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Direito Quântico: Jusnaturalismo Indeterminista
Juarez Rogério Felix
As reflexões aqui lançadas são parte de nossa dissertação de mestrado, acrescida de
mais alguma coisa, na qual abordamos o problema da separação entre direito e moral no
pensamento ocidental, por ocasião de tratar do princípio da moralidade no processo civil1
O problema em torno da separação entre direito e moral está no cerne das mudanças
que deram lugar no alvorecer da modernidade. Com o Renascimento, operou-se uma mudança
no pensamento ocidental, pela qual se buscaram antigos valores humanistas da antiguidade
clássica grego-romana.
Esse movimento do pensamento ocidental pelo qual se livrava o conhecimento da
teologia foi uma reação ao Poder da Igreja e à dogmática medieval teológica, que impunha
um único pensar, sem qualquer possibilidade de refutação, e ainda punia por delitos de
consciência, mediante prévio trâmite processual de tortura pela obtenção de confissão, não
admitindo sequer a confissão espontânea.
A volta ao humanismo antropocêntrico foi um importante movimento pela tentativa de
se obter a almejada justiça entre os homens. Mas ainda hoje os fins de um verdadeiro
humanismo estão por ser cumpridos.
O Iluminismo que se seguiu firmou o primado da razão como faculdade humana
imperativa, verdadeiramente distintiva da natureza humana: cogito ergo sum, penso logo
existo, vale dizer, o que me diferencia dos demais animais é a minha faculdade de pensar, o
que me distingue como humano é a minha razão, a minha humanidade se deve ao meu pensar
racional. O homem não mais é o ser que tem fé, a sua existência não mais se distingue pelo
que vai em seu coração, a sua crença e a sua fé, mas sim pela faculdade de pensar
racionalmente.
Quando Descartes formula a sua filosofia, o racionalismo, permite ao homem
conhecer a natureza pelo seu próprio pensamento, que deve ser levado a cabo pelo método
racional, consistente em dividir o complexo em partes menos complexas, até atingir o simples
indivisível.
Livre para pensar, livre para investigar a natureza, o homem se vê diante de
descobertas espantosas, fazendo cair crenças e mitos mediante a simples explicação da
natureza pela sua decomposição matemática e verificação empírica.
Do mundo da fé, do mundo das idéias, do mundo da crença temerosa, do mundo da
negação da libido sciendi2, da condenação do desejo de saber, o homem entra no mundo da
razão autônoma, no mundo das explicações matemáticas, no mundo das verificações
empíricas: nasce o mundo da certeza científica.
Há todo um contexto histórico favorável a esse novo pensar, que mostra terem sido
aqueles dias de tempos difíceis, de muita guerra na Europa por questões religiosas, por
1
FELIX, Juarez Rogério. O Princípio da Moralidade no Processo Civil: um ensaio de Teoria Geral de Direito.
São Paulo: Dissertação de Mestrado PUCSP, 2000.
2
CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. 3ª Ed. Campinas: UNICAMP, 1997, p. 33.
2
intolerância, momento de afirmação dos Estados Nacionais, em que todo o continente estava
dividido em pequenos reinos, por lutas e rivalidades constantes. A busca pela paz sempre foi a
tônica dos escritos filosóficos da época e as matemáticas permitiram um modelo neutro de
explicação racional da filosofia, pelo qual se poderia tentar uma unificação das partes
separadas pela intolerância, pois a dogmática medieval, centrada em argumentos teológicos,
por princípio irrefutáveis, não poderia dar cabo dessa missão, antes mesmo era um dos
motivos de tanto desentendimento.
As ciências humanas não se mostraram infensas a essa nova ordem de idéias, que vê
na matemática a melhor linguagem para explicar o mundo. O Positivismo Filosófico de
Augusto Comte é uma primeira manifestação filosófica que postula a necessidade de que
também as ciências humanas sejam pensadas pela tríade componente da ciência moderna:
razão, matemática, experiência.
As ciências humanas caminham, nessa linha de evolução das idéias, para aquilo que
veio a ser conhecido como cientismo ou cientificismo. Funda-se então a era da certeza que só
viria a ser contestada a partir dos novos pressuposto da física quântica, desafiadora do modelo
determinista da causalidade usado na mecânica clássica de Newton.
De fato esta ciência baseada nos princípios aristotélicos da razão (Princípio da
identidade, Princípio da não-contradição, Princípio do terceiro excluído e Princípio da razão
suficiente, ou Princípio da causalidade) a partir do séc. XIX iria ser abalada pelas novas
descobertas no campo da física.3
Estudos sobre óptica provaram que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas
quanto por partículas descontínuas, ferindo o princípio do terceiro excluído, segundo o qual
ou alguma coisa é isso ou aquilo, não havendo uma terceira possibilidade. Mas a luz pode ser
onda e pode ser partícula. Ferindo o princípio da causalidade, maior expressão do
determinismo científico, a física quântica provou que não é possível saber as razões pelas
quais os átomos se movimentam, nem em qual velocidade e direção, fazendo surgir um novo
princípio racional, o Princípio da Indeterminação. Com a teoria da relatividade fulminaram-se
o princípio da identidade (o que é, é) e o princípio da não-contradição (o que é não pode nãoser ao mesmo tempo), porquanto se provou que as leis da natureza não guardam a
objetividade que da ciência se esperava, já que dependem da posição ocupada pelo
observador.4
Tais descobertas científicas fizeram surgir uma nova ciência, que considera a
indeterminação e afirma contra a causalidade necessária, a razão suficiente, pondo cobro à era
das certezas, fincando o indeterminismo, através da teoria do caos, de lógicas não-clássicas,
como a lógica paraconsistente do brasileiro Newton da Costa, que derroga o princípio
aristotélico da contradição, a permitir em sua semântica própria que uma sentença e sua
negação possam ser verdadeiras.5 No campo do direito, como veremos mais abaixo, a
refutação se dá com o Direito Quântico do brasileiro Goffredo da Silva Telles.
3
É famosa a polêmica entre Einstein e Bohr, quando este último afirmava, contra a mecânica clássica da certeza
bem retratada no diagrama de Linus Pauling, que desenha as camadas orbitais onde se posicionam os elétrons, a
realidade de que é impossível saber exatamente em que lugar da órbita atômica o elétron está posicionado num
certo tempo, afirmação à qual Einstein teria respondido que Deus não joga dados com o universo, ao que Bohr
indaga: Como você sabe o que Deus anda fazendo?
4
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 11a ed., São Paulo: Ática, 1999, pp. 60-2.
5
COSTA, Newton. O Conhecimento Científico. São Paulo: Discurso Editorial, 1997, p. 82.
3
Apresentar a quebra de certos princípios aristotélicos mostra que aquilo tido como
verdade absoluta não o é, quebrando as bases da dogmática determinista, que tentou explicar
o direito por linguagem matemática. O que se pretende aqui é afirmar o caráter
essencialmente metafísico do direito, em busca sempre e sempre de aperfeiçoamento para
fazer reinar a justiça, de modo a não poder ser contido em quaisquer tipos de grilhões
conceituais, além do ponto em que o conceito deixa de ser útil para uma necessária explicação
racional refutável, e passa a ser uma imposição tirânica da realidade, como instrumento de
dominação do forte pelo fraco.
A luta pela autonomia da razão inseriu o modo de certificação próprio da matemática
nas ciências sociais. O Direito passou a perquirir pela verdade, como meio de aferição de
certeza, através do método analítico de Descartes, que veio a se consubstanciar na dogmática
jurídica, como resultado da jurisprudência, da exegese e da sistematização6.
Mas esse modo de ver as coisas, essa tentativa de conferir certeza e segurança jurídica
através de leis escritas, codificadas, como se fosse possível codificar todas as ações humanas
que importam para o direito, resultou numa tirania legalista, num exagero das abstrações
conceituais que afastou a interpretação justa, ou seja, a interpretação que reconhece no caso
prático levado a juízo todas as suas peculiaridades, de outras ordens que não estritamente
jurídico-legais, no sentido dogmático que a doutrina deu ao termo direito, afastado da ética e
da moral, afastado, portanto, da sua noção fundante de justiça.
O que se critica aqui, portanto, é o exagero do conceitualismo, que gera preguiça
mental no julgador, tornando mais fácil decidir com base em esquemas lógico-racionais de
linguagem, dando-se assim um valor mais do que o devido à coerência do discurso, ao seu
aspecto formal, do que à realidade vivida pelo jurisdicionado, essa relegada ao plano
metafísico, ou seja às questões denominadas de extra-jurídicas, porque não afetas aos
“conceitos” jurídicos aceitos, vale dizer questões que devem ser postas fora do plano jurídico
válido, que é o mundo do sistema de normas.
