Figuras da Dança no Cinema – 4º Módulo e simetrias têm uma presença fugitiva no filme: vão e vêm, nunca concentrando os fragmentos num todo estável. Tal como muitos diárioscolagem, Deux Fois está assombrado pela perda e pelo esquecimento, uma escrita do desastre. Não obstante, o filme vibra com uma aura de relações – potenciais, obscuras, mas profundamente reconhecíveis, aquilo a que Jonathan Rosenbaum chama de “formas sensuais de duplicidade (…), formas secretas de acordo e concordância, bem como (…) pontos de tensão”. Assim estruturados, alguns desses motivos permitem abordar o feitiço particular deste filme. Narrativa · O título Deux Fois é uma referência à linha que inicia todos os contos de fadas: “era uma vez…”. Este filme é o esquisso de um espaço narrativo que se forma: “eram duas vezes…” Isto significa tudo ao mesmo tempo: um novo tipo de história; uma história contada de um modo diferente; uma história permanentemente perdida e reencontrada; e uma história sempre a recomeçar (tal como nos segmentos em que vemos diferentes takes da mesma acção: Jackie com o espelho de mão; Jackie na farmácia). Raynal prevê, anuncia o filme que vamos ver e ouvir: juntando os fragmentos numa ordem a que se chegou, presumivelmente, ao completar o processo fílmico e anunciando essa ordem desde o início (como se tudo fosse pré-ordenado, planeado). Isto faz com que assistir a este filme se transforme num processo estranho, cómico, difícil de explicar [como em Grand Opera, de James Benning, 1979]. É claro que o inventário não corresponde exactamente ao que se segue, e estamos constantemente a tentar alinhar os dois textos. Teatro · O arco do proscénio nunca está longe em Deux Fois. A cena entre Raynal e um homem é interpretada no jogo irónico na ombreira de uma porta, como se se tratasse de uma re-encenação de uma cena quotidiana. Uma passagem de La Vida es sueño é encenada e interpretada. É difícil ver onde começam e acabam as disposições domésticas e a peça ou o palco: este é o entusiasmo infantil do plano-sequência (a evocar também os filmes de truques de Méliès) em que Raynal aparece duas vezes no mesmo movimento panorâmico numa sala. A vida quotidiana torna-se, num primeiro momento, teatro e, num segundo, mera significação gráfica: daí a sequência animada do néon que mostra um homem e uma mulher numa dança erótica e violenta. O casal · Jonathan Rosenbaum descreve o filme como sendo “sobre um casal e sobre o acasalamento”. O casal homem-mulher está presente simultaneamente no seu ideal hippie (a “aventura do casal” como lhe chamou Daney) e na sua falência. As mãos que puxam o cabelo e a cabeça de Raynal; o riso demoníaco do homem para a câmara, apagando a presença da mulher; a pantomima extravagante de paixões no placar em néon. O ideal do casal e a sua falência funcionam como figuras formais: o filme está por um lado repleto de rimas, reflexos e repetições; e por outro, de estilhaços de material adicional, fragmentos espalhados que nunca são apresentados como um padrão coerente. Sonhos e Fantasia · “As imagens das nossas imaginações são reais”. Esta frase, dita por Raynal, evoca a herança surrealista que subjaz ao filme (tal como o título La Vida es Sueño). É uma declaração rica e ambígua. Quererá dizer que todas as imagens do filme são imagens da imaginação? Se são, da imaginação de quem – do inconsciente de Raynal ou de algum inconsciente colectivo? Estas imagens têm lugar na realidade ou ao seu lado, como num mundo paralelo? Resistem à realidade, lutam contra ela, por vezes ganhando, outras perdendo? Ou já absorveram a realidade? Se Deux Fois mostra um mundo de sonho, é apenas uma visão quebrada, gaguejada e intermitente. Algumas imagens do filme parecem intensificadas, românticas, expressionistas, oníricas (como a imagem fantasmal de Raynal a lutar contra o vento). Mas surgem no meio de material mais mundano, de tipo documentário. Entre estes dois pólos, tudo o que vemos e ouvimos – e Raynal recorre ao estilo de desenho de som prezado pela Nouvelle Vague – habitualmente um