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AVENIDA GUARARAPES: Paisagem Cultural
SILVA, ARIADNE PAULO (1)
UNIFAVIP - Mestre em desenvolvimento urbano pela UFPE, especialista em gestão do patrimônio
cultural pela catedra da UNESCO (CECI/UFPE).
[email protected]
Resumo
A questão da paisagem cultural é um tema novo a ser explorado, e como tudo que é recente tende a
evoluir e abranger outros aspectos dentro do conceito. Exemplo disso é o que é mostrado, ao longo
do tempo, nas formulações das cartas patrimoniais: a evolução e a abrangência que se dá
paulatinamente à outros conceitos referentes ao patrimônio cultural. Este artigo tem como objetivo
despertar para outro lado do conceito de paisagem cultural. Pois, por hora, ele abrange somente o
entrelace da paisagem natural e a paisagem construída pelo homem. O novo viés que é apresentado
é a intervenção humana arquitetônica-urbanística não só se entrelaçando com a paisagem natural,
mas valorizando essa paisagem. Tendo como estudo a Avenida Guararapes (Recife – PE), que tem
como valores ser um conjunto proto-modernista, histórico – pois, ela também foi concebida para ser
uma das representações de um novo Brasil, urbano e industrial, que intencionava a Era Vargas –
também tem valor como paisagem cultural. Dentro dessa discussão, também, se leva a cabo a
preocupação de conservar esse tipo patrimônio, chamado moderno. Essa preocupação é tema de
discussões recentes, principalmente como conservá-lo e como ele pode enquadrar- se nas
categorias de tombamento da UNESCO. No intuito de auxiliar na preservação desse patrimônio, fazse necessário, antes de tudo, classificá-lo. É Para tanto que esse artigo, também, discorre sobre esse
assunto. Como já foi mencionado esse conjunto faz parte dessa história da cidade e de sua
paisagem, além de ser um marco de momentos vividos pela história do país e do estado de
Pernambuco. Ele é muito mais do que pedra e cal é a alma viva dos moradores do Recife que,
mesmo, não tendo ciencia do valor urbanístico do conjunto, se apossam dele como parte de suas
histórias e de sua paisagem. A partir desse pertencimento e da relação de valores de sítio urbano e
de paisagem é que o texto irá defender o conjunto da Avenida Guararapes como paisagem cultural.
Isso por que sua relação com a paisagem existe. Só que não apenas como interação com a
natureza, mas sim, valorizando a natureza, pois seu traçado que inicia-se estreito na praça do Diário
de Pernambuco, abre-se para ter a sua apoteose no descortinar o rio Capibaribe em seu delta no
centro da cidade.
Palavras-chaves: Paisagem cultural, Preservação, Arquitetura Moderna.
Introdução
O objetivo deste trabalho é apontar os valores da Avenida Guararapes como paisagem
cultural no cenário nacional.
Para tanto, num primeiro momento, serão abordadas considerações feitas por autores das
duas correntes da geografia que estudam a paisagem cultural: a primeira, denominada
geografia cultural, iniciada nos anos 1930, com Carl Sauer.
Esta estuda os aspectos
morfológicos da paisagem e sua relação com o homem. A segunda conhecida como
geografia humanista, que teve inicio na década de 1960. E via a paisagem como algo
subjetivo, relacionando os aspectos materiais e os imateriais para formarem uma visão
única de cada espaço.
Num segundo momento, serão abordadas as visões da UNESCO e do IPHAN acerca de
paisagem.
Num terceiro momento, será feito um histórico do conjunto da Guararapes, abordando os
aspectos relevantes desse espaço como paisagem cultural.
Num quarto momento, serão feitas as considerações conclusivas a respeito do tema
abordado.
1. Paisagem cultural
A definição de paisagem cultural para este artigo será feita com o uso de dois significados
apontados por Ribeiro, no seu livro Paisagem Cultural e Patrimônio (2007; p.9), no qual (a
paisagem)... pode ser lida como um produto da sociedade que a produziu (...) e (...) base
material para a produção de diferentes simbologias, locus de interação entre a materialidade
e as representações simbólicas.
Para compreender essas definições, recorre-se a autores ligados tanto à geografia cultural
como à humanista.
