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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB
ISSN 1809-0354 v. 6, n. 3, p. 562-571, set./dez. 2011
DA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO À SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA1
Entrevista com Régine Sirota
Universidade Paris Descartes (Sorbonne)
Esta entrevista, inédita em língua portuguesa, foi originalmente publicada em
junho de 2005 na revista francesa Diversité em um numero especial sobre “Crianças
na cidade” (les enfants dans la ville) e conduzida pela jornalista Marie Raynal2.
Nessa entrevista, Régine Sirota explica como e porque passou da Sociologia da
Educação (área em que era uma renomada pesquisadora) para uma área disciplinar
ainda pouco conhecida na França: a Sociologia da Infância. Régine Sirota é hoje
uma das mais conhecidas pesquisadoras no campo da Sociologia da Infância na
Europa e, certamente, a mais atuante e conhecida na França. Ela coordena o GT
(grupo de trabalho) de Sociologia da Infância no interior da AISLF (Associação dos
Sociólogos de Língua Francesa) e da AIS (Associação Internacional de Sociologia) e
tem uma vasta produção sobre o tema em livros e artigos publicados em todo o
mundo, incluindo o Brasil. O texto original dessa entrevista foi atualizado (para essa
publicação na Atos de Pesquisa em Educação) por Régine Sirota em relação à sua
produção após 2005 e também em relação aos seus artigos já traduzidos e
publicados no Brasil.
Entrevistadora: Régine Sirota, eu gostaria que a senhora nos ajudasse a fazer um
balanço sobre a evolução da Sociologia da Infância que cresceu muito na França
nestes últimos anos. De início, pode nos explicar como se passa da Sociologia da
Educação para a Sociologia da Infância?
Régine Sirota (RS): Eu comecei meu trabalho investigando o cotidiano da escola
primária, o cotidiano da sala de aula e a construção do fracasso escolar numa
perspectiva complementar aos estudos clássicos de Pierre Bourdieu, Claude
1
Introdução, tradução para o português e revisão científica de Rita de Cássia Marchi. Digitação de
Tiago Ribeiro dos Santos, mestrando do PPGE-ME da FURB.
2
Interview Régine Sirota (par Marie Raynal). Diversité (Les enfants dans la ville). 141,
juin.
2005,p.65-69.
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Passeron e Baudelot e Establet3. Na Sociologia da Educação, no plano
macrossociológico, a gente tinha uma boa demonstração do caráter seletivo da
escola – tanto termos da produção quanto da reprodução do fracasso escolar, mas
desconhecíamos ou sabíamos muito pouco sobre o que acontecia no interior da sala
de aula. O que me interessava era compreender, de um ponto de vista empírico,
mais preciso e microssociológico, como era interação entre professores e alunos no
cotidiano da sala de aula, como as coisas aconteciam, como se construía isto que os
sociólogos ainda não haviam investigado na França, na época. Eu acabei, assim,
por
me
interessar
pelos
alunos.
Ninguém,
nessa
época
se
interessava
verdadeiramente por isso, sobretudo no nível da escola primária. Os pesquisadores
se interessavam, essencialmente, pelos professores. Pensava-se que esses é que
tinham todo o domínio, que eram o pivô, no sentido exato do termo, da situação.
Esse raciocínio estava suficientemente bem construído no plano teórico, em torno da
noção de habitus, que
explicava o comportamento dos alunos , mas nós
conhecíamos pouco, no plano empírico, quanto ao que dizia respeito à socialização
real dos alunos. Eu encontrei esta dificuldade trabalhando numa enquete na
biblioteca infantil da Beaubourg (Centre Georges Pompidou)4: quem freqüentava a
biblioteca? como vinha até a biblioteca? como a prática cultural da leitura podia ser
apreendida? Havia poucos trabalhos na época sobre este assunto e ainda menos
sobre as crianças e o livro. Enfim, a gente não sabia muita coisa sobre as crianças.
