O Imaginário Onírico

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V REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL – V RAM
GT IX – ANTROPOLOGIA, TRABALHO DE CAMPO E SUBJETIVIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
FERNANDO CESAR DE ARAUJO
[email protected]
Mestre em Sociologia/Antropologia UFMG
RESUMO
As frestas entre o universo das vivências subjetivas e o território das práticas cotidianas e
representações coletivas sempre se constituíram num convite para o trânsito contínuo da atividade
antropológica.
A investigação do imaginário onírico demanda o reconhecimento deste terreno de liminaridade.
Mas, curiosamente, a antropologia abandonou o espaço das pesquisas oníricas, deixando-o
entregue aos cuidados do campo psi: a psicologia e a psicanálise reivindicaram a hermenêutica
dos sonhos e a vereda psiquiátrica herdou a investigação dos distúrbios do sono.
Sabendo que pesquisadores importantes para a constituição da disciplina antropológica
reconheceram o papel do sonho na configuração cultural de sociedades 'tradicionárias', um dos
objetivos deste trabalho é investigar mais profundamente as razões desta ''desocupação de
território'' por parte da antropologia.
Depois de passar por um período de confronto ou de pacto com a psicanálise freudiana e de
desfrutar de uma estação de interesse com os estudos da Escola de Cultura e Personalidade, as
investigações antropológicas que permaneceram mantendo o foco sobre o universo onírico –
dando-lhe voz em suas etnografias – atingiram, numa perspectiva pós-moderna, o limiar da
reabilitação do sonho como objeto privilegiado de conhecimento.
O IMAGINÁRIO ONÍRICO: PERSPECTIVAS ANTROPOLÓGICAS
Fernando Cesar de Araujo
Durante o desenvolvimento de pesquisa de mestrado sobre o imaginário onírico dos
praticantes das religiões afro-brasileiras, genericamente conhecidos como povo-de-santo, chamoume a atenção a escassa produção acadêmica e a quase inexistência de estudos sobre sonhos na
antropologia religiosa afro-brasileira. Há um silêncio sobre o universo onírico.
1
Incitado a
pesquisar as razões desta lacuna, constatei surpreso que a antropologia, enquanto campo de
conhecimento, havia relegado o onírico a um plano secundário.
Este artigo propõe-se, portanto, a refletir sobre as bases teóricas e epistemológicas que
provocaram um afastamento do discurso antropológico do fenômeno do sonho, abandonando o
território exclusivamente aos cuidados do conhecimento psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise).
Um dos aspectos essenciais é mostrar que foi necessário aguardar por uma mudança de perspectiva
1
Com exceção de alguns artigos de Roger Bastide (1976) e de rápidas referências a sonhos no
contexto de entrevistas de pais e filhos-de-santo, que, no entanto, não recebem uma análise por
parte dos pesquisadores. Acrescente-se um capítulo de Segato (1995) e citações de antropólogos
entrevistados por Silva (2000).
que incluísse o antropólogo no “encontro etnográfico” e levasse em consideração sua subjetividade,
para que dimensões mais amplas das pesquisas com o material onírico pudessem se abrir à
investigação antropológica.
Durante a pesquisa levei em consideração alguns significativos sonhos ocorridos ao longo de
minha convivência com o povo-de-santo e participação em rituais públicos e privados e decidi
analisá-los em relação à gradual aproximação do grupo religioso. Meus próprios sonhos, que na
dissertação ganharam espaço como um dos focos possíveis do exercício de uma antropologia
onírica, neste artigo servem, no entanto, apenas como deflagradores de uma investigação de cunho
mais teórico.
Ao fazer um rastreamento histórico do interesse da antropologia pelo fenômeno onírico, é
possível perceber que, partindo do momento inaugural da explicação animista de Tylor (onde o
sonho é elevado ao status de fundador genético da religião), em três etapas posteriores - a
polarização com a teoria freudiana, os estudos da Escola Cultura e Personalidade e o que chamamos
de ‘nova antropologia onírica’ - o sonho recebe o olhar mais atento dos antropólogos.
A – O sonho como fundamento da religião
Mostra-se significativo o momento inaugural de interesse da antropologia pelos sonhos, pois
a própria religião será pensada como tendo origem na experiência onírica. Esta importância
soberana atribuída aos sonhos recebe impulso com Tylor, para quem os povos “primitivos” criaram
o caminho para a crença em espíritos e para a religião através da reflexão sobre suas próprias
experiências oníricas.
Como reação às teorias que defendiam a concepção do “mito natural”, Tylor acreditava que
a religião primitiva era racional e decorria de observações – mesmo que a seu ver inadequadas. Irá
atribuir a origem da religião ao esforço do homem em compreender os dados imediatos da
experiência, representados pela morte, o sono e os sonhos, que o levam a crer na existência da alma,
posteriormente projetada nos animais, plantas e objetos. Através desta concepção animista,
desenvolvem-se evolutivamente as noções de deuses e de Deus (Evans-Pritchard, 1973:41-60;
Mercier, 1974:38-48).