Quando se fala em metafísica no direito, evidentemente que se não está a propor uma
ligação entre direito e religião, nem se está aqui a defender uma volta aos antigos tempos de
confusão entre questões morais, de foro íntimo – como decoro e honestidade – com questões
de foro externo, aquelas denominadas de jurídicas, vale dizer, do mundo do permitido e
proibido. O que se defende é uma moralidade afeta intrinsecamente ao campo do direito,
verdadeiramente imanente, ou seja, que faz parte da essência do jurídico, pois não se há de
permitir uma atuação processual desonesta.
Faz parte da estatização do conflito através da lide processual essa formalização, que
implica em rituais – de origens remotas na própria religião – que preservam exatamente o
comportamento das partes que litigam no processo civil. Daí é que se diz que é impensável o
direito sem a moral, por mais que a obra filosófica moderna tenha se esforçado para afastar o
direito da moral, por outros válidos fins, como brevemente aqui se procurou mostrar.
O discurso de separação entre direito e moral não serve de fundamento a um direito na
prática relativista e cético, sem vergonha e malandro. O direito não é o campo do cínico vale
tudo. O vale tudo do mercado, num mundo dominado pela (não) ética dos mercadores, não é o
mundo do direito. O espertalhão, em juízo, deve ser tratado como um mau cidadão, que
merece as penas da litigância de má-fé prevista em lei.
6
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Lemonad, 1998, p. 11.
4
Brados contrários a esse mundo jurídico sem ética, no entanto, soaram na doutrina,
com base justamente nas novas descobertas científicas. É o caso do Professor Goffredo Telles
Junior7, por sua obra O Direito Quântico, sobre a qual não houve muita repercussão, apesar
de ser uma brilhante expressão da evolução do pensamento ocidental sobre as idéias de
ciência e de razão, verdadeiramente uma nova empostação do Direito Natural. O filósofo
brasileiro soube perceber a evolução das ciências da natureza e a incongruência das bases
filosóficas do positivismo lógico tão em voga, ligado a pressupostos dos sécs. XVII e XVIII.
A comunidade jurídica não está acostumada ao tipo de discurso que o Professor
Goffredo enceta em sua obra, que já pelo título assusta e provoca até um certo desdém, como
se se tratasse de um desvario. Aquele que, no entanto, se propuser a conhecê-la, perceberá ali
uma inovadora teoria que ajusta o Direito aos mais recentes avanços científicos, quebrando
uma série de tabus, de verdades jurídicas assentes, tidas como absolutas, mas que em suas
palavras caem por terra com impressionante facilidade, verdadeiramente passando de
absolutas a obsoletas.
O sentido geral da obra é, exatamente como aqui se propõe, de que o Direito não pode
ficar alheio aos descobrimentos da ciência, que provocaram importantes alterações da própria
noção de razão, sem dizer o que provocou em termos da própria visão de mundo, da própria
compreensão da natureza e seus segredos.
A empostação de Kelsen, do positivismo abstrato e formalista, ao procurar dar bases
científicas ao direito, não mais teria valor, ante o princípio da indeterminação, em plena era da
incerteza, porque fundada em falsos pressupostos, seja quanto ao princípio da razão, que já
não é mais o mesmo, seja quanto à lógica clássica, que não mais figura sozinha no quadro da
lógica, assim como a geometria euclidiana8 não mais é a única pela qual se pode explicar o
universo. Já não é sem tempo que os exageros do racionalismo absoluto deve ser extirpado do
conhecimento jurídico.
O normativismo de Kelsen deve ser entendido como um núcleo duro da dogmática
jurídica, mas não de forma a dar cabo de explicar todo o direito, a experiência jurídica, pois
deve haver no conhecimento jurídico espaço para temas que desbordam os aspectos
meramente normativos, para fazer valer aquilo que Miguel Reale chama de normativismo
concreto, ou seja, uma ciência jurídica que se importa também com fatos e valores, além da
norma, numa relação tridimensional de implicação.
Curioso nesta postura de rejeição da comunidade jurídica ante discursos como o do
Professor Goffredo é o total esquecimento de que a própria teoria do direito ainda em voga é
fruto, como se procurou demonstrar até agora, de paradigmas tomados das ciências da
natureza, abertamente tomados das ciências da natureza, pela pregação do positivismo
científico em que se embasou Kelsen. Assim, na linha do que vem sendo exposto e com vistas
aos objetivos do trabalho, é importante expor em breves termos as idéias do Professor
Goffredo Telles.9
7
TELLES, Goffredo. O Direito Quantico. 6ª Ed. São Paulo: Max Lemonad, 1985, passim.
A geometria de Euclides, pensada para espaço plano, hoje se sabe que, no rigor matemático, não tem aplicação
prática como medida da terra, que é curva e envolve arcos e não retas. Se a extensão terrestre é curva, as secções
do espaço são arcos e não retas. E se o universo é curvo, também não vale para medidas astronômicas.
9
Advirta-se, desde já, que, no original, o Professor Goffredo não utiliza acentuação, senão em palavras com
mesma grafia e tônicas diversas. Vertemos, no entanto, para a gramática oficial, como se verá nas citações
literais, para evitar qualquer mal-entendido vernacular.
8
5
Apresenta uma cosmologia dando conta de uma nuvem cósmica composta na sua
maior parte de hidrogênio, com temperatura de milhões de graus, cujo resfriamento gerou
contração, fazendo nascer as primeiras estrelas, a princípio fontes de luz e energia, que uma
vez esgotadas transformam-na numa anã branca. Os planetas se formam pela atração
gravitacional de poeira cósmica. Do macrocosmo vai ao microcosmo para explicar que o
universo compõe-se de alguns elementos químicos, que se compõem de micropartículas, todas
em movimento, considerada em repouso aquelas partículas que não estiverem se deslocando
em relação a um sistema de referência.10
Corpo e Luz: Cai o Princípio da Identidade. Quando analisa o mundo das partículas
à luz da nova física, mostra realidades espantosas. Planck descobriu, contra o senso comum de
que a luz é continua e indivisível e só a matéria se compõe de partículas, que a luz também é
feita de partícula, um fluxo de fótons, que são porções particulares de radiação
eletromagnética, quanta de energia luminosa. Um fóton é um quantum e a onda
eletromagnética uma energia feita de um número inteiro de quanta, uma porção de fótons.
Einstein já havia demonstrado a relação entre energia e massa, pondo em evidência a natureza
corpórea da energia e a natureza energética dos corpos. E, pela observação de que a luz se
desvia em virtude da atração gravitacional dos planetas, descobriu-se que a luz tem massa,
uma propriedade dos corpos. Demonstrou-se que os elétrons são também energia, além de
serem corpo. Os elétrons são onda, movimento que passa pelo corpo, energia como poder de
deslocar a matéria. A luz é energia e é corpo, o elétron é energia e é corpo 11. Portanto, ferindo
o princípio da identidade, o que é corpo não poderia ser energia, mas a luz é energia e é corpo,
o elétron é energia e é corpo.
Ontologia: Ordem, Estrutura e Ser. Diante da constatação física, científica, de que
não há matéria sem movimento, pois o que determina a massa é o atrito, que só existe em
movimento, e se não há atrito não há massa, portanto não há corpo, se o movimento é
componente essencial do ser, se tutto si muove, e se o movimento ou é de transporte ou de
transformação, o Professor Goffredo parte para uma constatação ontológica de que, se assim
é, nada existe, já que aquilo que constantemente se move nunca é o mesmo e se nunca é o
mesmo não pode existir:
“Todos os seres conhecidos se movem sem parada. Ora, movimento é mudança,
mover-se é mudar. O que se acha em continuo movimento, muda continuadamente.
Em conseqüência (como tem sido assinalado por pensadores diversos), nenhum ser
individual pode existir, pode ser o que é, pois no momento em que é o que é, já não é
mais o que era, não é mais o mesmo, porque mudou, passou a ser outro, e, portanto, já
não existe como era. E este outro, como ser individual, não tem tempo de existir,
porque, no mesmo instante em que começa a existir, já não é mais ele próprio, já
mudou, passou a ser outro”. (...) “Contudo, seria absurdo afirmar que nada existe. Nós
existimos, e uma infinidade de cousas existem, dentro de nós e em torno de nós. É de
absoluta evidencia que há cousas existindo. (...) A existência é atributo daquilo que
perdura e permanece, pressupõe a estabilidade. E o que é permanente e estável é a
estrutura, a estabilidade é da natureza das estruturas. Essa estabilidade que é própria
das estruturas depende do equilíbrio e da harmonia dos elementos que as compõem, de
uma ordem geral, determinada pela quantificação desses elementos e dos movimentos
10
Já se começa a perceber o tirocínio do filósofo brasileiro, pois aqui está a negação dos princípios aristotélicos
da causalidade, da identidade e da não-contradição, quando expõe que uma partícula está e não está em
movimento ao mesmo tempo, conforme a posição do observador.
11
TELLES, ob. cit., p. 59-67.
6
que os animam. Assim, seres há que existem e existem como estruturas, passando a
não mais existir se for quebrada a ordem da estrutura”12.
