deverbal ou não) pode ser parafraseado pelo verbo
psicológico (dar preocupação = preocupar; dar raiva = enraivecer), enquanto o predicado complexo
com verbo leve ter e nome psicológico (deverbal ou não) terá de ser parafraseado pela forma
pronominal do verbo (ter preocupação = preocupar-se; ter raiva = enraivecer-se).6 Os verbos leves
5
Outros nomes podem ocorrer em predicados complexos que expressam uma alternância na realização sintáctica dos argumentos. Assim,
nas frases seguintes, a construção de predicado complexo com verbo leve dar tem uma leitura causativa (cf. frases (a)), enquanto os verbos
levar ou ter ocorrem em predicados complexos que têm uma leitura resultativa e em que o objecto directo de dar assume a função de sujeito
(cf. frases (b)):
(i)a. O João deu uma aquecidela na sopa.
b. A sopa levou uma aquecidela.
(ii)a. A costureira deu um arranjo na saia.
b. A saia levou um arranjo.
(iii)a. Os soldados fizeram a destruição total dos territórios ocupados.
b. Os territórios ocupados tiveram uma destruição total.
(iv)a. A Maria deu uma arrumadela no quarto.
b. O quarto levou / teve uma arrumadela.
6
Com nomes psicológicos que derivam de verbos com o argumento Experienciador alinhado com a função de sujeito, como recear, as
paráfrases são naturalmente diferentes das que foram referidas, pois estes verbos não têm alternância causativa / anticausativa. A paráfrase de
1863
em predicados complexos com nomes psicológicos parecem, assim, funcionar como operadores de
diátese.
Relativamente à aktionsart do nome deverbal com que o verbo leve se combina, exemplos como
os de (28) a (31) mostram que dar e fazer se combinam com nomes derivados de predicados que
denotam processos (cf. (28)) e processos culminados (cf. (29)), mas não culminações (cf. (30)) ou
estados (cf. (31)):
(28)
(29)
(30)
(31)
a. O Pedro deu uma corrida.
b. As bailarinas fizeram um bailado fabuloso.
a. A Maria deu uma arrumadela ao quarto.
b. Os jornalistas fizeram a transcrição do debate.
a. *O Pedro deu uma chegada / ida ao supermercado.
b. *O João fez uma chegada / ida ao supermercado.
a. *Os fantasmas deram uma estada no castelo do conde.
b. *Os pais da Ana fizeram receio da tempestade.
No entanto, em construções em que a entidade fonte/causação ocorre na posição de sujeito, o
verbo dar pode combinar-se com nomes psicológicos derivados de predicados que denotam estados
(cf. (32)).
(32)
A situação mundial dá um enorme receio a todos nós.
(recear = estado)
Este contraste mostra que mesmo predicados psicológicos estativos (eu receio algo) estão
disponíveis para ocorrerem numa construção com o verbo dar, que se caracteriza pela sua
causatividade, e comportam-se, portanto, como os nomes psicológicos derivados de verbos eventivos
(isso preocupa-me, isso assusta-me). Aliás, também os nomes não deverbais como pavor, medo, raiva
podem ocorrer nesta construção, embora não herdem a estrutura argumental dos verbos apavorar,
amedrontar, enraivecer. Assim, parece importante observar não só a estrutura argumental e a
aktionsart dos predicados de que derivam os nomes, como também a própria estrutura argumental e as
propriedades aspectuais dos nomes, independentemente de serem ou não derivados.
Por seu turno, o verbo leve ter combina-se com nomes deverbais que denotam culminações (cf.
(33)) ou estados (cf. (34)), mas não processos (cf. (35)) nem processos culminados (cf. (36)):
(33)
(34)
(35)
(36)
A Ana teve um nascimento atribulado.
A Ana tem uma visão clara dos acontecimentos.
*O Pedro teve uma corrida.
*A Maria teve uma arrumadela ao quarto.
Repare-se, ainda, que as propriedades semânticas do objecto directo que contém o nome
deverbal (o Tema do verbo leve) contribuem para a aktionsart da construção, como acontece com os
verbos plenos em (37).