Havia, portanto, uma verdadeira necessidade de pensar a educação em seu
conjunto e não somente no seio do sistema escolar, ou mesmo no seio das
instituições culturais. Era preciso poder considerar a educação em sua globalidade,
passar do “ofício de aluno” ao “ofício de criança”. Foi assim que, pouco a pouco, eu
me interessei por uma Sociologia da Infância e me dei conta que ela já tinha sido
desenvolvida no nível anglo-saxônico com dez a quinze anos antes de nós
(franceses).
3
SIROTA, R. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, 168p.
HENRIOT, A.; DEROUET, J.L., SIROTA,R., "Abordagens etnográficas em Sociologia da Educação: escola
e comunidade, estabelecimento escolar, sala de aula". In: FORQUIN, J.C. (org.). Sociologia da
Educação, Dez anos de pesquisa. Petropolis: Vozes, 1996. p.205-298.
4
EIDELMAN, J., SIROTA ,R., "Des petits rats en bibliothèque : pratiques culturelles à la bibliothèque des
enfants du Centre G. Pompidou", Bulletin des Bibliothèques de France, tome 32, n° 5, 1987, p.
420-429.
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Entrevistador: Como se explica isso? Por razões históricas? Quer dizer que é porque
a criança não tinha importância na sociedade e tinha ainda menos há alguns anos
atrás?
RS – Na França, a gente considerava suficiente considerar a criança enquanto aluno
ou enquanto membro de uma família; isto é, a criança a partir das estruturas ou das
instituições às quais ela pertencia e que a tinham sob guarda. A tradição republicana
fazia desaparecer a criança por trás do aluno. Então, em outros países, no plano
teórico, se começa a constatar uma abertura que leva em conta a criança como
indivíduo de pleno direito e como ator. É absolutamente certo que isso acontece
bem antes da sociologia francófona. Esse “retorno do ator”, esta redescoberta das
teorias interacionistas, esse recrudescimento das sociologias interpretativas, toda
essa corrente teórica existiu primeiro no conjunto dos países escandinavos, nos
Estados Unidos e na Inglaterra, mas a gente encontra também isto na sociologia
alemã. Eu penso que isso traduz uma relação diferente com o indivíduo em termos
de filosofia política. Na sociologia francesa, as teorias marxistas foram dominantes
durante longo tempo e produziram aquilo que a gente chama de “glaciação teórica”.
A Sociologia da Educação francesa foi dominada por muito tempo por esse tipo de
abordagem, enquanto a questão das relações de classe e a desigualdade de
oportunidades eram questões menos evidentes nas outras sociologias. No quadro
de um trabalho de comparação internacional sobre o surgimento e a evolução da
Sociologia da Infância em uma dezena de países5, nós pudemos contatar que outros
campos teóricos estavam em jogo. Na sociologia anglossaxônica, por exemplo, o
feminismo tomou seu lugar muito mais cedo e uma das raízes do interesse pela
criança encontrou sua fonte, paradoxalmente, entre outras, no interior das análises
que foram produzidas pelo feminismo, notadamente pelos estudos de gênero. Esses
últimos reintroduziram na cena teórica a mulher. A partir dessa reintrodução é o
conjunto das minorias que reencontram um lugar e uma linguagem. Num primeiro
5
Essa comparação foi realizada no quadro do Comitê de Pesquisa (GT) Sociologia da Infância da
Associação Internacional de Sociologia (AIS). Foi confrontado, através das relações nacionais
colocadas sobre uma grade comum, a evolução da Sociologia da Infância em uma dezena de
países : Alemanha, Inglaterra, Austrália, Brasil, Finlândia, França, Itália, Países Baixos, Romênia,
EUA. O resultado dessa comparação internacional se encontra em:
BUEHLER-NIDERBERGER, D. & SIROTA, R. (eds.). « Marginality and Voice, Childhood in Sociology and
Society”. Current Sociology, 58 (02), 2010.