Nessa linha, chega-se à definição do que seja ordem, como a disposição certa dos
seres. Sua causa material consiste nos elementos distintos, múltiplos que a compõe; sua causa
formal é a disposição dos elementos no conjunto para que façam parte do todo conforme a sua
natureza e a razão de ser da ordem, a sua causa final, é justamente o fim para cuja consecução
os elementos múltiplos passam a constituir uma unidade. Negando, com arrimo em Bergson13,
a idéia de que a desordem precede logicamente ou cronologicamente a ordem, e que a ordem
é algo que se acrescenta à ausência de ordem, vai afirmar a existência primordial da ordem,
para qualificar de desordem como sendo a ordem que não queremos: “Damos o nome de
ordem à ordem que nos convém e o nome de desordem à ordem que não nos convém”14.
Normalidade e Anormalidade. Passa daí ao conceito do que venha a ser normal e o
anormal, para depois dizer o que é normalidade e anormalidade. Adverte que não é o fato de
tudo estar em ordem que tudo é normal. Normal é um adjetivo que designa o caráter usual ou
comum de um procedimento ou de um estado. Anormal é a qualidade do insólito, do que não
está de acordo com aquilo que é estabelecido como padrão e modelo de comportamento e
modo de ser.15 Normalidade, portanto, vem a ser a condição estável revelada, predominância
de procedimentos normais. Estado de como deve ser, pode ser ou necessariamente é, em
consonância com as convicções dominantes sobre o que seja um átomo, um comportamento,
um agrupamento social ou um país. Anormalidade é o nome que se dá ao procedimento que
fere a normalidade. Releva destacar, pois, que a normalidade é um estado e a anormalidade
um procedimento.
Norma Ética. Dentro deste critério posto de que normalidade e anormalidade só se
podem diferenciar à luz dos critérios de uma ordenação estabelecida, partirá o Professor
Goffredo Telles para a noção de norma, como formulações de modelos ou padrões que
servem de critério de referência para a discriminação entre o normal e o anormal, adquirindo a
natureza de mandamentos no mundo ético, com caráter imperativo, como prescrições de como
deve o homem se conduzir, em referência ao que considera como bom, belo, útil ou
conveniente. Portanto, toda norma ética encerra um mandamento, mas nem todo mandamento
encerra uma norma ética, pois apenas os mandamentos que integram ordenações normativas
são normas éticas, não o sendo os mandamentos desligados ou contrários a de uma ordenação
normativa vigente. Normas éticas são os mandamentos constitutivos de uma ordenação
vigente.16
Lei e Ordem. Postas essas noções será dado o conceito de lei como idéia da ordem,
como fórmula da ordem, elaborada por alguma inteligência para a conveniente disposição de
coisas, a fim de produzir um efeito almejado. A lei precede a ordem e é o plano concebido do
que vai ou deve acontecer. Toda ordem, normal ou anormal, depende de leis. Mas somente as
leis referidas a ordens normais, ordem usual e comum, são normas. Mandamentos de
comportamentos anormais não são normas.17
12
TELLES, ob. cit., p. 233-4.
O Professor Dr. Luiz Antonio Rizzatto Nunes, em sua obra A Intuição e o Direito, um novo caminho, analisa
detidamente o conceito bergsoniano de intuição pelo qual busca a superação do antagonismo entre realismo e
idealismo.
14
TELLES, ob. cit., p. 246.
15
TELLES, ob. cit., p. 247-8.
16
TELLES, ob. cit., p. 255-61.
17
TELLES, ob. cit., p. 261-3.
13
7
Merecem registro por suas próprias palavras as seguintes considerações do Professor
Goffredo Telles sobre esse ponto:
“Observe-se que, antes da implantação de qualquer ordem, antes de qualquer
disposição de seres, existe, por força, o conhecimento do fim, para cuja consecução os
seres (os meios) são dispostos convenientemente. Esse conhecimento do fim precede a
ordem, porque a disposição dos seres há de ser feita em razão dele. Em razão desse
conhecimento, é que a disposição dos meios é efetuada como convém. De fato, o
prévio conhecimento do fim a ser atingido é o que determina a conveniência dos
meios. Sem a previsão ou preconização do efeito a ser produzido, impossível a
disposição conveniente dos seres. Pois, a disposição só é conveniente se for a
disposição apta a produzir o efeito preconizado. Esta preconização é a idéia do efeito,
antes da produção do efeito. É o conhecimento antecipado do efeito, sem o qual as
cousas não se disporão em ordem; sem o qual as cousas acontecerão de qualquer
maneira. Tal preconização é o plano da obra, na mente do arquiteto, antes da
construção da obra. Não há truísmo na afirmação de que tudo há de ser concebido,
antes de vir à luz. Antes da realização de uma ordem, há de existir a concepção ou
idéia dessa ordem, a idéia ou concepção de como dispor determinadas cousas, para a
produção de um determinado efeito. Sem a precedência dessa idéia ou concepção, a
ordem é impossível””18.
Leis Éticas e Leis Físicas. Interessante ponto de vista será marcado pelo filósofo
brasileiro no que toca às leis éticas, afirmando serem estas as verdadeiras leis, por seu caráter
imperativo do que deve ser, e não as leis físicas, meramente descritivas do que é, lembrando
que na Antigüidade lei era sempre o que hoje se chama lei ética e que as leis físicas, porque
nada normalizam e apenas descrevem o ser das coisas, não deveriam ser jamais chamadas de
normas.19
A Biologia Jurídica: os degraus da liberdade. Já então adentrando ao sexto capítulo
de sua obra, após todas essas considerações propedêuticas, surgem as considerações mais
interessantes, sobre aquilo que denomina a Biologia Jurídica, a começar pelos degraus da
liberdade, nesses termos:
“No reino da matéria bruta, onde o comportamento dos elementos é fixado
inelutavelmente pelas imposições químicas, ou seja, pelas afinidades e aversões das
micropartículas, dos átomos e das moléculas, a presença da liberdade parece querer
revelar-se no indeterminismo operacional dos corpúsculos quânticos. No reino das
células, onde as imposições químicas são causa das reações do metabolismo, a
presença da liberdade parece querer revelar-se na autonomia teleonômica das enzimas
reguladoras. No reino humano, a presença da liberdade se revela no ato de escolha, ou
seja, na efetiva adesão do homem a uma das vias cerebrais, abertas ante seu sistema de
comando20.”
Como se vê, no reino da matéria bruta, impera o indeterminismo, no reino das células,
vale a autonomia das enzimas reguladoras e no reino humano tudo se dá pelo ato de escolha,
pela estimativa (Axió), pelos valores escolhidos. Mas, pergunta o nosso filósofo, por quais
causas o homem escolhe esta ou aquela via possível? A resposta é genial, porque em rigorosa
18
TELLES, ob. cit., p. 262-3.
TELLES, ob. cit., p. 264-9.
20
TELLES, ob. cit., p. 319.
19
8
coerência com as mais recentes descobertas da ciência, e surpreendente, porque se trata de
uma argumentação que o jurista não está acostumado: a escolha se dá por controle genético.
O leitor apressado, sem boa vontade, estará pensando em teorias nazistas, mas, uma
vez atento à clareza da exposição verá que não se trata disso, mas de um discurso que põe a
ética na base do jurídico, que prega um direito teleológico, finalístico, ou seja, atento ao seu
fim último de fazer justiça.
Em breves palavras tudo é muito bem explicado:
“De um patrimônio genético, em verdade, depende a especificidade das proteínas. Da
especificidade das proteínas, dependem a qualidade e conseqüentes funções das
células. Da atuação das células, dependem a estrutura e o desempenho dos tecidos e
dos órgãos. Da estrutura e do desempenho dos tecidos e dos órgãos, dependem os
traços físicos e as aparências, as tendências a as inclinações, as faculdades e as
atuações, a sorte e o destino do organismo inteiro. Em suma, os caracteres dos seres
vivos estão na dependência de seus genes. (...) Isto significa que as propriedades e as
atuações dos seres vivos, inclusive do homem, podem ser explicadas pelos filamentos
microscópicos, com dimensões quânticas, de seus nucleotídeos encadeados. O
comportamento dos seres vivos, inclusive do homem, se acha sob controlo genético.
Esta é uma das mais notáveis descobertas da ciência moderna.(...) Ora, o patrimônio
genético de cada ser é produto de um antiqüíssimo processo histórico. Não, é certo, da
exclusiva experiência histórica de cada individuo. Mas da longa experiência dos
filamentos nucleotídicos, através das gerações. (...) Ao embate das vicissitudes da
vida, em tentativas inumeráveis, os velhos colares de nucleotídeos, de cada linhagem
de seres, foram sofrendo, durante milênios sem conta, as mutações que a inexorável
seleção natural se incumbiu de inscrever, definitivamente, nas moléculas mestras do
DNA. Este é o motivo pelo qual um patrimônio genético é sempre o resultado de um
imemorial processo de triagem. (...) Às formas inatas e hereditárias de
comportamento, se vão acrescentando formas adquiridas. E as formas adquiridas de
comportamento, apos mutações das estruturas genéticas de que dependem, acabam se
tornando formas inatas e hereditárias21.”
