PHILIPPA PERRY COMO MANTER A SANIDADE MENTAL How to Stay Sane Traduzido do inglês por Jorge Nunes Conteúdos INTRODUÇÃO 11 1. AUTO-OBSERVAÇÃO 25 2. RELACIONARMO-NOS COM OS OUTROS 43 3. STRESS 71 4. QUE HISTÓRIA É ESTA? 87 CONCLUSÃO 113 EXERCÍCIOS 117 NOTAS 147 TRABALHOS DE CASA 151 AGRADECIMENTOS 155 Introdução Eu sou são de espírito, tu és excêntrico, ele é louco. No manual que a maioria dos psiquiatras e muitos psicoterapeutas utilizam para definir os tipos e graus de insanidade, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, podemos encontrar as descrições de numerosos transtornos de personalidade. Apesar dessa enorme variedade, e apesar da proliferação de definições de transtornos nas sucessivas edições, é possível enquadrar essas definições em apenas dois grandes grupos.1 Num dos grupos, estão as pessoas que derivaram para o caos e cujas vidas oscilam de crise em crise; no outro, estão aqueles que entraram numa rotina e funcionam com um conjunto limitado de respostas rígidas e obsoletas. Alguns de nós conseguem pertencer a ambos os grupos em simultâneo. Então, qual é a solução para o problema de reagir perante o mundo de forma excessivamente rígida ou de isso nos afetar a tal ponto que vivemos num estado de caos permanente? Eu vejo este problema como um caminho muito largo, cheio de bifurcações e desvios e nem uma única direção “certa”. De tempos a tempos, pode acontecer desviarmo-nos demasiado para o lado da rigidez excessiva e sentimo-nos presos; por outro lado, são poucos os que, ao longo da vida, não se desviam ocasionalmente demasiado 13 COMO MANTER A SANIDADE MENTAL para o lado oposto, sentindo-se caóticos e descontrolados. Este livro é sobre como seguir o nosso caminho entre esses dois extremos, como nos mantermos estáveis mas flexíveis, coerentes mas capazes de abraçar a complexidade. Por outras palavras, este livro é sobre Como Manter a Sanidade Mental. Não posso pretender que exista um conjunto simples de instruções capazes de garantir a sanidade mental. Cada um de nós é produto de uma combinação distinta de genes e viveu um conjunto único de relações formativas. Por cada um de nós que tem de assumir o risco de ser mais aberto, há outro que precisa de treinar a autocontenção. Por cada pessoa que tem de aprender a confiar mais, há outra que precisa de experimentar um maior discernimento. O que me faz feliz pode fazê-lo a si infeliz; o que eu considero útil, pode achar que é prejudicial. As instruções específicas sobre como pensar, sentir e comportar-se oferecem, por isso, poucas respostas. Quero, então, sugerir uma forma de pensar sobre o que se passa no nosso cérebro, sobre como se desenvolveu e continua a desenvolver-se. Acredito que conseguiremos ser mais capazes de corrigir o nosso modo de vida se conseguirmos visualizar como a nossa mente é constituída. Esta prática de pensar sobre o cérebro ajudou-me e ajudou alguns dos meus clientes a assumirmos um maior controlo sobre as nossas vidas; é por isso possível que o mesmo suceda consigo. Platão compara a alma a um carro puxado por dois cavalos. O cocheiro é a Razão, um dos cavalos é o Espírito e o outro, o Apetite. As metáforas que têm sido utilizadas ao longo dos tempos para refletir sobre a mente têm seguido mais ou menos este modelo. A minha abordagem é apenas 14 INTRODUÇÃO mais uma dessas versões, influenciada pela conjugação da neurociência com outras abordagens terapêuticas. Três cérebros em um Nos anos recentes, os cientistas desenvolveram uma nova teoria sobre o cérebro. Começaram a perceber que ele não é composto por uma estrutura única, mas sim por três estruturas diferentes que, com o tempo, acabam por funcionar em conjunto, muito embora permaneçam distintas. A primeira dessas estruturas é o tronco cerebral, por vezes referido como cérebro reptiliano. Encontra-se operacional à nascença e é responsável pelos nossos reflexos e os nossos músculos involuntários, como o coração. Em determinadas ocasiões, pode salvar-nos a vida. Quando distraidamente nos metemos à frente de um autocarro, é o nosso tronco cerebral que nos faz saltar de novo para o passeio, antes de termos sequer tempo para percebermos o que aconteceu. É o tronco cerebral que nos faz piscar os olhos quando estalam os dedos à nossa frente. O tronco cerebral não vai ajudá-lo a fazer Sudoku, mas a um nível básico e essencial, permite-lhe funcionar e mantém-no em segurança perante vários tipos de perigos. As outras duas estruturas do cérebro são o cérebro mamífero, ou direito, e o cérebro neo-mamífero, ou esquerdo. Apesar de continuarem a desenvolver-se ao longo da nossa vida, a maior parte do desenvolvimento destas estruturas ocorre durante os cinco primeiros anos da infância. Uma célula cerebral não funciona sozinha. Ela