Transição política e democratização na Guatemala: os alcances da

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TRANSIÇÃO POLÍTICA E DEMOCRATIZAÇÃO NA GUATEMALA: OS
ALCANCES DA JUSTIÇA TRANSICIONAL
Ana Carolina Reginatto
Mestranda PPGHIS/UFRJ
[email protected]
Resumo
A partir de meados da década de 1980 a Guatemala vivenciou intensos debates e
reivindicações pela ampliação democrática e respeito aos direitos humanos no país. De uma
transição política “desde cima” iniciada pelos militares, a uma intensa mobilização e
participação dos movimentos sociais nas negociações de paz entre o governo e as forças
guerrilheiras, uma questão tornou-se primordial: como superar o legado autoritário e seus
enclaves para a construção de um novo regime democrático? A partir desse ponto pretendo
analisar os mecanismos adotados para uma justiça transicional por essa sociedade, as disputas
em torno desse passado recente e como a cultura política do país e a correlação de forças
vigentes influenciaram esse processo.
Palavras-chave: Guatemala, democratização, justiça transicional
Resumen
A partir de mediados de 1980 a Guatemala experimentó intensos debates y demandas de
ampliación de los derechos democráticos y humanos en el país. A partir de una transición
política "desde arriba" iniciada por los militares, la intensa movilización de los movimientos
sociales y la participación en las negociaciones de paz entre el gobierno y la guerrilla, una
pregunta se convierte en fundamental: ¿Cómo superar el legado autoritario y sus enclaves en
la construcción de un nuevo régimen democrático? A partir de ese momento tengo la
intención de analizar los mecanismos adoptados por la justicia de transición en esta sociedad,
las disputas sobre el pasado reciente y la cultura política del país y la correlación de fuerzas
que prevalecen en este proceso.
Palabras clave: Guatemala, democratización, justicia de transición
Os questionamentos políticos dirigidos ao passado autoritário e seus arbítrios foram
uma característica marcante das sociedades contemporâneas, principalmente, após o fim da
Segunda Guerra Mundial e da queda do regime nazista. Esse processo se intensificou a partir
da década de 1970, quando inúmeras sociedades, em regiões diversas, vivenciaram períodos
de transição política onde o passado recente e os legados da violência e suas consequências
foram colocados em debate no retorno à democracia. Podemos encontrar exemplos de tal
postura na Europa Ocidental com o fim dos governos franquista na Espanha e de Salazar em
Portugal, na América Latina com a queda dos regimes militares, na África do Sul com o
término do apartheid e no Leste Europeu com o fim das repúblicas soviéticas.
Em todos esses casos, governos e sociedade articularam formas de atuação dentro
desse cenário de transição. Segundo sua cultura política e os atores presentes no processo,
cada país esteve envolvido com questões relativas aos instrumentos políticos e jurídicos a
serem adotados, diante desse passado de violações. As escolhas feitas acabaram influenciando
os rumos desses processos, na construção e nos limites dessas democracias. Nesse sentido, o
conceito de justiça transicional é uma ferramenta importante para a análise da forma como as
sociedades lidam com os legados recentes de violações sistemáticas aos direitos humanos em
períodos de transição política, uma vez que, de modo geral, seus mecanismos são
estabelecidos em resposta a essas violações de forma a reparar às vítimas e promover a
reestruturação democrática, frente à herança autoritária.
A noção de uma justiça de transição ganhou fôlego e amplitude a partir da elaboração
de medidas legais vinculantes, criadas por organismos internacionais como o Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Penal
Internacional. Instituições que nos últimos vinte anos estabeleceram normas e obrigações
claras aos Estados em relação ao respeito aos direitos humanos e formas para se enfrentar suas
violações, proibindo anistias amplas em caso de crimes internacionais.
Entretanto, a justiça transicional não se caracteriza como uma forma especial de
justiça, e sim, por um conjunto de práticas e dispositivos jurídicos estabelecidos com o intuito
de dar conta à reparação dos direitos das vítimas e esclarecer os crimes cometidos. De acordo
com Paul Van Zyl (2009, p. 32-55), sua aplicação pressupõe o processo dos responsáveis
pelas violações, a revelação pública da verdade sobre os crimes cometidos, o fornecimento de
reparações às vítimas, as reformas das instituições do Estado e a promoção da reconciliação.
Cada país deve, portanto, percorrer um caminho próprio ao lidar com as questões
referentes a esse passado de arbítrios. Desse modo, como afirma Glenda Mezarobba (2008, p.
9), os avanços na superação da herança autoritária são delimitados pelo grau de violações,
pelas especificidades do processo de transição política, e também, pelo escopo institucional
vigente e pela amplitude do papel desempenhado pelos movimentos em defesa dos direitos
humanos e por organizações internacionais.