É bem verdade que os conceitos acima descritos estão muito mais ligados à corrente
humanista da geografia do que à primeira fase da cultural - geografia cultural tradicional - ,
porém se faz necessário recorrer a Sauer para chegar a eles. Para o geógrafo a paisagem
se define como uma área construída por uma associação distinta de formas tanto naturais
como culturais (Sauer, 1996), onde a cultura é o agente, a área natural o meio e a paisagem
cultural é o resultado (Sauer, 1996). Ainda segundo o geógrafo, a paisagem está sempre em
evolução, assim haveria (...) um momento de desenvolvimento da paisagem até que esta
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alcançasse o clímax, passando então ao um período de decadência onde poderia haver
uma imposição de uma nova cultura que iniciaria o processo de construção de sua
paisagem cultural novamente... (Sauer, 1996).
Apesar de os humanistas virem em contraponto à geografia cultural. Pois, eles refutavam as
ideias da escola fundada por Sauer, não se pode negar que suas ideias serviram como base
para essa corrente.
O conceito de paisagem para os humanistas se dá pelo caráter
simbólico e subjetivo que adquire o local. E isso só pode ser concretizado pelo arcabouço
cultural - entende-se como arcabouço cultural toda a memória coletiva e individual que dá
sentido ao lugar - trazido pelo individuo ou grupo de indivíduos.
A estética da paisagem é uma criação simbólica, desenhada com cuidado, em que as
formas refletem um conjunto de atitudes humanas (Ribeiro, 2007; p. 24). Essa criação
simbólica se desenvolve a partir do momento em que o ser humano apreende o lugar e o
torna seu. Yu-fu Tuan desenvolve esse conceito de afeto ao lugar, que ele denomina de
Topofilia (Tuan, 1980). Dois outros geógrafos, English e Mayfield (1972; p.7), trazem a
percepção de que a paisagem é um documento para ser lido, resultante de um patamar
moral, intelectual e estético alcançado pelo homem em um dado momento do processo
civilizatório.
No ano de 1980, a nova geografia cultural uniu esses dois aspectos da paisagem cultural
anteriormente vistos. O conceito de paisagem como um documento é reafirmado, porém a
paisagem agora é um documento de interpretação instável, aberto a múltiplas interpretações
(Mondada; Södertröm, 1993; 74).
Cosgrove (1984) reafirma esse caráter das múltiplas interpretações, quando escreve que a
paisagem é uma forma de ver o mundo que tem sua própria história, mas essa só pode ser
entendida como parte de uma história mais ampla da economia e da sociedade. Quando
Cosgrove fala isso ele se remete às duas correntes, tendo como objeto de análise dois
parâmetros para serem estudados: o subjetivo e o empírico.
Então, concluí-se que a paisagem não é unicamente matéria, não é unicamente alma, mas,
como o homem é uma junção dos dois para a formação de um todo completo e conciso.
Essa explanação sobre o que é paisagem cultural, junto com os dois próximos pontos a
serem abordados, será o arcabouço teórico para uma reflexão sobre o conjunto da Avenida
Guararapes como paisagem cultural.
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2. Unesco e Iphan.
Nesse item ver-se-á como a paisagem é tratada pelos organismos internacionais, em
especial a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), e pelo órgão nacional responsável pela preservação do patrimônio, o Iphan.
A preocupação com a paisagem começa a partir da Carta de Atenas. Nela a paisagem é
tratada como pano de fundo para proteger as visadas interessantes dos monumentos.
Em 1972, a 17ª Conferência geral da UNESCO, sediada em Paris, estabelece a Convenção
sobre a salvaguarda do Patrimônio mundial, cultural e natural. Nela existem três definições
para patrimônio cultural. Serão considerados patrimônio cultural:
I. Os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais,
elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de
elementos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte
ou da ciência;
II. Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que em virtude de sua
arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor excepcional do ponto de
vista da história, da arte ou da ciência;
III. Os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem
como as áreas que incluam sítios arqueológicos, de um valor universal excepcional do ponto
de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.
Os conjuntos e sítios são a primeira ideia de uma paisagem cultural formada pela
UNESCO, onde a paisagem natural se relaciona com a construída.