precisa de se ligar a outras células cerebrais para poder funcionar. O nosso cérebro desenvolve-se ligando células individuais de forma 15 INTRODUÇÃO a construir vias neurais. Essa ligação resulta da nossa interação com os outros, pelo que a forma como o nosso cérebro se desenvolve tem mais a ver com as nossas primeiras relações do que com a genética; deve mais à educação do que à natureza. Isto significa que muitas das diferenças que existem entre nós podem ser explicadas por aquilo que nos aconteceu com regularidade quando éramos ainda muito pequenos. As nossas experiências moldam de facto a nossa massa encefálica. Citando um caso extremo lendário, se não tivermos qualquer relação com outra pessoa durante os primeiros cinco anos de vida e formos criados por um lobo, por exemplo, os nossos padrões comportamentais estarão mais próximos dos lobos do que dos humanos. Durante os dois primeiros anos de vida, o cérebro direito está muito ativo, ao passo que o esquerdo está em repouso e apresenta uma menor atividade. Contudo, nos anos seguintes, o desenvolvimento inverte-se; o desenvolvimento do cérebro direito desacelera e o esquerdo inicia um extraordinário período de atividade. As formas como criamos laços com os outros, como estabelecemos confiança, o grau de conforto que geralmente sentimos com nós mesmos, a rapidez com que conseguirmos recuperar após uma perturbação, assentam todas firmemente nas vias neurais que são estabelecidas no cérebro mamífero direito durante os primeiros anos de vida. O cérebro direito pode então ser considerado como o suporte primário da maioria das nossas emoções e dos nossos instintos. É a estrutura que, em grande parte, mostra empatia com os outros, se harmoniza e relaciona com eles. O cérebro direito não só se desenvolve primeiro, como continua a deter o controlo. Num relance ou através de um cheiro, o cérebro direito compreende e avalia 17 COMO MANTER A SANIDADE MENTAL qualquer situação. Como diz o duque de Gloucester em King Lear, de Shakespeare, ao olhar à sua volta: «Vejo sentindo.» Aquele a que chamamos cérebro esquerdo pode ser considerado como a estrutura primária da linguagem, lógica e racional do nosso cérebro. Utilizamos o nosso cérebro esquerdo para processar experiências sob a forma de linguagem, para articular os nossos pensamentos e ideias para nós próprios e para os outros e para levarmos planos a cabo. A ciência baseada na comprovação foi desenvolvida com recurso às competências do cérebro esquerdo, tal como sucedeu com as disciplinas de classificação e ordenação da taxinomia, da filosofia e da filologia. Tal como referi, nos primeiros dois anos de vida, o desenvolvimento do cérebro esquerdo é muito mais lento do que o do cérebro direito, razão pela qual os alicerces da nossa personalidade já se encontram estabelecidos antes de o cérebro esquerdo, com a sua capacidade linguística e lógica, ter capacidade para a influenciar. Pode ser o motivo responsável pela tendência dominante do cérebro direito. Poderá aperceber-se da influência de ambos esses cérebros, a que chamo esquerdo e direito, quando vive o dilema familiar de ter muito boas razões para fazer a coisa mais sensata, mas dá por si a fazer, ainda assim, o contrário. A sua parte aparentemente sensata (o seu cérebro esquerdo) tem a linguagem, mas parece ser muitas vezes a outra parte (o seu cérebro direito) que tem o poder. Quando somos bebés, o nosso cérebro desenvolve-se através da relação que mantemos com os nossos primeiros cuidadores. Todos os sentimentos e processos mentais que eles nos transmitem são refletidos pelo nosso cérebro em crescimento, que reage a eles e os armazena. Quando as coisas 18 COMO MANTER A SANIDADE MENTAL correm bem, os nossos pais e cuidadores também refletem e validam os nossos humores e estados mentais, reconhecendo e respondendo ao que estamos a sentir. Por isso, por volta dos dois anos, o nosso cérebro já possui padrões distintos e individuais. É então que o nosso cérebro esquerdo amadurece o suficiente para ser capaz de compreender a linguagem. Este duplo desenvolvimento permite-nos integrar, até um certo ponto, os dois cérebros. Tornamo-nos capazes de começar a utilizar o cérebro esquerdo para exprimir através da linguagem os sentimentos do cérebro direito. Porém, se os nossos cuidadores ignorarem os nossos estados de espírito ou se nos punirem, consciente ou inconscientemente, por eles, podemos vir a ter problemas mais tarde, porque teremos menos capacidade de processar esses mesmos sentimentos quando despontam e de lhes dar um sentido através da linguagem. Por isso, se as nossas relações com os nossos primeiros cuidadores não tiverem sido as ideais, ou se viermos mais tarde a sofrer um trauma tão severo que quebre