som dobrado à posteriori e flutuante sobre a imagem, para cada evento cinemático -, soa-nos perturbado, estranho, metade fora, metade dentro do real ou do imaginário. “Se Nerval precisa de ver e de caminhar no Valois, precisa disto como uma realidade que necessita de ‘verificar’ a sua visão halucinatória, ao ponto em que já não temos qualquer ideia do que é presente ou passado, mental ou físico.” A Figura da Criança · O segundo plano do filme, que mostra a pequena criança, parece colocado crucialmente e sugestivamente entre dois planos de Raynal. Será a criança que foi, apresentada de forma fantasmática e elusiva; ou a criança que queria ter; ou a criança que quer voltar a ser? Mais tarde, no campo, salta como uma criança (antes de cair, como Isadora Duncan, após tropeçar no cachecol). O título de uma fábula para crianças – Aquiles e a Tartaruga – aparece abruptamente, mostrado irracionalmente (prefigurado) durante a sequência da farmácia; mais tarde, um fragmento deste texto enche o ecrã. Mesmo com os seus diversos homens sedutores, ameaçadores e sinistros, Raynal parece uma rapariga: sussurra e ri, ou procura chamar a atenção. Como é que estes diferentes motivos se sustêm em conjunto? Tentar escrever o fio que conduz essas associações talvez seja uma armadilha, mas mesmo assim… Deux Fois é uma nova versão de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. Uma mulher entra numa metamorfose perpétua na qual se transforma numa criança. Entra neste ritual autoerótico, perpétuo, não tanto através de drogas alucinogénicas ou outros adereços dionisíacos (como o fizeram outros realizadores seus contemporâneos), mas através das pontes com a narrativa, a performance e o teatro: todas as máscaras e movimentos do artifício. No entanto, tal ‘regressão’ ou libertação do meio do imaginário é sempre ameaçada pela instabilidade e pelo perigo: esta mulher é constantemente arrastada de volta à cena societária e pública da sexualidade adulta, com os seus outros masculinos, misteriosos e atractivos, com os seus papéis e fardos. Deux Fois não é devoto da fantasia da Sagrada Família, a trindade icónica mãepai-filho familiar a Garrel; é mais, tal como Akerman, sobre os desafios difíceis e as passagens da mulher solitária – a sua absorção em si mesma e nas suas relações com os outros, dois modos vistos como igualmente impossíveis. Como propôs Skorecki, Deux Fois é “um dos filmes mais precisos sobre a paranóia”. Habitar num mundo em que “as imagens das nossas imaginações são reais” significa igualmente olhar de frente (como em Pont du Nord de Rivette [1981]), fixamente, prolongadamente e de cada vez, olhos vistos e não-vistos, os olhos dos homens, das crianças, de todos os cartazes publicitários, signos e ecrãs da sociedade do espectáculo. E, claro, também para o olho da câmara como um “dispositivo de agressividade”, com um olhar tão frio que só pode solicitar da mulher presa na sua barreira, um gesto histérico de despojamento (o “grito primordial” da micção). De Meshes of the Afternoon (1943) de Maya Deren (outra mestre do ritual-teatro-transe) a Deux Fois, aos filmes contemporâneos góticos e de horror de Mary Lambert (Siesta [1987]), Marina Sargenti (Mirror, Mirror [1990]) e Kathryn Bigelow (Blue Steel [1990]), o cinema au feminin tem-nos sempre mostrado esta “montagem de impulsos em que o que é visto e ouvido muda a perspectiva”: o terror da mascarada feminina, a fatalidade e reversibilidade das suas seduções, a sua flutuação selvagem, a insegurança e mutabilidade da sua identidade pessoal. No entanto, é precisamente no centro escuro desta tempestade mortal que também se encontra a sua beleza e poesia, o seu espírito cómico e a sua radicalidade selvagem. CINEMA · 1, 2, 14, 15, 28, 29, 30 DE ABRIL, 5 E 6 DE MAIO DE 2005 18h30 e 21h30 · Pequeno Auditório e Grande Auditório · 2 Euros (Preço único) Figuras da Dança no Cinema 4º Módulo – 6 de Maio, 18h30 Transições críticas da dança para o cinema (a partir de Yvonne Rainer) Trio Film de Yvonne Rainer, 1968 La Chambre 2 de Chantal Akerman, 