O processo de transição política e de pacificação na Guatemala nos revelam,
justamente, os debates em torno dos legados desse passado autoritário e a formação de um
novo pacto político. Suas especificidades demonstram uma sociedade que procurou se
mobilizar, de diversas maneiras, para reivindicar o fim do arbítrio por parte de um Estado
oligárquico, autoritário e militarizado historicamente. Conquistas significativas foram
alcançadas a partir das oportunidades disponíveis de participação no processo, mas por outro
lado, muitos desses avanços foram delimitados por forças políticas conservadoras resistentes a
qualquer tipo de mudança mais ampla. Resistências essas que estavam profundamente ligadas
à prática política do país e às correlações de forças vigentes à época.
Desde a queda do governo de Jacobo Arbenz, em 1954, e o fim de 10 anos de uma
experiência política democrática jamais vivenciada pelo país, os governos que se sucederam
foram marcados pela intervenção militar (direta ou indireta) e por períodos de revogação dos
direitos constitucionais e das liberdades civis. A partir da década de 1960, com a adesão de
setores da esquerda à luta armada, a radicalização política intensificou-se com a instituição de
uma política contra-insurgente e de todo um aparato de inteligência e repressão, por parte do
Estado, em nome da defesa nacional.
Em 36 anos de conflito armado, estima-se que 200 mil pessoas foram mortas ou
desaparecidas, em sua maioria indígenas, o que levou a comissão da verdade do país a afirmar
que o Exército guatemalteco entre 1981-1983 praticou “atos de genocídio” contra o povo
maia. A violência institucionalizada e as consequências do conflito também produziram
deslocamentos em massa interna e externamente. Aproximadamente 150 mil guatemaltecos
fugiram para o México e cerca de 1/3 dessas pessoas se dirigiram para zonas de colonização e
acampamentos nas regiões próximas a fronteira e, posteriormente, foram considerados como
refugiados pelas Nações Unidas (CEH, 1999). Dar conta de esclarecer as violações cometidas,
promover o retorno de refugiados e reestruturar o Estado guatemalteco pondo fim ao conflito
foram os grandes desafios impostos ao processo de paz entre o governo e a guerrilha.
Transição política e uma sociedade em busca da reconciliação
O início dos anos 1980 foi marcado por grandes tensões políticas no país. O governo
do general Romeo Lucas García apesar de manter em sua base alguns setores reformistas,
como seu próprio vice-presidente Francisco Villagrán Kramer que acreditava na possibilidade
de um governo que unisse os interesses e as responsabilidades entre civis e militares,
representava um grupo mais conservador do Exército que desde o início da década de 1970,
aliado a diferentes partidos políticos em diversos momentos, controlava o processo eleitoral
elegendo sempre o militar responsável pelo Ministério da Defesa do governo anterior.
Desde o início de seu mandato, em julho de 1978, o governo luquista jamais propôs
qualquer tipo de diálogo, nem mesmo com setores reformistas. A política contra-insurgente
era clara: massacres e operações militares que impedissem a escalada dos grupos
revolucionários no interior do país. De fato, apoiados por redes urbanas e instalados,
principalmente, na região central da Guatemala (conhecida como Altiplano indígena), a
ofensiva insurgente conseguiu assassinar muitos representantes e autoridades militares,
alcaides de regiões importantes como El Quiché, Sololá e Chimaltenango; e ainda, controlar
setores estratégicos da rodovia pan-americana, a mais importante do país.
Entretanto, como afirma Gilles Bataillon (2008, p. 275), o projeto de alguns grupos
guerrilheiros de formar as bases para um futuro “exército popular”, construído desde o
interior do país, carecia de articulação política, poderio estratégico-militar e de apoio
internacional. A oposição reformista ao governo de Lucas García descartava qualquer apoio à
via armada. Os diferentes grupos guerrilheiros careciam de uma coordenação comum que
conferisse articulação e eficiência a suas ofensivas militares. Além disso, diferentemente de
seus vizinhos revolucionários nicaraguenses e salvadorenhos, os insurgentes guatemaltecos
não possuíam apoio logístico ou financeiro internacional. Sob essas condições, “mal armados
y numéricamente inferiores, los guerrilleros no lograron defender los territorios que habían
pretendido “libertar”.” (BATAILLON, 2008, p. 276).
A campanha contra-insurgente de setembro e outubro de 1981 procurou reintegrar os
pontos da rodovia pan-americana ao controle militar e, posteriormente, todas as aldeias que se
encontravam sob ocupação guerrilheira. A estratégia era destruir as bases de apoio
campesinas dos insurgentes. Durante as incursões militares comunidades inteiras foram
massacradas ou obrigadas a se militarizar, através da formação das Patrulhas de Autodefesa
Civil (PAC). A fuga para as montanhas do país ou para o México se intensificou nesse
momento.