a segurança estabelecida na nossa infância, poderemos sentir algumas dificuldades emocionais numa fase posterior da vida. Mas apesar de ser demasiado tarde para ter uma infância feliz ou evitar um trauma que já tenha ocorrido, é possível alterar esse rumo. Os psicoterapeutas utilizam o termo “introjeção” para descrever a incorporação inconsciente das características de uma pessoa ou cultura na nossa própria psique. Temos a tendência para introjetar a educação e os cuidados parentais que recebemos e prosseguirmos a partir do ponto onde os nossos primeiros cuidadores nos deixaram – é por isso que os padrões do modo de sentir, pensar, reagir e agir se aprofundam e permanecem. Isto pode não ser necessariamente 20 INTRODUÇÃO mau: os nossos pais podem ter feito um bom trabalho. No entanto, se nos sentirmos deprimidos ou insatisfeitos, podemos querer alterar os padrões, a fim de nos tornarmos mais sãos de espírito e mais felizes. Como fazemos isso? Não há nenhuma prescrição infalível. Se entrarmos numa rotina cada vez maior, e/ou num caos cada vez mais profundo, temos de travar a nossa queda – seja com medicação, seja através de um conjunto diferente de comportamentos: podemos querer um novo objetivo na vida, podemos beneficiar de novas ideias – ou de qualquer outra coisa (estou a ser propositadamente vaga; o que resulta para uma pessoa pode não resultar para outra). Constato, porém, em qualquer processo bem-sucedido de psicoterapia, que as mudanças se operam em quatro áreas: “auto-observação”, “relacionamento com os outros”, “stress” e “narrativa pessoal”.2 Estas são áreas que podemos trabalhar em nós próprios, fora do âmbito da psicoterapia. Elas ajudam a manter a flexibilidade de que necessitamos para a nossa sanidade mental e o nosso desenvolvimento, e é para elas que nos vamos agora virar. 1. Auto-observação Sócrates afirmou: «Uma vida que não é questionada não merece ser vivida.» Esta é uma posição extrema, mas eu acredito que o desenvolvimento contínuo de uma parte de nós, dedicada à auto-observação sem fazer juízos de valor, é crucial para a nossa sabedoria e sanidade mental. Quando praticamos a auto-observação, aprendemos a sair de nós próprios, de forma a experienciarmos, reconhecermos e avaliarmos os sentimentos, as sensações e os pensa21 COMO MANTER A SANIDADE MENTAL mentos à medida que ocorrem e determinam os nossos estados de espírito e o nosso comportamento. O desenvolvimento desta capacidade permite-nos ser tolerantes e não fazer juízos de valor. Dá-nos espaço para decidirmos como agir e é a parte de nós que ouve e conjuga as nossas emoções e a lógica. Para maximizar a nossa sanidade mental, temos de desenvolver a auto-observação, a fim de aumentar a autoconsciência. Esta é uma tarefa que nunca está concluída. 2. Relacionarmo-nos com os outros Todos necessitamos de relações seguras, assentes na confiança, fiáveis e gratificantes. Entre elas, podemos incluir uma relação amorosa. Contrariamente ao que algumas pessoas creem, o romance não é necessariamente um pré-requisito para a felicidade; mas é verdade que algumas das nossas relações têm de ser estimulantes, e uma relação estimulante pode acontecer com um terapeuta, um professor, um amante, um amigo ou os nossos filhos – alguém que não se limita a ouvir, mas que lê nas entrelinhas e talvez até nos coloque alguns desafios. A nossa formação é feita através das relações, e o nosso desenvolvimento e as alterações que sofremos resultam de relações subsequentes. 3. Stress O tipo certo de stress cria um estímulo positivo. Leva-nos a aprender coisas novas e a ser criativos, mas não pode ser tão avassalador que nos faça entrar em pânico. O stress positivo 22 INTRODUÇÃO provoca novas ligações neurais. E é disso que precisamos para o nosso desenvolvimento e crescimento pessoal. 4. Que história é esta? (Narrativa pessoal) Se ficarmos a conhecer as histórias que pautam a nossa vida, seremos capazes de as rever e alterar à medida das nossas necessidades. Dado que uma parte muito considerável do nosso ego se forma antes da verbalização, as convicções por que nos guiamos podem não ser explícitas para nós. Podemos ter convicções como «Eu sou o tipo de pessoa que...» ou «Eu não sou assim; eu não faço isso...». Se nos focarmos nessas histórias e olharmos para elas a partir de novos pontos de vista, poderemos encontrar novas formas, mais flexíveis, de nos definirmos a nós próprios, de definirmos os outros e tudo o que nos rodeia. Muito embora o conteúdo das nossas vidas e os métodos que utilizamos para processar esse conteúdo variem de pessoa para pessoa, essas áreas da nossa psique são os alicerces da nossa sanidade mental. Nas páginas que se seguem, vou analisar mais detalhadamente essas quatro áreas essenciais. 23