1972 Line de Yvonne Rainer, 1969 Deux Fois de Jackie Raynal, 1969 A propósito de TRIO FILM [excerto de Other Solutions de Carrie Lambert, 2004. texto integral disponível em www.findarticles.com] A propósito de Chantal Akerman e Yvonne Rainer [excerto de Nothing Happens: Chantal Akerman's Hyperrealist Everyday de Ivone Margulies] Também aqui, Rainer exemplifica a neutralidade das vanguardas da década de 60. Filmado em 1968, Trio Film foi realizado no auge da notoriedade do Minimalismo nas artes visuais. A arte minimal tinha-se transformado num –ismo, apresentada em diversas exposições em museus, percorrendo a Europa, representando a nova arte oficial contemporânea dos Estados Unidos. A própria teorização de Rainer sobre a estética minimalista, surgira na antologia base do movimento, escrita por Gregory Battcock e publicada nesse mesmo ano. Acontece que o apartamento em que Trio Film foi filmado, pertencia à galerista Virginia Dwan que, nos anos 60 representava artistas como Carl Andre e Sol LeWitt. Mas não precisaríamos de conhecer o seu dono para identificar o último grito do ‘minimal chic’: a mobília branca, rasteira, moderna, contra as paredes brancas, numa carpete também branca; nem para reconhecer no filme uma provocação, ainda que branda, à seriedade da arte minimalista. Depois de assistir a Trio Film projectado no palco, ao lado de um filme pornográfico, na performance de Rainer, Rose Fractions, Carl Andre escreveu uma carta de admiração a Rainer comentando que “fazer amor assemelhase mais ao filme erótico mas sente-se mais como o filme do balão.” O que a justaposição permitiu ver a Andre, foi que a estética da objectividade tinha sido transformada por Trio Film; para si, transformada numa metáfora da experiência subjectiva em si mesma. O filme permanece um documento de uma tentativa da época em pensar o corpo humano como fazendo parte do mundo físico, um objecto entre objectos. Mas os prazeres do filme – para nós e para os intérpretes – activam as disparidades entre objectos inanimados e animados, masculino e feminino. As semelhanças entre os seios, os genitais e os balões é engraçada, precisamente porque no mundo exterior, à clausura do branco-sobre-branco, elas são tão diferentes. Trio Film não se assemelha à escultura minimalista no modo como regista a absurdidade potencial das suas premissas. A estadia de Chantal Akerman nos Estados Unidos, no início dos anos 70, expôs a cineasta ao cinema experimental, à arte minimal e à nova dança americana e arte performativa. Em 1972 frequentou os Anthology Film Archives, o Millenium [o cinema] e assistiu a diversas performances relevantes, na companhia da operadora de imagem e realizadora Babette Mangolte. Uma discussão breve dos antecedentes não-cinemáticos da estética dos seus filmes permite uma compreensão da importância da representação em tempo-real na década de 70, e a tendência natural e fenomenológica que marca o seu realismo, entendida no contexto do revisionismo da arte modernista que teve lugar nos Estados Unidos a partir da segunda metade da década de 60. (…) Ao contrário de um “espectatorialismo abstracto”, o minimalismo propõe uma experiência exercida por um sujeito, cuja “densidade corpórea é ao mesmo tempo garantida e realizável pela inter-conectividade de todos os seus campos sensórios, de tal modo que uma visualidade abstraída faça tanto sentido quanto uma tactilidade igualmente abstraída.” Nos trabalhos de minimalistas como Donald Judd e Robert Morris, quer a “forma unitária” – forma sem configuração interna -, quer a serialidade, forçam os observadores a confrontar o seu conceito da aparência de uma forma.