“[Para os animistas] A idéia de alma teria sido sugerida ao homem pelo espetáculo, mal
compreendido, da dupla vida que ele leva normalmente no estado de vigília, de um lado, e
durante o sono, de outro. Para o selvagem, com efeito, suas representações durante a
vigília e aquelas que percebe no sonho possuem, ao que se diz, o mesmo valor: ele objetiva
as segundas como as primeiras, ou seja, vê nelas a imagem de objetos exteriores cujo
aspecto elas reproduzem mais ou menos exatamente” (Durkheim, 1996:35).
2
Vai-se construindo gradualmente a idéia de que existe em cada um de nós um outro, um
duplo, com poder de deixar o corpo onde reside e ‘viajar’. Este duplo, concebido como alma, tem
características especiais, como maior mobilidade e maleabilidade, pois é formado de uma matéria
mais sutil e etérea, possuindo algo de “semi-espiritual”.
O primitivo encontrou apoio para a crença na existência deste duplo nos fenômenos de
insensibilidade temporária como a síncope, a apoplexia, a catalepsia e o êxtase, ou seja, situações
em que o ego perde o controle e uma parte distinta da ‘pessoa’ se manifesta. Estas múltiplas
observações confirmariam assim a idéia da dualidade constitutiva do homem.2
Contundente em sua crítica sociológica à teoria animista, Durkheim não admite como
evidente ser a alma inteiramente distinta do corpo, com vida própria e autônoma, pois essa
concepção não seria a do primitivo, para quem ambos confundem-se e não podem ser separados
(id:43). E mesmo aceitando-se que a noção de alma origine-se do sonho, a hipótese do duplo não
seria a única nem a mais econômica explicação para a experiência de ver parte de si mesmo viajar
durante o sonho. Outras explicações, como a capacidade de ver à distância, seriam igualmente
plausíveis, além do fato de nem todo sonho - como os sonhos de recordação ou os sonhos com
situações da vigília - admitir a explicação animista (id:44). E se o primitivo percebe que seus
sentidos o enganam durante o estado de vigília, porque os consideraria infalíveis durante o sonho e
tomaria suas imagens por realidades?
Para Durkheim, nada indica que o sonho foi a fonte para a construção da idéia de duplo ou
de alma, “pois ela pode ter sido aplicada posteriormente aos fenômenos do sonho, do êxtase e da
possessão, sem no entanto derivar deles” (id:47). O poder de divinização viria da própria
sociedade, sendo inconcebível que experiências individuais como o sonho e a morte sejam fontes
deste poder. A religião não é um fenômeno subjetivo, mas eminentemente social, tratando-se de
representações coletivas que não poderiam se sujeitar à “vã fantasmagoria” ou a “concepções
imaginárias” produzidas numa espécie de delírio por indivíduos que sonham.
Na base da crítica de Durkheim e de toda a Escola Sociológica Francesa à obra de Tylor,
está a opção deste último pela explicação de crenças primitivas em termos de ‘psicologia’
individual. Nesta tensão, onde as idéias durkheimianas se impuseram, podemos vislumbrar motivos
para o fenômeno do sonho ter sido abandonado à pesquisa psicológica, deixando a antropologia de
lhe atribuir importância, descartando-o como puro fenômeno subjetivo que não mereceria um
exame mais acurado de uma ciência que passou a se preocupar apenas com ‘fatos sociais’ do mundo
2
“Espelho, sonho, morte, três fontes de angústia, três mensagens de ambigüidade, asseveram ao homem que ele é
duplo, idêntico e outro, real e irreal. Enquanto o espelho cria a imagem, o sonho inaugura o reino do imaginário ... o
espelho é a porta para a visão do outro mundo. O sonho permite a atuação do indivíduo dentro daquele mundo,
movimentando-se, armando cenários e participando em todos os níveis do fantástico” (Augras, 1986:59-60).
3
diurno. A antropologia terá que esperar muito tempo até que seja feita uma ‘torção’ em seus
pressupostos e a experiência limite do sonho possa receber a atenção do etnólogo, sendo então
compreendida simultaneamente de um ponto de vista subjetivo e cultural.
Enquanto Durkheim criticava a hipótese animista de Tylor, indagava qual motivo levaria o
primitivo a buscar explicações para os sonhos, quando tantos outros problemas necessitavam
igualmente de entendimento, sendo mais sensato que se concentrasse em questões prementes para
sua sobrevivência. Durkheim depreciava assim o próprio fenômeno onírico, tentando diminuir sua
importância: “O que é o sonho em nossa vida? Como é pequeno o espaço que nela ocupa!”
(Durkheim, 1996:46). Percebemos assim uma pista segura para compreender porque o lado noturno
do Imaginário nunca recebeu um grau maior de atenção dos pesquisadores.
A diferença significativa de Lévy-Brühl em relação a Tylor é que o primeiro enfatiza a
importância do sonho no processo de comunicação com o ‘sobrenatural’ e não na gênese da
‘religião’. Se o insólito e o imprevisto são interpretados como manifestação de potências ocultas, o
sonho faz parte de uma classe de fenômenos, juntamente com os processos divinatórios, utilizados
intencionalmente para efetuar este contato.
“Para la mentalidad primitiva, como es sabido, el mundo visible y el mundo invisible
forman un todo. La comunicación entre lo que llamamos la realidad sensible y las potencias
místicas es, pues, constante. Pero ninguna parte puede efectuarse de una manera más
inmediata y más completa que en los sueños, donde el hombre pasa y repasa de un mundo
al otro sin advertirlo. Tal es en efecto la representación ordinaria del sueño entre los
primitivos” (Lévy-Brühl,1957:89).