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momento, as teorias feministas colocam um véu sobre o lugar da criança, na medida
em que a criança é inicialmente considerada uma carga que contribui para a
alienação feminina. Depois, em um segundo momento, se passa a levar em
consideração o conjunto dos membros da família, não somente as mulheres, mas
também as crianças, para se interessar por seus estatutos e por suas vivências
respectivas. Foi o caso, por exemplo, de Lina Alanen, socióloga feminista finlandesa,
uma das iniciadoras do grupo de Sociologia da Infância na AIS (Associação
Internacional de Sociologia), que vai se inspirar na sociologia crítica feminista.
Participando dos trabalhos da AIS eu me dei conta, portanto, que nós (franceses)
estávamos muito em atraso e que a intuição que eu tinha da necessidade de uma
Sociologia da Infância era pertinente. Há dez anos, e isso é, portanto, relativamente
recente, me pareceu necessário criar no nível francófono uma rede específica sobre
a Sociologia da Infância no seio da AISLF (Associação Internacional dos Sociólogos
de Língua Francesa) porque havia poucas trocas e os anglossaxônicos não liam o
que era escrito em francês. Anteriormente, ninguém se proclamava da Sociologia da
Infância; a criança era verdadeiramente um fantasma nas pesquisas educacionais; e
nós éramos tão pouco numerosos que foi, evidentemente, no nível europeu que o
trabalho se fez. A primeira publicação a esse respeito foi um número da revista do
Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas, coordenado por Suzanne
Mollo-Bouvier e intitulado “A Criança e as Ciências Sociais”.6
Entrevistador: Isso não surpreende, pois quando a gente trabalha sobre o
tema das “crianças na cidade”, têm-se enorme dificuldade para encontrar trabalhos
de pesquisa. Na França, foi Marie-José Chombard de Lauwe quem começou as
coisas...
RS – Sim. Mas, era um trabalho relativamente isolado e que permanecia, em
Sociologia, verdadeiramente embrionário, na medida em que a disciplina nobre por
excelência sobre a criança era a Psicologia, com seus dois complementos, a
psicologia do desenvolvimento e a psicanálise. Considerar que a Sociologia tinha
motivos para se interessar pela criança constituiu neste sentido uma verdadeira
ruptura. Num primeiro momento, eu coordenei a publicação de dois números da
6
SIROTA, R. « L‟enfant dans la sociologie de l‟éducation un fantôme ressuscité? » Enfance et
Sciences Sociales. Revue de l’Institut de Sociologie. Université Libre de Bruxeles, n.1-2, 1994. P.
147-163.
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revista “Educação e Sociedades”7 sobre a Sociologia da Infância, que são os dois
primeiros números que tratam diretamente desse assunto na França e eu tentei, no
editorial, traçar o histórico desse interesse pela Sociologia da Infância, enquanto
Cléopâtre Montandon fazia, no mesmo número ,um balanço da literatura anglosaxônica sobre o assunto. Depois, num segundo momento, no surgimento das
jornadas anuais de Sociologia da Infância8 nós produzimos uma obra coletiva que
reúne os trabalhos de 28 pesquisadores de oito países, intitulada: “Éléments pour
une sociologie de l‟enfance”, publicada em 2006.9 Uma das dificuldades importantes
e uma das ambições desta rede internacional é reunir as perspectivas de uns e de
outros e de fazer convergir os campos, porque não se pode dizer que não havia
nenhum sociólogo que se interessava pela criança, mas que cada um se interessava
em função de problemáticas bastante específicas. Reunir é, portanto, necessário,
mas reunir sobre o que?
Primeiro problema: como delimitar essa categoria de
idade? A sociologia da juventude de um lado e a sociologia da pequena infância de
outro são já largamente desenvolvidas, como demonstram os trabalhos de síntese
de Olivier Galland, por exemplo.