(…) Parte significante da metáfora corporal da carne e do esqueleto defendida por Akerman sugere que, o corpo-em-geral, referido pelos minimalistas nos anos 60 é, como discute Rosalind Krauss, o mesmo corpo particularizado na arte dos anos 70 e 80. Um exemplo claro do modo como a percepção do espectador sobre a sua própria fisicalidade pode ser relacionado com uma estética politizada, é exemplificada pelo cinema de Akerman e Yvonne Rainer. Je tu il elle (1974) demonstra claramente a dívida de Akerman para com os princípios minimalistas da serialidade acumulativa. No filme, Akerman explora ao Culturgest, uma casa do mundo. Culturgest, uma casa do mundo. Informações 21 790 51 55 · Edifício Sede da CGD, Rua Arco do Cego, 1000-300 Lisboa [email protected] • www.culturgest.pt Informações 21 790 51 55 · Edifício Sede da CGD, Rua Arco do Cego, 1000-300 Lisboa [email protected] • www.culturgest.pt Figuras da Dança no Cinema – 4º Módulo limite uma conjugação de posições para si própria e para o seu adereço, um colchão. Adere ao movimento de Yvonne Rainer de exposição do quotidiano [everydayness] concreto na performance e ao mandato da coreógrafa e bailarina que implica que uma performance possa enfatizar o movimento em deterimento da psicologia. O mover do colchão no quarto em Je tu il elle e o uso das malas e das caixas por Rainer em Grand Union Dreams (1971) são exemplos de tarefas pré-definidas em que o objecto, mais do que ser o objecto de uma acção convocada pelo personagem ou pelo enredo, é um adereço que torna objectos o gesto e o movimento, banaliza-os. (…) Implícitos em todos estes processos [excesso de informação, nãointencionalidade, silêncio, formas simplificadas, serialidade, aleatoriedade, e no cinema, planos longos e fixos] está a exaustão do significado. As formas puras, holísticas, e a interminável substituição e justaposição de planos paradigmáticos, bem como a acumulação de jogos formais, são estratégias para desviar a significação. Uma forma simplificada, conteúdo e o processo, podem contrapor à apreensão lógica um excesso de associações (tal como nos jogos de estruturas propostos por Frampton, Snow e Landow). O filme de Richard Serra, Hands Scraping Lead (1968) visualiza um processo de redução, conduzindo literalmente a um ecrã ‘vazio’. O processo é de algum modo consonante com a repressão modernista do conteúdo e do privilégio dado às dimensões materiais e experienciais da arte; mas ao contrário do modernismo de Clement Greenberg, o projecto minimalista procura provocar um investimento subjectivo através de um sujeito que o aproxima do ecrã branco. (…) A redução de Akerman dos diversos elementos de escrutínio é de facto próxima do filme minimalista estrutural. Em todo o seu trabalho, a representação em tempo-real consciencializa o espectador da sua própria presença física. Também no seu trabalho estrutural, os planos fixos e longos combinam a aleatoriedade e os eventos únicos, contrapondo estrutura e jogo, realçando um aspecto da performance tão característico aos anos 70. Esta preocupação pode ser detectada nos primeiros filmes de Chantal Akerman como La Chambre 1, La Chambre 2, Hotel Monterey (1972) e ainda em News From Home (1977). La Chambre 2 é uma panorâmica de 360 graus de um quarto. Enquanto a câmara gira para a esquerda, Akerman está deitada na cama, de frente para a câmara, enquanto embala a cabeça contra as costas da cama. À segunda passagem está coberta e agita-se debaixo dos lençóis com o rosto meio descoberto. Na seguinte panorâmica circular, já quase sentada, olha distraidamente e come uma maçã. Não olha para a câmara mas brinca com a maçã por entre os dedos. A câmara pára no que percebemos ser metade da distância inteira da panorâmica, invertendo a sua direcção. Vemos Chantal a morder a maçã; a câmara prossegue e volta a virar para a esquerda. Está a morder a maçã e a olhar para a câmara. A câmara move-se para a esquerda e pára no mesmo sítio, movendo-se de novo para a direita. Chantal morde vigorosamente a maçã enquanto a câmara efectua uma volta inteira para a esquerda, reencontrando Akerman, que esfrega os olhos enquanto se deita, de frente para a câmara. Os rígidos parâmetros formais preparados para cada filme – a panorâmica de 360 graus em La Chambre 2, a imagem de todo o edifício da cave ao telhado, do anoitecer ao amanhecer, nos movimentos axiais de Hotel Monterey, os planos fixos simétricos de News from Home – permitem