A EXPRESSÃO TEMPORAL DE FUTURO EM DADOS DE

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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LÍNGUA PORTUGUESA:
FENÔMENO SOCIOPOLÍTICO
SANDRA DOS SANTOS VEFAGO
A EXPRESSÃO TEMPORAL DE FUTURO EM DADOS DE CRIANÇAS
DE DOIS A SEIS ANOS NO MUNICÍPIO DE CRICIÚMA – SANTA
CATARINA: forma e função
Criciúma, agosto de 2005
1
SANDRA DOS SANTOS VEFAGO
A EXPRESSÃO TEMPORAL DE FUTURO EM DADOS DE CRIANÇAS
DE DOIS A SEIS ANOS NO MUNICÍPIO DE CRICIÚMA – SANTA
CATARINA: forma e função
Monografia apresentada à Diretoria de
Pós-Graduação da Universidade do
Extremo Sul Catarinense – UNESC, para
obtenção do título de especialista em
Língua Portuguesa.
Orientadora: Prof. Dra. Márluce Coan
(UFC).
Criciúma, agosto de 2005
2
Dedico à minha família,
pelo carinho, apoio
e compreensão.
3
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Professora Dra. Márluce Coan, por todo seu incentivo, pela
orientação nesta pesquisa, auxílio e dedicação sempre demonstrados.
À Professora Mestra Ângela Cristina Di Palma Back, pelo carinho, empenho e
ajuda na codificação dos dados.
À Professora Mestra Almerinda Tereza Bianca Bez Batti Dias, por fornecer as
coletas dos dados das crianças de 2 – 4 anos, seus filhos, e pela ajuda na codificação
dos dados.
Às colegas de curso, pelo apoio, incentivo e troca de informações, sempre que
precisei.
Em especial ao meu marido, Sérgio, e aos meus filhos Tamy e William, pelo
amor demonstrado, carinho dispensado, incentivo nas horas difíceis em que queria
fraquejar.
Agradeço a Deus por me iluminar, estar sempre comigo, por me proporcionar
uma vida cheia de alegrias e oportunidades, e peço que continue me dando forças para
que eu possa, sempre, alcançar os meus sonhos.
4
RESUMO
Esta pesquisa trata da expressão de futuro no português falado por crianças de 2-6
anos no município de Criciúma/SC, codificada pelas formas futuro do presente,
presente do indicativo e forma perifrástica (IR + INFINITIVO), a partir de dados de fala
(do Banco Entrevistas Sociolingüísticas/UNESC e de coleta longitudinal de duas
crianças – Amostra de Dias, 2004). Para explicar a variação na codificação do futuro,
valemo-nos da teoria Funcionalista e da Sociolingüística Variacionista, com o intuito de
mostrar que a variação é condicionada por fatores discursivos e sociais. Como nossa
variável é de natureza temporal, consideramos, na análise, as categorias tempo,
aspecto e modalidade: concebemos tempo como categoria lingüística relacionando o
tempo futuro com o aspecto e a modalidade, explicitando que o futuro expressa um
valor modal e que a entrada do verbo IR como auxiliar de futuro pode representar a
necessidade de marcar o aspecto. Acrescentamos à pesquisa, ainda, um breve estudo
da teoria de Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem por lidarmos com dados de
crianças. A análise dos dados atesta o uso freqüente da perífrase na codificação do
futuro, sob a influência da modalidade.
Palavras-chave: tempo verbal futuro, tempo futuro, forma perifrástica, modalidade,
variação.
5
LISTA DE QUADRO E TABELAS
Quadro 01 – Número de informantes por sexo e idade..................................................39
Tabela 01 - Número de dados da forma perifrástica, do presente do indicativo e do
futuro do presente na expressão de futuro por crianças criciumenses de 2–6 anos......39
Tabela 02 – Modalidade e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos na
cidade de Criciúma – SC.................................................................................................40
Tabela 03 – Seqüencialidade e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos no
município de Criciúma – SC............................................................................................41
Tabela 04 – Sexo e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos no município de
Criciúma – SC.................................................................................................................42
Tabela 05 - Idade e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos no município de
Criciúma – SC.................................................................................................................42
Tabela 06 - Comparação entre as variáveis de futuro em Criciúma x Florianópolis.......44
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................07
CAPÍTULO I – FUNCIONALISMO LINGÜÍSTICO...........................................................09
1. Princípios Funcionalistas...........................................................................................11
CAPÍTULO II – VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA...............................................14
CAPÍTULO III – TEMPO, ASPECTO E MODALIDADE: categorias do verbo................19
1. Noção de Tempo.........................................................................................................19
2. Aspecto......................................................................................................................26
3. Modalidade.................................................................................................................29
CAPÍTULO IV – AQUISIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM.....................33
1. Aquisição da Linguagem.............................................................................................33
2. Desenvolvimento do Sistema Temporal......................................................................35
CAPÍTULO V – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS..............................................37
CAPÍTULO VI - ANÁLISE DOS DADOS.........................................................................39
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................46
REFERÊNCIAS...............................................................................................................47
BIBLIOGRAFIAS COMPLEMENTARES.........................................................................52
7
INTRODUÇÃO
A categoria lingüística tempo relacionada com o Tempo1 cronológico é
assunto instigante para o estudo da linguagem, pois possui relações estreitas com
outras categorias lingüísticas tais como o aspecto e a modalidade.
Nesta monografia, tomamos como tema central o tempo futuro, em busca das
expressões que codificam essa referência futura e dos motivos pelos quais se alternam.
Entre as expressões, tratamos das formas futuro do presente, presente do indicativo e
forma perifrástica (IR + INFINITIVO), em dados de crianças de 2-6 anos no município
de Criciúma/SC.
Diante do fenômeno de variação de formas na expressão de uma função:
Tempo futuro, buscamos embasamento teórico na teoria Variacionista de Labov e no
Funcionalismo Lingüístico de base givoniana. Esta análise, então, assume uma direção
que vai da função para a forma, e a variável em questão fica situada no nível
morfossintático-discursivo. Nossa perspectiva de trabalho pauta-se em estudos sobre
Tempo/tempoverbal desenvolvidos por outros autores, dentre os quais citamos Gibbon
(2000), Coan (1997 e 2003) e Silva (2003).
O objeto de estudo desta pesquisa recai, portanto, sobre três das formas
verbais variantes na expressão do futuro: a forma perifrástica, o presente do indicativo e
o futuro do presente, reconhecendo que a terceira forma, o futuro do presente, está em
desuso.
Com o objetivo de atestar o fenômeno até aqui apresentado, utilizamos (08)
oito entrevistas do Banco Entrevistas Sociolingüísticas/UNESC, da faixa etária de 5-6
1
Doravante, utilizaremos tempo para tempo gramatical e Tempo para tempo cronológico.
8
anos, e a coleta de dados da professora e pesquisadora Almerinda Tereza Bianca Bez
Batti Dias (UNESC/SC) que gravou falas, durante um ano e meio, de seus filhos, aqui
denominados M. e H., de 2 e 4 anos respectivamente.
A monografia apresenta-se organizada em (6) seis capítulos assim
distribuídos: no primeiro capítulo, apresentamos a teoria Funcionalista de base
givoniana com objetivo de correlacionar forma/função visando à análise de fatores de
ordem cognitivo-discursiva (princípio da iconicidade e princípio da marcação). No
segundo capítulo, enquadramos o fenômeno em estudo dentro da teoria da Variação
Lingüística de base laboviana, focalizando os empregos lingüísticos concretos de
caráter heterogêneo, mostrando a inclusão do verbo IR, na língua, como auxiliar de
futuro que compõe a perífrase (IR + INFINITIVO). O terceiro capítulo trata das noções
de tempo verbal, aspecto e modalidade, propondo uma representação do tempo
conforme Reichenbach (1947). O capítulo quatro traz um breve estudo da aquisição e
desenvolvimento da Linguagem, com base vygotskyniana, e do desenvolvimento do
sistema temporal, a partir da proposta de Weist (1986). No quinto capítulo, resumimos
os procedimentos metodológicos utilizados para o estudo da variação na expressão de
futuro.