A mentalidade primitiva é governada por representações coletivas que envolvem objetos e
coisas numa rede de participações místicas, isto é, referem-se à crença em forças e ações
imperceptíveis aos sentidos. Existe assim uma relação de aproximação entre instâncias que, de
nossa perspectiva moderna, parecem irredutíveis uma à outra: como um ser humano, um objeto e
um fenômeno da natureza.
Para a mentalidade primitiva, o mundo visível e o invisível formam um totalidade e há uma
constante intervenção de forças invisíveis sobre o mundo humano, sendo o sonho a via pela qual se
manifestam através de revelações, aceitas pelos primitivos da mesma forma que os dados da
percepção da realidade ordinária. Como conhecer o desejo destas entidades invisíveis e como
apaziguá-las? Elas o revelarão através de um sonho, que os primitivos“tendrán el deber imperativo
de ejecutar” (Lévy-Brühl, 1957:107).
Os primitivos sabem perfeitamente a diferença entre o sonho e o estado de vigília, e que
sonham apenas quando dormem, mas não se surpreendem que seus sonhos os coloquem em relação
com poderes que não se deixam ver nem tocar (id:89). Durante o sonho a alma se afasta do corpo e
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viaja ao ‘país dos sonhos’, onde lida com coisas reais, embora se movendo no mundo do invisível.
Quando retorna, traz percepções que no estado de vigília não conseguiria obter. Na verdade, esta
mesma concepção do sonho como uma viagem da alma pelo mundo invisível foi anotada por Tylor.
A diferença é que ele utilizou-a para elaborar uma teoria que considerava este ‘duplo’ que viaja
como o fundamento genético da religião.
Utilizando um grande recorte de dados de diversas culturas, Lévy-Brühl se esforça em
mostrar que o sonho funciona para o primitivo como uma prova segura, um testemunho inolvidável,
tal é sua força de realidade. Em conseqüência, os atos cometidos no estado onírico equivalem aos
atos do estado de vigília, e a responsabilidade por ambos deve ser assumida pelo sonhador. Mas eles
sabem diferenciar perfeitamente entre sonhos verdadeiros e sonhos falsos (id:99): os verdadeiros ou
bons sonhos são aqueles que têm importância para todo o grupo, enquanto os sonhos falsos são os
que dizem respeito apenas ao sonhador, sem trazer nenhuma mensagem de interesse mais geral.
Embora as concepções de Lévy-Brühl tenham acrescentado elementos importantes às
concepções anteriores sobre o imaginário onírico, principalmente por abandonar a perspectiva
individual do sonho e mostrar o papel das representações coletivas, apresenta falhas que logo foram
apontadas. Uma delas, o contraste forte demais entre o primitivo e o civilizado, levando a crer que
são diferentes não somente em grau, mas também em qualidade (Avens, 1993:37).
Mas, apesar de todas as críticas recebidas, o trabalho de Lévy-Brühl tem o grande mérito de
colocar um acento positivo na relação que o homem estabelece com os sonhos. Em lugar de alicerce
genético da religião ou de simples ilusão que engana os sentidos, Lévy-Brühl reconhece no sonho
todo o poder de possibilitar uma comunicação com o universo das forças invisíveis, das potências
sobrenaturais de que dependem a existência da natureza e do grupo humano. Junto com o mito, o
sonho transcende o mundo da experiência ordinária e “ambos permiten acceder, com igual derecho,
a aquello que a falta de un término más adecuado llamamos lo sobrenatural” (Lévy-Brühl,
1978:20).
E se não é mais possível situar os sonhos na origem da religião, como o desejava Tylor,
certamente eles devem ser reconhecidos como fazendo parte da maioria das crenças religiosas,
sendo muitos os vínculos que podem ser estabelecidos (como bem mostrou Lévy-Brühl): no terreno
ritual, na elaboração do sistema cosmogônico, na concepção dinâmica do diálogo entre homem e
divindades.
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B – Sonhando com Freud
A novidade da antropologia nos anos 20 é a consolidação do trabalho de campo como
componente essencial da disciplina, o que levará ao registro detalhado do material onírico das
culturas investigadas.
No entanto, o sonho não irá se constituir em objeto privilegiado de pesquisa antropológica
neste período, sendo tratado apenas como um item secundário da cultura, estudado como apêndice
para a compreensão de aspectos considerados mais importantes – como a religião ou a organização
social – ou registrado para a simples comprovação de uma específica teoria ocidental sobre sonhos,
no caso a teoria freudiana, que se consolidava naquele momento.
As pretensões universalistas desta teoria instigaram a antropologia a estabelecer um diálogo
com seus paradigmas, inaugurando assim um período onde o interesse é polarizar com as
concepções freudianas. Neste momento os estudos antropológicos visavam apresentar elementos
que comprovassem ou, pelo contrário, negassem valor universal aos achados freudianos,
relativizando-os.