Em contrapartida, as acusações sobre a devastação dos massacres e sua publicidade na
imprensa e perante organismos internacionais, também se multiplicaram. A reprovação das
ofensivas militares internacionalmente pressionava, cada vez mais, os militares a
estabelecerem algum tipo de diálogo com a insurgência para pôr fim ao conflito no país. Além
disso, o contexto regional com os desdobramentos revolucionários da queda de Somoza na
Nicarágua e a deposição do presidente salvadorenho, ainda em 1979, fazia pairar sobre os
militares guatemaltecos o fantasma de que se as guerrilhas conseguissem estabelecer ligações
mais amplas e diretas com outros setores civis, assim como nos países vizinhos, acabariam
por receber apoio internacional de governos europeus e latino-americanos, dispostos a apoiar
um processo de negociação sob a tutela da ONU, o que poderia servir de justificativa para
uma reforma ampla do Exército, de sua influência e poder político. 1
As incertezas do próprio futuro institucional das forças armadas em meio às pressões
para o fim do conflito e implementação de um diálogo democrático, aliadas ao
descontentamento de diversos setores militares com a participação recorrente da instituição
em fraudes eleitorais e ao próprio desgaste social e político das campanhas contra-insurgentes
junto a setores da elite econômica, tornavam os custos e consequências do conflito ainda mais
preocupantes para os militares.
O golpe de março de 1982 foi uma resposta a esse cenário. A derrubada de Lucas
García representou, de fato, uma reviravolta no discurso e nas estratégias políticas dos
militares que agora tomavam o poder, porém, as práticas contra-insurgentes permaneceram
espalhando terror entre aqueles que ousavam desafiar a autoridade e hierarquia do Exército e,
principalmente, entre as comunidades indígenas.
O Plano Nacional de Segurança e Desenvolvimento, promulgado em maio, previa
justamente um reordenamento das estratégias do Exército no intuito de fortalecer a presença
militar e do Estado junto aos povos maia. Nesse sentido, a estabilidade nacional seria
alcançada não só com a derrota das forças insurgentes, mas também, com investimentos que
melhorassem as condições de vida dessas comunidades como uma forma de controle e
esvaziamento do discurso de igualdade dos guerrilheiros. Como afirma Gilles Bataillon, os
militares nesse momento:
Aunque estiman necesario sistematizar la contraofensiva militar contra las guerrillas, y
reforzar el potencial combativo del ejército regular, también piensan que esas medidas
militares deben acompañarse de programas de mejoramiento de las condiciones de
vida de los más desfavorecidos, de reactivación de la producción y de mayor igualdad
en el acceso a las riquezas. “Recurrir únicamente a la fuerza bruta”, dicen, “no genera
más que resentimiento en la población” (2008, p. 283).
1
O livro do general Héctor Gramajo apresenta um panorama importante sobre as questões político-militares
nesse momento. GRAMAJO, Héctor A. De la guerra a la guerra, la difícil transición política en Guatemala.
Guatemala: Fondo de Cultura Editorial, 1995.
Essa mudança de perspectiva em relação às comunidades indígenas não significou
uma diminuição das violações, pelo contrário, os massacres e as práticas de “terra arrasada”
se intensificaram, assim como, a obrigatoriedade das Patrulhas de Autodefesa Civil.
Sem dúvida, o golpe e a criação do Plano Nacional foram marcos político e
institucional de uma reorganização militar que também visava a manutenção da relevância do
Exército como instituição capaz de promover uma transição segura, e mais ainda, uma
abertura política gradual onde o novo governo civil compactuasse com as medidas contrainsurgentes. De fato, com o respaldo das elites econômicas e dos partidos políticos legalizados
à época, essa estratégia consagrou-se vitoriosa. Forjando um Estado constitucionalista e de
eleições livres, onde o discurso democrático era ressignificado por meio do caráter
extremamente ambíguo da nova constituição. Aprovada em 31 de maio de 1985, ao mesmo
tempo, em que determinava a criação de estruturas mais democráticas, como a Procuradoria
de Direitos Humanos, o Tribunal Supremo Eleitoral, a Corte Suprema de Justiça e a Corte de
Constitucionalidade, por outro lado, legalizava as medidas contra-insurgentes, sob a égide da
segurança nacional.
Como afirma Jennifer Schirmer (2006), a partir de 1982 os militares guatemaltecos
que tomaram o poder, procuraram reformular a filosofia de atuação de Exército, colocando
em prática um projeto político que se iniciou com massacres e terminou com a realização de
eleições civis presidenciais em 1985. Diante do caráter ambíguo da nova constituição, um
Estado constitucionalista fora forjado consolidando e legitimando a estrutura militar existente,
da mesma forma com que o discurso democrático e dos direitos humanos era incorporado e
ressignificado.
A eleição de Vinicio Cerezo pela Democracia Cristã Guatemalteca (DCG), em
dezembro de 1985, foi marcada pela abstenção dos partidos em apresentar propostas concretas
sobre qualquer tipo de reforma econômica ou debater a relação entre as Forças Armadas e o
novo regime civil. De imediato, a eleição de um civil depois de quase 20 anos de governos
militares consecutivos não trouxe mudanças significativas, com a continuação do projeto
militar de liberalização controlada. Entretanto, a criação de estruturas mais democráticas e a
própria instituição de um regime civil, permitiram aos grupos de direitos humanos
legitimarem suas reivindicações dentro do espaço político, mesmo diante desse cenário de
adversidades.