Mas a gente permanece ainda no período de
entrada na vida que suscita muitas discussões teóricas: será que a juventude é um
grupo social homogêneo, por exemplo? Esse período da vida é largamente estudado
e com problemáticas amplamente centradas sobre a transição para a vida adulta, a
inserção no mercado de trabalho ou ainda a entrada na universidade. A sociologia
dos estudantes que não tinha, durante 25 anos, nada produzido diante da
massificação do ensino superior, deu lugar recentemente a muitos trabalhos. Outra
temática: o adiamento do casamento, a instituição do concubinato, todas as formas
de entrada na vida de casal, etc. De outro lado, a sociologia da pequena infância é
essencialmente desenvolvida no nível das instituições que tomam conta das
crianças, assim como mostra Eric Plaisance. Mas não existia nada sobre o que se
7
SIROTA , R., (dir.). « L‟emergence d‟une sociologie de l‟enfance, évolution de l‟objet, évolution du
regard ». Dossier : Sociologie de l‟enfance 1. Education et Sociétés. n. 2, p. 9-16, 1998.
Esse artigo se encontra traduzido e publicado em português: SIROTA, R.,"Emergência de uma
Sociologia da Infância : evolução do objeto e do olhar”. Cadernos de pesquisa, Fundação Carlos
Chagas, São Paulo, Mai 2001, n°112, p.7-31.
8
A primeira jornada aconteceu na Universidade Paris V (Sorbonne) em 2001, depois
sucessivamente, em Genebra (2002), Lisboa (2003), Tours (2004), Roma (2005), Strasbourg (2006),
Istambul (2008), Quebec (2009), Paris (2010), Lisboa (2011). A próxima jornada será em julho de
2012 em Rabat (Marrocos), durante o próximo Congresso da AISLF.
9
SIROTA, R.(ed.) Eléments pour une sociologie de l’enfance, Rennes , PUR, 2006.
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passa entre a pequena infância e a juventude. Havia um vazio total. Ora, a gente
não pode pensar unicamente a criança como um devir, é preciso pensá-la também
no presente! A idéia é preencher este vazio. É claro, a gente se depara com o
problema dos limites da idade da infância. Eu penso, a esse respeito, que o que nos
interessa, de fato, é toda a idade da vida que está sob o estatuto da menoridade,
isto que se passa no nível daquilo que nós, sociólogos, chamamos esta forma
estrutural que é a infância. Como a sociedade deve pensar esta forma?
Os trabalhos dos historiadores foram inovadores e pioneiros deste ponto de
vista, como os trabalhos de Phillipe Ariès, que mostraram que o sentimento de
infância muda ao longo do tempo, mesmo que esse estudo tenha sido discutido
posteriormente. A gente pode dizer que idéia geral é de levar em consideração esta
forma estrutural que é a infância e de tentar compreender sua especificidade na
modernidade em relação à sua evolução histórica. Não há, portanto, razão de
retomar esses recortes de idade, pois que, para nós, eles são também uma forma de
construção social que também muda ao longo do tempo. São estes recortes
essencialmente institucionais provocados pela forma escolar que fazem que, quando
a gente pensa em infância, a gente pensa formas de cuidados: a idade da creche, a
idade do maternal, a idade da escola primária, a idade do colégio, a idade do liceu, a
idade do ensino superior. É uma forma pontual, é uma maneira de ver as coisas,
mas é uma construção institucional que nos propõe os modos de cuidados sociais
essencialmente organizados em torno da guarda das crianças ou da sua
escolaridade. Trata-se de uma forma como qualquer outra, a nós cabe desconstruíla para compreender as questões que estão em jogo. Isso implica num
questionamento sobre as “idades da vida”. Os sociólogos anglossaxões dizem,
então, com razão, como Jens Qvortrup, que as crianças são, entre as minorias, os
menos protegidos, porque eles não são seus próprios portavozes. A velhice, o papyboom chegando10, suscitam questões em termo de prestações sociais, por exemplo.