O próprio Malinowski admite esta posição: “...comecei a testar a teoria de Freud, segundo
a qual os sonhos seriam a expressão de desejos ‘reprimidos’ do ‘inconsciente’, a negação, por
assim dizer, dos princípios e da moral reconhecidos e oficiais” (1983:378). E quando conclui que
os melanésios das ilhas Trobriand sonham pouco e têm pequeno interesse pelo relato de seus sonhos
- afirmação questionada por Barbara Tedlock (1992) - sua argumentação acontece em função da
teoria freudiana, ainda que em tom de crítica:
“Será esta ausência de sonhos, ou melhor, de interesse pelos sonhos, devida ao fato de
estarmos tratando com uma sociedade não reprimida, uma sociedade na qual o sexo
enquanto tal não é de modo algum coagido? ... Esta raridade de sonhos livres e a ausência
da lembrança, apontam para a mesma conclusão que a ausência da neurose, isto é, para a
correção em linhas gerais da teoria freudiana” (Malinowski, 1973:87).
Não se pode negar o poder adquirido pela teoria freudiana dos sonhos, pois ela conseguiu
conciliar no século XIX três hipóteses que concorriam: a romântica, a racionalista e a materialista.
“A posição romântica era de ver o sonho como uma mensagem do além com um significado
pessoal. Os racionalistas negavam totalmente a possibilidade de se atribuir sentido aos
conteúdos oníricos ... (enquanto) o ponto de vista materialista favorecia a pesquisa
científica, mas apenas no sentido de provar a origem orgânica do sonho” (Hillman,
1981:222).
Freud conciliou estas correntes, pois valorizou a posição romântica ao assumir que o sonho
tem um significado pessoal; ao mesmo tempo admitiu a ilogicidade e irracionalidade da linguagem
dos sonhos e forneceu uma explicação racional da causalidade dessa ilogicidade. E, ao elaborar sua
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teoria sexual da libido, deu crédito à corrente materialista, fornecendo uma base orgânica para o
sonho. Foram portanto organizadas, num sistema coerente, as três posições, o que possibilitou à
teoria freudiana dos sonhos alcançar seu grande sucesso.
Para Freud, entender os sonhos significa ter a compreensão da forma pela qual os impulsos
psicológicos de origem inconsciente encontravam expressão na consciência, e o objetivo da análise
é buscar as idéias latentes que se escondem por trás das imagens manifestas dos sonhos,
posicionando-se como disciplina interpretativa baseada na compreensão do significado subjetivo da
experiência - real ou produzida pela fantasia (Davis, 1999:87).
No entanto, os insights derivados da teoria freudiana se esgotaram, tendo a médio prazo
causado entraves à investigação onírica transcultural. Ao enveredar por uma perspectiva que
valorizava sobremaneira a libido sexual, erotizando a realidade, a interpretação dos sonhos tornouse monótona e mecânica, associando sempre o conteúdo onírico a signos fixos, esvaziando os
símbolos. Como mostrarão Jung e Gilbert Durand, um símbolo perde sua pregnância simbólica, isto
é, esgota seu significado, ao ser interpretado a partir de uma chave simbólica fixa. Um símbolo
reatualiza constantemente seu sentido e qualquer esforço interpretativo que busca inseri-lo num
campo semântico delimitado – como a libido freudiana – concorre para seu esgotamento,
cristalização e fratura.
Por outro lado, a teoria onírica freudiana prioriza exclusivamente a perspectiva subjetiva, o
que a torna pouco eficiente ao se investigar o sonho no campo cultural. O mito, por exemplo, é visto
como simples vestígio da vida psíquica infantil e para Róheim, um dos grandes nomes da
antropologia psicanalítica, “a tarefa do futuro antropólogo, formado nas técnicas psicanalíticas e
no trabalho de campo, consistirá na exploração das raízes infantis da formação do caráter
individual e do caráter coletivo nas sociedades...” (Róheim apud Carvalho, 1995:211).
Se a teoria freudiana dos sonhos se tornou “um clichê com um efeito paralisador da dúvida
filosófica e do espírito de pesquisa” (Hillman, 1981:223), é porque as investigações realizadas
buscavam sempre reafirmar os achados teóricos freudianos, não questionando o modelo com o qual
estavam operando.
C – Sonho: Cultura e Personalidade
Nos anos 40, por influência daquela que ficou conhecida como Escola Cultura e
Personalidade, há um reflorescimento do interesse pela pesquisa dos sonhos, configurando uma
outra fase da antropologia onírica. A proposta mais representativa deste período foi a de estudar o
conteúdo manifesto dos sonhos como reflexo da interação entre personalidade e cultura, marcando
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um afastamento do referencial freudiano, que deixa de ocupar o centro da linha de pesquisas
oníricas transculturais (Hillman,D., 1989:120).
Compreender como os indivíduos transmitem e adquirem os caracteres culturais constitui-se
a preocupação essencial dos estudos daquele período, que são bastante dependentes de um trabalho
multidisciplinar e compartilham áreas de interesse com a psicologia e psiquiatria.
A palavra ‘personalidade’, que não aparecera nos primeiros trabalhos sobre psicologia
primitiva, será agora um dos conceitos utilizados amplamente para entender o comportamento
humano, designando ‘uma característica persistente do indivíduo’, deduzida de uma amostra de seu
comportamento.