Diante da profunda desarticulação dos movimentos sociais durante os governos
militares do início dos anos 1980, as ações individuais de busca por desaparecidos, respeito ao
devido processo e fim das práticas de tortura, encontraram na defesa dos direitos humanos,
um marco de atuação coletiva imprescindível na luta pelo fim das violações como política de
Estado. Ainda que a nova constituição pactuasse com o projeto político-militar de transição
controlada, a criação de instituições mais democráticas como a Procuradoria dos Direitos
Humanos e a Corte Suprema de Justiça, permitiu a abertura de novos espaços e instrumentos
legais de reivindicação.
Fundado em 1984 por viúvas e familiares de desaparecidos, o Grupo de Apoio Mútuo
(GAM), é um exemplo desse contexto e paradigma de atuação. Foi a primeira organização a
traçar uma estratégia de trabalho junto com a Procuradoria dos Direitos Humanos e a
promover alianças com organismos internacionais, como a Anístia Internacional e a Human
Rights Watch. Internacionalizando suas demandas a fim de reivindicar a condenação
internacional das atividades contra-insurgentes do governo e do Exército guatemaltecos,
dando início a uma rede transnacional de ativismo no país. Nesse contexto, outras
organizações foram surgindo, como a Coordenadoria Nacional de Viúvas da Guatemala e o
Conselho Nacional de Refugiados .
É importante perceber que o discurso em defesa dos direitos humanos foi utilizado por
essas organizações como uma forma de compreender e investigar o passado, revelando os
fatos ocorridos individual e coletivamente, na tentativa de impedir a permanência da política
violenta e repressiva por parte do Estado.
Al proporcionar un lenguaje legítimo por medio del cual la gente podia articular
sufrimientos pasados y presentes, el marco de los derechos humanos se empleó para
buscar justicia u protegerla, como una manera formal de comprender el pasado y
dirigirse al presente (BRETT, 2006, p. 89).
Dessa forma, a evolução da noção de direitos humanos presente nas reivindicações
sociais, estava profundamente ligada ao sentido desse passado recente e a necessidade de
superação de suas práticas e valores no presente, para a construção de um futuro realmente
democrático para o país. Nesse sentido, como ressalta o autor, se a priori as reivindicações se
centraram principalmente na defesa do direito à vida e no fim imediato das violações, com o
tempo, as demandas baseadas em direitos coletivos específicos dos povos indígenas e ligadas
a questões de gênero, começaram a ganhar um espaço significativo no debate público. Essa
mudança estava profundamente ligada aos antecedentes históricos de racismo, discriminação
e a cultura machista que modelaram as práticas autoritárias no país.
As obrigações internacionais assumidas pelo novo governo civil, também serviram de
base para a atuação dessas organizações e legitimavam suas reivindicações. O “Acordo de
Esquipulas II” sobre o procedimento para estabelecer a paz na América Central 2, por
exemplo, assinado em 1987 por Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica, incluía o
país em uma iniciativa regional de promoção da paz através da ampliação democrática e do
respeito aos direitos humanos. Prevendo a abertura de espaços políticos públicos de diálogo
entre os grupos opositores, com ampla participação popular, e a criação de uma Comissão
Nacional de Reconciliação (CNR).
A Comissão foi um importante espaço de diálogo entre diversas organizações civis e
trabalhistas, onde temas como democratização, direitos humanos e vítimas da violência,
foram discutidos. Além disso, durante todo ano de 1990, a CNR promoveu reuniões entre
representantes guerrilheiros com integrantes de partidos políticos, setores empresariais
organizados como o Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Industriais e
Financeiras (CACIF), setores religiosos e populares (incluindo intelectuais e pequenos
empresários). Esses encontros foram realizados, respectivamente, na Espanha, Canadá,
Equador e México; onde as partes se comprometiam a buscar soluções compartilhadas e
políticas para o fim do conflito e o fortalecimento democrático. Essa iniciativa procurava
articular e pressionar o governo para que negociações diretas fossem definitivamente iniciadas
e o processo de pacificação concluído.
Os caminhos da justiça transicional na Guatemala
A fase de negociações diretas entre o governo e representantes da guerrilha, reunidos
através da Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) 3, foi implementada
somente em 1991. Os Acordos de Paz, como ficaram conhecidos os compromissos firmados,
foram mediados pela ONU e seus termos abordaram elementos importantes para a
reestruturação do Estado guatemalteco à democracia, como a criação de uma comissão da
verdade, reassentamento das populações forçadas a se deslocar, reconhecimento da identidade
e dos diretos indígenas, desmantelamento do aparato de repressão, lei de anistia e reformas
constitucionais. Temas caros não só as especificidades guatemaltecas, mas também, ao
processo que envolve a adoção de mecanismos para uma justiça de transição.
2
Todos os Acordos aqui mencionados encontram-se disponíveis em: www.guatemalaun.org/paz.cfm
Organizada com fins de coordenação política e militar, unindo os diversos grupos guerrilheiros, ainda em 1982,
transformou-se na instituição política responsável pelas negociações com o governo durante todo o processo de
paz.