Na conferência de Nairóbi, em 1976, é formulada a Recomendação relativa à salvaguarda
dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea. Esse documento os mostra
uma evolução – embora não fale explicitamente de paisagem–em relação a esses
conjuntos, quando os considera presença viva do passado no ambiente cotidiano e que
adquirem um valor e uma dimensão humana suplementar (Cury, 2000; p.217). Essa visão
em que o conjunto obtém um valor subjetivo remete aos conceitos definidos no estudo da
paisagem cultural da geografia, no qual o lugar se torna algo de significado subjetivo
imprimido pelo inconsciente humano.
Nas considerações feitas nessa recomendação o conjunto histórico não se expressa como
paisagem, porém é como será tombado esse tipo de bem pelo Iphan no Livro de Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, como se verá mais adiante.
Foi em 1992, na cidade francesa de La Petite, que a UNESCO estabeleceu três
classes de paisagens culturais:
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•
Paisagem claramente definida, concebida e criada pelo homem: elaborada
por razões estéticas, como os jardins ou parques, por exemplo, o Palácio e o Jardim de
Versailles, na França.
•
Paisagem essencialmente evolutiva: gerada de uma exigência social,
econômica, administrativa e/ou religiosa, cuja forma atual é atingida por associação e em
resposta ao seu ambiente natural. Essa se subdivide em dois tipos: relíquia (fóssil) e viva. A
paisagem-relíquia está associada a um processo evolutivo que se completou de certa
maneira. Suas características essenciais permanecem materialmente visíveis, como, por
exemplo, os Sítios Incas no Peru. Por outro lado, a paisagem-viva conserva um papel social
ativo na sociedade contemporânea, ligada ao modo de vida tradicional e na qual o processo
evolutivo continua, a exemplo de vinhedos da Europa e de terraços de arroz na Ásia.
•
Paisagem associativa: aquela cuja existência está relacionada pela força de
associação dos fenômenos religiosos, artísticos ou culturais, mais do que pelos traços
culturais tangíveis, como os montes sagrados Taishan e Huangshan na China.
Embora não categorize explicitamente os valores atribuídos à paisagem cultural, ao formular
as três classes, a UNESCO identifica na paisagem cultural valores artísticos, históricos,
arqueológicos (já reconhecidos por documentos patrimoniais anteriores), sociais, religiosos
e utilitários. (Sá Carneiro; Figueroa, 2009; p. 2 e 3)
Para se ter avaliação do conjunto Guararapes como paisagem cultural, será usada neste
trabalho, a classe de paisagem claramente definida, concebida e criada pelo homem.
Já no Instituto do Patrimônio Histórico (Iphan), desde sua concepção, pode ser notada uma
preocupação com a paisagem, passando por uma evolução chegando aos conceitos atuais.
Porém, segundo Ribeiro (2007, p.66), o Iphan vem tratando a questão da paisagem como
patrimônio cultural.
Mário de Andrade já mostra preocupação com a paisagem no seu anteprojeto para o
SPHAN, quando escreve: “Paisagens: determinados lugares da natureza, cuja, expansão
florística, hidrográfica ou qualquer outra, foi determinada definitivamente pela indústria
humana dos Brasis, como cidades lacustres, canais, aldeamento, caminhos, grutas
trabalhadas etc.” (Andrade, 1980; p.92) e no seu livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico –
o termo paisagístico só vai figurar no titulo desse livro no decreto-lei nº25 de 1937 –, ficam
incluídas as paisagens: “Paisagens: determinados lugares agenciados de forma definitiva
pela indústria popular, como vilarejos [sic] lacustres vivos da Amazônia, tal morro do Rio de
Janeiro, tal agrupamento de mocambos no Recife etc.” (Andrade, 1980; p.92). Assim,
percebe-se a importância que a paisagem tem para Mário de Andrade, como fruto da ação
humana sobre o lugar.
No artigo 4º do decreto-lei nº25/1937 que cria o SPHAN, ficam instituídos quatro
livros de Tombo:
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1º Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, às coisas pertencentes à
arqueologia, etnografia, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado
artigo 1º;
2º Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte
histórica;
3º Livro de Tombo das Belas-Artes, as coisas de arte erudita nacional ou estrangeira;
4º Livro do Tombo das Artes-Aplicadas, as obras que se incluírem das artes
aplicadas nacionais ou estrangeiras.