a acontecimentos fortuitos definirem-se como focos de atenção (…) Os filmes interpretados pela própria Akerman partilham desta dinâmica de evocação. Em Je tu il elle e em La Chambre 2, Akerman assume formas diferentes de interpelação em relação à câmara. Da indiferença da pose à confrontação resoluta, negando ou assumindo a trajectória aparentemente mecânica da câmara, Akerman cria momentos entrelaçados entre o seu olhar [gaze] e o da câmara. Numa dinâmica “puxa-empurra”, a sua presença nos filmes relaciona os espaços em frente e por detrás da câmara. Figuras da Dança no Cinema – 4º Módulo A propósito de LINE [excerto de Other Solutions de Carrie Lambert, 2004. texto integral disponível em www.findarticles.com] Tal como Volleyball e Trio Film, Line inclui um objecto esférico cuja fonte de movimento é desconhecida. Rodado por Niblock em 1969, o último dos pequenos filmes começa com uma bola negra que emerge do canto inferior esquerdo, sobre uma imagem branca e vazia, e que se move lentamente na diagonal do canto inferior para o canto superior. Ao contrário da bola de voleibol que rebola e do balão que flutua nas imagens de Rainer, o círculo negro move-se num movimento constante e lento que não está sujeito à gravidade ou à sua relação movimento-peso. Não há nada na imagem que nos confira a sensação de escala – a bola pode ser grande e distante ou pequena e muito próxima da câmara, e o espaço branco que a rodeia pode ser infinitamente profundo ou o contrário – até que um par de pernas vestidas com calças brancas entra no enquadramento. As pernas são seguidas pelo corpo de uma rapariga loura, com os olhos muito maquilhados, que se deita de barriga para baixo, de costas para o espectador. Esta intérprete, Susan Marshall, segura uma caneta e parece escrever numa superfície vertical à sua frente. Apesar de não percebermos o que escreve, o gesto faz com que este plano “apareça” num espaço cuja forma e tamanho estão agora definidos em relação ao seu corpo. O filme centra-se numa relação tri-direccional entre o objecto, o corpo humano e o espaço – que é o mesmo que dizer, a tríade que define a arte minimal. (…) Antes de mais Line revela-se como uma experiência, com a capacidade da câmara em distorcer a distância e a escala. Nunca temos a certeza do tamanho da bola preta ou da sua localização, mesmo quando o corpo da mulher nos fornece uma pista quanto às dimensões espaciais do plano. No encontro com os objectos minimalistas, essa disposição radica a obra de arte na sua relação com o espectador numa fisicalidade irredutível. Rainer encena um encontro similar como sendo um truque fílmico, um efeito especial. Quem observa é agora um espectador, fora da cena do encontro, sem corpo e sem lugar. Este filme de 1969 é importante pois marca a entrada do feminismo no pensamento artístico de Rainer. No que diz respeito à história da arte é igualmente relevante enquanto um momento de ruptura no modo neutro de corporalização do Minimalismo – a sua tendência para “posicionar o artista e o observador como iguais, não só historicamente inocentes, como sexualmente indiferentes”, como o coloca Hal Foster. Foster atribui esta dimensão de crítica ao Minimalismo ao trabalho de artistas feministas da década de 70 como Mary Kelley, Barbara Kruger e outras. Mas os primeiros trabalhos de Rainer são o lugar importante de onde se manifestou esse pensamento. É aqui que o corpo assexuado, aculturado, do Minimalismo, se torna gradualmente insustentável - o objecto torna-se em si mesmo objecto. A Noite Experimental: Deux Fois de Jackie Raynal Adrian Martin [em Jeune, dure et pure! Une histoire du cinéma d'avant-garde et expérimental en France] O cinema ‘no feminino’ faz-nos redescobrir o que o imperialismo do olho reprimiu: outros modos de montagem de impulsos, em que o que é visto e o que é ouvido muda a nossa perspectiva. Serge Daney, 1977 Let me see your beauty broken down Like you would do for one that you love Leonard Cohen, ‘Take this Longing’ Deux Fois (1971) começa com um anúncio apocalíptico