3
A assinatura dos acordos foi marcada por diversos momentos de instabilidade
política, como o autogolpe promovido pelo então presidente Jorge Serrano Elías em 1993 4 e
por outras tentativas frustradas até o fim do processo de paz em 1996. As negociações
também foram acompanhadas por momentos de maior participação social e por outros de
menor abertura, fatos que marcaram avanços e retrocessos na ampliação democrática para
além das instituições políticas.
Talvez a principal conquista para as reivindicações de ampliação da participação
política social no processo, tenha sido a criação da Assembleia da Sociedade Civil (ASC),
pelo “Acordo Marco para a Retomada do Processo de Negociação”, em janeiro de 1994.
Formada logo em março do mesmo ano, a ASC contou com a participação de grupos
acadêmicos, religiosos, sindicais, populares, organizações de direitos humanos, partidos
políticos, cooperativistas, médios e pequenos empresários, grupos feministas e indígenas. Sua
função era formular proposições, em consenso, sobre os cinco temas mais relevantes da
negociação: o reassentamento das populações forçadas a se deslocar por causa do conflito,
reforma socioeconômica e situação agrária, papel da sociedade civil e do Exército em uma
sociedade democrática, identidade e direitos dos povos indígenas e reforma constitucional e
do sistema eleitoral.
Cada um desses onze grupos criou setores representativos dentro da Assembleia para
discutir suas plataformas políticas e sociais, escolhendo dois delegados para atuarem nas
cinco comissões temáticas. Os termos aprovados pelas comissões eram encaminhados à
plenária da Assembleia onde todos os delegados, redigiam um documento de consenso. Esses
documentos eram apresentados às partes e a ONU, para a discussão. 5 Apesar de seu caráter
consultivo e da não obrigação, pelas partes, em atender suas recomendações, a Assembleia
representou uma instituição de mobilização e participação da sociedade civil sem precedentes
nos processos regionais de democratização. Mesmo sem fazer parte dos temas sobre os quais
a Assembleia poderia apresentar propostas, o estabelecimento de uma comissão da verdade
ocupou um enorme espaço na agenda dos grupos de direitos humanos.
No inicio dos anos 1990, quase todas essas organizações e outros setores da sociedade
civil reivindicavam abertamente a instauração de uma comissão da verdade ampla, que
tratasse de toda forma de violação e suas vítimas. Propunha-se uma comissão com plenos
4
Com a instabilidade e a completa falta de legitimidade de seu mandato, o presidente orquestrou um autogolpe
em 25 de maio de 1993, fechando o Congresso e suspendendo a Constituição. Erro político gravíssimo, diante do
grau de mobilização em que se encontrava a sociedade guatemalteca, a manobra de Serrano Elías resultou num
amplo movimento de oposição com apoio da comunidade internacional, e foi revertido em junho do mesmo ano.
5
O funcionamento da Assembleia é descrito em uma primeira compilação de seus documentos de consenso,
publicada por: FUNDAPAZD. Asamblea Civil: Propuestas para la paz. Guatemala: 1995.
poderes para apontar os responsáveis pelas violações que, então, se tornariam passíveis de
julgamento e punição. 6
A criação de uma comissão desse tipo não era um tema caro às negociações. A
possibilidade de sua implementação não estava presente em nenhum dos temas programáticos
do cronograma de debates entre as partes. Enquanto o Exército se opunha radicalmente a sua
criação, a URNG, tão pouco, a tornara uma de suas bandeiras principais. Os representantes
militares sugeriam que se a criação de uma comissão fosse realmente aceita, o informe
resultado de sua investigação deveria se tornar público, como um documento histórico,
transcorridos 20 anos do processo de paz e sem caráter judicial ou individualização de
responsabilidades.
O Acordo de Oslo, assinado finalmente em junho de 1994, estabeleceu a criação da
Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH) e, de fato, a posição do Exército acabou
sendo parcialmente confirmada. Sobre o seu funcionamento ficou estabelecido que “los
trabajos, recomendaciones e informe de la Comisión no individualizarán responsabilidades,
ni tendrán propósitos o efectos judiciales.”
7
Entretanto, seriam necessários outros três anos
para que, em 31 de julho de 1997, a Comissão fosse colocada em prática.
Segundo as determinações do Acordo de Oslo de 1994, a primeira finalidade da
Comissão era “esclarecer con toda objetividad, equidad e imparcialidad las violaciones a los
derechos humanos y los hechos de violencia que han causado sufrimientos a la población
guatemalteca, vinculados con el enfrentamiento armado.” Nesse sentido, ficava claro que se
investigariam os atos atribuídos tanto ao Estado como a insurgência, e que era preciso
estabelecer uma relação entre as violações cometidas com o conflito armado interno.