No decreto, quando se categorizam os livros de Tombo, diferentemente do anteprojeto de
Mário de Andrade, o primeiro livro Tombo tem por titulo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico. Termo que Andrade não incluía nos livros de Tombo do seu anteprojeto de lei.
Ainda nesse decreto- lei, no artigo 1º, parágrafo 2º, faz menção a outros tipos de bens que
podem fazer parte do Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, no qual
Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e também estão sujeitos a
tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com que tenham sidos dotados pela natureza ou
agenciados pela indústria humana. A paisagem é sempre relevante nos documentos do
Iphan, entendendo-se tanto a natural como aquela agenciada pelo homem.
A atuação dos técnicos do Iphan, entre as décadas de 1930 e 1960, mostra uma tendência
contrária a esses documentos. Nesse período, foram tombados, segundo Márcia Chuva
(1998), um total de 417 bens, dos quais seis eram paisagísticos e um era paisagísticocientifico. Segundo Ribeiro (2007) os tombamentos ligados ao Livro de Tombo Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico foram de jardins e bens mais diretamente ligados à paisagem:
conjuntos, monumentos em conjunto e a paisagem que o envolvia e de panoramas
importantes para as pessoas que vivem nos arredores.
Só na década de 1970 é que vão figurar no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico os conjuntos históricos e paisagísticos, os conjuntos urbanos e paisagísticos e
os conjuntos paisagísticos. É no final dessa década que começam os “estudos de entorno”,
havendo uma mudança na percepção da paisagem dentro da instituição. Isso acontece com
o desenvolvimento de novas disciplinas, como a ecologia, a nova geografia cultural, etc. que
vai formar uma nova maneira de pensar os bens enquanto conjuntos, como uma relação
entre o homem e o ambiente e o ambiente e os vestígios deixados por essa relação
(Ribeiro, 2007; p.93).
Atualmente, muitos bens nacionais disputam ser Patrimônio Mundial na lista da UNESCO na
categoria de paisagem cultural. A maioria deles são paisagens naturais, como: o Parque
Nacional da Serra da Bocaina, o Parque Nacional do Pico da Neblina etc., mas alguns bens
que têm relacionado a paisagem natural com as intervenções humanas sobre essa
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paisagem também fizeram parte, dessa lista de pretendentes. Dentre eles: Paraty. Já a
paisagem cultural do Rio de Janeiro, foi recentemente reconhecida como tal. Porém, até o
presente momento, com exceção do Rio de Janeiro, nenhum desses bens foi escolhido para
a lista de patrimônio mundial, por não conseguirem fundamentar bem seus valores como
paisagem cultural em seus relatórios.
3. Avenida Guararapes: Nascimento, Vida e Morte
Em meados do século XIX, a cidade de Recife era uma das maiores e mais importantes do
Nordeste ainda pela sua ligação comercial com o resto do país e do mundo através do porto
situado no bairro do Recife, sofreu uma grande remodelação nos moldes de Haussman que
destruiu o seu antigo tecido, abrindo novas avenidas, e construção de novos edifícios que
visavam novas normas de higiene e ampliação do porto.
A partir dessas reformas e da criação do Clube de Engenharia, começaram a surgir várias
discussões sobre urbanismo na cidade. E também novas propostas de sistemas viários que
desafogassem o trânsito nos bairros vizinhos ao porto, como era o caso do bairro de Santo
Antônio. Este um dos bairros mais antigos do Recife, e que junto com o bairro de São José
compõem uma das ilhas que conformam o delta formado pelos rios Capibaribe e Beberibe.
O bairro de Santo Antônio, no fim do século XIX e inicio do século XX já era o centro
administrativo e comercial da cidade. Com isso já sofria com problemas que são próprios de
uma grande cidade. O trânsito era caótico, pois o bairro era passagem obrigatória para
alcançar outros locais do município.
Nesta época as discussões no Clube de Engenharia giravam entorno da remodelação do
sistema viário e do aspecto da cidade. E estes deveriam seguir os moldes modernistas e
serem orientados pela necessidade de resolver problemas reais e urgentes. Assim,
começaram a surgir proposições para o bairro.