directamente dirigido à câmara pela própria Jackie Raynal: “Esta noite será o fim da significação”. A partir daí o filme porá em acção o que Stephen Heath anunciou dramaticamente como “a ruína da representação”. A narrativa vai ser desconstruída; os corpos desfigurados; todos os sentidos conduzidos à imobilidade, ao silêncio, aos planos a negro… E, no entanto, será apenas isso que existe em Deux Fois, este sedutor, estranho e fantasmático clássico de culto da vanguarda francesa? Apenas ruínas e transgressões, descodificações, gestos heróicos de cancelamento e desafio? Apenas um “documentário sobre o lugar do espectador na sala de cinema” (Daney), com os estilhaços da parafrenália de dispositivos (câmaras, projectores) e o reflexo das suas luzes estonteantes? Apenas um exercício anárquico, mesmo masoquista, de cinema feminista, pronto a desfazer o monolito da “mulher enquanto signo”? No fragmento de abertura do filme, Raynal acrescenta outra declaração ao seu decreto apocalíptico sobre o fim da significação. O cinema pode acabar nesta mesma noite, mas Raynal, com um piscar de olhos, e com uma postura e voz dignas de uma screwball comedy, convida-nos a que nos instalemos e usufruamos do espectáculo: “Ladies and gentlemen, good evening”. Deux Fois convoca de modo espontâneo diversas influências, histórias e tradições. Alguns comentários apresentaram-no essencialmente como uma experiência formalista. Louis Skorecki denunciou a sua premissa paradoxal: uma montadora com experiência atreve-se (baseando-se no que, à altura, seria um constrangimento terrorista) “a fazer um filme (…) praticamente sem montagem”. Desenvolvendo esta ideia, Noël Burch celebrou-o como “uma meditação deliberadamente elementar sobre certas funções do filme, das quais se pode dizer que subentendem a própria montagem – expectativa, descrição da imagem, memória perceptiva, relações entre o dentro e fora de campo, todos explorados numa série de planos-sequência autónomos de uma incrível simplicidade.” Quatro anos mais tarde, o colectivo feminista da revista Camera Obscura, numa detalhada análise textual, segmenta o filme considerando as múltiplas transgressões que regulam o espaço, o “olhar”, a legibilidade, as pontas narrativas, funções das imagens de paisagens e corpos… Estas leituras são correctas – mas apenas até um certo ponto. É verdade, Deux Fois poderia ter sido inspirado pelo trabalho de Kurt Kren, ou por uma leitura delirante do clássico de Burch da década de 60, Praxis du Cinéma – reduzindo o cinema a um jogo incessante de entradas e saídas, espaços fora de campo, luzes brilhantes e apagadas, planos em movimento e planos fixos, uma espécie de demonstração prática e anti-ilusionista de todos os parâmetros de formas representacionais, conduzindo-os ao limite da abstracção e dissolução. Ou talvez o filme pretendesse apenas o cinzelar violento e feminista do dispositivo cinematográfico clássico (num espírito próximo dos Letristas, com toques de Valerie Solanis…). Raynal: “Sim, claro que foi promovido como um filme feminista porque estou na imagem 98% do tempo.” Mas há mais. Raynal cita influências surrealistas, Buñuel e Cocteau, bem como uma teatralidade inspirada por Rivette (o texto utilizado é de La Vida es Sueño de Calderon, mais tarde uma fonte para Ruiz). Encontramos sinais de Warhol em diversas sequências – especialmente na forma auto-representacional de Raynal, uma ‘superstar’ instantânea – e igualmente marcas de outras figuras do ‘underground’ do período, tais como Stephen Dwoskin, com o seu olhar erótico, duro e de aço. E Garrel, com quem Raynal colaborara na aventura Zanzibar (“Naquela altura aprendia com Philippe Garrel o quanto podia mudar uma cena através da iluminação”). De Deux Fois podia-se dizer, tal como Deleuze disse do cinema de Garrel, que se “expande como uma noite experimental ou um espaço branco que nos rodeia (…), que afecta o visível com uma perturbação fundamental e o mundo com uma suspensão.” O que é que está em jogo com este inventário estonteante de nomes, influências e