Explica o professor que há uma interação entre formas inatas e formas hereditárias. O
ser comporta-se conforme seus genes, mas também modifica seus genes pelo seu
comportamento. Um mesmo animal que habite a China terá um comportamento tradicional
diverso de outro da mesma espécie que habite o Brasil. Ao longo do tempo esse
comportamento determina mutações genéticas. Portanto, aqui não se trata de determinismo
biológico, mas de interação de genes e meios, de inclinações inatas e vivências práticas
culturais e históricas.
A Lei Ética Suprema. Dessas considerações será extraída a lei ética suprema, o
primeiro fundamento da ética, que é discriminação entre bons e maus comportamentos, pois
apenas os comportamentos eficientes, adequados às contingências de cada ser, é que podem
conservar a vida e preservar a espécie. Nessa linha, a consciência terá papel preponderante na
evolução humana, na medida em que evoluiu do mero instinto para a inteligência racional
característica dos seres humanos. Nas linhas de Bergson, fixará que a consciência é percepção
mais memória, ressaltando que
“a evolução do homem, por ser uma operação consciente, se caracteriza pela vontade
humana de promovê-la. De fato, a evolução do homem é uma aspiração, uma intenção,
21
TELLES, ob. cit., p. 320-2.
9
uma busca. É uma procura deliberada. É um desejo de crescer em conhecimento, de
penetrar a existência das cousas. É uma ânsia de aumentar as capacidades humanas, de
atualizar potencialidades ocultas. É uma tensão, um impulso persistente, uma
obstinação, no sentido de alcançar um status mais elevado, mais perfeito, do que
aquele em que ele se encontra. (...) Nas células, as enzimas se libertaram das
determinações químicas, e passaram a se comportar teleonomicamente, traídas pelos
fins fisiológicos do organismo. No homem, a consciência superou as determinações
fisiológicas e passou a se dirigir para alvos culturais, que cintilam como estrelas, num
firmamento imaterial22.”
Espantosamente se verificou que as enzimas se libertaram das determinações químicas
e passaram a se comportar teleonomicamente, segundo os fins do organismo. As células
escolhem liberar essa ou aquela enzima não por determinações químicas, não são as chaves
químicas que determinam o comportamento celular, mas os fins fisiológicos do organismo.
Há uma teleonomia, uma escolha de fins, e não uma determinação cega dos componentes
químicos. Do mesmo modo a consciência humana superou as determinações fisiológicas do
organismo e passou a se dirigir para elementos culturais e históricos, por estimativa
valorativa, por escolhas do que é bom, por escolhas éticas.
A Norma Jurídica. Adentrando no tema específico da norma jurídica, o Professor
Goffredo irá começar por expor a noção de campo, no sentido físico, como área dentro da
qual se manifesta a energia de um homem, para depois explicar as interações necessárias entre
os homens na vida em sociedade, que existem para servir ao homem, têm caráter instrumental,
do qual decorre a necessidade de que sejam impostas certas proibições e permitidas outras
tantas situações. Dessa ordem de idéias surge a noção de norma jurídica como
“mandamentos sobre os movimentos humanos que, em sociedade, podem ser
oficialmente exigidos e oficialmente proibidos. As normas sobre outros movimentos
humanos não são normas jurídicas. São normas de qualquer outra espécie. Jurídicas,
somente são aquelas que oficialmente permitem determinados movimentos. Isto
significa que somente são jurídicas, as normas relativas às interações que a
inteligência governante considera necessárias, para que uma coletividade ou
agrupamento humano seja, efetivamente, uma comunidade e, assim, atinja seus
objetivos23”.
Norma jurídica como imperativo autorizante. A norma jurídica é essencialmente
um imperativo autorizante, e é por esta característica que ela se diferencia das demais normas
éticas.24 Ela não é atributiva, como dizia Leon Petrazycki, cuja teoria revelou o caráter não
coativo da norma, pois se coagir é agir, e se a norma não age, não pode ser tida como
atributiva de coação. Coagir não é uma faculdade que esteja na norma e se não está na norma,
que por si só a ninguém coage, não pode por ela ser atribuída, já que não se pode atribuir a
outrem algo que não se possui. Ademais, prossegue em sua brilhante refutação, a norma
jurídica não é atributiva de coação ao lesado porque a possibilidade de coagir já pertence a ele
por natureza, independentemente de tal atribuição. É natural aos homens a faculdade de uns
coagirem aos outros. As faculdades humanas são potências próprias do homem. A norma
jurídica é, pois, autorizante, na medida em que apenas permite, autoriza, o lesado a lançar
22
TELLES, ob. cit., p. 326-7.
TELLES, ob. cit., p. 345.
24
TELLES, ob. cit., p. 356.
23
10
mão de uma faculdade que ele já possui, consistente em coagir, pelos meios legais, aquele que
o lesou a cessar, a não concretizar, ou a reparar a lesão.25
A norma jurídica não é coativa. A norma jurídica não é coativa, pois a faculdade de
coagir é do lesado, não da norma. Esta apenas autoriza a coação pelos meios legais
permitidos. O violador potencial não tem medo da norma, tem medo do lesado. Seja efetiva,
seja psíquica, a coerção efetiva só pode ser executada pelo lesado, não pela norma. Por isso
diz que não é exato afirmar que a norma induz a uma coerção psíquica, pois a verdade é que a
maioria das pessoas age de acordo com a lei e não pensa em violá-la. Como se poderia, então,
dizer que está coagido aquele que cumpre a lei por sua própria vontade? Seria um verdadeiro
tormento a vida humana se viver de acordo com o Direito fosse viver contrariado, sob
permanente coação psíquica.26
Direito Subjetivo não é faculdade. Evidentemente que não poderia escapar da análise
arguta de nosso mestre27 este importante conceito do direito. Começa por afirmar que direitos
subjetivos são as permissões dadas através de normas jurídicas. Tem direito subjetivo todo
aquele que tem permissão jurídica para fazer ou não fazer alguma coisa, ter ou não ter alguma
coisa. Direitos subjetivos não são uma faculdade, porque faculdade é potência, aptidão para
produzir um ato. Sendo potência a faculdade não é ato, mas antecede ao ato. A palavra ato,
criação de Aristóteles (Metaphysica, IX. c. 3, 1047a, 32), tem dois significados: ato como
ação e ato como ser, que se opõe ao ser em potência, porque se perfez. O ato é a perfeição da
potência. Como exemplo, mostra que a visão é uma faculdade humana, mas o homem não é a
visão, e sim tem nela uma sua propriedade, como aos pássaros afeta a aptidão de voar. Por
isso que ter uma faculdade não implica em ter um direito, já que eu posso exercer minha
faculdade sem permissão jurídica.
Direito subjetivo não é poder da vontade. Afirma o Professor Goffredo Telles28,
prosseguindo em sua refutação, que o direito subjetivo não é o “poder da vontade”
(Windscheid, “Direito das Pandectas, § 37; Savigny, Tratado do Direito Romano, § 14),
porque pode existir a permissão jurídica sem concorrência da vontade, no caso, por exemplo,
do incapaz, que tem direito de contratar mas não tem a faculdade para fazê-lo, ou do
nascituro, que tem direitos antes de poder ter vontade.
Direito subjetivo não é interesse juridicamente protegido. O direito subjetivo
também não é o “interesse protegido” (Ihering, O Espírito do Direito Romano, § 70), porque
um interesse não pode constituir-se numa permissão. Ao dizer que o direito subjetivo é um
interesse protegido está se afirmando que é um bem que interessa. Sendo bem que interessa, a
pessoa age em busca de consegui-lo, e se age é porque tem a faculdade de agir. E o direito
subjetivo é a permissão para o emprego dessa faculdade de agir em busca do que interessa e
não o próprio interesse.
Direito subjetivo são permissões. Portanto, direito subjetivo são as permissões dadas
por meio de normas jurídicas, de qualquer espécie de normas jurídicas, sejam normas legais,
sejam normas contratuais, permissões jurídicas essas que podem ser explícitas, expressamente
mencionadas nas normas jurídicas, ou implícitas, permissões que as normas jurídicas não
mencionam expressamente, mas têm seu uso por elas regulado, ou assegurado, pela proibição
25
TELLES, ob. cit., p. 371-3.
TELLES, ob. cit., p. 373-85.
27
TELLES, ob. cit., p. 389-97.
28
TELLES, ob. cit., p. 398-400.