(37)
a. O João comeu gelados durante duas horas.
(comer gelados = processo; atélico)
b. O João comeu o gelado em duas horas.
(comer o gelado = processo culminado; télico)
Tomemos como exemplo o verbo correr e o nome que dele deriva, corrida. O contraste entre
(38a) e (38b) mostra que este verbo pode denotar um processo ou um processo culminado, quando
ocorre um objecto delimitador do evento (a maratona). Da mesma forma, a combinação do nome
ter receio é o próprio verbo recear e não existe paráfrase para o predicado complexo dar receio (embora possa ser parafraseado por um
verbo de significado aproximado e com alternância, como amedrontar).
1864
corrida como o verbo leve fazer pode denotar ou um processo (cf. (39a)) ou um processo culminado
(cf. (39b)), conforme as propriedades do constituinte de que aquele nome é núcleo.
(38)
(39)
a. O João correu durante duas horas.
(correr = processo; atélico)
b. O João correu a maratona em duas horas.
(correr a maratona = processo culminado; télico)
a. O João fez corridas durante duas horas.
(fazer corridas = processo; atélico)
b. O João fez a corrida em duas horas
(fazer a corrida = processo culminado; télico)
Embora os exemplos anteriores nos tenham permitido concluir que o constituinte de que o nome
deverbal é núcleo se comporta como um argumento do verbo leve, é interessante notar que este
argumento manifesta também propriedades predicativas.7 Esta ideia é reforçada pelo facto de, em
contextos em que o verbo leve tem um verbo pleno ditransitivo correspondente, a preposição que
encabeça o segundo argumento interno poder ser a que se encontra especificada na grelha argumental
ou do verbo pleno (cf. (40)) ou do nome (cf. (41)).8
(40)
(41)
a. A Marta deu uma varredela rápida ao chão.
b. Gostei da tua varredela do chão
c. */?Gostei da tua varredela ao chão
a. Os deputados da oposição deram uma contribuição decisiva {para o / ao} debate.
b. Gostei da tua contribuição para o debate
c. *Gostei da tua contribuição ao debate
Com nomes psicológicos, o verbo leve dar mantém sempre a estrutura argumental do verbo
pleno homónimo (cf. (42)). Isto explica-se pelo facto de a construção com o verbo dar expressar
noções de causação e manter o significado de transferência do verbo pleno.
(42)
a. O João deu um grande desgosto à mulher.
b. Isto dá-me um medo enorme.
c. O sucesso escolar do João deu-nos um grande contentamento
d. O lançamento do livro deu uma grande alegria aos autores.
O mesmo acontece, aliás, com o verbo meter, que também se combina com nomes psicológicos
e que mantém a estrutura argumental do verbo pleno homónimo, com três lugares, envolvendo a noção
de transferência e a existência de um controlador, embora neste caso o proto-papel de Alvo se realize
como um locativo, no verbo pleno (cf. (43a)), e como um dativo, no verbo leve (cf. (43b)).
(43)
a. O João meteu a chave no bolso.
b. A atitude do João mete raiva aos colegas.
Consideremos agora predicados complexos formados pelo verbo leve fazer e por um nome
psicológico derivado de um verbo causativo, como em (44a). Nestes casos, o verbo leve assume a
estrutura alargada de três lugares de que o verbo pleno homónimo fazer dispõe, nos casos em que se
realiza o argumento com o proto-papel semântico de Alvo. Nas construções com o verbo leve esse
proto-papel é obrigatoriamente realizado como dativo (cf. (44b)).
(44)
7
8
a. O filme faz aflição às crianças.
b. O filme faz-lhes aflição.
Este argumento é desenvolvido em Duarte, Colaço, Gonçalves, Mendes & Miguel (em preparação).
Para dados idênticos do italiano, ver Samek-Lodovici (2003).