A necessidade de que o objeto de investigação fosse vinculado ao conflito, abordava
uma questão política sensível sobre suas origens históricas. Fazendo uso da ausência de uma
data fixa no Acordo para o período de sua investigação, a CEH optou por uma interpretação
pragmática do termo conflito armado, como uma “lucha entre grupos con objetivos políticos
opuestos” (SIMON, 2002, P. 158). Desse modo, o surgimento do primeiro movimento e
frente militar insurgente, no final de 1962, foi considerado o marco inaugural do conflito,
encerrado com a assinatura do “Acordo de Paz Firme e Duradoura”, em dezembro de 1996.
Ou seja, quase 35 anos para se investigar. Além disso, essa escolha acabava por corroborar
6
Para um breve histórico sobre assunto ver: GUTIÉRREZ, Edgar. “La disputa sobre el pasado”. In: Nueva
Sociedad, n° 161, 1999.
7
Acordo sobre estabelecimento da Comissão para o Esclarecimento Histórico das Violações dos Direitos
Humanos e atos de Violência que tenham causado sofrimentos a população guatemalteca
como um discurso mais conservador de que a radicalização política do país começou a partir
da formação das frentes armadas de esquerda, interpretação um tanto maniqueísta.
A CEH priorizou em suas investigações as seguintes violações aos direitos humanos e
atos de violência: Execução extrajudicial; civil morto ou ferido em hostilidades entre as partes
beligerantes, por ataque indiscriminado, por utilização de minas e por migração forçada;
tortura, tratos cruéis, inumanos ou degradantes; violação sexual; desaparecimentos e
sequestro. Seu informe foi divulgado no dia 25 de fevereiro de 1999, com o título Guatemala,
memoria del silencio. Durante quase um ano e meio, foram coletados 7.338 depoimentos com
relatos de mais de 7.500 casos de violação aos direitos humanos, totalizando 42.275 vítimas
apresentadas de forma individual ou coletivamente pelos testemunhos (CEH, 1999, v. I). As
forças de segurança do Estado são responsabilizadas por 93% das violações registradas. Já as
organizações guerrilheiras são citadas em 3% dos relatos de violência. Outros 4% foram
atribuídos a outros grupos armados ou pessoas sem identificação (CEH, 1999, v. 5). A
responsabilização dos fatos ocorridos durante o conflito armado é dirigida a alta hierarquia do
Exército e aos sucessivos governos do país, assim como, aos comandos dos grupos
insurgentes. Além disso, a CEH conclui em relação à tortura, desaparecimentos forçados e
execuções arbitrárias atribuídas ao Estado, que as mesmas atingiram um caráter sistemático
durante alguns períodos do conflito.
Sobre as raízes históricas do enfrentamento armado, a Comissão afirma que os
fenômenos simultâneos de injustiça estrutural, fechamento dos espaços políticos, o racismo e
a ampliação de uma institucionalidade excludente e antidemocrática determinaram o início e o
desenvolvimento das hostilidades internas, dentro de um contexto mais amplo marcado pela
tradição política autoritária do país e suas práticas. A partir dessas conclusões a Comissão
formulou algumas recomendações centrais para a preservação da memória das vítimas,
promoção de uma política de reparação, observância dos direitos humanos através da
construção de uma cultura de respeito mútuo e fortalecimento do processo democrático.
Sem dúvida, o estabelecimento de uma comissão da verdade é um passo importante,
não só para o esclarecimento das violações aos direitos humanos que não foram sequer
passíveis de investigação à época, mas também, no desenvolvimento de um marco explicativo
sobre as origens e causas da violência sistemática e institucional, que é de fundamental
importância para a produção de sentido sobre esse passado traumático e para o entendimento
dos processos políticos e históricos vivenciados, etapas imprescindíveis para a reconciliação.
Por outro lado, o trabalho e o discurso produzidos pelas comissões da verdade também
produzem acerca não só das vítimas das violações, mas também do processo histórico
vivenciado pelo país. No caso da Comissão para o Esclarecimento Histórico, tal fato fica
evidente no volume do Informe sobre as causas e origens do enfrentamento armado. Apesar
de estipular como período inicial de investigação o surgimento do primeiro movimento
guerrilheiro no país, em 1962, a CEH procurou apresentar os antecedentes históricos do
conflito e, nesse sentido, acabou formulando certas interpretações acerca desse passado. Para
além das características históricas excludentes e autoritárias do Estado e da sociedade
guatemalteca, os anos democráticos dos governos de Juan José Arévalo e Jacobo Arbenz
Guzmán (1944-1954), foram recuperados como um curto período de reformas e avanços
sociais, interrompidos drasticamente por uma intervenção militar orquestrada pela CIA e com
apoio das elites econômicas e políticas do país.