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Figura 1- Vista da rua da Imperatriz a
partir da praça da Independência no
inicio do século XX.Bairro de Santo
Antônio.Fonte: FUNDAJ
As discussões entre engenheiros e intelectuais sobre essa remodelação eram bastante
intensas e que chegavam à população pelos jornais, onde eram publicados artigos o tema.
O Estado Novo estava instalado. Era Varga. O governo queria uma cara nova para o país: o
modernismo era essa cara. Ele exprimia o desenvolvimento da nação. O Brasil era
incentivado a passar de um país rural para um país urbano.
A primeira cidade a ser remodelada foi o Rio de Janeiro. Foi convidado para encabeçar essa
reforma o célebre urbanista francês Alfred Agache, que mais tarde viria, a convite, participar
da remodelação do Bairro de Santo Antônio. Além do Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre
foram cidades remodeladas nas mesmas feições que as da capital carioca.
Enquanto isso em Recife, as discussões sobre o novo urbanismo ficavam cada vez mais
acirradas. Esse debate recebeu contribuições importantes de planejadores renomados,
como Attílio Corrêa Lima, Prestes Maia, Washington de Azevedo e Ulhôa Cintra.
Desde meados da década de 1920, surge uma campanha sutil para remodelar o bairro de
Santo Antônio nas páginas do boletim de engenharia. Nestor Moreira Reis, num discurso no
Clube de Engenharia em setembro de 1924, sugeriu a criação de uma nova Avenida, no
distrito de Santo Antônio, para facilitar o trânsito no centro. Outros autores também
incentivavam a reforma do bairro como uma solução para os engarrafamentos constantes,
uma posição endossada pelo Clube de Engenharia (MOREIRA, 2004).¹ Isso iria mudar a
paisagem cultural da cidade.
Diversos projetos foram feitos para a avenida. Domingos Ferreira (ver figuras 2 e 3) no ano
de 1927, apresentou dois projetos para a prefeitura do Recife. Em ambos via-se a presença
de uma larga Avenida. A prefeitura inicia as desapropriações dos terrenos no local do
projeto. Porém, em 1930, o engenheiro Lauro Borba assume a prefeitura e pede um parecer
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ao Clube de Engenharia sobre a obra e o clube alega que o projeto de Domingos Ferreira
era economicamente inviável.
1- Tradução livre da autora.
Figuras 2 e 3- Plano de remodelação para o bairro de Santo Antonio idealizado pelo engenheiro
Domingos Ferreira. Fonte: Boletim de Engenharia, n. 9, Jun, 1927. p.244 e Revista da Cidade, Recife, n
54, II, July 09 1927.
No entanto, antes da concepção do projeto de Domingos Ferreira, o arquiteto Nestor de
Figueiredo ganhou o mais alto premio no 5º Congresso Pan-americano de arquitetos, com a
sua proposta para remodelação do centro do Recife (ver figura 4).
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Figura 4 - Plano de remodelação para o bairro de Santo Antônio idealizado pelo arquiteto Nestor
de Figueiredo. Fonte: Arquitetura e Urbanismo, Março/Abril, Rio de Janeiro, 1940.
Isto faz com que ele seja convidado pela prefeitura para elaborar um plano de remodelação
para o bairro. Nestor de Figueiredo não só faz o plano como também elabora normas de
zoneamento, loteamento e para construção de edifícios no local (figuras 5 e 6). Este plano
em muito se assemelha ao de Alfred Agache para o Rio de Janeiro.
Figura 05 e 06 – Parâmetros Urbanísticos e arquitetônicos para a construção da Avenida
Guararapes e dos edifícios. Fonte: desenho de Fernando Diniz e Guilah Naslavsky.
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Esse plano diferentemente do de Domingos Ferreira em que se previam várias radiais,
consiste em apenas uma larga avenida que vai da Praça da Independência à ponte Duarte
Coelho. Ele é iniciado em 1934 e, logo após o golpe de 1937, é interrompido. Assim, se faz
um novo plano para o local por uma comissão formada por Domingos Ferreira, José Estelita,
Tolentino de Carvalho e Paulo Guedes Pereira, dentre outros. O plano que resultou dos
estudos dessa comissão é basicamente o concebido por Nestor de Figueiredo em 1934 (ver
figura 7).