É preciso tratar as arbitragens sociais deste ponto de vista, entre a primeira idade de
um lado e a terceira, quarta e quinta idade, etc. Mas, como mostra Esping Andersen,
10
Nota da tradução: com a expressão « papy boom » a autora se refere ao aumento do numero de
pessoas idosas na França (e em toda a Europa), isto é, pessoas em idade de se tornarem avós
(« papy » em linguagem afetiva). A expressão é utilizada em referência à chegada à aposentadoria
das crianças nascidas no « baby boom » (explosão demográfica) do após guerra, nos anos 50.
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essas problemáticas estão todas ligadas porque uns produzirão e pagarão pelos
outros.
Entrevistador: Preparando esse número e o discutindo especialmente com os
políticos e os responsáveis pela educação, eu fiquei surpresa com as dificuldades
que têm de compreender a questão do lugar da criança na cidade. É muito difícil
para eles, porque isso não é uma questão política maior. A gente lhes pede que se
ocupem das escolas, das creches, mas como você disse, dentro de tipos estruturais
e temporais fragmentados. Quando eles tentam pensar a organização da cidade de
maneira um pouco mais ousada, eles ainda têm pouco retorno político e social. É
como se a gente esperasse que as crianças acabassem logo de crescer!
RG – A gente pensa unicamente a criança em devir, mas elas estão todas, no
entanto, existindo nesse momento. A infância é uma forma estrutural permanente na
sociedade. As crianças vão passar dessa forma estrutural e se tornarem adultos,
mas toda a sociedade organiza essa forma. É preciso, portanto, se interessar pela
maneira pela qual essa forma estrutural (a infância) é organizada e como ela pode
variar. As diferentes sociologias se ocupam disso de maneira muito parcial. A gente
tem, por exemplo, uma sociologia da mídia que se interessa pelas crianças, pelos
jovens e por sua relação com a televisão num primeiro momento; depois, diante do
surgimento da internet, se interessa pelos novos comportamentos da tribo dos
“nativos digitais”.11 De outro lado, a gente pode ter uma Sociologia da Educação que
se interessa pelos jovens no interior da escola e por sua relação com a escolaridade.
Mas, ainda uma vez, é preciso reunir esses olhares em uma mesma rede mostrando
quanto o conjunto das modalidades da socialização da infância muda, cada aspecto
reagindo ao outro, é uma criança bem diferente que entra na escola hoje, porque os
modos de sociabilidade e o contexto cultural estão passando por grandes
transformações. É um objeto que mudou muito também em relação ao interesse que
ele suscita. A gente não o olha jamais frontalmente e ao mesmo tempo ele é
composto por uma mistura de imagens contraditórias: a criança-rei se torna um bem
raro dentro da família como Irène Théry bem mostrou ao estudar a relação de
filiação e a distinção entre conjugalidade e parentalidade; ou a criança-vítima,
11
SIROTA , R., «Les métiers de l‟enfant à l‟âge de l‟internet, métier d‟enfant, métier d‟élève ». In :
Nunes de Almeida, A., (ed.). Childhood, Children and the Internet: Challenges for the Digital Age,
Fondation Calouste Gulbenkian, Lisbonne. (a ser publicado em português)
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submetida à maus tratos – em parte, uma novidade, mas não necessariamente como o atestam os trabalhos, por exemplo, de Georges Vigarello sobre a história do
estupro ou os trabalhos de Laurence Gavarini sobre a indústria da criança
maltratada. A gente tem uma idéia da centralidade da criança, mas somente com as
imagens contraditórias e fragmentadas dos especialistas. A gente pode resumir as
coisas considerando duas sucessivas visões diferentes:12 em um primeiro momento,
a gente considera a criança em devir segundo a percepção durkmeniana; duma
transmissão de geração para geração que fazia surgir o ser social, ser frágil, porque
se precisava construir a educação. Era a tarefa das gerações anteriores. Em um