A maneira como as reformas e os governos de Arévalo e Arbenz são abordados pelo
Informe, vão de encontro a interpretações mais conservadoras sobre o tema que ainda
permanecia como um ponto de disputa sobre esse passado. Tanto o discurso de oposição ao
governo de Arbenz vigente à época, quanto interpretações mais recentes encaram as reformas
empreendidas durante o período como influenciadas pela doutrina comunista, o que
legitimaria a intervenção militar de 1954 e toda a influência do Exército na política
guatemalteca até a transição. Para a Comissão, entretanto, os governos entre 1944-1954 foram
uma ruptura com a contínua tradição autoritária do país, mas que acabaram culminando com o
retorno de suas práticas, através do fechamento dos canais de participação política, com a
queda de Jacobo Arbenz. Porém, seus efeitos e as esperanças despertadas influenciariam as
gerações seguintes.
A criação da Comissão para o Esclarecimento Histórico, na Guatemala, apesar das
críticas recebidas acerca de suas limitações, teve um impacto positivo sobre as organizações
da sociedade civil e seus representantes. Após a divulgação do Informe, diversas
organizações, procuraram sensibilizar autoridades e a sociedade em geral sobre a importância
do cumprimento das recomendações da Comissão e a reivindicar a adoção de políticas de
reparação às vítimas. Rigoberta Menchú, importante ativista indígena, vencedora do Prêmio
Nobel da Paz, afirmava que “trabajar porque se cumplan estas recomendaciones ocupará
mis seguientes años ”(GUTIÉRREZ, 1999, p. 14). A Comissão, entretanto, não partiu de uma
iniciativa do governo, e sim, de uma decisão em consenso das partes durante as negociações
de paz. Aliado a isso, o não reconhecimento público do Estado dos danos causados teve uma
dimensão simbólica e política muito forte, nesse momento, o que debilitou a construção
efetiva de uma agenda política mais democrática para o país, a partir da divulgação de seu
informe.
Dois pontos chaves para o entendimento das especificidades do caso guatemalteco,
dizem respeito aos conflitos por terra e ao racismo contra a população indígena. Essas duas
questões estão diretamente relacionadas às reivindicações sociais para a superação das
práticas repressivas e do caráter historicamente excludente do Estado. Nesse sentido, como
principais vítimas da violência sistemática e das consequências do arbítrio do Estado, as
políticas de reparação deveriam ser dirigidas, fundamentalmente, aos povos maias. Entretanto,
apesar dessas questões terem feito parte de acordos específicos entre as partes, os limites
burocráticos, políticos e econômicos impostos as negociações limitaram os alcances de suas
medidas.
O “Acordo para o Reassentamento das Populações Deslocadas pelo Conflito
Armado”, firmado em junho de 1994, por exemplo, apesar de tentar dar conta das
necessidades imediatas dos refugiados a retornarem, não aprofundou questões importantes
levantadas pela Assembleia da Sociedade Civil, como a garantia do acesso à terra. O
compromisso de garantir segurança aos refugiados e mesmo aos que se viram obrigados a se
deslocar internamente, abandonando suas terras, esbarrava na fragilidade das leis e registros
de terras na Guatemala. A não (re)distribuição de terras, por parte do Estado, deixava à mercê
desse sistema frágil a resolução dos conflitos com o retorno de seus reais proprietários depois
de décadas de conflito.
Por outro lado, o “Acordo sobre a Identidade e os Direitos dos Povos Indígenas”,
assinado em 31 de março de 1995, traduziu-se como um dos mais importantes para a
participação civil. Os termos aprovados não divergiram muito da proposta da Assembleia e
foram recebidos como uma importante conquista. As partes reconheciam a discriminação,
exploração e injustiças sociais e econômicas a que os povos indígenas foram submetidos
historicamente. O governo se comprometia a fomentar o respeito à cultura indígena, seus
idiomas, espiritualidade e cosmovisão, através de mudanças legislativas e judiciais que
promovessem o desenvolvimento eficaz da defesa de seus direitos, reconhecendo o caráter
multiétnico, pluricultural e multilíngue do Estado guatemalteco.
O reconhecimento da identidade e dos direitos dos povos indígenas foi, sem dúvida,
um conquista importante, porém, a dimensão da reparação aos principais atingidos pela
violência sistemática do Estado, foi muito superficial, diante da falta de garantias de acesso à
terra e de uma política efetiva de ressarcimento às vítimas. Somente em 2003, durante o
governo de Alfonso Portillo Cabrera, é que foi instituído o Programa Nacional de
Ressarcimento.
Em relação à reestruturação do Estado guatemalteco ao regime democrático, os
principais pontos abordados pelos acordos versavam sobre o desmantelamento do aparato de
repressão, fortalecimento da sociedade civil e redefinição da função e responsabilidades do
Exército. Na Guatemala, a doutrina de Segurança Nacional criou diversas estruturas de
inteligência repressiva, permeou outros corpos de segurança tradicionais, como a Polícia
Nacional, e militarizou a sociedade. Durantes os anos de conflito, a colaboração entre as
forças policiais e a inteligência militar atingiram um status institucional, com a criação de
uma rede de informações sob a direção do Estado Maior Presidencial e do Ministério da
Defesa.