26
11
do que impede esse uso, ou simplesmente porque seja uma permissão cujo uso não seja
proibido por qualquer norma jurídica. Assim, exemplo de direito subjetivo explícito é a
permissão dada ao maior de 21 anos, pelo art. 9o. do CCB, de praticar todos os atos da vida
civil, e de direito subjetivo implícito é a permissão para estabelecer domicílio, nos artigos 31 e
42 do CCB, que dispõem sobre o domicílio sem mencionar expressamente o direito de
estabelecê-lo29.
Princípio da Legalidade e Princípio da Legitimidade. Fixadas essas considerações,
parte para afirmar que todas as permissões jurídicas, explícitas ou implícitas, têm fundamento
no Princípio da Legalidade, em última análise convertido na seguinte máxima: A todos é
permitido fazer o que a norma jurídica não proíbe, e não fazer o que a norma jurídica não
manda fazer. Adverte, no entanto, que há um princípio mais alto do que o Princípio da
Legalidade, o princípio supremo que mais pertence à Ciência Política, embora se imponha à
inteligência do jurista, que é o Princípio da Legitimidade30.
O Homem e a Experiência Jurídica. Chegado ao último capítulo da obra, vão
surgindo as mais importantes conclusões do Professor Goffredo Telles31, a começar por
remarcar que o direito objetivo desejado por uma sociedade é sempre aquele que permite um
melhor ambiente para que todos usufruam de seus bens soberanos, que têm existência
histórica a permitir mudarem de acordo com as circunstâncias, quando mudam os sistemas
éticos de referência, que são fruto da inteligência do homem. Sendo do homem a
inteligência, esta será sempre solidária com o todo de que faz parte. Essa solidariedade
determina a inteligência, podendo-se, assim, afirmar que a inteligência é necessariamente
determinada pelo que o homem realmente é.
Por suas próprias palavras:
“(...) o homem real, em razão do qual a inteligência se determina, é um ser no tempo,
um fenômeno histórico. O homem real é o homem em seu processo vital, dentro das
condições concretas de sua evolução e perfazimento. Separar o homem de sua história
é desconhecê-lo e falsificá-lo. (...) a história do homem tem inicio com a história do
acido nucléico. O homem real, o eu mesmo, não o eu transcendental de Kant; não a
idéia transcendental do sujeito pensante, a que se refere a “Critica da Razão Pura”.
Não é um eu formal, nem mesmo uma “consciência comum”, colocada fora e acima
das consciências individuais – não, é certo, do que distingue estas consciências uma
das outras, mas do que elas têm de efetivamente comum, dentro de uma determinada
circunstancia histórica. (...) O eu histórico é um eu permanente, mas um eu
permanente em continuo perfazimento. É o homem considerado na sua realidade
concreta, no que ele é por natureza. E o homem por natureza é um ser sempre tendido
para bens que o perfazem, um ser “intencional”, um ser imantado pelo que ele julga
ser seu bem. Porque é da condição da espécie humana, perfazer-se. Sim, algo há, no
homem, de permanente. Mas isso, que é permanente, é o que faz transformar-se.
Porque é da natureza imutável do homem, a ânsia insaciável por bens que ainda não
lhe pertencem. Portanto, é da natureza imutável do homem, mudar sempre. A espécie
humana é uma espécie em continua mudança. (...) O retorno refletido ao eu situa o eu
no mundo, e acarreta o relacionamento das cousas do mundo com o eu, do não-eu com
o eu. As cousas do mundo são vistas, não apenas como objetos, mas como objetos
confrontados com o eu e apreciados pelo eu. Com isto, o eu se promove a fonte
doadora de sentido ao mundo circundante. Para o próprio eu, é que o eu sujeita as
29
TELLES, ob. cit., p. 400-06.
TELLES, ob. cit., p. 400-07.
31
TELLES, ob. cit., p. 415-6.
30
12
cousas da natureza. Sujeita-as ao seu conhecimento e sujeita-as, quando é o caso, aos
seus interesses. Para o próprio eu, é que o eu modela as cousas, se não a sua imagem,
ao menos em conformidade com seus fins. Em razão do eu, as cousas são julgadas, são
avaliadas e, em conseqüência, adquirem valor - o valor que o homem lhes atribui.
“A pessoa humana passa a ser a medida de todos os valores. Porque ela é que constitui
o bem primordial e, nessa qualidade, a referência para a determinação dos valores dos
outros bens. E, então, a experiência ética em geral e a experiência jurídica em especial
não podem ser entendidas como um simples suceder de fatos objetivos, sobre os quais
o cientista curiosamente se debruça. O Direito como experiência não pôde ser
considerado como uma simples serie de fatos incluídos dentro de uma categoria
estática, dentro de uma fôrma jurídica a priori. A experiência jurídica há de ser
apreendida como uma experiência integral, em que não só os fatos objetivos, mas,
também, as categorias subjetivas, que os qualificam, são igualmente partes da
experiência, e igualmente se acham incluídos na história do homem. Transforma-se o
eu, à medida que dura. Transforma-se o eu, à medida que difrata. Transforma-se a
fonte doadora de sentido, à medida que se vai enriquecendo de passado e de
experiência. Transforma-se o sistema de referência de todos os valores. É o que está
confirmado pela variação dos critérios de julgamento, em povos e tempos diferentes. É
o que explica a diversidade dos códigos morais e jurídicos. É o que fez Pascal dizer:
"Verdade, para cá dos Pirineus; erro, para lá.
“A experiência jurídica é sempre a atualização objetiva de um estado de consciência
de uma comunidade. É a objetivação do que é considerado jurídico dentro de um
grupo social. Em outras palavras, é a vivencia daquilo que uma comunidade, por
convicção generalizada, qualifica de jurídico, num determinado momento histórico e
num determinado lugar. Em conseqüência, explicar a experiência jurídica pela
conexão dos fatos objetivos que a constituem, não é conhecê-la. O conhecimento
dessa experiência exige a revelação do sentido e do valor desses fatos - sentido e valor
que lhes é efetivamente conferido pela generalidade dos indivíduos componentes da
comunidade em que tais fatos se verificam.
“As tábuas de bens dos homens, suas ordens éticas, que são, afinal, suas categorias
axiológicas, seus sistemas de referência, não se formam na razão pura, como
desligadas das cousas, mas, pelo contrario, são hauridas nas cousas mesmas ou,
melhor, no homem mesmo, no que há de temporal e no que há de atemporal no
homem, ou seja, no homem histórico. E esses sistemas de referência, são as categorias
que cada comunidade consagra como tais, em cada momento de suas respectivas
histórias. Isto significa que o sentido das cousas e o valor delas dependem de sua
correlação com a pessoa humana, dentro do processo de perfazimento do homem.
“E é de notar-se que, desse sentido e desse valor, dados pelos homens às cousas,
depende, por sua vez, em cada momento, o rumo da história. O homem histórico, o eu
real, embora não seja transcendental, é, sem duvida, um a priori, porque é condição
subjetiva de compreensão da experiência objetiva. É condição para a compreensão da
experiência. É um a priori, como é um a priori, o "peso" padrão que se coloca num dos
pratos da balança para saber qual é o peso do objeto colocado no outro prato. O 'peso"
padrão é um a priori em relação ao ato de pesagem de um certo objeto, mas não é um a
priori em relação a toda experiência humana de pesagem. O eu real a priori é a medida
com que se avaliam as coisas do mundo. É a referência para a determinação do sentido
e do valor das cousas. Mas é um eu que inclui toda a sua experiência. Um eu que é eu
mais a sua longa história. O mundo do eu real e concreto é o mundo histórico. O
mundo histórico é o mundo da duração humana, no sentido bergsoniano. É o mundo
em que se verifica a comunhão progressiva dos estados de consciência, no processo
irreversível da organização do humano. É o mundo que hoje é chamado mundo dos
13
valores, porque é o mundo das cousas consideradas como bens do homem, isto é, das
cousas com valor para o homem32”.
Direito Natural. Chegado o ponto culminante da obra, o Professor Goffredo Telles33
irá definir o Direito Natural como o Direito legítimo, que não é artificial, porque é
consentâneo com o sistema ético de referência em uma certa sociedade, é “o conjunto das
normas em que a inteligência governante na coletividade consigna os movimentos
humanos que podem ser oficialmente exigidos, e os que são oficialmente proibidos, de
acordo com o sistema ético vigente”. Assim o Direito natural não é um conjunto dos
primeiros e imutáveis princípios da moralidade, pois tais princípios não são normas jurídicas,
não podem ser chamados de Direito.
O Legal e o Legítimo. Diz o Professor Goffredo Telles34 que são legitimas as leis
compatíveis com a normalidade ambiente, que sejam compatíveis com o sistema ético de
referência. Só as leis que forem realmente normas jurídicas é que são legítimas, leis de Direito
Natural, porque como normas jurídicas atendem o sistema ético subjacente. Leis legais podem
ser ilegítimas, artificiais, quando não forem leis de Direito Natural, porque dissonantes do
sistema ético de referência. A qualidade de insólita, o discrepar da lei em relação às
convicções éticas dominantes, a faz uma lei ilegítima, artificial, uma anormalidade.