1865
Por fim, a construção com verbo leve ter tem um comportamento distinto. De facto, este verbo
parece preservar a estrutura argumental, de dois lugares, do verbo pleno homónimo, como o indica o
facto de a preposição que introduz o constituinte preposicional ser a que está especificada na grelha
argumental do nome, quer ele seja ou não psicológico, como se vê em (45):
(45)
a. Eu tenho receio de aranhas.
b. Ele tem alegria na realização do seu trabalho.
c. O Pedro teve uma intervenção no debate.
d. O Pedro teve uma conversa interessante com o professor.
As propriedades da construção resultam, assim, da combinação das grelhas argumentais dos dois
predicados, o que se torna visível pelo facto de o argumento externo do verbo leve controlar o evento
denotado pelo nome deverbal. Compare-se, para este efeito, (46b), em que o controlador do evento
denotado pelo nome é o argumento externo do verbo leve, com (47), em que internamente ao domínio
nominal se encontra realizado um potencial controlador do evento aí denotado, o que produz
sequências agramaticais:
(46)
(47)
a. Os deputados da oposição contribuíram decisivamente para o debate.
b. Os deputados da oposição deram uma contribuição decisiva ao debate.
a. *Os deputados da oposição deram uma contribuição decisiva do Presidente da Assembleia
ao debate.
b. *Os deputados da oposiçãoi deram uma contribuição decisiva delesi / suai ao debate.
Note-se que, quando o evento denotado pelo núcleo nominal tem um controlador, deixamos de
estar na presença de uma construção com verbo leve, ou seja, a presença de um constituinte genitivo
agentivo associado ao nome força a leitura do verbo como principal e, neste caso, o nome deverbal
tem uma leitura de indivíduo (cf. (48)).
(48)
a. Os deputados da oposição deram a sua contribuição / a contribuição deles para o debate ao
Presidente da Assembleia.
b. Os deputados da oposição deram a contribuição para o debate do líder da bancada ao
Presidente da Assembleia.
Dados como os de (46) a (48) revelam ainda que, contrariamente ao que acontece com a
generalidade dos verbos plenos, os verbos leves seleccionam obrigatoriamente Temas cujo núcleo
denota eventualidades, i.e., não admitem Temas que denotem indivíduos. Constituem argumentos
empíricos em favor desta afirmação os seguintes factos:
(i)
(49)
(ii)
(50)
9
o Tema dos verbos leves admite adjectivos com valor aspectual:
a. O João fez uma intervenção interminável / rápida no debate.
b. O João deu uma ajuda permanente / pontual à Cruz Vermelha.
c. Kissinger teve uma influência constante / intermitente / duradoura na política externa
americana.
Se os nomes derivam de um verbo com argumento(s) interno(s), é obrigatória a presença do/de
um argumento interno desse verbo (cf. (50a))9, podendo este, nas condições discursivas
adequadas, ser elidido (cf. (50b)):
a. *O João fez uma intervenção interminável.
b. Assististe ao debate?
Não, mas sei que o João fez uma intervenção interminável [-].
De acordo com Grimshaw (1990) este é um critério pertinente para o reconhecimento de uma leitura eventiva.
1866
Considerações finais
Os dados analisados nas secções anteriores permitem-nos chegar às seguintes conclusões:
(i)
o verbo leve e o nome deverbal contribuem igualmente para a computação das propriedades da
sequência;
(ii)
o verbo leve mantém as propriedades argumentais e preserva parte do significado do verbo
principal de que é homónimo;
(iii) o verbo leve é sensível à estrutura argumental e à aktionsart do nome deverbal;
(iv)
o DP que contém o nome deverbal é interpretado como argumento interno do verbo leve,
preservando, embora, propriedades predicativas;
(v)
os verbos leves seleccionam Temas que denotam eventualidades mas não indivíduos.
(vi)
com nomes psicológicos, os verbos leves dar e ter permitem, respectivamente, a expressão de
uma construção causativa e de uma construção resultativa estativa, aproximando-se da
alternância sintáctica causativa / anticausativa possível com os verbos psicológicos;
(vii) nestes contextos, os verbos leves dar e meter mantêm a estrutura argumental dos verbos plenos
homónimos, em particular o proto-papel semântico Alvo, realizado como dativo, ao contrário da
construção com verbo leve ter, em que a estrutura argumental é herdada do nome psicológico
com o qual se combina;
(viii) o verbo leve fazer, em contextos com nomes deverbais derivados de verbos causativos, assume
igualmente uma estrutura argumental de três lugares, em que o argumento opcional do verbo
pleno homónimo com o proto-papel semântico de Alvo passa a argumento obrigatório, realizado
ou implícito.