A reformulação do setor de segurança e o desmantelamento do aparato repressivo já
haviam sido abordados desde o “Acordo Global sobre Direitos Humanos”, assinado em março
de 1994, onde as partes assumiam o compromisso de não que não existiriam corpos de
segurança ilegais nem aparatos clandestinos, e o governo regularia o porte de armas.
Entretanto, essas questões foram abordadas de forma mais específica no “Acordo sobre o
Fortalecimento Civil e Função do Exército em uma Sociedade Democrática”, assinado em
setembro de 1996.
De fato, houve um desaparelhamento dos corpos de segurança e, principalmente, a
desmobilização das Patrulhas de Autodefesa Civil. A Polícia Nacional, principal órgão
responsável pela perseguição política durante os anos de conflito, adquiriu um caráter de
patrulhamento civil, cuja principal função era a segurança pública. As funções do Exército
foram delimitadas a soberania nacional e defesa do território, porém, nenhum tipo de
depuração dos funcionários dos organismos de segurança foi realizada. As práticas
autoritárias continuam a permear os novos sistemas de segurança, fazendo da sociedade
guatemalteca um ambiente violento e impune. A efetividade das mudanças institucionais
aprovadas parece esbarrar na persistência de práticas autoritárias que são corroboradas por um
sistema de justiça burocrático e ineficaz, reticente em indagar o passado arbitrário. O
problema é institucional em sua superfície, mas suas raízes se encontram em imaginários e
práticas autoritárias que definiram historicamente os modelos de dominação e controle social
e que não foram objeto de depuração, durante os processos de transição e redemocratização.
O “Acordo sobre Reformas Constitucionais e Regime Eleitoral”, assinado em
dezembro de 1996, cristalizava o compromisso do governo em cumprir com as demais
reformas propostas anteriormente, incluindo as reformas do sistema de judiciário previstas
pelo “Acordo sobre o Fortalecimento Civil e a função do Exército em uma Sociedade
Democrática”, entre elas, o estabelecimento da carreira judicial, garantias na administração de
justiça, serviço público gratuito para a defesa jurídica, modernização e fortalecimento do
Poder Judiciário e reforma do Código Penal.
Um elemento de grande frustração para os movimentos sociais e para grande parte da
sociedade civil foi a aprovação da controversa Lei de Reconciliação Nacional, no “Acordo
para a Incorporação da URNG à legalidade”. Considerada, pelos atores civis como uma lei de
anistia, permitia a extinção da responsabilidade penal nos casos de crimes cometidos por
motivações políticas, abrindo precedente para a não culpabilidade de outros setores
envolvidos no conflito, como o Estado e o Exército. A lei, aprovada pelo Congresso no dia 27
de dezembro de 1996, por outro lado, excluía a extinção de responsabilidade penal nos
seguintes casos: Genocídio, tortura e desaparecimento forçado.
Sem dúvida, a natureza própria do conflito armado na Guatemala, a dimensão de seus
crimes e o envolvimento de amplos setores da sociedade em seu processo, tornava a
promulgação de uma lei de anistia um passo indispensável para a incorporação de diversos
grupos, como os insurgentes, para a vida pública do país e para a reconciliação nacional. É
preciso reconhecer que ao excluir da anistia tais crimes imprescritíveis, a lei promove um
importante avanço em relação ao respeito às normas e convenções internacionais que
consideram tais delitos como imprescritíveis. Por outro lado, ao anistiar crimes políticos e
autoridades do Estado, abre precedente para muitos perpetradores envolvidos com as
estruturas de segurança e com a vida política do país, limitando o conceito de reorientação
democrática da segurança pública e as garantias de justiça.
Na análise dos desafios colocados à justiça após o fim das negociações de paz, é
preciso ter em conta, as debilidades históricas do sistema de justiça no país. Desde a falta de
assistência gratuita e bilíngue, até a ausência de autonomia do Poder Judiciário e da
Magistratura, em especial, durante os anos de conflito. Além disso, como afirma Edelberto
Torres-Rivas (2009, p.11-50), a transição política na Guatemala não foi marcada por uma
vitória de forças políticas democráticas, mas sim como resultado de um projeto político
militar contra-insurgente. Tais fatos são, sem dúvida, elementos de limitação da prática dos
mecanismos de justiça transicional estabelecidos como compromisso nos Acordos de Paz.
Para além do período de transição para o regime civil e constitucional, porém, durante
o processo de negociação de paz e de democratização, a sociedade civil organizada cumpriu
um papel fundamental se apropriando dos espaços de participação possíveis para a
formulação de uma agenda para as negociações, através da Comissão de Reconciliação e para
dirigir suas reivindicações às partes, formulando propostas em consenso através Assembleia
da Sociedade Civil. A relevância desse papel permanece ativa, uma vez que, a decisão de
julgar é sempre política, e por isso, questionável e debatível dentro do espaço público. Nesse
sentido, o processo e julgamento desse passado deverão ser acionados a partir da sociedade e
de suas reivindicações por justiça, mesmo esbarrando nas debilidades do Pode Judiciário e na
fragilidade de forças políticas interessadas em julgar esse passado.
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