CADERNO ESPECIAL Mudança cultural E PERCEPÇÃO DE RISCOS de desastres Diane Guzi e Sarah Cartagena* DE SANTA CATARINA Quando uma situação de desastre age sobre uma sociedade, é difícil afirmar que ela continuará a ser como antes, sem modificar hábitos, atitudes e valores, ora não evidenciados ou esquecidos. Em curto espaço de tempo, a sociedade se depara com um novo cenário, uma nova realidade social e ambiental. Mas será preciso aguardar uma situação de desastre para salientar a necessidade de mudanças? Como alterar a lógica sobre riscos e desastres, que hoje enfatiza a cultura do desastre em detrimento da cultura de riscos de desastres?1 Com Ciência Ambiental 72 Com Ciência Ambiental 73 Com Ciência Ambiental 74 forma geral, demonstram características semelhantes em alguns aspectos, mas disparidades em outros, podendo, ainda assim, integrar uma única cultura, como é o caso de uma nação ou uma família. E mesmo embora os integrantes de um grupo sejam renovados ao longo do tempo, as características culturais predominantes permanecem. Pode-se dizer que essa surpreendente organização da sociedade é sustentada, fundamentalmente, por valores que direcionam o comportamento humano e pelo surgimento de líderes aceitos pelo grupo como representativos da ordem ou objetivo maior. Assim, se a cultura se caracteriza pela relação entre os indivíduos, o meio em que se inserem, as construções históricas por que passam, suas necessidades e satisfações, suas formas de organização em grupos e seus líderes, em uma constante e dinâmica evolução, esta é, para a gestão de desastres, o ponto central para a mudança de valores que se deseja promover na sociedade. Compreender, por exemplo, quais as motivações que levam um indivíduo a ocupar, reconhecidamente, uma área de risco, e assim atribuir diferentes valores às vulnerabilidades a que está sujeito e aos benefícios que pensa tirar delas. O que se percebe hoje é uma sociedade orientada a esperar que o desastre aconteça, e então se mobilizar para os momentos de resposta e reconstrução. Ao passo que, segundo os especialistas, investimentos em prevenção e preparação podem reduzir significativamente os custos e impactos de um acontecimento adverso. Os estudos sobre cultura ajudam também a reconhecer formas de mobilização social a partir de lideranças. Em sua maior parte, as definições sobre cultura convergem no aspecto da importância de líderes para a formação dos aspectos chaves, tanto para grandes como pequenos grupos. Diante de ações adversas, como em comunidades vulneráveis a desastres, a presença de líderes é fundamental, pois são responsáveis por planejar, organizar e controlar situações que poderiam dissociar o coletivo frente às eventualidades, lutando por interesses comuns. Além disso, na figura das lideranças reside também uma das principais ferramentas para a mobilização social em momentos de prevenção e preparação, uma vez que são elas o vínculo que garante aceitação e representação de todo o grupo. Quando falamos na mudança cultural que se deseja promover no contexto da sociedade do risco, estamos falando também em percepção de risco, em valores atribuídos a ameaças, vulnerabilidades, riscos e aos benefícios deles extraídos. Para Henriques (2002), esse processo de mudança de comportamento e de mobilização social pode ser representado em uma escala de critérios de vinculação, na qual o que se busca é a corresponsabilidade. PERCEBENDO RISCOS, REDUZINDO PERDAS Estudos sobre cultura demonstram que a sociedade pode ser vista como fruto de uma natureza histórica, uma ordem em movimento, em que o equilíbrio é sempre instável em face da sua constituição na ordem organizacional e inserção numa ordem maior, a ordem mundial (Silva e Nogueira, 2001). A cultura de uma sociedade, mesmo assumindo características enraizadas ao longo do tempo e transmitidas de geração para geração, estará em constante evolução devido ao relacionamento entre os indivíduos na organização que compõem, na sociedade e no contexto mundial. Em seu cerne antropológico, cultura é definida como o resultado de um processo contínuo e dinâmico de construção e reconstrução da realidade por meio da interação social, da qual surgem esforços para a satisfação das necessidades básicas do ser humano: necessidades biológicas (do organismo), sociais (relativas às interações interpessoais) e socioinstitucionais, ou seja, aquelas referentes à sobrevivência e bem-estar