Direito Quântico é o Direito Natural: o Direito legítimo. Nesse ponto, para não
perder a força da argumentação, a via necessária é a transcrição literal, pois qualquer versão
empobreceria as destacadas palavras que seguem:
“O Direito Natural é Direito Quântico porque é o Direito reclamado pelas estruturas
dos elementos quânticos, nas células dos componentes de uma população. É o Direito
que atende às inclinações genéticas de um povo ou de um agrupamento humano. É o
Direito radicado num "pool" genético. É o Direito que liga ou religa o homem à sua
própria natureza. O Direito Quântico é o Direito que resulta do processo da
organização do humano. É o Direito nascido de suas fontes bióticas. É o Direito a que
chegou o imemorial processo de inumeráveis mutações. É o Direito destilado nos
engenhos da seleção natural. É o Direito que exprime, em linguagem humana, o
indefectível controlo genético.
“Esse Direito é o que brota da "alma" do povo, como se costuma dizer. É o Direito que
exprime o "sentimento" ou "estado de consciência" de uma classe, de um segmento
social ou de um agrupamento conjuntural estável. É o Direito que se inspira em
convicções profundas e generalizadas. É o Direito que reflete a índole de uma
coletividade. O Direito Quântico é o Direito do eu histórico.
“O Direito legitimo é quântico porque delimita, quantifica a movimentação humana,
segundo o sistema ético de referência que espelha disposições genéticas da
coletividade. Ele é quântico porque não é arbitrário. É quântico porque não é
descomedido. É quântico porque é feito sob medida, e é a medida da liberdade
humana. É quântico porque relaciona o dever-ser com o ser de um sistema social de
referência.
“Em conformidade com o Direito Quântico, dentro da sociedade, um quantum de
movimentação é exigível legitimamente. Em conseqüência, delimitada, também, é a
32
TELLES, ob. cit., p. 416-21.
TELLES, ob. cit., p. 421-24.
34
TELLES, ob. cit., p. 424-7.
33
14
energia humana gasta na produção dessa movimentação. De fato, a energia humana,
para os fins dessa movimentação, é liberada em porções delimitadas, em quantidades
comedidas, porções e quantidades de energia que se podem chamar quanta humanos.
“Os quanta humanos são porções "discretas" (descontinuas) de energia humana. Como
a delimitação dos movimentos humanos, dentro da sociedade, é manifestada em
normas jurídicas, e como tal delimitação implica, obviamente, a delimitação da
energia necessária para a produção de cada um desses movimentos, os quanta
humanos são, em ultima instancia, quantidades de energia delimitadas pelas normas
jurídicas.
“As quantidades de energia delimitadas pelas normas jurídicas se chamam quanta
humanos, porque tais quantidades são, precisamente, as que não podem deixar de se
manifestar, para que a sociedade seja o que é. Outras quantidades de energia poderão
se manifestar ou não; mas somente as quantidades de energia delimitadas pelas
normas jurídicas conferem à sociedade o seu ser.
“(...) os saltos dos elétrons, no seio de cada sociedade atômica, não podem ser
considerados como simples passagens de uma órbita para outra. Tais movimentos são
saltos dentro de nuvens, saltos que modificam as nuvens eletrônicas dentro do átomo.
As emissões e absorções de quanta sacodem a "geléia" atômica, produzindo
modificações em suas fôrmas globais. Mas tais saltos, como já explicamos, só se
podem executar dentro de determinadas condições. Certos saltos são impossíveis. E os
saltos possíveis nem sempre se executam: são saltos mais ou menos prováveis.
“Poder-se-ia afirmar que certos saltos são proibidos; outros, permitidos. Os físicos
descobriram as condições de uns e de outros, e as sintetizaram em leis, que
denominaram leis de seleção. Este nome foi dado a tais leis, porque elas como que
selecionam as condições em que as transições dos elétrons são permitidas,
discriminando-as das condições em que tais transições são proibidas.
“(...) os elétrons, uma vez ou outra, violam estas leis. Principalmente nos átomos
pesados, de elétrons muito numerosos, com sua imensa confusão de nuvens, as
proibições são freqüentemente infringidas. Pois bem. Nas sociedades dos homens,
certos movimentos são sempre exigíveis e outros sempre são proibidos. Para produzir
os primeiros e para vedar os segundos, necessário é liberar energia humana. Mas essa
liberação é comedida. É uma libe ração com delimitações certas, com as delimitações
impostas pelas exatas exigências dos movimentos a produzir. E é por este motivo que
a energia de cada homem não se esgota num jacto, mas vai sendo liberada em porções
"discretas” à medida que a movimentação de cada homem se torna necessária.
“A movimentação dos homens em sociedade é determinada pelas forças atuantes em
seus respectivos campos. As interações resultantes do encontro de quanta humanos
constituem relações jurídicas. Uma relação jurídica é sempre uma interação quântica.
Em cada relação jurídica, movimentos comedidos de uns propiciam movimentos
comedidos de outros. Esses movimentos são comedidos, em razão de dois fatores.
Primeiro, porque são, somente, os movimentos permitidos pelas normas jurídicas. São,
apenas, os movimentos produzidos por quem tem o Direito Subjetivo de produzi-los.
Segundo, porque em cada relação jurídica, Direitos Subjetivos de uns e de outros se
confrontam e, depois, se compõem, limitando-se reciprocamente, a fim de que deles
resultem movimentos convenientes para uns e outros.
“As interações, nas relações jurídicas, são quânticas, porque as ações correlatas, de
que elas se constituem, não são quaisquer ações, mas, precisamente, são as ações que
as normas jurídicas permitem e quantificam. O Direito Objetivo é a ordenação de
15
determinadas espécies de interações humanas. É a ordenação que quantifica a
liberação das energias humanas, para assegurar o equilíbrio das forças, e para garantir
que, a cada direito, corresponda uma obrigação. É a ordenação que delimita a
liberação da energia, nos campos dos homens, para que a sociedade seja efetivamente
o que ela precisa ser, isto é, um meio a serviço dos fins humanos.
“Pelo prisma do Direito, os homens são partículas delimitadas de energia. São objetos
quânticos, ou quanta. As interações; dos homens - dos homens considerados como
quanta (quantidades discretas de energia) - são regulamentadas por uma ordenação
quântica. O Direito é a ordenação quântica das sociedades humanas.
“Mas, em matéria de ordenação, por meio do Direito, tudo é possível. Assim como a
proteína reguladora deve ser considerada como um produto especializado em
"engineering" molecular, assim também o Direito deve ser considerado como um
produto de uma inteligência especializada em "engineering" social. Assim como
nenhuma imposição química decide da atuação das referidas proteínas, assim também
nenhuma imposição absoluta determina o Direito. Assim como essas proteínas se
dirigem com autonomia, em conformidade com os interesses fisiológicos da célula,
assim também o Direito, livre de imposições absolutas, se pode dirigir pelos interesses
reais da sociedade, de acordo com os sistemas de referência efetivamente vigorantes.
Pode o Direito não se sujeitar a não ser aos fins que a sociedade almeja.
“A Ciência do Direito não anunciará jamais um homem, ou um determinado grupo de
homens procederá desta ou daquela maneira, como a Física não pode prever o
percurso que um elétron ou um grupo de elétrons irá fazer. A Ciência do Direito dirá,
isto sim, que não sabe como um homem, ou um determinado grupo de homens, irá
proceder, mas que esse homem, ou esse grupo de homens, tem mais probabilidade de
proceder da maneira X, do que da maneira Y. A maneira X de proceder é a que é mais
conforme ao sistema ético de referência da coletividade a que pertence esse homem ou
esse grupo de homens. É a maneira de proceder que o Direito Objetivo deve
preconizar. As leis humanas são, portanto, leis de probabilidade, como as demais leis
da Sociedade Cósmica. A ordenação jurídica é a própria ordenação universal. É a
ordenação universal no setor humano”.
Está aí a bem elaborada tese do filósofo brasileiro, que põe a Ética no seu devido
lugar, como fundamento que legitima o Direito, através de uma original e eficiente
empostação, em que não foge jamais de abordar os principais pilares do edifício teórico
jurídico em voga.
Direito Natural e Direito Positivo. Para arrematar, é preciso ser dito, ainda, que a
construção desta definição formalista em voga de direito como sistema de normas, na verdade
uma definição do séc. XVIII que ainda preside o raciocínio da maioria das cabeças jurídicas
no Brasil, se deu no bojo da reelaboração do conceito de direito natural, não considerado na
concepção científica do direito, amesquinhado frente ao agigantamento da noção de
positividade como meio de se garantir certeza. Elucidativas são as palavras de José Pedro
Galvão de Souza35, ao dizer que
“Há certas doutrinas de direito natural excessivamente abstratas e constituídas pelo
abuso do método dedutivo: as que se formaram depois de Grotius, Puffendorf,
Rousseau e Kant. Mas há também um sistema de direito natural baseado na evidencia
dos primeiros princípios do conhecimento e resultante de uma analise objetiva da
35
SOUZA, José Pedro Galvão. O Positivismo Jurídico e o Direito Natural. 1ª Ed. São Paulo: RT, 1940, p. 7-9.