E no sexto capítulo, apresentamos os condicionamentos lingüísticos
semântico-discursivos e sociais do fenômeno em análise.
E, finalmente, nas considerações finais, tecemos comentários sobre os
resultados mais relevantes da análise qualitativa e quantitativa, retomando as
concepções teórico-metodológicas que norteiam esta pesquisa.
9
CAPÍTULO I – FUNCIONALISMO LINGÜÍSTICO
Incluímos, em nosso referencial teórico, algumas considerações sobre o
Funcionalismo Lingüístico, visto que, nesta monografia, correlacionamos forma
(presente, perífrase) – função (expressão de futuro) e visamos à analise de fatores de
ordem congnitivo-discursiva (princípio da iconicidade e princípio da marcação) como
condicionadores de uso de uma ou outra forma a expressão do futuro, em dados do
português do Brasil.
Para Neves (1997, p. 15), o Funcionalismo Lingüístico trata-se de uma teoria que
assenta que as relações entre as unidade e as funções das unidades têm prioridades
sobre seus limites e sua posição, e que entende a gramática como acessível às
pressões de uso. Na verdade, a gramática funcional tem sempre em consideração o
uso das expressões lingüísticas na interação verbal, o que pressupõe uma certa
pragmatização do componente sintático-semântico do modelo lingüístico.
Segundo Hoffman (1987, p. 114 apud Neves, 1997), uma gramática
funcionalmente orientada analisa a relação sistemática entre as formas e as funções
em uma língua.
Enquanto que para os formalistas a aquisição da linguagem pela criança é uma
capacidade humana inata, para os funcionalistas a aquisição da linguagem pela criança
é o desenvolvimento das necessidades e habilidades comunicativas. (Neves, 1997, p.
49), é claro que uma base inata não é negada, mas ela emerge a partir da interação, ou
seja, é a interação que ativa e condiciona nossas escolhas lingüísticas.
A teoria funcionalista de base Givoniana apresenta-se ideal para a análise do
objeto de estudo desta pesquisa, pois abarca o processo de gramaticalização - o
10
caminho pelo qual as formas gramaticais são construídas. Trata-se, pois, de um
fenômeno da língua, que mostra, também, como as formas tornaram-se ainda mais
gramaticais através do tempo - e variabilidade de funções e formas no percurso de
mudança. O que pode estar acontecendo com o verbo IR, do estatudo de verbo pleno
de movimento para auxiliar, indicando futuridade. No entanto, isso é só uma hipótese
levantada até aqui, principalmente porque a gramaticalização do verbo IR como auxiliar
de futuro, e posterior morfema de futuro, está em fase inicial, sobre a qual poucas
coisas podem realmente ser afirmadas. (Gibbon, 2000, p. 56)2
Muitas gramáticas de base normativa não reconhecem a forma perifrástica (IR +
infinitivo) como expressão temporal de futuro, só que, na prática, essa é a expressão
mais freqüente na fala tanto de adultos como de crianças. Considerem-se:
(1) Eu ajudo o Hamiltinho. Eu vô ajudá3... (M, 3;10)4
(2) ...vou guardar para amanhã. (SC CRI 55 FC)5
Um estudo da fala de adultos, na cidade de Florianópolis – SC, sobre a
expressão de futuro, foi desenvolvido por Gibbon (2000) e será comparado com a
2
Dissertação de Mestrado de Adriana de Oliveira Gibbon sobre A Expressão do Tempo Futuro na
Língua Falada de Florianópolis: gramaticalização e variação, defendida em 2000.
3
Usamos a forma (ajudá) como foi falada pela criança.
4
O código M, 3;10 foi utilizado pela pesquisadora professora Mestra Almerinda Tereza Bianca Bez Batti
Dias para identificar a menina (sua filha) de 3 anos e dez meses, da comunidade local, durante,
aproximadamente, 1 ano e meio.
5
O código SC CRI 55 FC foi utilizado pelo Projeto Entrevistas Sociolingüísticas da UNESC para
identificação das entrevistas: SC significa o Estado de Santa Catarina, CRI a cidade de Criciúma,
55 o número da entrevista e FC criança abaixo de 6 anos do sexo feminino.
11
pesquisa aqui apresentada, para análise do percurso desse fenômeno, já que,
diferentemente da autora, nossa análise centra-se em dados de crianças, o que permite
verificar se estamos diante de fenômeno de mudança em tempo aparente (uma
discussão mais elaborada será feita no Capítulo II – Variação e Mudança Lingüística a
seguir). A mudança em tempo aparente, conforme Labov (1994), refere-se à analise de
dados via faixas etárias. Se os mais jovens utilizam uma categoria mais do que os mais
velhos, pode ser o caso de ocorrer uma mudança na língua, mas a mudança em tempo
aparente é uma suposição, um prognóstico do pesquisador.
1. Princípios Funcionalistas
De acordo com Givón (1991, p. 106, apud Coan, 2003):
A gramática é construída a partir de um pequeno conjunto de princípios icônicos
congnitivamente transparentes. O autor admite, no entanto, não haver uma relação
categórica de um-para-um entre função e forma, uma vez que as línguas, a par de
apresentarem situações de polissemia e homonímia, estão sujeitas a pressões
diacrônicas que provocam tanto desgastes fonéticos nas formas, ocasionando
neutralizações, como expansões de sentido, originando alterações de mensagem. Assim,
o autor assume que as estratégias lingüísticas comunicativamente motivadas, em sua
origem, podem tornar-se comunicativamente opacas, fossilizadas, devido ao efeito
cumulativo de mudança histórica, ou a empréstimo de outras estratégias usadas em
domínio funcionalmente relacionados. Mas afirma que “a condição natural da língua é
preservar uma forma para um significado, e um significado para uma forma” (Givón, 1991,
p. 106)
Cunha (2003, p. 29) afirma que a estrutura gramatical depende do uso que se
faz da língua, ou seja, a estrutura é motivada pela situação comunicativa, e os
princípios gerais que orientam a teoria givoniana são os da iconicidade e da marcação.
A iconicidade é definida como a correlação natural entre forma e função, entre o
código lingüístico (expressão) e seu designatum (conteúdo). Givón (1995, p. 58) invoca
12
como “tácita” e como “questão de fé” para os funcionalistas a hipótese de um princípio
de meta-iconicidade tal como: “As categorias que são estruturalmente mais marcadas
são, também, substantivamente mais marcadas.” Ou seja, o item marcado é mais
complexo em termos estruturais e cognitivos e menos freqüente do que seus pares
(estruturas não-marcadas).
Estabelecendo uma analogia com a ciência biológica, Givón (1984) define os
princípios de iconicidade como os “princípios que governam as correlações naturais
entre forma e função” (p. 30).
O princípio da iconicidade divide-se em três subprincípios:
a) subprincípio da quantidade: quanto maior a quantidade de informação,
maior a quantidade de forma;
b) subprincípio da integração: conteúdos que estão mais próximos
cognitivamente também estarão mais integrados no nível da
codificação e
c) subprincípio da ordenação linear: a informação mais importante tende
a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática.
O princípio da iconicidade permite uma investigação detalhada das condições
que governam o uso dos recursos de codificação morfossintática da língua: o princípio
da marcação.
Este princípio estabelece três critérios principais para a distinção entre categorias
marcadas e categorias não-marcadas, em um contraste gramatical binário:
a) complexidade estrutural: a estrutura marcada tente a ser mais
complexa (ou maior) do que a não-marcada;
13
b) distribuição de freqüência: a estrutura marcada tente a ser menos
freqüente do que a não-marcada e
c) complexidade
cognitiva:
a
estrutura
marcada
tente
a
ser
cognitivamente mais complexa, em termos de demandar mais esforço
mental, atenção e tempo de processamento do que a estrutura nãomarcada.