De certa forma, os culturalistas trabalhavam com a noção de que o subjetivo e o cultural
situam-se em dois pólos distintos, e que para a compreensão dos sonhos dever-se-ia levar em
consideração o efeito que um exerce sobre o outro. Levando adiante a proposição de que cultura e
personalidade são integradas de maneira semelhante, tentou-se estabelecer uma relação de
causalidade entre ambas e nos estudos sobre o imaginário onírico esta perspectiva também é
adotada.
Embora não se possa negar a contribuição da Escola Cultura e Personalidade aos estudos
oníricos, ao superar a unilateralidade da teoria freudiana dos sonhos e ampliar o quadro de
conhecimento do imaginário onírico entre culturas diversas, é limitada sua percepção do fenômeno
onírico como resultante do material fornecido pela cultura e elaborado pelo indivíduo. ‘Cultura’ e
‘personalidade’ não mantêm relações causais e não estão separadas em categorias mutuamente
excludentes. Na verdade, o desenvolvimento da personalidade e a aquisição da cultura são um e o
mesmo processo. Em outras palavras, há uma “homologia estrutural do psiquismo e da cultura. Um
não poderia ser considerado como derivado da outra, pois ambos são, segundo expressão de
Georges Devereux, ‘co-emergentes’” (Laplantine, 1998:73).
No âmbito das pesquisas oníricas, a Escola Cultura e Personalidade não percebeu que os
produtos do imaginário são independentes do controle - tanto da cultura como do indivíduo - e
manteve um interesse exclusivo pelo conteúdo onírico, não considerando ainda a importância do
contexto comunicativo do sonho, isto é, a forma e a modalidade em que o sonho é compartilhado
(share) e interpretado. Por isto, a antropologia onírica precisou trilhar outros caminhos para se
desenvolver, sendo necessários novos instrumentos teóricos e noções que se mostrassem capazes de
perceber o fenômeno onírico numa visada que incluísse simultaneamente o indivíduo e a cultura,
não separados ou em relação, mas agindo conjunta e simultaneamente na elaboração, relato e
interpretação do sonho.
O fenômeno onírico não deve ser interpretado a partir de uma fratura entre subjetivo e
cultural, mas, ao contrário, ser tratado como fazendo parte de um terreno intermediário, ao mesmo
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tempo individual e cultural. “Cultura e sociedade não são quadros externos dentro dos quais a
pessoa vai se desenvolver. São aspectos constitutivos da própria personalidade” (Augras,
1995:19). Categorias analíticas como “imaginação autônoma” (Stephen), “inconsciente cultural”
(Henderson
e
Vannoy
Adams),
“sincronicidade”
(Jung),
“trajeto
antropológico”
(Durand)
conseguem descortinar a dimensão in-between, liminal, localizada entre o consciente e o
inconsciente, o indivíduo e a cultura, o interior e o exterior, a mente e o corpo, que permite uma
aproximação mais aprofundada do fenômeno onírico.
D – A Nova Abordagem Antropológica dos Sonhos e sua Dimensão Dialógica
A partir de meados dos anos 70 começa a se delinear uma nova modalidade de abordagem
antropológica dos sonhos, caracterizada por um interesse multifacetado pelos diversos aspectos do
fenômeno onírico e não mais exclusivamente pelo conteúdo ou a hermenêutica nativa. Os
“etnógrafos deixam de tratar os sonhos como se fossem objetos de museu que poderiam ser
arranjados, manipulados e quantificados como itens da cultura material” (Tedlock, 1992: X).
Alguns marcos foram importantes nesta virada metodológica. Em primeiro lugar, a
realização do Colóquio Internacional “Os sonhos e as sociedades humanas” (1962), que teve como
ponto de partida a constatação de que na modernidade temos nos preocupado cada vez menos com
nossos sonhos. Os trabalhos do Colóquio procuraram mostrar os avanços em pesquisas
comparativas sobre o onírico, sem fixar-se exclusivamente nas diferenças e especificidades culturais
(Shulman, 1999:4).
Depois,
em
1982,
o
Seminário “Dreaming: Anthropological and Psychological
Interpretations” tratou de vários dos temas que passaram a ser discutidos mais sistematicamente
pelos antropólogos engajados na pesquisa onírica: a concepção do sonho como um evento
comunicacional compartilhado, a atenção à escolha de formas particulares de relatos oníricos
(narrativas ou performances), a seleção dos ouvintes e do momento de se fazer o relato, a
categorização (‘sonhos a serem compartilhados’ e ‘sonhos a se manter em segredo’). Passou-se a
dar uma grande atenção ao ‘contexto onírico’ e o conceito de conteúdo manifesto do sonho
ampliou-se, incluindo também as teorias interpretativas nativas. Nos seguintes 10 anos após o
Seminário, foram publicados mais trabalhos antropológicos sobre sonhos (artigos, teses, livros) do
que nos 60 anos anteriores (Tedlock, 1992:xi).3
3
No final da década de 80 e princípio da década de 90, foram organizados diversos outros Congressos Internacionais,
que demonstram a convergência de interesses de vários pesquisadores espalhados pelo mundo. Em 1988 durante o
International Congress of Americanists, a sessão “Forms and Uses of Dreams in Amerindian Societies”. Em 1991,
durante o encontro da American Anthropological Association, a sessão “Re-presentation of Dreams”. Também em
1991 aconteceu a primeira Conferência Mundial sobre Sonhos em Moscou. Em 1992, como sessão especial da
Canadian Anthropological Society Meetings, foi realizado um colóquio internacional sobre epistemologia e aspectos
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Paralelamente a esta atenção dos antropólogos pelos sonhos, houve um aumento
significativo do interesse da sociedade em geral, configurando o que ficou conhecido como Dream
Work Movement (Hillman, D.,1989:126), gerando a partir do final dos anos 70, principalmente nos
EUA, uma extensa bibliografia sobre o tema - jornais como Dream Network Bulletin, lançado em
1984 e a fundação em 1983 da Association for the Study of Dreams (ASD). No coração deste
movimento está a crença no valor do sonho como fonte de conhecimento sobre o ser humano e o
mundo ao redor, sendo praticada uma “desprofissionalização do sonho”, isto é, enfatiza-se o fato
de que todos têm acesso ao imaginário onírico e é valorizada a atenção diária aos sonhos e às
atividades que a eles dizem respeito - como relembrá-los e compartilhá-los com outras pessoas.