Figura 7 – Comissão de Planejamento da Cidade (Recife), Avenida 10 de Novembro (1938) –
atual Avenida Guararapes – ,perspectivas. Fonte: Arquivo do estado de Pernambuco Jordão
Emerenciano.
A Avenida Guararapes é um grande exemplo do urbanismo francês no Brasil. Camillo Sitte,
em seu livro “A construção das cidades segundo seus princípios artísticos”, afirma que, das
cidades que sofreram intervenções do urbanismo moderno, Paris foi a única com um
resultado satisfatório, justamente porque continuou a observar certos parâmetros que
regiam a construção da cidade medieval.
O conjunto da Guararapes, assim como Paris (ver figuras 8 e 9), tem intrínsecos na sua
concepção esses parâmetros. Seu projeto é um exemplo feliz da cidade moderna. Nela são
permitidas visadas diferentes do local a partir de três espaços: da Praça da Independência,
do grande vão da avenida, e o composto pela interseção da Ponte Duarte Coelho que a liga
a Avenida Conde da Boa Vista. Assim delimitado devido à tipologia usada nos edifícios dos
Correios e do Trianon. O conjunto é monumental. Diferentemente da monotonia sugerida do
Sitte quando se refere aos feitos modernos, na avenida cada edifício tem sua própria
arquitetura, sua identidade - como na cidade medieval. Isso é alcançado pelos de
parâmetros urbanísticos adotados para o local como gabarito, escalonamento dos últimos
andares, ocupação da borda dos lotes e as galerias para a circulação de pedestres
formando um todo harmônico, no entanto, preservando o caráter de cada construção ali
existente. Que tanto Sitte elogia na cidade medielval.
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Figura 8 – Avenida Guararapes, Recife, Brasil.
Fonte: biblioteca Virtual do IBGE.
Figura 9 – Avenida des Champs Elysees ,Paris,
France . 1890- 1900. Fonte: Wikipédia.
Porém, o que ocorreu nesse plano não foi obra do acaso, Moreira (2004, cap.5) cita que o
engenheiro José Estelita tenta introduzir as ideias de Sitte e outros estudiosos da época no
plano de reformulação do Bairro de Santo Antonio:
Estelita introduziu também ideias de Camillo Sitte, de Mulford Robinson e de Nelson Lewis,
tentando curiosamente extrair um corpo comum dos métodos e das práticas que poderiam
ser úteis no contexto local. ²
Entre as décadas de 1950 e 1970, o local passa a ser o centro irradiador de cultura e de
encontros políticos. É o tempo áureo da avenida. Todos os escritórios das grandes
empresas e dos mais renomados profissionais liberais, estavam instalados nos edifícios da
Guararapes. Era o ponto de encontro da mocidade, dos intelectuais e dos
políticos.
Enquanto a mocidade e a família pernambucana se dirigiam ao cinema Trianon, nas mesas
do bar Savoy eram escritas as páginas de nossa história. Lá se encontravam os escritores,
intelectuais e políticos da época.
Sua decadência começa no final dos anos 1970 com o deslocamento de muitas atividades
típicas do centro da cidade para outros bairros.
O conjunto encontra-se hoje subutilizado. Muitos prédios estão completamente vazios.
Existem propostas de revitalização do conjunto, mas elas são pontuais.
Pode-se citar a
criação de um shopping center vertical no edifício do cinema Trianon e a ocupação do
edifício da Sulacap por uma faculdade. Essas propostas refletem o valor que se dá ao
conjunto, porém nenhuma delas é pensada de forma a preservar a significância do local,
podendo até descaracterizá-lo.
2- Tradução livre da autora.
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4. Avenida Guararapes: paisagem cultural
A Avenida Guararapes é, remetendo ao conceito de Sauer, onde a cultura é o agente, a
área natural o meio e a paisagem cultural é o resultado, é paisagem cultural, é também base
material para a produção de diferentes simbologias, locus de interação entre a materialidade
e as representações simbólicas (Sauer,1996). É a paisagem evolutiva de um espaço natural,
a antiga ilha de Antônio Vaz, que, de mero areal envolto nos braços do delta dos rios
Capibaribe e Beberibe, veio sofrendo transformações durante os quinhentos anos de história
da cidade do Recife, passando por inúmeras intervenções humanas e significados, é um
documento para ser lido, resultante de um patamar moral, intelectual e estético alcançado
pelo homem em um dado momento do processo civilizatório (English; Mayfield, 1972; p.7).