Conforme Coan (2003), esses vários aspectos da marcação devem ser
examinados independentemente e depois correlacionados, a partir de resultados
empíricos, para se evitar circularidade. Uma correlação função-forma somente é válida
se for testada em dados reais, e mostrada através de quantificação estatística (Givón,
1995, p. 59). Para Givón, a marcação pode não ser determinada em termos absolutos,
deve ser vista como contextualmente dependente, pois uma estrutura que é marcada
em um contexto pode não ser marcada em outro.
Portanto, a língua não é um mapeamento arbitrário de idéias. As estruturas
sintáticas não devem ser muito diferentes, na forma e na organização, das estruturas
semântico-cognitivas subentendidas.
A seguir, apresentaremos a proposta da Teoria da Variação e Mudança que,
como a Teoria Funcionalista, parte da situação comunicativa e focaliza a correlação
forma-função.
14
CAPÍTULO II – VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA
A Sociolingüística é uma das subáreas da Lingüística e estuda a língua em uso
no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação que
correlaciona aspectos lingüísticos e sociais. Esta ciência se faz presente num espaço
interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os
empregos lingüísticos concretos, em especial os de caráter heterogêneo. (Mollica &
Braga, 2003, p. 9)
Como temos por objetivo o estudo da expressão de futuro por meio da
manifestação das variantes IR + INFINITIVO (vou fazer), forma verbal no futuro do
presente (farei) e forma verbal no presente do indicativo (faço), convém que a
Sociolingüística seja considerada como suporte teórico.
A variação lingüística sempre foi uma constante. De acordo com Labov (1994),
as várias maneiras de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo
valor de verdade, fazem com que a língua não seja estática, mas sim, mutável e
heterogênea por natureza.
A entrada do verbo IR como auxiliar para expressar o futuro vem encontrando
resposta positiva entre os falantes. Por outro lado, as formas no futuro do presente
estão em crescente desuso na língua falada, o que pode evidenciar a ocorrência da
mudança lingüística.
A forma perifrástica IR + INFINITIVO como expressão de futuro é prevista em
algumas gramáticas tradicionais6. Almeida (1985, p. 314) apenas considera o verbo IR
6
Foram pesquisadas as seguintes gramáticas: Almeida (1985), Cegalla (1996), Cunha (1975), Cunha &
Cintra (1985) e Said Ali (1964).
15
como verbo perifrástico, constituindo uma locução junto ao gerúndio de qualquer verbo
para exprimir começo ou desenvolvimento gradual da ação: O trem vai saindo, eu vou
indo. Para Cunha (1975, p. 268), o verbo IR também pode funcionar como auxiliar
junto ao infinitivo do verbo principal para exprimir o firme propósito de executar a ação,
ou certeza de que ela será realizada em um futuro próximo: Vou procurar um médico. O
navio vai partir. Para Cegalla (1996, p.182), existem os tempos verbais: futuro do
presente e o futuro do pretérito, além dos tempos do futuro composto, que são
formados pelos verbos auxiliares ter e haver e/ou ser e estar, não reconhecendo o
verbo IR como auxiliar de futuro e, sim, apenas como verbo de movimento. Encontrase, também, alguma referência à perífrase em outras gramáticas quando se analisa o
aspecto ou a auxiliaridade do verbo IR. Said Ali (1964), por exemplo, reconhece a
combinação do verbo IR + infinitivo para designar locomoção, desejo de realizar algo ou
um fato que não tardará a realizar-se. E tanto Said Ali (1964) quanto Cunha & Cintra
(1985) afirmam que a forma perifrástica de IR + infinitivo é usada como substituta do
futuro do presente e indica uma ação futura imediata.
Cunha & Cintra (1985, p. 448) reconhecem a forma perifrástica como forma de
futuro:
Na língua falada, o futuro simples é de uso relativamente raro. Preferimos, na
conversação, substituí-lo por locuções constituídas de: presente do indicativo do verbo ir
+ infinitivo do verbo principal, para indicar ação futura imediata: Vai casar com o meu
melhor amigo.
É interessante pensar que, para o uso do presente do verbo IR + infinitivo, como
expressão de futuro, os autores reservam a expressão futuro próximo, que não tardará
a realizar-se. Há, na extensão do significado de próximo e/ou imediato, alguma sutil
diferença que nos possibilite diferenciar, enquanto falantes, o contexto de uso de uma
16
ou outra forma? Ou estamos diante de um mesmo contexto semântico no qual duas
formas podem variar?
Ao ser observada no ato de comunicação, a língua apresenta uma dimensão
diferente, criativa e dinâmica. Para uma mesma referência, pode-se encontrar
diferentes representações sintáticas, morfológicas e fonológicas. A língua assume,
portanto, formas de representação diversas, sendo heterogênea por natureza. A
Sociolingüística Variacionista focaliza essa diversidade e a usa
como objeto de
estudo, captando aspectos do sistema lingüístico e do sistema social, porque entende
que essa variação é um princípio geral e universal em todas as línguas e pode ser
descrita e analisada. A intenção é estudar a regularidade da variação, mostrar que esta
é sistemática e governada por um conjunto de regras.
Os mecanismos de contextualização da variação organizam-se sob uma
estrutura complexa que possui origem e níveis diversos. Eles são em grande número,
agem concomitantemente e estão dentro e fora dos sistemas lingüísticos. Há, portanto,
variáveis internas e externas à língua. As variáveis internas estão organizadas em
fatores fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos e lexicais. As variáveis
externas correspondem aos fatores individuais (sexo, idade, etnia), os sócio-geográficos
(região, escolarização, nível de renda, profissão, classe social) e os contextuais (grau
de formalidade e tensão discursiva). Essa é uma visão didática, pois esses fatores
atuam de forma simultânea e dinâmica dentro da língua.
A variação pode conduzir a uma mudança no sistema, no entanto, nem toda
variabilidade na estrutura lingüística implica mudança, mas toda mudança envolve,
obrigatoriamente, variabilidade (conforme Weinreich, Labov e Herzog, 1968).
17
Para a compreensão das causas da mudança, somos conduzidos a uma busca
pelo saber “onde a mudança foi originada na estrutura social, como ela se espalha para
outros grupos sociais e quais os grupos que fazem resistência a ela.” (Labov, 1994, p.3
apud Gibbon, 2000)
Labov (1975) introduz o conceito de regra variável. A regra variável deve
apresentar freqüência expressiva de uso e modelar-se à interferência dos fatores
lingüísticos e extralingüísticos. Para investigar a regra variável de uma determinada
comunidade de fala, o pesquisador precisa de um aparato que lhe permita fazer uma
análise quantitativa, já que deve utilizar um grande número de dados e estudar
diferentes fatores. Sua pesquisa deve ser multivariada, pois a variação entre as formas
existentes pode ocorrer por influência de vários fatores ao mesmo tempo.
É preciso acrescentar um componente importante em termos de estudo da
variação que é dimensão diacrônica das formas que estão em variação. Ainda que o
estudo sincrônico seja privilegiado, pois é sobre ele que se organizam os grupos de
fatores e muitas das hipóteses, o estudo diacrônico permite que se responda a
perguntas como: por que o sistema lingüístico em estudo encontra-se, nesse
determinado momento sincrônico, com essas características de variação?
Levando-se em conta o estudo diacrônico na análise da variação, pode-se
trabalhar com duas dimensões: a mudança em tempo aparente e a mudança em tempo
real7.
A primeira habilita o pesquisador a perceber a situação em progresso de um
recorte na amostra sincrônica em torno da faixa etária dos informantes. Se a variante
7
Este estudo não será feito neste momento da pesquisa, uma vez que nossos dados encontram-se em
um momento sincrônico, porém faremos uma breve elucidação sobre o assunto conforme Gibbon (2000).