dos grupos (Kluckhon, 1951; Rokeach, 1973; Schwartz & Bilsky, 1987, 1990 apud Tamayo, 2000). Essa satisfação, porém, deve acontecer por meio de formas aceitáveis a todo o grupo. Os grupos são formados por indivíduos ou subgrupos que, de CADERNO CADERNO ESPECIAL informação julgamento ação coesão continuidade corresponsabilidade participação institucional Com Ciência Ambiental 76 Valores inscritos proporcionam a coesão dos indivíduos formadores de uma cultura, são princípios tão profundos, importantes e consolidados que passam a fazer parte do cotidiano, de forma inconsciente e imperceptível, que habitação, trabalho, saúde e lazer sejam valores inegociáveis frente ao risco de desastres e aos pilares da construção de cidades mais seguras. Para a Opas (Organização Panamericana de Saúde), a cultura é um e, desta mesma forma, são aceitos e repetidos por novos membros involuntariamente. São valores dessa grandeza que a cultura de riscos de desastres pretende fortalecer, alterando a percepção de risco dos indivíduos e qualificando sua capacidade de relacionar-se com o risco, de maneira dos cinco fatores que influenciam a percepção de riscos. Segundo o órgão, “muitos estudos já demonstraram que a população, composta por diversos atores sociais, percebe o risco de modo diferente. Especialistas acreditam que essa percepção esteja submetida aos contextos culturais em que se PERCEBENDO RISCOS, REDUZINDO PERDAS localização espacial Corresponsabilidade é o sentimento de pertencimento e responsabilidade dentro de um grupo, quando o indivíduo entende sua participação como uma parte essencial no todo (Henriques, 2002). Para a percepção de risco, seria o entendimento de ser sujeito diante do risco, ser afetado e fabricante do risco, o que requer um processo educativo e fundamentalmente dialógico2, primeiro de modificação de valores em uma cultura já solidificada para posterior construção de uma nova cultura. Kroeber e Kluckhohn (1952), antropólogos norte-americanos, montaram mais de 160 definições diferentes para cultura e, por fim, definiram-na como “(...) padrões implícitos e explícitos do comportamento humano adquiridos e transmitidos por símbolos, constituindo atividades distintivas de grupos humanos, incluindo sua externalização em artefatos; o núcleo essencial da cultura consiste em ideias (historicamente derivadas e selecionadas) e, especialmente, os valores inscritos; os sistemas de cultura podem, de um lado, ser considerados como produtos da ação, e por outro lado, como elementos condicionantes de ação futura.” CADERNO ESCALA DE VÍNCULOS (ADAPTAÇÃO DO MODELO DE HENRIQUES, 2002) CADERNO ESPECIAL Com Ciência Ambiental 78 significados coletivos aceitos operacionalmente para um determinado grupo em um determinado momento. Esse sistema de formas, termos, categorias e imagens interpreta as próprias situações das pessoas para si mesmas. De fato, o que diferencia os homens quando comparados com outros animais é sua capacidade de inventar e comunicar seus próprios comportamentos”. O pesquisador holandês Geert Hofstede realizou estudos em mais de 70 países e afirma que a cultura não é herdada, mas sim adquirida. Ela provém do ambiente social no qual o indivíduo se insere e não das características genéticas dos seres humanos. Em suas palavras, “o núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais e especialmente em seus valores unidos... Cada um de nós transporta consigo padrões de pensamento, de sentimentos e de ação potencial, que são o resultado de uma aprendizagem contínua, iniciada na infância, período do desenvolvimento onde somos mais susceptíveis à aprendizagem e à assimilação. Quando certos padrões de pensamento, sentimentos e comportamentos se instalam na mente de cada um, torna-se necessário desaprender, antes de aprender algo diferente, e desaprender é mais difícil que aprender pela primeira vez.” Segundo Pettigrew (1979) e Hofstede (1991), um indivíduo construirá seus valores de acordo com sua vivência e aceitação histórica, e/ou a partir das suas necessidades edificadas em um determinado contexto de tempo e espaço. Portanto, para a construção da cultura de riscos de desastres, devemos investir, de um lado, como construção histórica, no aprimoramento dos processos educativos desde a infância para conseguirmos uma mudança cultural ao longo do tempo. E de outro, mais difícil segundo Hofstede, mas não menos importante e necessário, criar espaços