O movimento mais recente da antropologia em direção à pesquisa de sonhos exigiu um novo
enfoque do material onírico, possível através da radical mudança metodológica propiciada pela
antropologia pós-moderna.
O esforço de compreensão deixa de ser exclusivamente em torno do conteúdo dos sonhos e
se fragmenta, procurando agora abarcar também o contexto onde o sonho é produzido, onde é
compartilhado e interpretado. Subitamente, a antropologia percebe que o sonho não é simplesmente
um aspecto pontual de uma cultura, pois, mergulhando no trabalho etnográfico com a nova
perspectiva que a antropologia pós-moderna propiciou, descobre-se que os sonhos estão
intimamente interligados a aspectos vários da cultura: a relação hierárquica, definida por ‘quem
conta’ e ‘quem interpreta’ os sonhos; noções metafísicas presentes naquela cultura, como o universo
sobrenatural e os seres habitantes dos sonhos; sistemas de cura, onde o sonho é percebido como
sinal de doença e também como indicador de remédios para os males; sistemas de divinação, que
dizem respeito às relações daquela cultura com o fluxo do tempo, suas concepções cosmológicas e
mitológicas, etc.
Passará também a ser enfocado o “em torno do sonho”, o compartilhamento, a teoria nativa
de interpretação, a habilidade para se lembrar os sonhos e a habilidade e disposição para ouvi-los,
inserindo a ocorrência do fenômeno onírico numa específica dimensão cultural.
O trabalho prolongado de campo ensinou os antropólogos a prestarem atenção às interações
e aos vários dramas sociais, formais e informais, que presenciam ao longo de sua pesquisa. Assim,
estarão atentos para observar a narrativa de um sonho para a família, durante um ritual, numa
situação pública ou numa consulta a um divinador. E será a partir destes eventos narrados
espontaneamente que recolherão grande parte de seu material.
Nas pesquisas do imaginário onírico estas reflexões tomam formas concretas, pois quando o
conhecimento antropológico torna-se resultado de um processo de compreensão mútuo em que
culturais da socialização dos sonhos. Em 1995 o workshop do Jagdschloss Hubertusstock. Devem ainda ser citadas as
publicações coletivas organizadas por T. Gregory, Il Sogni nel medioevo e por Merola e Verbaro, Il sogno raccontato,
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estão implicados o antropólogo e o informante – o encontro etnográfico –, deixa de fazer sentido a
pura descrição de conteúdos oníricos, ou o registro de informações sobre um objeto
estranho/externo ao pesquisador. Os antropólogos não vão mais a campo apenas para coletar relatos
de sonhos - objeto etnográfico a ser usado como material de comprovação de hipóteses, pura
reiteração fatual de teorias ocidentais. O diálogo antropológico “crea un mundo, o más bien crea
una comprensión de las diferencias que existen entre las personas que participan en ese diálogo
cuando comienzan su conversación” (Rabinow apud Reynoso, 1991:39).
A reciprocidade na relação entre o etnógrafo e o nativo é um problema metodológico
importante. A consideração desta reciprocidade na pesquisa antropológica do imaginário torna-se
imprescindível, já que existe uma constante negociação – e participação – do pesquisador no
universo cultural em que mergulha. Ao abandonar sua ‘invisibilidade’ no trabalho de campo e a
pressuposição de que a realidade observada pertence a uma das partes – o nativo –, o antropólogo
sutura a cisão da relação e assume “a alteridade absoluta do jogo interlocutivo”, elevando ambas as
instâncias (o Eu e o Outro) a objetos de uma análise crítica, como produtos culturalmente
elaborados partícipes do encontro etnográfico (Fígoli, 1983:292s).
Assim, os novos estudos oníricos passaram a manter em foco o tempo intersubjetivo, onde
todos os participantes (pesquisador e nativos) compartilham o mesmo contexto temporal. Não mais
o moderno versus o primitivo, mas a possibilidade de coexistência. Não mais a simples polarização,
mas o encontro compartilhado (Tedlock, 1991).
Há uma interação intensa por um longo período de tempo possibilitando que o etnólogo
vivencie em companhia do nativo situações de compartilhamento (share) onírico, seja através de
relatos e interpretação de sonhos do nativo, seja de seus próprios sonhos.