18
inovadora estiver freqüente entre os jovens e decrescer nos grupos de mais idade,
então é possível apontar para uma mudança em progresso. A segunda, mudança em
tempo real, se dá, basicamente, de duas formas: através da consulta direta a fontes
históricas – encontrar documentos que possibilitem a análise lingüística não é tarefa
fácil e, além disso, ainda que esses documentos apresentem uma linguagem
espontânea, sempre há a formalidade do texto escrito. O outro enfoque é bem mais
difícil e elaborado. Consiste em retornar à comunidade de fala depois de um período e
repetir o estudo feito.
Se um pesquisador estiver disposto a devotar a mesma
quantidade de tempo e esforço que o primeiro investigador, ele será capaz de dizer
decisivamente se a mudança continua avançando em tempo real ou se é a mudança
aparente que está se repetindo. (Labov, 1994 apud Gibbon, 2000, p. 22-23)
Considerando-se, então, as pesquisas realizadas até o momento e baseados na
teoria
da
variação
laboviana
e
na
teoria
funcionalista
givoniana,
pretendemos comprovar, por meio de dados de crianças da cidade de CriciúmaSC, que a forma perifrástica para indicação de futuro vem adquirindo cada vez mais
freqüência e prestígio, o que pode indicar uma tendência à mudança.
Para verificarmos se há, realmente, uma tendência à mudança e quais fatores de
ordem cognitivo-discursiva estão influenciando na forma da expressão de futuro,
faremos algumas considerações sobre as categorias do verbo: tempo, aspecto e
modalidade a seguir.
19
CAPÍTULO III – TEMPO, ASPECTO E MODALIDADE: categorias do verbo
Neste capítulo, objetivamos apresentar, por meio de revisão teórica, as
categorias tempo, aspecto e modalidade. No final de cada seção, trazemos à discussão
algumas observações referentes à proposta desta monografia: a expressão de futuro na
linguagem de crianças de 2–6 anos, evidenciando-se o uso de três formas variantes
para indicar o tempo futuro: presente do indicativo, futuro do presente e a perífrase IR
mais infinitivo. Além disso, verificamos que, para cada forma pode existir mais de uma
função a depender do discurso.
1. Noção de Tempo
Para Costa (1990), “tempo é uma categoria que marca na língua, através de
lexemas, de morfemas, de perífrases, a posição que os fatos referidos ocupam no
Tempo, tomando como ponto de partida o ponto-dêitico da enunciação.” A autora utiliza
a “linha do Tempo” ou a “reta cronológica” em que se marca o momento da enunciação
e o fato enunciado como anterior, posterior ou simultâneo ao agora.
Tal reta foi proposta por Reichenbach (1947, apud Gibbon, 2000), que relaciona,
cronologicamente, três momentos relevantes para a compreensão de tempo: o
momento do evento (ME), o momento da fala (MF) e o momento de referência (MR),
dos quais ME representa o momento em que a ação se realiza, MF é o próprio
momento da fala, e MR é o momento tomado como ponto de referência suprido pelo
contexto. Esses três momentos podem ser representados pelo diagrama a seguir:
20
_____________|_________________________|______________________
MF/ MR
ME2 (vai fazer)
ME1 (tem)
ME3 (vai fazer)
(1) Bebezinho, ele tem dois aninhos, vai fazer, é ele vai fazer três aninhos
no dia dois. (SC CRI 51 MC)
Em (1), o ME1 coincide com o MF e MR e indica presente. Já ME2 e
3
são
posteriores ao MF, coincidem-se e indicam futuridade.
Costa ( op. cit.), também, distingue as categorias tempo e aspecto através da
característica dêitica/não-dêitica. Segundo ela, o gerúndio e o particípio indicam o
aspecto, não o tempo. Obviamente, ambas expressam o Tempo físico de alguma
maneira, mas não são dêiticas, não nos informam se a ação ocorre antes,
simultaneamente ou depois do momento da fala. No entanto, podem ser vistas
como anafóricas, neste caso, a interpretação de anterioridade, simultaneidade ou
posterioridade decorrerá da interpretação de outra forma verbal finita presente no
enunciado. Considere-se o exemplo a seguir:
(2) ... Nesse ano eu já estou aprendendo a virar de ponta cabeça e
a soltar as duas mãos. (SC CRI 57 FC)
Em (2), virar e soltar indicam presente, ou seja, simultaneidade a estou
aprendendo.
21
Um outro ponto que se faz necessário ressaltar para o estudo da expressão de
futuro é o que se refere aos verbos modais. Modalizar é uma espécie de forma de
tratamento, de polidez, é uma atitude do falante em relação ao seu enunciado. A
modalização é antiqüíssima na língua portuguesa. Querer e poder, por exemplo,
sempre foram usados como auxiliares, ou seja, “ao combinarem-se com o infinitivo do
verbo principal, determinam, com mais rigor, o modo como se realiza ou se deixa de
realizar a ação verbal” (Bechara, 1987, p. 112), e não mostram tendência de desuso.
Segundo Givón (1993, p. 148), a categoria de tempo está codificada entre dois
pontos no Tempo: o Tempo de fala (MF) e o Tempo do evento (ME). O Tempo de fala
serve como ponto de referência universal para o Tempo do evento, representado
diagramaticamente como segue:
passado
presente
futuro
________________________________________
(MF)
Na língua portuguesa, há diversos tempos verbais para expressarmos o Tempo
cronológico, que estão divididos em três grandes grupos: passado, presente e futuro
nos quais:
_ passado: (ME) precede o (MF);
_ presente: (ME) está junto ao (MF) e
_ futuro: (ME) é conseqüente ao (MF).
É o futuro, dos três tempos acima, o mais polêmico em termos de possibilitar o
enquadramento da sua identidade enquanto categoria de tempo.
22
O futuro, no Português do Brasil (doravante PB), é representado por três formas
gramaticais aceitas pela maioria dos gramáticos8: o futuro do presente, o futuro do
pretérito e o futuro composto, no entanto, na prática, existem outras formas para
representar o Tempo futuro como: o tempo verbal presente (do indicativo), o presente
progressivo, futuro perifrástico (principalmente a perífrase IR + INFINITIVO) entre
outros, como segue:
(2) Amanhã, tu traiz9 pra mim. (SC CRI 55 FC)
(3) ...depois, a gente vai fazendo, a gente tem que sair correndo...
(SC CRI 57 FC)
(4) O meu dente vai cair. (SC CRI 56 FC)
Assim como no inglês, há, no PB, diferenças, nas funções de cada forma,
decorrentes de aspectos discursivos e/ou cognitivos e/ou sociais (que explicitaremos
mais adiante). A forma futuro do presente, por exemplo, é usada em situação de mais
formalidade, ou quando temos mais certeza conforme o exemplo a seguir:
(6) Ela partirá à meia-noite.10
8
Foram pesquisados os seguintes gramáticos: Cegalla (1996), Cunha & Cintra (1985), Cunha (1975),
Said Ali (1964) e Perini (1996).
9
Usamos a forma (traiz) como foi falada pela criança.
10
Exemplo traduzido de Givón (1993).
23
É provável que não encontremos o tempo verbal futuro do presente em dados de
crianças, coincidindo com o resultado da pesquisa de Gibbon (2000, p. 75, 76) em
que, dos 743 dados, apenas 1% dos falantes analisados usou o tempo verbal futuro do
presente, 38% usaram o presente do indicativo e 61% a perífrase para indicação de
Tempo futuro.
Acreditamos que comportamento similar se encontre em dados de crianças a
serem analisados por nós nesta pesquisa.
Para Perini (2001, p. 253), deve-se fazer uma distinção entre tempo verbal e
Tempo semântico, o primeiro como categoria morfológica (formal), e o segundo como
categoria de significado. O autor também afirma que a nomenclatura tradicional (por
exemplo: a de perfeito e imperfeito), para distinguir aspecto associado ao tempo, não
distingue o lado formal do lado semântico do fenômeno e a discrepância entre forma e
significado é muito grande. Pois o tempo verbal dado como presente do indicativo
pode não indicar algo que está acontecendo no momento da fala, assim, por exemplo,
em amanhã eu faço isso para você, a forma faço apresenta o tempo verbal presente
(do indicativo), mas veicula o Tempo semântico “futuro” – isto é, um fato a se realizar. E
faço também pode exprimir outros aspectos semânticos mais complexos como em faço
tapeçarias que apresenta um aspecto habitual.