segundo momento, a gente considera a criança como um ser no presente, como um
ator, em parte conduzindo sua própria socialização e que reinterpreta a educação
que lhe é dada. A gente vai se interessar por sua própria percepção, suas
competências e a considera como um ator individual e coletivo e, portanto, se
interessa pela produção das culturas geracionais, pelas culturas da infância no
contexto de uma sociedade global e mercantil que mudou muito. Além disso, a gente
pode observar um certo tipo de reverberação: os saberes especialistas sobre a
criança – psicologia, psicanálise – se constituíram e se difundiram largamente
vulgarizados e mediatizados, o que é certamente uma especificidade da
modernidade. É, portanto, uma infância “refletida”13 a que se coloca agora ao olhar
do sociólogo que tem muito a trabalhar para compreender quais são as concepções
ideológicas desses saberes especialistas como faz, por exemplo, Gérard Neyrand,
considerando
que esses saberes desenvolveram quadros normativos que
produziram regulamentações e mudanças jurídicas. É interessante ver, por exemplo,
de uma parte, do lado da sociologia jurídica, como a posição da criança vai mudar. A
partir da convenção internacional dos direitos da criança, e de outra parte, do lado
da biologia e da bioética, como a constituição do surgimento do „bebê de proveta‟
muda nosso olhar sobre o estatuto da criança. As disciplinas afins como a filosofia
12
SIROTA, R. “A indeterminação das fronteiras da idade ». Perspectiva, Florianópolis :UFSC, v 25,
n°1, jan/jun, p.41-56, 2007.
13
Nota da tradução: « une enfance en miroir » no original francês. Aqui, Régine Sirota se refere
(embora não o cite especificamente) ao fenômeno da “reflexividade” moderna, teorizado pelo
sociólogo britânico Anthony Giddens. Trata-se do fato de que o conhecimento produzido nas Ciências
Sociais passa, através de sua divulgação e/ou vulgarização no cotidiano social, a transformar as
práticas sociais que por sua vez serão constantemente reexaminadas e redefinidas à luz de novas
informações sobre estas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter.
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política têm também trabalhado muito estas questões, seja em termos da criança
como nosso “igual paradoxal” ou “da criança desejada”. Reunir estes trabalhos e
tentar dar um olhar articulado é, portanto, um desafio. Se a escola está em
dificuldades atualmente, é também porque a criança que entra nessa escola mudou,
porque o lugar que lhe é destinado mudou, porque as relações de autoridade
mudaram, porque as relações entre a escola e família mudaram. Trata-se de
compreender os desentendimentos que se produziram, porque a criança se tornou
um „problema‟, e como se poderia refazer o consenso em torno da criança.
Entrevistador: O círculo se fechou. A criança vítima, a criança problema, a criança
rei: a gente vê ressurgir a questão da infância sob ângulos muito contraditórios.
RS – Os cuidados relacionados à infância são paralelos à importância dada à
questão dos maus tratos da infância. Essa é uma contradição que é importante
compreender melhor, porque as figuras da infância se multiplicaram, circulando
entre esferas científicas, políticas e midiáticas, refletindo e suscitando ao mesmo
tempo emoção, compaixão e paixão. 14 O investimento sobre essa criança “pseudorei” cresceu no seio da circulação da afetividade na esfera privada, sobre o plano
institucional no seio de políticas sociais e também no plano do consumo. A
sociedade mercantil tomou a criança “prescritora”
15
como um verdadeiro ator. O
mercado se endereça diretamente a essa criança, ela é dotada de mesada e a
sociedade produz para ela objetos específicos, jogos, vestuário, alimentação e se
apóia sobre a cultura do grupo de pares. Ora, não há quase trabalhos sobre a
infância comum. Eu trabalho, por exemplo, com o aniversário como ritual de
socialização16. É impossível conseguir financiamentos de pesquisa neste contexto.