Perceber o compartilhamento de sonhos e a transmissão de teorias oníricas como evento
comunicativo, significa que nesta interação o pesquisador e o nativo estão implicados na criação de
uma realidade de que ambos participam, sendo que para muitos antropólogos “ainda acontece um
choque quando descobrem como é importante sua participação para criar o que eles estão
estudando” (id).
No trabalho de campo os antropólogos aprenderam a importância de estarem atentos e
registrarem seus próprios sonhos durante a pesquisa, chegando mesmo a compartilhar estes sonhos
com membros da cultura pesquisada.
“Quando os antropólogos prestam bastante atenção a seus próprios sonhos durante seu
trabalho de campo, eles descobrem que as experiências oníricas os ajudam a integrar seu
inconsciente com a consciência de um senso de continuidade pessoal nesta situação
totalmente nova e ameaçadora” (id).
que centram o interesse nos sonhos europeus.
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Alguns autores descrevem sua aproximação pessoal com o universo onírico. Roger Bastide
afirma que “siempre sentí interés por mis sueños” (Bastide, 1976:11), mas como nunca conseguiu
documentar seu mundo onírico, foi impedido de escrever sua ‘autobiografia noturna’, limitando-se
(com a característica competência) aos sonhos dos Outros. Laura Nader relata o aumento
quantitativo de seus sonhos – e também de sua capacidade de relembrá-los – durante o trabalho de
campo entre os Zapoteca do México, ao mesmo tempo em que os temas oníricos se voltavam para
sua vida anterior nos EUA, distanciando-se da cultura onde pesquisava. Para ela, o fato indicava,
não que estivesse sendo neutra em suas pesquisas, mas que havia uma espécie de “proteção”,
impedindo que se tornasse “possuída” pela cultura pesquisada (Tedlock, 1991).
Jung já assinalara esta dinâmica de engolfamento cultural, este risco de ser absorvido pela
cultura estranha (situação que chamou de “going black”), analisando sob esta perspectiva um sonho
que teve durante sua viagem de estudos à África, único sonho com uma pessoa negra durante sua
permanência no continente africano (Jung, 1987).
Diferentemente da experiência de Laura Nader e Jung, na maior parte dos sonhos relatados
por pesquisadores há uma mescla de eventos antigos com acontecimentos recentes da pesquisa de
campo. Um estudo de Barbara Anderson mostra como 15 estudantes acadêmicos americanos
vivendo na Índia tiveram uma mudança em seus padrões oníricos, que moveram-se gradualmente de
uma ausência de sonhos relacionados a sua vida cotidiana até um padrão de “mixagem” entre
lembranças do passado e acontecimentos atuais na sociedade onde estavam vivendo. A antropóloga
sugere que estes sonhos são a resolução de uma séria crise de identidade que acompanha afiliações
culturais misturadas (mixed) (apud Tedlock, 1991).
Os sonhos podem, portanto, servir de “proteção” ao antropólogo no campo, impedindo sua
absorção pela cultura que estuda, ao mesmo tempo em que harmonizam suas experiências anteriores
com as novas descobertas do trabalho etnográfico. “Imagens de sonhos relembradas podem
também servir como um espelho refletindo de volta para o antropólogo cultural um seguro senso de
integridade do self e identidade” (id).
No entanto, a partir do momento em que o pesquisador está atento a suas próprias reações
“inconscientes” e envolvido também com seus sonhos - não como um meio auxiliar do trabalho de
campo, e sim como uma de suas principais facetas (Hillman,D., 1989:122) eles podem desvelar
aspectos sutis de sua interação com o ‘objeto’ de estudo. De uma perspectiva que chama de
“etnopoesia”, Dennis Tedlock (1990) realiza durante uma viagem ao Brasil um trabalho poético de
elaboração de seus sonhos e de acontecimentos da vida cotidiana.
O etnólogo não pode
“abster-se de analisar a natureza da relação que o une a seu objeto e ... ele tem de
considerar suas próprias reações psicoafetivas não como simples preliminar
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epistemológica, menos ainda como um obstáculo ao conhecimento, mas como que fazendo
parte do objeto mesmo de sua própria pesquisa” (Laplantine, 1998:64).
Se ao longo da história a maior parte dos antropólogos culturais relutaram em discutir sua
própria atividade onírica, há importantes exceções, como Robert Lowie, que em suas palavras se
dizia um “crônico e persistente sonhador”. Lowie admitiu que seus próprios sonhos ajudaram-no a
compreender aspectos da cultura dos nativos americanos com os quais trabalhou.
“Eu não considero estas experiências [oníricas dos nativos] como revelações místicas,
enquanto eles o fazem. Mas eu posso entender o pressuposto mental e as experiências
emocionais um pouco melhor do que a maior parte dos etnólogos, porque eu vivencio
episódios idênticos todas as noites e quase todos os dias de minha vida” (Lowie apud
Tedlock, 1991).
Para Lowie, o sonho abre o acesso ao conhecimento do ‘Outro’, pois permite que
analogicamente, através do seu próprio imaginário, o etnólogo adquira uma compreensão da
experiência onírica de sujeitos vivendo em outras culturas.