O tempo é considerado como uma categoria dêitica, ou seja, a referência do
tempo de uma frase depende da situação em que a frase é enunciada, conforme:
(7) Ah, eu vou fazer uma coisa, fazer um carro. (SC CRI 51 MC)
24
em que o momento do evento (ME) se refere a um Tempo posterior ao momento da fala
(MF). E temos que considerar também a referência não-temporal11, exemplificada na
frase:
(8) Minha mãe faz café com leite. (SC CRI 56 FC)
Além do caráter dêitico, o tempo de um verbo em português pode ser definido
em relação ao tempo de outro verbo da mesma oração, ou de outra oração do discurso.
Assim podemos ter:
(9) Quando eu crescer, vou decidir. (SC CRI 51 MC)
(10) A gente vai escrever, um, eu, a gente vai pegar uma folha e a
tia vai dobrar e a gente vai escrever um desenho. (SC CRI 57 FC)
Em (9), o ME é posterior ao MF e coincide com o MR dado pela oração temporal.
Já em (10), há três eventos a serem realizados, ME1 (vai pegar) é anterior ao ME2 (vai
dobrar) que é anterior ao ME3 (vai escrever) e são posteriores ao MF, pois encontramse a sua direita, e estão ordenados entre si.
Em sua Dissertação de Mestrado, Gibbon (2000) faz algumas considerações
sobre a noção de Tempo a partir de Coroa (1985) e de Fleischman (1982) importantes
para essa discussão. Para Coroa (1985), o Tempo encontra-se definido sob três
11
A referência não-temporal do morfema de tempo verbal aqui explicita é considerada como algo
habitual, algo que se faz com freqüência, ou seja, o verbo acarreta mais aspecto do que tempo.
25
formas: Tempo cronológico, Tempo psicológico e tempo gramatical. Tal definição é uma
divisão apenas com utilidade metodológica, pois é possível pensar o Tempo como
dimensão e representá-lo como uma linha, a linha do Tempo. Essa linha do Tempo
refere-se ao Tempo cronológico (Tempo físico), podendo, entretanto, servir como base
para representação tanto do Tempo psicológico quanto do tempo gramatical.
Tempo cronológico é aquele que se resume a um ponto em deslocamento para a
direita da linha do Tempo, cuja duração mantém-se constante, uniforme e irreversível;
Tempo psicológico diferencia-se do cronológico por não se mostrar constante e
uniforme já que sua existência está postulada no interior do indivíduo; e o tempo
gramatical é a representação lingüística caracterizada por um radical e morfemas.
O Tempo, então, é definido com respeito a um observador: “a simultaneidade ou
a sucessividade dos eventos e o rígido caráter unidirecional do Tempo – caminhando
sempre para frente – dependem da posição do observador, e a irreversibilidade
depende do referencial que se tome.” (Coroa, 1985, p. 30 apud Gibbon, 2000, p. 38)
De acordo com Fleischman (1982, p. 07), é importante separar Tempo do
discurso do Tempo da declaração. O primeiro é uma situação temporal que fica
estabelecida pela proposição da declaração, e o segundo é o Tempo no qual o falante
realmente produz a declaração. Os dois, entretanto, podem coincidir. O Tempo da
declaração, ou momento de fala, pode ser visto como o centro do presente do falante. É
o aqui e agora do falante, uma sensação psicológica que é intuída como uma unidade
temporal advinda da experiência, ou seja, quando o falante produz seu enunciado, por
meio da experiência de mundo, o momento em que fala (MF) é um momento de
referência para a escolha dos tempos verbais, advérbios de tempo etc. da declaração,
ou para a escolha de qualquer expressão temporal que localize a declaração no tempo.
26
Fleischman (op. cit., 08) argumenta que o tempo (categoria gramatical) difere de
outras categorias verbais como modalidade e aspecto, é um conceito sofisticado,
encontrado apenas em culturas relativamente avançadas. Segundo a autora,
sociedades primitivas fazem pouco uso do tempo objetivo ou de localizações temporais
precisas dos eventos. O que se chama de categoria tempo, em muitas dessas
sociedades, não pode ser realmente chamado de tempo, pois o tempo não é marcado
nas flexões verbais e sim nas oposições temporais de cedo/tarde ou agora/não-agora.
Outro argumento usado é de que existe uma prioridade conceitual de certas categorias
sobre outras, supostamente manifestada na ordem pela qual essas categorias são
adquiridas tanto pela criança quanto na evolução das gramáticas. O tempo é adquirido
posteriormente ao aspecto e à modalidade pela criança.
De acordo com Weist (1986 apud Coan, 2003), a utilização de tempo pela
criança não se trata de um simples alongamento da operação de tempo, mas, nos
termos de Vygotsky (apud Weist op. cit.), é o desenvolvimento do sistema temporal12.
E a possibilidade de combinar elementos do passado e presente leva à reconstrução
básica de uma outra função fundamental: a memória.
2. Aspecto
Gibbon (2000, p. 44) discute aspecto a partir das posições de Fleischnman
(1982), Travaglia (1994) e Comrie (1995), para os quais aspecto e tempo são bastante
12
Assunto que discutiremos no capítulo sobre Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem.
27
distintos. A diferença mais evidente é que o tempo tem um caráter dêitico, como já visto
acima, e o aspecto não.
Costa (1990) afirma que “Aspecto e Tempo são categorias temporais no sentido
de que têm por base referencial o Tempo físico”, mas que semanticamente falando, a
categoria “tempo” faz referência ao tempo externo, presente, passado e futuro (e suas
subdivisões) enquanto o aspecto refere-se ao Tempo interno, com noção de duração,
instantaneidade, começo, desenvolvimento e fim.
Segundo Givón (1993), tanto no inglês como em outras línguas, o aspecto
abrange várias categorias, semânticas e pragmáticas. Alguns verbos envolvem
propriedades temporais do evento, tal como delimitação, seqüencialidade ou espaço
temporal, como no exemplo (11) abaixo. Outros envolvem puramente noções
pragmáticas, tal como a relevância, como no exemplo (12) abaixo. E outros envolvem,
ainda, mais um aspecto sutil característico do falante, como nos exemplos abaixo (13) e
(14). Mesmo estando intrinsicamente ligados, tempo e aspecto devem ser tratados
separadamente, por conveniência metodológica.
(11) ... vai chover e depois vai parar de chover. (SC CRI 51 MC)
(12) Olha, eu fico lá na casa dela quando o pai vai trabalhar de
manhã... (SC CRI 51 MC)
(13) A gente vamos levar embora né. (SC CRI 55 FC)
(14) A gente vamos dar um monte pros amiguinhos, vamos
28
repartir. (SC CRI 55 FC)
Veremos alguns aspectos que aparecem mais freqüentemente em dados de
crianças: o aspecto progressivo e o aspecto imediato.
O aspecto progressivo representa um estado semântico imperfectivo em fatos
não acabados e apresenta mais duratividade, como segue:
(15) Eu estou aprendendo a ler. (SC CRI 57 FC)
O aspecto imediato é, provavelmente, muito mais freqüente na narrativa oral.
Gramaticalmente, marcas que identificam um referente vis-a-vis tendem a ser
aproximadas com o “aqui e agora”, como o contraste entre este versus aquele, no qual
este aproxima o fato para o “agora” (cf. Givón, 1993, p. 167).