A Avenida Guararapes é o apogeu de toda a história do bairro, de construções e
demolições, a fim de afeiçoar o local para uma nova Era. O primeiro governo de Getúlio
Vargas promove a urbanização do país, que era rural,e onde cerca de 60% da população
estava localizada. Para tanto, ele propõe a remodelação de algumas das principais capitais
do Brasil, e Recife era uma delas. O conjunto da Guararapes é a materialização de toda
essa ideologia de uma nova nação.
Já nas décadas de 1950 e 1970, o local tem a significância modificada. Passa a ser um
centro de efervescência cultural. Além de local de importância econômica e de status para
sociedade recifense. Pois lá estavam os melhores e mais importantes escritórios e
consultórios; além disso, a Avenida era ponto de encontro dos intelectuais da época. No bar
Savoy se reuniam os intelectuais, poetas, artistas, políticos.
Ele “... foi fundado em 1944 e teve na década de 60 o seu tempo de maior efervescência.
Ponto de encontro foi freqüentado por Gilberto Freyre, Carlos Pena Filho, Renato Carneiro
Campos, Capiba, Osman Lins, Vicente Rego Monteiro, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, (...)
que iam lá discutir sobre os mais diversos assuntos, é certo que muitos poemas, ideias
literárias, decisões políticas saíram das mesas daquele bar. Além disso, lá estiveram
grandes personalidades, com Roberto Rossellini e Alberto Cavalcanti, Jorge Amado e
Aldous Huxley, Roberto Burle Marx e Paulo Mendes Campos, Antônio Callado, Heitor VillaLobos e Paschoal Carlos Magno. Passaram pelo Savoy Simone de Beauvoir e Jean-Paul
Satre, ciceroneados por Otávio de Freitas Júnior durante congresso de escritores em
1960”(Coutinho,1994). Não só os intelectuais frequentavam o local. Lá o cinema Trianon era
o ponto de encontro das famílias e da juventude da cidade
Hoje, apesar da decadência em que se encontra o local, ele ainda permanece na cabeça do
Recifense como memória dos tempos de outrora, e, além disso, ele hoje é cenário para a
apoteose do maior bloco carnavalesco do mundo, o “Galo da Madrugada”. O conjunto é uma
expcionalidade no cenário nacional, segundo o professor Fernando Diniz, da Universidade
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Federal de Pernambuco. A Guararapes “Apesar de não ser o maior, é o mais completo
exemplo do Urbanismo francês no Brasil”.
Como se pode ver o local passou por várias significâncias durante sua existência. Essas
permeiam diversos tipos de importância como a política, a econômica, a intelectual, a
popular dentro não só do cenário pernambucano mas dentro também do Brasileiro. Pois, na
materialização de suas construções estão intrínsecos ideais de arquitetônicos, urbanísticos
e políticos que representaram uma nação. Isso faz do Conjunto da Guararapes um exemplo
de paisagem cultural. Isso sem falar na sua conformação espacial, que além dessa carga
cultural já mencionada, também valoriza a paisagem natural. A avenida é uma das poucas
vias do Recife que não dá as costas para os rios que cortam a cidade. Ela promove o rio.
Sua apoteose é nele, descortinando-o. Assim, não só valorizando a paisagem natural, mas
lembrando toda a formação da cidade, fincada no delta dos rios, à cultura holandesa que
nos fez cidade diferente das de herança portuguesa. Tornando Recife cidade singular.
Quando se defende o conjunto da Avenida Guararapes como paisagem cultural – conceito
até hoje muito discutido e pouco utilizado pelas organizações que promovem os
tombamentos de “monumentos” como patrimônios nacionais e da humanidade –têm-se o
intuito de promover uma discussão, uma reflexão quanto à classificação correta dos
patrimônios brasileiros formados por conjuntos de construções e, muitas vezes, também
formados pela união das construções com o ambiente natural, e que até agora sempre
classificados apenas como conjuntos arquitetônicos e sítios históricos pelo Iphan, quando
muitos deles são a expressão material da história e da alma de uma cidade ou até mesmo
uma nação.
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