Michel Leiris é outra exceção, pois durante o trabalho de campo entre os dogons e os etíopes
em 1931-33 anotou em seu diário os próprios sonhos, trazendo à luz algumas preciosidades, como o
episódio onírico onde percebe a si mesmo em transe após sentir o odor de plantas africanas
(Tedlock, 1991).
O antropólogo australiano Michael Jackson, que pesquisou entre os kuranko de Serra Leoa,
também fez o relato de suas experiências oníricas, contrastando sua própria interpretação com a
interpretação nativa. Na noite anterior a sua primeira investigação formal sobre o imaginário
onírico, ele teve um sonho que interpretou como fruto da ansiedade de não conseguir concluir sua
pesquisa de campo e a relação de dependência para com seu informante, além da existência de
“sentimentos de vulnerabilidade, solidão e ignorância”.
No dia seguinte, Jackson relatou este sonho a um ancião kuranko e a interpretação recebida
foi
consistente com a do próprio Jackson: o sonho diria respeito à posição de estrangeiro de
Jackson, mas indicando bons presságios para o futuro. O sonho – e a interpretação – exerceu um
efeito positivo sobre o pesquisador, que conseguiu diminuir sua ansiedade, ao mesmo tempo que
trouxe para sua consciência o fato de que permanecia um estranho entre os kuranko, e que a não
consideração deste fato estava se refletindo em sua relação com o trabalho (id).
Também Dennis e Barbara Tedlock em sua pesquisa entre os Quiche-Mayan da Guatemala
colocaram ênfase nas experiências oníricas depois de um divinador ter reconhecido como autêntica
sua intenção de aprofundar o conhecimento sobre a espiritualidade Mayan, o que lhes abriu a
possibilidade de se iniciarem na técnica tradicional de interpretação onírica examinando seus
próprios sonhos.
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Na vivência do casal Tedlock fica estampada a outra polaridade do ‘encontro etnográfico’,
isto é, o ponto de vista do nativo, que identificou nos antropólogos - sob a forma de ‘uma pureza de
intenções’ - o respeito à alteridade de sua cultura, merecendo por isto a iniciação no sistema de
interpretação de sonhos Quiche-mayan: “Depois de nossa iniciação éramos consultados como
intérpretes de sonhos pelo povo Mayan e tínhamos que continuar prestando atenção a nossos
próprios sonhos, recordá-los e interpretá-los do modo como fomos instruídos” (id).
Interessante é que, como os dois pesquisadores trabalharam simultaneamente, eram duas as
versões oníricas que apresentavam ao divinador. Surgiram assim situações inusitadas, como a noite
em que ambos sonharam com a morte de um informante zuni do centro-oeste do Novo México (que
no passado haviam estudado) e consultaram o divinador quiche-mayan sobre estes sonhos. Por
outro lado, Barbara e Dennis Tedlock puderam também observar elementos de transferência e
contratransferência ao ouvirem relatos de sonhos do divinador onde eles próprios figuravam como
personagens (id).
Conclusão:
O sonho lida com imagens, e como elas fazem parte de um Imaginário que passou na cultura
ocidental por um forte processo redutivo, sofrendo as conseqüências de um duro ataque da razão e
da lógica científicas, será este um dos primeiros motivos a se apontar para o pouco desenvolvimento
dos estudos oníricos. Esta é uma questão assaz espinhosa, pois trata da própria relação do mundo
Ocidental com o imaginário, um conflito franco entre razão e fantasia, real e irreal.
Mas, ao lado deste pano de fundo, podemos observar que outros fatores provocaram a
“estagnação” nas pesquisas oníricas. Fazendo um sobrevôo pela história da antropologia, é possível
identificar estações de maior ou menor interesse pelos estudos oníricos. Embora os sonhos sejam
experiências subjetivas e privadas (e assim tópico que traz dificuldades especiais em sua abordagem
sociológica e antropológica), seus relatos são performances sociais públicas, acessíveis aos
pesquisadores, e, como tal, rico campo de trabalho para o antropólogo. Vale sempre lembrar que o
antropólogo não se interessa por descobrir uma chave dos sonhos, “o que ele pretende é descobrir
de que maneira esses símbolos se organizam conjuntamente” (Bastide, 1974:225).
Podemos dizer que os antropólogos contemporâneos deixaram de abordar os sonhos como
puros objetos etnográficos colecionáveis e de utilizar para sua compreensão uma específica
hermenêutica onírica ocidental. Abandonaram a preocupação de demonstrar através dos sonhos a
mediação entre personalidade e cultura e assumiram que eles não são itens culturais secundários,
passando a prestar atenção às teorias e sistemas de interpretação de sonhos como complexos
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eventos psicodinâmicos comunicativos e a estudar o compartilhamento de sonhos e a transmissão
de teorias oníricas em seu contexto social.
O sonho passa a ser importante no registro etnográfico e hoje os antropólogos admitem-se
como participantes do contexto de pesquisa e aprendem não apenas sobre o uso cultural local das
experiências oníricas, mas também permanecem atentos ao papel de seus próprios sonhos. Em
conseqüência, têm mais consciência de suas respostas inconscientes à cultura que estudam,
adquirindo uma importante habilidade para entender tanto as comunicações emocionais oníricas de
outros, quanto as suas reações a elas.
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