(17) O que que eu vou fazer agora? (SC CRI 51 MC)
Apesar de o futuro ter restrições com respeito ao aspecto, é possível encontrar
alguns exemplos em que esta categoria se acha atualizada pela atuação de certos
recursos de expressões, tais como perífrases e advérbios. Como coloca Travaglia
(1994, p. 157 apud Gibbon, 2000):
Os tempos do futuro não indicam aspecto por dois motivos diferente:
a) em primeiro lugar eles marcam o tempo futuro que atribui à situação uma
realização virtual, até certo ponto abstrata, que enfraquece as noções aspectuais
que estão sendo atualizadas, dificultando a percepção das mesmas, ou as anula;
b) em segundo lugar estes tempos têm um valor modal, proveniente de seu valor
de futuro, que restringe a expressão do aspecto.
29
Isso, conforme Gibbon (2000, p. 136), parece se confirmar no momento em que
o autor trata das marcas de aspecto do presente do indicativo. Conforme ele coloca,
quando o presente do indicativo é usado com valor de futuro, ele não atualiza nenhum
aspecto.
Por hipótese, podemos dizer que o verbo IR, como auxiliar na forma perifrástica,
pode ter entrado na língua para marcar aspecto.
3. Modalidade
A modalidade, segundo Givón (1993, p. 169), codifica a atitude do falante pela
sua posição. Entenda-se por atitude, primeiramente, dois tipos de julgamento feitos pelo
falante com referência à informação proposicional transmitida na cláusula: epistêmico e
avaliativo.
a) epistêmico: julgamento de verdade, probabilidade, certeza, crença
ou evidência, e
b)
avaliativo:
julgamento
de
conveniência,
preferência,
intenção
(propósito), capacidade, obrigação ou manipulação.
Tanto a modalidade epistêmica quanto a avaliativa são categorias obscuras e
gradativas dentro das estruturas e de difícil percepção.
Segundo Givón (op. cit.), há quatro modalidades epistêmicas específicas que
influenciam fortemente nas construções gramaticais da linguagem humana:
a) a pressuposição: a proposição assume valor de verdade, por definição,
por um acordo anterior, por uma ação culturalmente convencionada;
b) asserções realis: a proposição é fortemente declarada como verdade;
30
c) asserções irrealis: a proposição é fracamente declarada como possível
ou provável e
d) asserção negativa: a proposição é fortemente declarada como falsa.
A pressuposição é a modalidade menos marcada gramaticalmente. O contraste
entre realis versus Irrealis depende da distribuição da modalidade em várias categorias
gramaticais e os aspectos avaliativos do irrealis dependem dos modais auxiliares
empregados nas proposições. A negação não será analisada nesta pesquisa, pois:
Os não-acontecimentos não se localizam em momentos específicos, mas
perduram em todos os instantes ao longo de uma dimensão. A solução para este
problema possivelmente esteja em nossa concepção de tempo. Note-se que,
quando falamos que uma situação é um estado, enfatizamos que tal situação é
verdade se ocorreu em todos os instantes entre t1 e t2. Então, quando dizemos
que uma situação não aconteceu, estamos evidenciando que, em todos os
instantes de tempo entre t1 e t2, é verdade que essa situação não aconteceu.
(Coan, 1997, p. 112)
Gibbon (2000) faz um levantamento de vários teóricos que afirmam a relação
estreita que o Tempo futuro tem com a modalidade. Vamos comentar alguns deles a
seguir.
Lyons (1977, p. 677), ao tratar da categoria tempo e das referências temporais,
afirma que o futuro não é igual ao passado do ponto de vista de nossa experiência e
conceito de Tempo. A futuridade não é um conceito temporal puro, ela necessariamente
inclui um elemento de predição ou relaciona uma noção modal.
Para Mateus et al. (1989), o futuro como categoria lingüística reserva sempre um
valor modal. O falante sempre marca, nos enunciados que produz, utilizando-se do
futuro,
a
avaliação
que
faz
da
necessidade,
possibilidade da ocorrência dessas ações.
impossibilidade,
probabilidade,
31
De acordo com Câmara Jr. (1985, p. 128), a concepção de futuro não é própria
da língua. Ela resulta de uma elaboração secundária e depende de condições especiais
de comunicação, está pautada mais por um raciocínio objetivo do que por um impulso
comunicativo espontâneo. A noção de futuro está mais associada ao desejo, à dúvida,
à imposição da vontade e funciona a rigor na categoria modo.
Também Coroa (1985, p. 55 e 56) atesta que qualquer expressão sobre o tempo
futuro não pode ignorar a importância das oposições modais.
Coan (2003) faz uma distinção entre modo e modalidade sendo que a autora
afirma que modo é uma categoria morfológica do verbo com função modal, que,
geralmente, envolve um grupo distinto de paradigmas verbais (indicativo, subjuntivo,
imperativo). Já a modalidade é uma categoria semântica, pode ser expressa em uma
variedade de formas: morfológica, lexical, sintática, via entonação, envolvendo, assim, a
atitude do falante, concordando com Givón (1993) já citado.
Longo (1998, apud Silva, 2004)13, em pesquisa sobre as perífrases do português
falado com um corpus composto por entrevistas do projeto NURC, observou a
predominância do futuro com o verbo IR perfazendo 70% das ocorrências. No que se
refere ao futuro, a autora surpreendeu-se com o alto índice de perífrases verbais nas
elocuções formais.
Fleischman (1982 apud Gibbon, 2000, p. 45) diferencia modo de modalidade,
sendo que o primeiro é uma categoria verbal que envolve itens morfológicos e também
paradigmas verbais como subjuntivo, indicativo e imperativo, e o segundo, modalidade,
relaciona-se com certos elementos de significação expressos pela língua. Ela recobre
13
Artigo publicado por Rita do Carmo Polli da Silva Mestranda em Estudos Lingüísticos na UFPR: “A
expressão do tempo futuro – forma sintética x perífrase”.
32
nuanças
semânticas
tais
como
justificativa,
intenção,
necessidade,
desejo,
possibilidade, etc. A modalidade tem relação com a atitude do falante sobre o conteúdo
proposicional da sua declaração.
Segundo Gibbon (2000), a modalidade é relevante para o futuro, não só na sua
expressão, mas, também, na sua formação. O uso da forma perifrástica pode ser
explicado através desse componente no Tempo futuro. Acreditamos que ela entrou na
língua para expressar a modalidade (intenção, certeza), e que após um primeiro
momento, assumiu também a codificação de tempo futuro, ocupando o espaço do
futuro do presente.
Pelo exposto acima é possível observar que a forma perifrástica está se
tornando, praticamente, obrigatória tanto na língua falada como na escrita para
indicar tempo futuro. Assim, podemos associar a forma perifrástica ao limite entre
modalidade realis e irrealis, já que a perífrase parece ser um fato que ocorrerá num
período de Tempo mais próximo do presente do falante.
Para melhor analisarmos as perífrases usadas pelas crianças na expressão de
futuro, discutiremos, a seguir, alguns pontos sobre aquisição e o desenvolvimento da
linguagem.
33
CAPÍTULO IV - AQUISIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
1 - Aquisição da Linguagem
Antes de serem capazes de somar 2+2, as crianças ligam frases, fazem
perguntas, selecionam os pronomes adequados, negam frases, usando regras
sintáticas, fonológicas, morfológicas e semânticas. No entanto, ao contrário da
aritmética, a língua não se ensina às crianças. (Fromkin, 1993).
A língua é adquirida por fases sucessivas e cada vez mais se aproxima da
gramática do adulto. Conforme Fromkin (1993), essas fases são muito semelhantes em
todo o mundo. A primeira fase é do balbucio, nessa fase, são adquiridos os sons da
fala que começam, geralmente, por volta do sexto mês. Passando para a fase
holofrástica (mais ou menos com um ano), as crianças começam a usar repetidamente
o mesmo som para “significar” a mesma coisa e produzem as suas primeiras palavras,
isso mostra como uma criança pode alargar o significado de uma palavra para abranger
uma classe mais ampla, além de expressar uma variedade de idéias, emoções e
conhecimento social.
