Alteração peculiar da repolarização ventricular em caso de

José Grindler
Carlos Alberto Rodrigues
de Oliveira
Alfredo José da Fonseca
U
Alteração peculiar da
repolarização ventricular
em caso de feocromocitoma
ma paciente de 41 anos de idade, em tratamento de hipertensão arterial e diabete melito, foi
internada com quadro clínico de insuficiência coronária
aguda. Relatava que há quatro meses vinha apresentando
episódios de taquicardia, sudorese e hipertensão arterial.
O eletrocardiograma (ECG) (Figura 1) revelou supradesnivelamento do segmento ST de cerca de 1 mm em derivações
inferiores e ântero-laterais e inversão da onda T na maioria das
derivações, com ondas T negativas gigantes atingindo 1 mV em
V3 e V4. Não houve aparecimento de ondas Q patológicas.
As dosagens dos marcadores troponina e enzima
CK-MB mostraram valores pouco aumentados e foi indicado
cateterismo cardíaco. A angiografia arterial coronária revelou
ausência de coronariopatia obstrutiva e a ventriculografia
esquerda hipocinesia apical.
Como a paciente continuava apresentando crises
de taquicardia sinusal com sudorese e hipertensão arterial, suspeitou-se de feocromocitoma. As dosagens de
catecolaminas plasmáticas e urinárias mostraram valores
muito aumentados, confirmando a suspeita. O ultra-som
de abdome evidenciou massa sólida de cerca de 6 cm
de diâmetro na topografia da loja adrenal direita, que
foi confirmada pela tomografia computadorizada e pela
ressonância nuclear magnética do abdome.
Foi indicada cirurgia para a retirada do tumor,
mas a paciente recusou o tratamento com receio da
transfusão de sangue e, alegando motivos religiosos,
solicitou alta hospitalar.
O eletrocardiograma da paciente na ocasião da alta
já havia normalizado.
Figura 1. Eletrocardiograma de mulher de 41 anos, hipertensa e diabética. As alterações mais marcantes estão na repolarização
ventricular: ondas T negativas profundas e segmento ST discreta e difusamente supradesnivelado. O intervalo QT mede 0,400 s,
mas o QTC corrigido para a freqüência cardíaca de 100 bpm está aumentado (0,516 s). A onda P e o QRS estão normais.
Diagn Tratamento. 2007;12(4):185-6.
ELETROCARDIOGRAMA
Antonio Américo Friedmann
Discussão
Ondas T negativas gigantes, com amplitude maior
que 10 mm (1 mV) em pelo menos duas derivações, são
encontradas mais comumente nas seguintes condições:
insuficiência coronária aguda, cardiomiopatia hipertrófica apical e lesões cerebrais graves.1 Ondas T negativas
isquêmicas de grande magnitude são em geral simétricas
e localizadas em uma determinada parede ventricular, relacionada à coronária comprometida. Na cardiomiopatia
hipertrófica assimétrica apical (doença de Yamaguchi),
que acomete com mais intensidade a ponta do ventrículo
esquerdo, o eletrocardiograma (ECG) mostra grandes ondas
T negativas nas derivações anteriores, opondo-se a ondas
R com aumento de amplitude.2
As assim chamadas “ondas T cerebrais” são ondas
T negativas gigantes, que aparecem difusamente no ECG,
acompanhadas de desnivelamento do segmento ST e aumento
do intervalo QT. São relatadas mais comumente em casos
de hemorragia cerebral, mas podem ocorrer em outras condições de injúria aguda do sistema nervoso central e foram
atribuídas à intensa disfunção autonômica causada pela lesão
cerebral aguda. Estudos anatomopatológicos demonstraram
miocitólise focal no miocárdio em alguns casos.3
Mais raramente, outras condições de hiperestimulação adrenérgica, como o feocromocitoma e alguns casos
de estresse psicológico agudo, também podem ocasionar
repercussões cardíacas com alterações das ondas T semelhantes no eletrocardiograma.4,5
Mais de 50% dos pacientes com feocromocitoma
têm alterações eletrocardiográficas. As mais comuns são
inversão da onda T, hipertrofia ventricular esquerda,
taquicardia sinusal e outras taquiarritmias supraventriculares. Eventualmente o encontro de intervalo PR
curto mostra a ação de catecolaminas sobre a condução
atrioventricular. Elevações do segmento ST e ondas T
negativas difusas são geralmente transitórias e regridem
com o bloqueio adrenérgico farmacológico ou com a
retirada do tumor.6 Algumas alterações são atribuídas
a miocardiopatia hipertensiva ou a isquemia miocárdica,
porém, miocardite e cardiomiopatia induzida por catecolaminas foram descritas.7
No caso relatado, a paciente não apresentava hipertrofia ventricular nem obstrução arterial coronária. Assim, as
alterações marcantes do segmento ST e da onda T devem ter
sido conseqüência da intensa estimulação catecolaminérgica,
mecanismo semelhante ao da “onda T cerebral”.
Antonio Américo Friedmann. Livre-docente, diretor do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
José Grindler. Médico supervisor do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
Carlos Alberto Rodrigues de Oliveira. Médico assistente do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(HCFMUSP).
Alfredo José da Fonseca. Médico assistente do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
Informações
Local onde foi produzido o manuscrito: Serviço de Eletrocardiologia
da Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência:
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo — Prédio dos Ambulatórios
Serviço de Eletrocardiologia
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 155
São Paulo (SP) — CEP 05403-000
Tel. (11) 3069-7146 — Fax. (11) 3083-0827
E-mail: [email protected]
Fonte de fomento: nenhuma declarada.
Conflitos de interesse: nenhum declarado.
Referências
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Data de entrada: 19/3/2007
Data da última modificação: 19/3/2007
Data de aceitação: 6/8/2007
Diagn Tratamento. 2007;12(4):185-6.