movimentos? Pelo menos isto: Deux Fois não é apenas um tour de force formalista. É também surrealista, mito-poético, ritualista, incantatório. E igualmente irónico, performativo, jocoso e cómico. As análises formalistas tendem a esquecer o conteúdo de muitas sequências do filme – ou, pelo menos, apenas retêm desse conteúdo os elementos que se referem à orientação ideológica de quem analisa, tal como a violência sexual (como no plano intenso em que Raynal, ao vento, é assaltada por duas mãos que a puxam pelo cabelo para fora da imagem), ou o circuito perverso da voyeurismo, sadismo e exibicionismo (elementos que convivem no quadro encenado em que Raynal agoniza, olha para a câmara e urina enquanto um homem ri diabolicamente, apagando a sua imagem). Tais análises apenas reconhecem os signos de segundo grau, tal como na animação computadorizada de uma dança-combate extravagante entre um homem e uma mulher. Mas o conteúdo do filme – à superfície e em profundidade – é mais rico do que apenas este argumento gótico, sinistro, da luta de sexos à sombra do patriarcado. Que dizer da criança; dos saltos e quedas de Raynal; dos sons musicais (flauta e guitarra); da respiração; das paisagens, ruas e casas; dos vislumbres da sociabilidade comunal; dos pássaros engaiolados e livres? A multiplicidade de referências do filme bem como as suas influências, interessam também na forma como se desdobram: cada plano ou sequência conduz-nos a outro lugar nesta noite experimental, reinicia o cinema mais uma vez, renova o que Godard denominou como “o mundo e a sua metáfora”. Os primeiros dois planos do filme contêm o padrão de desdobramento num microcosmos cristalino. O primeiro plano (introdução recitada de Raynal) é teatral, em pose, encenado: este é um cinema de actores, é artifício, adereços, enquadramento – tudo redescoberto, virginal e naïf, como faria um cineasta amador. O segundo plano apresenta outro tipo de nascimento: aqui, com a criança no comboio, é o início da espontaneidade, do movimento, da paisagem que desfila sem controlo; aqui está a transitoriedade magnificente do mundo quotidiano, como apenas o olhar obsessivo do cinema de vanguarda sabe capturar. Ao mesmo tempo, este segundo plano marca o nascimento do olhar documentário e uma aproximação à realidade fenomenal que oscila entre a paciência e a inquietude (enquanto a câmara se move, ergue, re-enquadra). Nos planos que se seguem, este cinema documental testa os seus próprios limites: tanto nos planos fixos das ruas (reminiscentes do cinema primitivo, [Nadar, Lumière]) como na panorâmica circular por entre o trânsito, que poderia praticamente ser um plano utilitário de uma qualquer rodagem para um filme esquecido e convencional. Mas este impulso para o documentário andará sempre lado a lado, mais uma vez, com o artificial e o teatral – como se cada um contivesse o segredo ou a falta do outro. Isto é uma instância do que Daney denominou (inspirado pelo exemplo do “filme magnífico” de Raynal), uma “montagem de impulsos”. Deux Fois é facilmente segmentável em blocos separados, muitos deles planos-sequência únicos e prolongados (o dossier estabelecido pela Camera Obscura estabelece 32 blocos). O filme toma a forma de uma colagem, ou mesmo de um “diário filmado inacabado”. E tal como muitos filmes deste género, arrisca a incoerência, a pura arbitrariedade, uma multiplicidade excessiva. Os seus fragmentos sugerem a evidência subtil de diversas linguagens, diversas localizações em diferentes continentes, marcas misteriosas de sensações e experiências coleccionadas talvez ao longo de diversos anos. Raynal insiste na heterogeneidade do material: a rodagem teve lugar em Barcelona e em Paris. E quem sabe que fragmentos auto-biográficos estão enterrados nesta procissão, nesta cerimónia destroçada, secreta, de corpos, gestos e vozes? Mas para além do que nunca compreenderemos sobre este filme deliberadamente críptico, será que podemos intuir uma lógica central, uma lógica fantasmal, que reúna os fragmentos? Diversos motivos, ecos figurais