14
SIROTA, R. « Les figures de l'enfance, de la sphère médiatique à la sphère scientifique ». In :
HAMELIN-BRABANT, L.& TURMEL, A. (eds.) Les figures de l’enfance d’hier à aujourd’hui: continuité,
discontinuité, rupture, traduction. (5-16) Québec : Presses Interuniversitaires,2011. (no prelo)
15
Nota da tradução: “l‟enfant prescripteur”, em francês. Aqui, Régine Sirota se refere ao fato do
mercado e da publicidade considerarem que as crianças influenciam as compras dos membros
adultos da família. Nesse sentido, as crianças também “prescrevem” (determinam) o consumo da
família e são, portanto, vistos pela publicidade comercial como consumidores ativos.
16
SIROTA, R. "As civilidades da infância contemporânea: o aniversário ou a descodificação de uma
configuração". Dossiê As cores da Infancia- realidades fragmentadas. Forum Sociologico,
IEDS/Universidade Nova de Lisboa, nº 3/4, 2000, p. 49-70.
SIROTA, R. « Primeiro os amigos : os aniversários da infância, dar e receber» Educação e
Sociedade. (Dossiê Sociologia da Infância: pesquisas com crianças) n. 91, vol. 26, 2005, p.535-562.
SIROTA, R. "As delícias do aniversário: uma representação da infância" Revista Eletrônica de
Educação. www.reveduc.ufscar.br
SIROTA, R. « Idas e vindas no caderno de campo: o trabalho do sociólogo em família - a observação
de um rito de socialização da infância.» In: NASCIMENTO, A. M. (org). Educação Infantil e Ensino
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Os trabalhos sobre os assuntos da infância tais como jogos, como aqueles de Gilles
Brougère, ou a literatura infantil são bastante recentes. O quadro ordinário da vida
das crianças no contexto de uma
vida
majoritariamente urbana não é
freqüentemente levado em conta. A infância de qualquer tipo permaneceu por muito
tempo invisível. Pouco a pouco os pesquisadores passam a dispor de dados. A
criança sempre foi um esquecido das estatísticas. Pela primeira vez, em 2004, o
ministro da cultura francesa publicou um recenseamento das práticas culturais das
crianças de 6 a 14 anos, o que é muito revelador. Depois foi preciso esperar até
2010 para que as duas temáticas - infância e cultura - se juntassem17 e se
tornassem assunto de um importante colóquio internacional na França18. Importa
para um sociólogo considerar a criança como ator, mas não simplesmente numa
visão etnográfica. É preciso considerar a infância em sua forma estrutural e a
reintroduzir como variável estatística para que a infância seja visível na descrição
sociológica e para que seja reintroduzida na nossa interpretação do mundo.
RÉGINE SIROTA
Diretora do Departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Paris Descartes (Sorbonne). Professora de Sociologia da Educação e de
Sociologia da Infância e pesquisadora do Centro de Estudos de Relações Sociais (CERLIS)
da Universidade Paris Descartes e do Centro Nacional de Pesquisa Cientifica (CNRS/FR).
Fundamental: contextos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Nau Editoria, EDUR, p.207-238,
2011.
17
SIROTA, R. « De l‟indifférence sociologique à la difficile reconnaissance de l‟effervescence culturelle
d‟une classe d‟âge ». In : S. OCTOBRE (ED.). Enfance et culture. Paris : Ministère de la culture et de la
communication, p17-36,2010.
18
Trata-se do Colóquio intitulado « Infância e Cultura » organizado pelo Ministério da Cultura
francesa e pelo Comitê de Pesquisa (GT) Sociologia da Infância da AISLF. Os anais desse colóquio
acabam de ser publicados em forma eletrônica: OCTOBRE, S. & SIROTA, R., (eds.) (2011). Enfance et
cultures sous le regard des sciences sociales. Actes du colloque international, Ministère de la Culture
et de la Communication – Association Internationale des Sociologues de Langue Française – Université
Paris
Descartes,
9ème
journées
de
sociologie
de
l‟enfance,
Paris,
2011.
http://www.enfanceetcultures.culture.gouv.fr/
Download