Atualizamos o português para facilitar a leitura.
16
natureza racional do homem. Esse sistema encontra-se naquela concepção que,
proveniente dos filósofos gregos e dos jurisconsultos romanos, se incorporou ao
patrimônio doutrinário da filosofia chamada por Bergson a matafísica natural da
inteligência humana.
“Geralmente, as criticas feitas ao direito natural atingem apenas o ‘jusnaturalismo’
abstrato e dedutiva. Entretanto, abroquelando-se nos argumentos utilizados por tais
criticas, precipitam-se muitos a uma negação sumária de todo direito natural.
“Não pretendemos dizer que o positivismo jurídico se explica simplesmente como
reação contra as doutrinas modernas de direito natural. Seria desconhecer-lhe as
causas mais profundas. Seria omitir a filiação da tendência positivista, no direito, á
mesma tendência anteriormente manifestada na filosofia.
“O século XIX foi o século positivista por excelência. Ofuscados certos espíritos pelo
surto admirável das ciências experimentais, pareceu-lhes ter sido chegado o tempo de
uma completa revisão dos velhos princípios admitidos pela maioria das escolas
filosóficas. Era preciso rejeitar todo o apriorismo da escolástica e de alguns filósofos
modernos, como Leibniz e Kant. Só ao método positivo, isto é, construído sobre o
alicerce inconcusso das realidades empíricas, seriam conferidos, daí por diante, foros
de cidadania cientifica. O processo indutivo, que tão bons resultados trouxera nas
ciências físicas e naturais, devia ser o único a conduzir também as pesquisas sobre o
homem e a sociedade.
“Nada disso podemos esquecer na gênese do positivismo filosófico e do positivismo
jurídico”.
Exatamente este é o sentido que se quer imprimir a este trabalho, mostrando como se
afastou a moral do direito, resultado da evolução da idéia de razão e de ciência, através do
influxo positivista antimetafísico. Buscamos no presente trabalho proceder ao resgate e
revalidação do direito natural como fundamento moral que controla a legitimidade e validade
do direito positivo.
Nesse intento, é preciso ser dito que o Positivismo Jurídico fundado por Kelsen é
resultado da integração do ideal positivista antimetafísico com parte da doutrina de Kant, na
sua estrutura formal, no seu armamento dogmático, pela substituição da noção de dever
inscrita na Doutrina do Direito36, primeira parte da Fundamentação para a uma Metafísica dos
Costumes, pela noção de norma, deformando o kantismo no seu conteúdo, ao lançar mão
apenas da sua empostação formal, ignorando a ética de Kant. Integrada que fossem as noções
éticas de Kant na sua doutrina, Kelsen teria vencido a sua errônea perspectiva reducionista,
para abarcar a moral na base do direito.
A doutrina de Kelsen representa modernamente o coroamento da separação entre
Direito Positivo e Direito Natural, por uma concepção do direito como uma dogmática alçada
à categoria de ciência, pelo uso de uma lógica jurídica subproduto da lógica clássica
aristotélica como método científico.
36
KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. 1ª Ed. São Paulo: Ícone, 1993, p. 5, com prefácio do Professor Dr.
Cláudio de Cicco.
17
Na verdade, a oposição entre Direito Natural e Direito Positivo é antiga, como diz
Bobbio, “já se encontra em Platão e Aristóteles”.37 Há três noções interessantes de serem
destacadas: a clássica, a medieval e a iluminista.
Quanto ao pensamento clássico, se pode extrair de Platão  no Timeu  que: “Da
justiça política, uma parte é natural e outra parte legal: natural aquela que tem a mesma força
onde quer que seja e não existe em razão de pensarem os homens deste ou daquele modo;
legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida”; de
Aristóteles  na Ética a Nicômaco  que “Da justiça civil uma parte é de origem natural,
outra se funda em a lei. Natural é aquela justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito e
não depende do fato de que pareça boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao contrário,
de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim como é, uma vez
sancionada”; e do Direito Romano, das Institutas e do Digesto, que “O direito natural é aquele
que a natureza ensina a todos os animais... O direito civil e o direito das gentes devem ser
distinguidos: todos os povos que são regidos por leis e pelos costumes têm um direito que lhes
é próprio em parte e em parte comum a todos os homens. Com efeito, o direito que cada povo
estabelece para si mesmo é o direito próprio à cidade: chama-se civil porque é o direito
especial da cidade. Mas o direito que a razão natural estabeleceu entre os homens, que é
igualmente observado entre todos os povos, chama-se direito das gentes, isto é, direitos de
todas as nações (I., 1, 2, 1)” e que “Os direitos naturais igualmente guardados entre todos os
povos, constituídos por uma espécie de providência divina, permanecem sempre firmes e
imutáveis. Os direitos que cada nação constitui para si muitas vezes se mudam, ou pelo tácito
consenso do povo, ou pela promulgação de outra lei (I., 1, 2, 11)” e mais na distinção que faz
Paulo (D. 1, 1, 11), segundo a qual o “direito natural é universal e imutável enquanto o civil é
particular no tempo e no espaço”; além de que “o direito natural estabelece aquilo que é bom,
enquanto o civil estabelece aquilo que é útil: o juízo correspondente ao primeiro funda-se num
critério moral, ao passo que o relativo ao segundo baseia-se num critério econômico ou
utilitário”.38
Ainda segundo Bobbio39, que aborda a questão perseguindo as origens da noção de
direito positivo, é com Abelardo que o uso do termo surge no pensamento medieval, pelo séc.
XI, afirmando que a distinção entre direito natural e direito positivo se encontra em todos os
escritores medievais. Cita S. Tomás de Aquino, para quem na diferença entre a lei natural e a
lei humana esta última tem vigor “apenas por força do legislador que a põe” e prossegue
dizendo que “na época clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de
fato o direito natural era concebido como “direito comum” (koinós nómos, conforme o
designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma dada civitas;
assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral (lex
specialis derogat generali), o direito positivo prevalecia sobre o natural (...), na Idade Média,
ao contrário, a relação entre as duas espécies de direito se inverte; o direito natural é
considerado superior ao positivo, posto seja o primeiro visto não mais como simples direito
comum, mas como norma fundada na própria vontade de Deus e por este participada à razão
humana”.40
Mas é preciso esclarecer que nesta passagem Bobbio não remarca a essência do
pensamento antigo e medieval a respeito, de que o Direito Natural sempre foi visto como
37
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. 1ª Ed. São Paulo: Ícone, 1995, p. 15.
BOBBIO, ob. cit., p. 15-9.
39
BOBBIO, ob. cit., p. 19-20.
40
BOBBIO, ob. cit., p. 25.
38
18
fundamento do Direito Positivo. Uma leitura isolada da citada passagem de sua obra pode
levar ao equívoco entendimento de que esta separação já tinha os contornos de uma negação
do Direito Natural como fundamento do Direito Positivo, mas que na verdade será fruto de
pensamento instituído por Grócio, a partir de quando “o Direito Natural refere-se não mais à
natureza das coisas, mas à natureza humana”, o que significará “a modificação do eixo na
idéias de Direito Natural”, pois a visão do Direito a partir daí “torna-se arraigadamente
subjetivista e dedutivo-matemática”.41
Na verdade, uma verificação em fontes diversas fará ver que não está exata a
colocação do jurista italiano quanto ao pensamento de Aristóteles e de S. Tomás de Aquino
neste ponto, quando afirma, em relação ao primeiro, que o Direito Positivo está acima do
Direito Natural, e, quanto ao segundo, que a lei humana tem vigor apenas por força do
legislador que a pôs.
Mas a incongruência ocorre não porque não tenham eles afirmado tais coisas, e sim
porque tais afirmações isoladas não expressam o pensamento que Bobbio quer fazer passar
em sua obra. O problema é que do Iluminismo para cá ninguém mais leu os pensadores
medievais, seguindo a tônica célebre do pândego Oswald de Andrade: não li e não gostei!
Esse vezo fez com que ninguém menos do que um Ihering, tão caro à construção do
pensamento jurídico moderno, dissesse: “Se tive lido São Tomás de Aquino não teria escrito o
que escrevi”.
O fato é que, no pensamento medieval, tanto em Sto. Agostinho como em S. Tomás de
Aquino, se reproduziu a noção platônica-aristotélica-estóica, no sentido de que o Direito
Natural é sempre fundamento do direito dos homens, que não pode ser imposto contra aquele.
Portanto, tanto no pensamento clássico como no medieval subsistiu a idéia de que o Direito
Natural era fundamento de validade do Direito Positivo.