Estas propriedades, tomadas em conjunto, permitem-nos concluir que as estruturas argumentais
do verbo leve e do nome deverbal devem ser combinadas, originando um predicado complexo.
Referências
Abeillé, A., D. Godard & I. Sag (1998). Two Kinds of Composition in French Complex predicates. In
Hinrichs, E., A. Kathol & T. Nakazawa (orgs.), Complex Predicates in Nonderivational Syntax. Syntax
and Semantics 30. San Diego, Academic Press
Alsina, A. (1996). The Role of Argument Structure in Grammar. Stanford, Califórnia, CSLI
Publications.
Butt, M. (1995). The Structure of Complex Predicates. Stanford, Califórnia, CSLI Publications.
Butt, M. (2003). The Light Verb Jungle. Harvard Working Papers in Linguistics, Vol 9. Pp 1-49.
Butt, M. & A. Lahiri (1998). The Status of Light Verbs in Historical Change. Paper presented at DIGS
5, York. http://www.ling.uni.Konstanz.de/pages/home/butt/
Butt, M. & W. Geuder (2001). On the (Semi)Lexical Status of Light Verbs. In Corver, N. & H. van
Riemsdijk (orgs.), Semi-lexical Categories: On the Content of function words and the function of
content words. Berlim, Mouton de Gruyter. Pp. 323-370.
Cattell, R. (1984). Composite Predicates in English. Syntax and Semantics 17. Sydney, Academic
Press.
Dowty, D. (1979). Word Meaning and Montague Grammar:The Semantic of Verbs and Times in
Generative Semantics and in Montague’s PTQ. Dordrecht, Reidel.
Dowty, D. (1991). Thematic Proto-Roles and Argument Selection. Language, Vol. 67, No. 3. Pp. 547619.
Duarte, I., M. Colaço, A. Gonçalves, A. Mendes & M. Miguel (em preparação). Verbos Leves e
Processos de Alternância Verbal.
1867
Duarte, I., A. Gonçalves & M. Miguel (2006). Verbos leves com nomes deverbais em português
europeu. In Oliveira, F. & J. Barbosa (orgs.) Actas do XXI Encontro Nacional da Associação
Portuguesa de Linguística. APL, Lisboa. Pp. 315-328.
Grimshaw, J. (1990). Argument Structure. Cambridge, MA, MIT Press.
Grimshaw, J. & A. Mester (1988). Light Verbs and q-Marking. Linguistic Inquiry, 19-2. Pp. 205-232.
Gross, M. (1981). Les Bases Empiriques de la Notion de Prédicat Sémantique. Langages, 63. Pp. 7-52.
Hook, P. E. (1974). The Compound Verb in Hindi. Center for South and Southeast Asian Studies,
University of Michigan.
Jespersen, O. (1909/1949). A Modern English Grammar on Historical Principles. Londres, George
Allen & Unwin; Copenhaga, Ejnar Munksgaard.
Reinhart. T. (2000). Theta System: syntactic realization of verbal concepts. OTS Working papers in
Linguistics.
Rosen, S. (1990). Argument Structure and Complex Predicates. Nova Iorque, Garland.
Samek-Lodovici, V. (2003). The Internal Structure of Arguments and its Role in Complex Predicate
Formation. Natural Language & Linguistic Theory, 21. Pp. 835-881.
Scher, A. P. (2003). Quais São as Propriedades Lexicais de uma Construção com Verbo Leve? In.
Müller, A. L., E. Negrão; M. J. Foltran (orgs.). Semântica Formal. São Paulo: Contexto.
Scher, A. P. (2006). Nominalizações em –ada em Construções com o Verbo Leve dar em PB. Letras
de Hoje, nº 143. Pp. 29-48.
Download