A fase de duas palavras, também chamada de telegráfica, começa por volta do
segundo aniversário, formando verdadeiras frases. Nessa fase, não há marcas
sintáticas ou morfológicas, isto é, não há flexão de número, nem de pessoa, nem de
tempo etc. Depois dessa fase (2;3 a 3;5 mais ou menos), à medida que adquirem cada
vez mais linguagem, cada vez mais se aproximam da gramática do adulto, ampliando a
capacidade lingüística.
34
Segundo Piaget (apud Mussalim & Bentes, 2001, p. 210), a aquisição da
linguagem depende do desenvolvimento da inteligência na criança, chamada de
cognitivismo construtivista ou epigenético14, segundo o qual o aparecimento da
linguagem se dá na superação do estágio sensório-motor, por volta dos 18 meses.
Neste estágio, dá-se o desenvolvimento da função simbólica (significado/significante) e
o desenvolvimento da representação (memória). Essas duas funções estão
estreitamente ligadas ao que Piaget chama de “egocentrismo radical”, ou seja, a
indiferenciação cognitiva entre o sujeito e o mundo ou pessoas que o cercam. A essas
duas funções estão relacionados três processos:
(sujeito e objeto; eu e o outro; eu e o mundo);
ii
i
o da descentralização das ações
o da coordenação gradual das ações
(passam a se coordenar para constituir uma conexão entre meios e fins, ou seja,
passam a interagir com o outro ou com o objeto);
iii
o da permanência do objeto (o
objeto está no espaço perceptual da criança).
Por meio desses três processos é possível exercer o princípio de arbitrariedade
do signo, ou por assim dizer, fazer uso efetivo do símbolo. Com a linguagem, o jogo
simbólico, a imagem mental, as sucessivas coordenações entre as ações e entre estas
e o sujeito, surge a possibilidade de internalizar e conceptualizar as ações. (Mussulim &
Bentes, 2001)
Aliado à teoria de Piaget, Vygotsky (apud M. & B., 2001) propõe que, com a
ajuda da fala, a criança começa a controlar o ambiente e o próprio comportamento, e
entende que o processo de internalização é como uma reconstrução interna de uma
14
Estas duas denominações evocam a proposta de explicação da origem e do desenvolvimento das
estruturas do conhecimento (cognitivas) pela interação entre ambiente e organismo.
35
operação externa, mas que deve ser mediada pelo outro, já que o sucesso da
internalização vai depender da reação de outras pessoas.
As primeiras funções, quer lingüísticas, quer comunicativas, têm um papel na
determinação das funções gramaticais de agente/ação/paciente, responsáveis,
segundo modelos funcionalistas de gramática, pelos sistemas de transitividade nas
línguas. Já noções de ação completa ou realizada vs ação não-completada, que serão
responsáveis pela marcação de tempo e de aspecto nas línguas, seriam instauradas
em esquemas interativos15.
2 - Desenvolvimento do Sistema Temporal
Weist (1986) propõe que crianças desenvolvem uma capacidade cada vez mais
complexa de configuração do tempo, passando por quatro etapas de aquisição
temporal baseada nos momentos: da situação, da referência e da fala propostos por
Reichenbach (1947). A primeira etapa é chamada de sistema do tempo de fala (MF) –
o aqui e agora; a segunda, sistema do momento do evento (MS), caracterizada pela
capacidade que tem a criança de relatar eventos anteriores, simultâneos ou posteriores
ao momento da fala. A transição para o sistema de tempo de referência (MR), terceira
etapa, dá-se, primeiramente, de modo mais restrito ao contexto; e, finalmente, MF, MS
e MR podem representar três diferentes pontos no tempo e podem ser relacionados
livremente.
15
Uma crítica pertinente a esta visão, como a outros tipos de interacionismo, pode ser encontrada em
Lemos (1992), que frisa a falta de explicação sobre a origem do que é lingüístico propriamente.
36
Weist (1986) afirma que quando crianças usam verbos com sentido de futuro é
porque se apropriaram do valor do tempo, e quando formas de futuro aparecem, estas
estão divididas entre futuro simples perfectivo e o futuro complexo nas formas
imperfectivas.
Por volta dos três anos, a criança já é capaz de fazer distinção lingüística para
expressar um ponto de referência entre situação (MS) e fala. Conforme Coan (2003),
essa capacidade lingüística é evidência do desenvolvimento conceptual e indica que a
criança adquiriu a propriedade de deslocamento temporal, o que mostra a capacidade
de descentralização em relação ao momento de fala. Considere-se o exemplo:
(1) Vô pegá a sacolinha. Dexa o pente aqui, eu vô jogá uma bola di
mininu, ô Tinho. (M. 2;4.29)
————MF, MR1————MS1/MR2 —————MS2————— •
vô pegá
vô jogá
Em (1), a primeira ação está deslocada à direita do MF e tem sua
referência junto ao MF, já a segunda ação MS2 tem seu ponto de referência no
MS1, ou seja, na primeira ação e é posterior a primeira ação MS1.
Para entendermos melhor como as crianças usam a expressão de futuro
na fala, faremos a análise dos dados coletados até o momento, para
evidenciarmos a variação lingüística que está ocorrendo na língua e quais são os
fatores influenciadores do uso de uma ou de outra forma.
37
CAPÍTULO V – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para dar início a esta caminhada, analisaremos a variável perífrase versus
presente e as variáveis independentes (condicionamentos): modalidade +certeza
versus -certeza e seqüencialidade versus contra-sequencialidade, com o intuito de
observar a atuação dos princípios de iconicidade e da marcação (conforme explicitamos
no capítulo um). Também, devido à natureza sociolingüística da proposta (análise de
dados de fala coletados sob orientação metodológica laboviana), observaremos
condicionamentos extralingüísticos, quais sejam: o sexo e a idade.
Ao final da análise, procedemos a uma comparação com dados do trabalho de
Gibbon (2000) que analisou a expressão de futuro na língua falada de Florianópolis-SC,
porém em dados de adultos, no sentido de caracterizar (ou não) o fenômeno como um
caso de mudança em tempo aparente.
Ao todo, foram coletados quinhentos e trinta [530] dados16, com o predomínio do
uso da forma perifrástica: quatrocentos e cinqüenta e nove [459] dados foram usados
na forma perifrástica (cf. exemplo 1), setenta e um [71], no presente do indicativo (cf.
exemplo 2) e apenas um (1) dado no futuro do presente (cf. exemplo 3).
(1) Eles vão ficar louquinhos, porque eles vão comprar um motoqueiro.
(SC CRI 49 MC)
16
Além dos 530 dados, foram descartados cento e sessenta (160) dados do presente do indicativo por
encontrarem-se em contexto de restrição da variação, em que o presente do indicativo não mantém a
significação de Tempo futuro, por expressar uma fato habitual.
38
(2) Depois de tarde eu janto aqui. (SC CRI 51 MC)
(3) Será que ela vai ter que dizer isso. (H. 5; 4. 17)
Os dados de crianças de 5-6 anos foram coletados em entrevistas do Banco
Entrevistas Sociolingüísticas/UNESC e os de crianças de 2-4 anos são da Amostra
de Dias (2004) – gravações longitudinais. Os dados foram submetidos ao programa
estatístico VARBRUL. O programa VARBRUL (Pintzuk, 1988) é um modelo
logístico para análise de fenômenos variáveis e seus condicionamentos
sociolingüísticos.
39
CAPÍTULO VI - ANÁLISE DOS DADOS
O objetivo deste trabalho, como já apresentamos, é mostrar que, na linguagem
falada por crianças de 2–6 anos, no município de Criciúma/SC, o futuro é expresso,
variavelmente, pela perífrase IR + INFINITIVO e pelo presente do indicativo,
evidenciando-se, nos dados coletados para esta pesquisa, apenas um dado do futuro
do presente.
Apresentamos, abaixo, o quadro 01, que fornece a distribuição por sexo e idade:
Quadro 01: Número de informantes por sexo e idade.