Pois esse entendimento se colhe claramente de Abbagnano,42 quando discorre sobre o
termo Direito (D.), e diz que “Na história do pensamento filosófico e jurídico, sucederam-se
ou entrecuzaram-se quatro concepções fundamentais quanto à validade do D.: 1ª a que
considera o D. positivo (isto é, o conjunto dos D. que as várias sociedades humanas
reconhecem) como fundado em um D. natural, eterno, imutável e necessário; 2ª a que julga o
D. fundado na moral e o considera, portanto, uma forma diminuída e imperfeita de
moralidade; 3ª a que reduz o D. à força, isto é, a uma realidade histórica politicamente
organizada; 4ª a que considera o D. uma técnica social”.
Ao explicar a primeira das noções, a que concebe o Direito Natural como fundamento
de validade do Direito Positivo, Abbagnano43 faz uma divisão em duas fases, a antiga, em que
engloba o pensamento clássico e o pensamento medieval, e a do jusnaturalismo moderno, a
partir de Gentile e Grócio. Destaca que para S. Tomás de Aquino, em sentido contrário do que
quis fazer parecer Bobbio, “no que diz respeito ao fenômeno de todas as leis colocadas pelos
homens, repete a doutrina tradicional segundo a qual não é lei a que não é justa e que,
portanto, da lei natural, que é a primeira regra da razão, deve ser derivada toda lei humana
(Sum. Teol., II, 1, q. 95, a.2)” e mais à frente reafirma, em referência à concepção platônica41
ARAÚJO, Vandyck Nóbrega de. Fundamentos Aristotélicos do Direito Natural. 1ª Ed. Porto Alegre: Fabris,
1988, p. 14.
42
ABBAGNANO, Nicolla. Dicionário de Filosofia. 2a ed., São Paulo: Editora Mestre Jou, 1962, v. Direito, p.
260-3.
43
ABBAGNANO, ob. cit., v. Direito, p. 264-5.
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aristotélica-estóica, que “durante toda a Antigüidade e a Idade Média, o D. natural conservou
a sua função de fundamento e às vezes, platonicamente, de arquétipo ou modelo de todo D.
positivo. Já nessa fase da sua história, a noção de D. natural constituiu um limite e uma
disciplina para toda forma de autoridade estatal ou política, e serviu, ao mesmo tempo, para
justificar a própria autoridade política”.
Nesse sentido exposto vai toda a obra de Vandyck Araújo 44, pela noção de que o
Direito Natural serve como fundamento para o Direito Positivo na Antigüidade e na
escolástica, bastando para provar esta assertiva mencionar apenas o título do trabalho:
Fundamentos Aristotélicos do Direito Natural, em que busca resgatar a noção clássica e
escolástica do Direito Natural como fundamento último do Direito Positivo, através de um
vigoroso rebate ao positivismo antimetafísico, que se anuncia nas primeiras linhas de sua
excelente obra:
“A problemática do Direito Natural confunde o raciocínio dos juristas favoráveis ao
jusnaturalismo, que, salvo exceções gloriosíssimas, não apresentam argumentos
convincentes para a comprovação de seus pontos de vista, e perturba a jactância
onipotente dos positivistas, ardorosos antagonistas, que tratam o assunto como algo de
quimérico e de insustentável, alegando que só existe o Direito Positivo. (...) A
propósito da completude do Direito Positivo, que de Savigny a Kelsen tem sido a
preocupação fundamental dos que consideram o Direito como ciência nas bases
propostas por Kant, que inclusive foi responsável pela criação da Dogmática Jurídica,
a nefasta fábrica de conceitos, é deveras pertinente o que escreve Perelman, Droit,
morale el philosophie, pág. 100: “É um fato, contrário às teses positivistas, que nas
decisões judiciárias são introduzidas noções que derivam da moral, muitas surgidas no
passado, elaboradas segundo o Direito Natural, que hoje em dia são chamadas mais
modestamente de princípios gerais do Direito”.
Que fique aqui remarcado, portanto, que Direito Natural e Direito Positivo guardam na
Antigüidade  por uma tradição platônica-aristotélica-estóica , e na Idade Média  desde
Santo Agostinho até São Tomás de Aquino , uma relação na qual o primeiro constitui-se
em fundamento do segundo.
Isso será magistralmente abordado por Van Acker45, sem os preconceitos que a pureza
do normativismo abstrato de Kelsen infundiu nas mentes jurídicas. São abertamente
declaradas suas intenções de superar o conflito entre jusnaturalismo e positivismo jurídico,
assim como a sua contrariedade ao moderno jusnaturalismo pré-social e individualista de
Locke, Pufendorf e seus seguidores, porque interpretam o jusnaturalismo antigo reconhecendo
certas doutrinas jurídicas positivistas que pregam autonomia lógica e real da ordem jurídica
em relação à ordem moral, negando que a ordem jurídica, o Direito Positivo, deriva da ordem
moral, do Direito Natural.
De outra parte, vai interpretar o jusnaturalismo antigo de S. Tomás e Aristóteles,
contra o positivismo jurídico, no sentido de manter o caráter objetivo e científico da valoração
moral e a função moral peculiar à ordem jurídica, sem prejuízo das relações entre Direito
Positivo e Direito Natural, entre ordem jurídica e ordem moral.46
44
ARAÚJO, ob. cit., p. 11-2.
VAN ACKER, Leonardo. Curso de Filosofia do Direito, fascs. I e II. Separata da Revista Universidade
Católica de São Paulo, vol. XXXIV, Jan/Jun 1968, fascs. 65-66, p. 107-88; vol. XXXV, Jul/Dez 1968, fascs. 6768, p. 339-456.
46
VAN ACKER, ob. cit., I° Fasc., p. 78.
45
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Nessa linha, afirma que direito positivo  o direito objetivo, direito como lei posta 
é o conceito fundamental do direito, porque ao menos logicamente, senão também no plano
político–social e histórico–cultural, deste conceito dependem ou a ele se reportam todos os
demais conceitos jurídicos do direito. Esses demais conceitos, secundários ou derivados, são:
o conceito de direito subjetivo; o conceito de jurisprudência e o conceito de justiça e
eqüidade47.
Cabe à filosofia do direito, prossegue Van Acker48, examinar a essência das relações
de distinção, analogia e colaboração entre o direito e a moral. Por isso que é compreensível o
termo “direito” não ser tomado apenas no seu sentido jurídico-legal, mas também nos seus
significados morais, no seu sentido ético-moral, na busca da essência moral do direito jurídico
pela consideração também do direito moral. Por lamentável que seja essa ambigüidade ela é
inescapável, pois fundada na analogia real, existente entre a ordem jurídica e a ordem moral,
analogia que persiste apesar dos esforços históricos feitos para rigidamente distinguir e até
separar as duas ordens.
O direito moral é denominado de Direito Natural, termo plurívoco, de multiforme
equivocidade, mas que pode ser definido em duas básicas concepções de S. Tomás de Aquino,
como Direito Natural objetivo e material, em que direito equivale a justo e natural significa
que é fundado na natureza moral da conduta ou do comportamento humano justo. Esta
concepção tomista tem por sentido primeiro a conduta justa por natureza, pois não é
importante a norma da condução justa ou mesmo o poder (direito subjetivo) de se comportar
conforme o direito-norma de justiça, mas primordialmente importante é a própria realidade do
comportamento justo, a firme disposição de realizar a virtude de justiça.49
Van Acker irá resgatar a noção escolástica do Direito Natural como parte de um
importante movimento pós segunda grande guerra, em resposta e substituição ao caos anterior
a que conduziu a humanidade o nacionalismo fruto do romantismo oitocentista, expresso
pelos regimes totalitários de direita e de esquerda.
Como se vê, seja por uma nova teoria, com inédita abordagem, como a do Professor
Goffredo Telles, seja por refutações já antigas ao positivismo pela defesa do Direito Natural,
seja por uma nova empostação do Direito Natural após a segunda grande guerra, o que se quis
demonstrar por este artigo é o reducionismo que significa o positivismo lógico de Hans
Kelsen e a necessidade de que seja generalizada na cultura jurídica brasileira, já com um certo
atraso, o fato, já inconteste na Europa, de que este modelo formalista está ultrapassado como
modelo de ciência jurídica.
Aliás, é preciso ser acrescentado, se Miguel Reale fosse mais lido e ouvido, e
compreendido como merece ser, já há muito tempo poderíamos ter superado essa visão
autoritária e perigosa do direito, como mero sistema coativo de normas. Nosso grande mestre
tem um completo sistema de direito, forjado ao longo de décadas, por uma análise profunda e
acurada de todo o pensamento filosófico ocidental, que bem serve para fundamentar bons e
seguros estudos filosóficos brasileiros.
47
VAN ACKER, ob. cit., II° Fasc., p. 96-8.
VAN ACKER, ob. cit., II° Fasc., p. 98-9.
49
VAN ACKER, ob. cit., II° Fasc., p. 98-100.
48
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