que possibilitem a renúncia aos atuais valores, para a aprendizagem de novos. Assim, ao se garantir um processo de mobilização social, em que mobilizar significa “convocar vontades para um propósito determinado, para uma mudança na realidade” (Toro & Werneck, 1996; apud Henriques, 2002) está se evitando que a mudança cultural seja imposta, de forma dolorosa e pouco democrática, pelos desastres. Quando uma comunidade assume riscos ao se instalar em lugares vulneráveis, encostas, morros, nas proximidades de produtos perigosos, entre outros, a relação risco versus benefício provavelmente não será questionada, se isso não fizer parte do conjunto de valores predominantes. Exemplificando: habitar uma encosta por não ter condições financeiras para estar em um lugar mais apropriado é mais importante que a segurança da família? Dificilmente um pai seria contrário à segurança, mas, então, por que famílias habitam locais como esses? Provavelmente, a sede em suprir uma das necessidades básicas do ser humano, a habitação, não tenha sido ponderada suficientemente, deixando o benefício (o de ter a moradia) se sobrepor ao risco (deslizamento de terra com perdas humanas e materiais), isso, pelo fato de sua cultura não possuir esse valor. PERCEBENDO RISCOS, REDUZINDO PERDAS encontram as pessoas para interpretar os fatos. Se a população crê que pode tomar certas medidas para se precaver de um risco, é mais provável que ela o aceite; entretanto, se esses riscos não forem familiares ou não estiverem de acordo com os valores dessa comunidade, as pessoas indubitavelmente se sentirão mais ameaçadas.” Ainda na busca para entender o conceito de cultura, surgem, em 1979, os trabalhos do sociólogo e antropólogo britânico Andrew Pettigrew, que define cultura como um “sistema público e de CADERNO CIÊNCIA NA CADERNO ESPECIAL AMAZÔNIA Com Ciência Ambiental 80 “ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é emprenhar-se na transformação constante da realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo da forma de ser própria à existência humana, está excluído de toda relação na qual alguns homens sejam transformados em ‘seres para outro’ por homens que são falsos ‘seres para si’. É que o diálogo não pode travar-se numa relação antagônica” (FREIRE, 1992). REFERÊNCIAS FREIRE, P., Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. HENRIQUES, M.(org). Comunicação e Estratégias de Mobilização Social. Belo Horizonte: Gênesis, 2002. HOFSTEDE, G., Culture and organizations: software of the mind. New York: McGraw-Hill, 1991. KROEBER, A. L., KLUCKHOHN, C.. Culture: A Critical Review of Concepts and Definitions. Vintage Books. Place of Publication: New York. Publication Year: 1952. Page Number: iii. PANAFTOSA-OPAS/OMS. Guia de comunicação social e comunicação de risco em saúde animal. Rio de Janeiro: 2007. PETTIGREW, A., On Studying Organizational Cultures. 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Contato: [email protected] PERCEBENDO RISCOS, REDUZINDO PERDAS Edgar Schein, psicólogo e pesquisador norte-americano, diz entender-se como cultura “o conjunto de pressupostos básicos que um determinado grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender a lidar com os problemas de adaptação externa e de integração interna, e que funcionou bem o bastante para serem considerados válidos e ensinados aos novos membros como a forma correta de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas.” Sabemos, então, que a cultura não está escrita e declarada, e também não é ensinada formalmente; ela representa normas e regras informais que orientam o comportamento dos indivíduos em um grupo, no dia a dia e que forma uma coesão geral da sociedade. Entretanto, uma cultura pode ser modificada e alinhada de acordo com as necessidades do grupo ou por decisões de seus líderes, podendo ser planejada, organizada, direcionada e controlada em busca de um objetivo, e é neste contexto que devemos pensar e construir a cultura de riscos de desastres para o fortalecimento social. Por cultura de desastres entende-se um contexto social pautado em ações principalmente de resposta e reconstrução, tendo por base comportamentos de inércia, aceitação e conformismo. Por outro lado, a cultura de riscos de desastres pretende enfatizar os processos de prevenção e preparação, trabalhando a percepção de riscos como foco chave na construção de comunidades mais seguras.2 CADERNO CADERNO ESPECIAL