Sexo
02 a 04 anos
05 a 06 anos
M
1
4
F
1
4
Logo abaixo, a tabela 1 mostra os resultados obtidos para cada variante isolada.
Tabela 01: Número de dados da forma perifrástica, do presente do indicativo e do futuro
do presente na expressão de futuro por crianças criciumenses de 2–6 anos.
Variantes
Número de dados
Porcentagem
Forma perifrástica
459
87%
Presente do indicativo
71
13%
Futuro do presente
1
-
Total
530 + 1
100%
40
A primeira constatação que se pode fazer é que as formas do futuro do presente
não aparecem na língua falada pelas crianças da cidade de Criciúma-SC, portanto, há
um indício de que essa forma desaparecerá, cedendo seu lugar à perífrase, mas isso é
apenas uma hipótese, pois precisaríamos de um estudo longitudinal para a
comprovação do mesmo.
Como a incidência dos dados no futuro do presente foi mínima, já não é possível
afirmar que o mesmo está em variação com o presente do indicativo e com a forma
perifrástica, na fala de crianças criciumenses. Portanto, nossa variável passou a ser
binária. Outras formas apareceram, mas não em número significativo, portanto não
foram analisadas, como: verbos no infinitivo e presente progressivo, o que, além de
dificultar as rodadas estatísticas, comprometeria a análise por tais formas serem
relativas, expressarem tempo relativo (conforme Comrie, 1990).
Dos grupos de fatores explicitados anteriormente, apenas a modalidade se
mostrou significativa para a rodada estatística no programa VARBRUL, conforme tabela
abaixo:
Tabela 02 – Modalidade e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos na
cidade de Criciúma – SC.
Fatores
Aplic. / Nº de dados
%
Peso Relativo
+ certeza
388/458
85
0,41
- certeza
71/72
99
0,90
Total
459/530
87
-
41
Dos 458 dados de perífrase, 388 foram usadas em contexto de mais certeza e
setenta e um em contexto de menos certeza. Apesar da diferença dos números, o peso
relativo do uso de perífrases, em contextos de menos certeza, é de (0,90), o que
significa que crianças usam muito mais perífrases nesses contextos, do que em
contextos de mais certeza; essa atitude do falante indica um julgamento fracamente
declarado como possível ou provável.
O grupo Seqüencialidade mostrou-se, estatisticamente, não-significativo em
dados de crianças, por isso apresentamos apenas os resultados percentuais:
Tabela 03 – Seqüencialidade e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos no
município de Criciúma – SC.
Fatores
Aplic. / Nº de dados
%
Seqüencialidade
441/511
86
Contra-seqüencialidade
18/19
95
Total
459/530
87
Assim, também, mostraram-se não-significativos, em dados de crianças, na
rodada estatística, os fatores extralingüísticos: sexo e idade, conforme ilustram as
tabelas (4) e (5) a seguir:
42
Tabela 04 – Sexo e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos no município de
Criciúma – SC.
Fatores
Aplic. / Nº de dados
%
Feminino
246/284
87
Masculino
213/246
87
Total
459/530
87
Tabela 05 - Idade e uso da perífrase em dados de crianças de 2-6 anos no município de
Criciúma – SC.
Fatores
Aplic. / Nº de dados
%
2-4 anos
334/381
88
5-6 anos
125/149
84
Total
459/530
87
Como só o fator modalidade foi, estatisticamente, significativo na escolha de uma
ou de outra forma, analisamos o contexto semântico-discursivo em que essa se
encontra.
Quando o enunciado apresenta, prototipicamente, os conectores: agora, depois,
amanhã e hoje, há indicação de mais certeza, conforme exemplos de (4) a (7):
43
(4) Agora eu vou fazer o Sol. (SC CRI 50 MC)
(5) Depois a gente terminar, a gente vamos passear lá na frente. (SC CRI
55 FC)
(6) Tu disse que amanhã a gente vamos entrar na folha. Não dá, né? De
entrar. (SC CRI 55 FC)
(7) Mas hoje, eu vô bincá de canuquinha (sinuca). (H. 4;4.16)
Em contextos de menos certeza, evidenciamos formas lingüísticas tais como: a)
o conector se; b) expressões como acho que, que que eu vou + infinitivo, como que
eu vou + infinitivo, e c) a confirmação né e tá, em perguntas. Seguem exemplos
ilustrativos:
(8) Vou ver se eu consigo fazer mais um. (SC CRI 50 MC)
(9) Eu acho que eu vou botar de pé. (SC CRI 55 FC)
(10)
O que que eu vou fazer agora? (SC CRI 51 MC)
(11)
Como que eu vô terminá uma peça? (H. 4;11.10)
(12)
Mas, hoje tu vais dar de novo, né? (SC CRI 55 FC)
44
(13)
Tá! Vô pegá minha (inint.) do livo. Tá, mãe? Tá? (M. 2;4.9)
O fato de crianças de 2-6 anos usarem com mais freqüência, ou quase que
exclusivamente, perífrases ou presente do indicativo em vez do futuro do presente, para
expressão de futuro, leva-nos a pensar que há uma mudança em curso.
A pesquisa realizada por Gibbon (2000) obteve um total de setecentos e
quarenta e três (743) formas variantes de futuro, das quais 453 dados apareceram na
forma perifrástica (61%), 280 dados no presente do indicativo (38%) e apenas 10 dados
no futuro do presente (1%). Como podemos observar, através dos nossos resultados
em comparação com os da autora, na fala de adultos, na cidade de Florianópolis – SC,
a forma perifrástica está, também, concorrendo mais acentuadamente. Considere-se a
tabela 06 abaixo:
Tabela 06 - Comparação entre variantes na expressão do Tempo futuro
em
Criciúma/SC x Florianópolis/SC
Expressão de Futuro
Criciúma/SC
Vou + infinitivo – 87%
Presente do indicativo – 13%
Futuro do Presente – -
Expressão de Futuro
Florianópolis/SC
Vou + infinitivo – 61%
Presente do indicativo – 38%
Futuro do presente – 1%
Vale a pena ressaltar que, nos dados de Criciúma – SC, apenas um (1) dado foi
encontrado como futuro do presente, não sendo significativo em percentuais, por isso
desconsiderado na tabela acima.
45
Nossas pesquisas mostram que a forma futuro do presente está definitivamente
perdendo espaço para a forma inovadora: a forma perifrástica, o que é um indicativo de
mudança lingüística em curso.
46
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando-se, então, a pesquisa realizada até aqui, podemos concluir que a
forma perifrástica vem encontrando, realmente, lugar de destaque na língua falada por
crianças na região de Criciúma-SC, e que vem concorrendo mais fortemente com o
presente do indicativo do que com o futuro do presente (evidenciado em apenas um
dado).
A forma inovadora, perífrase, é condicionada por fatores semântico-discursivos
conforme a intenção do falante. Como comprovamos na rodada estatística, a
modalidade influencia na escolha de uma ou de outra forma para expressar o futuro no
Português do Brasil e a perífrase IR + infinitivo é a preferida para codificar tal função,
uma vez que aparece em quase todos os contextos de futuridade, favorecida por um
contexto de menos certeza na expressão do fato.
Em comparação à pesquisa de Gibbon (2000), os dados mostram-nos que tanto
as crianças como os mais jovens usam mais a perífrase do que pessoas de mais idade,
o que comprova nossa hipótese de que a forma perifrástica é a mais usada na língua
falada tanto em Criciúma como em Florianópolis, evidenciando uma mudança em
tempo aparente (conforme denominação laboviana - Labov, 1994).
Em relação à mudança lingüística, como sugestão para pesquisas futuras,
destacamos a utilização de dados diacrônicos para que se ateste a mudança lingüística
e o surgimento da forma perifrástica em detrimento da forma futuro do presente,
aprofundando, por conseguinte, a discussão em torno do tempo, do aspecto e da
modalidade.
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