A Pessoa de Cristo

Propaganda
A PESSOA DE CRISTO
G. C. Berkouwer
Tradução de: A. Zimmermann e P. G. Hollanders
Todos os direitos reservados. Copyright © 1964 da ASTE para a língua portuguesa.
Edição da JUERP mediante convênio com a ASTE.
Título original holandês: DE PERSOON VAN CHRISTUS
Uitgave J. H. Kok N. V. Kampen, 1952
1edição: ASTE, 1964
2 edição: JUERP/ASTE, 1983
2
SUMÁRIO
PREFÁCIO DO TRADUTOR ..................................................................................................................3
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO ...............................................................................................................5
CAPÍTULO II – A CRISE DAS DUAS NATUREZAS...........................................................................9
CAPÍTULO III – DECISÕES ECUMÊNICAS .....................................................................................27
CAPÍTULO IV – AS CONFISSÕES REFORMADAS.........................................................................34
CAPÍTULO V - ESTACIONAR EM CALCEDÔNIA?........................................................................39
CAPÍTULO VI – PESSOA E OBRA DE CRISTO ...............................................................................45
CAPÍTULO VII – PROMESSA E CUMPRIMENTO..........................................................................50
CAPÍTULO VIII - A DIVINDADE DE CR1STO .................................................................................68
CAPÍTULO IX – A HUMANIDADE DE CRISTO...............................................................................85
CAPÍTULO X – A IMPECABILIDADE DE CRISTO.......................................................................105
CAPÍTULO XI - UNIDADE DA PESSOA ..........................................................................................119
CAPÍTULO XII – NATUREZA HUMANA E NÃO PESSOA HUMANA .......................................135
CAPÍTULO XIII – MISTÉRIO CRÍSTOLÓGICO............................................................................146
PEQUENO LÉXICO TEOLÓGICO....................................................................................................163
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
3
PREFÁCIO DO TRADUTOR
A 22 de outubro de 451, mais de quinhentos bispos reunidos em Calcedônia aprovaram
e subscreveram uma fórmula de fé que, doravante, nortearia o pensamento cristológico
da Igreja Universal: “Todos nós professamos o uno e idêntico Filho, Nosso Senhor
Jesus Cristo, completo quanto à divindade e completo quanto à humanidade... em duas
naturezas inconfusas e intransmutadas, inseparadas e indivisas, unidas ambas em uma
pessoa e hipóstase”. Estas palavras concisas definem o resultado de longos esforços,
muitas vezes apaixonados e contraditórios, por resolver os cismas e restaurar a unidade
da fé e da Igreja.
Muito cedo formaram-se duas escolas de interpretação bíblica, as quais apresentaram
aos nossos pais na fé duas imagens crislológicas: as escolas de Alexandria e de
Antioquia. A primeira, o didascaléion, fundada por Clemente e ilustrada por Orígenes,
protótipo de nossas Faculdades teológicas, formou pensadores e mestres destinados a
grande celebridade, destacando-se Atanásio, os três Capadócios, Basílio Magno,
Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno, e Cirilo. Os alexandrinos recorriam, para a
interpretação exegética, ao método da “alegorese”. Sua visão filosófica era platônica, e
sua paixão a especulação teológica. A escola de Antioquia, ao contrário, distinguia-se
pela sua sóbria exegese histórico-gramatical. Seu fundador, Luciano de Samosata,
imprimiu-lhe uma mentalidade acentuadamente aristotélica e ligeiro sabor racionalista.
Estas duas escolas incentivaram pesquisas e reflexões de todo gênero, especializando-se
e rivalizando no santo propósito de esclarecer e defender a ortodoxia ameaçada.
De fato, os quatro primeiros séculos do cristianismo travaram lutas incansáveis com o
fito de definir os dogmas trinitário e cristológico. Deve-se aos quatro primeiros
Concílios Ecumênicos (“os quatro evangelhos da ortodoxia”, na expressão de Gregório
Magno), o firmeza do resultado final: a paz na unânime confissão de Cristo, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem.
Tratava-se dos mistérios de nossa fé: não podiam surpreender a ninguém a
meticulosidade e perseverança dos conflitos teológicos. Muitas eram as dificuldades.
Mas, mercê das sólidas técnicas de exegese, elaboradas por alexandrinos e antioquenos,
triunfou finalmente a fidelidade à Revelação sagrada, sobre o racionalismo e o
gnosticismo filosóficos. Na Cristologia, por exemplo, ninguém podia, a não ser
mediante as disciplinas hermenêuticas, controlar o conteúdo das especulações gnósticas
e penetrar no mistério de Cristo.
Embora a mensagem apostólica e a literatura neotestamentária coincidissem
apresentando em Jesus Cristo o Messias, Filho do Homem e Filho de Deus, único
homem verdadeiro e único Filho de Deus verdadeiro, este mistério ofuscava a razão.
Como podiam deixar os cristãos de perguntar, cada vez mais angustiados: “Quem é este
Homem?”.
A resposta veio, infinitamente diversa. Os ARIANOS negavam a Cristo sua
consubstancialidade divina; os DOCETAS, GNÓSTICOS e APOLINÁRIOS, sua
integridade humana; os NESTORIANOS, sua unidade pessoal; O EUTIQUIANOS, sua
dualidade de naturezas; os MONOTELITAS, sua dualidade de vontades e operações.
Em suma, Cristo dividia estes homens aos quais pretendia, precisamente, reunir numa
só “ekklesía”. Até hoje, Cristo nos divide, sinal evidente de quão vivo continua entre
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
4
nós: os nossos racionalistas e especuladores, com renovada tenacidade, reeditam os
velhos erros cristológicos sem maior originalidade.
O livro de Berkouwer, conhecido professor em Amsterdam, na Holanda, passo a passo,
segue o drama de Cristo entregue às reflexões dilacerantes dos homens. Relata como,
finalmente, em Nicéia (325), em Constantinopla (381), em Éfeso (431) e Calcedônia
(451), a Igreja definiu a consubstancialidade do Verbo com o Eterno Pai, a integridade e
realidade de sua natureza humana, a verdade de sua Encarnação, a união hipostática (em
uma só pessoa) de suas ambas naturezas.
Entretanto, vencida a dificuldade de compreender o mistério de Cristo na sua totalidade,
sem sacrificar nem sua divindade nem sua humanidade, fica a tarefa eterna de sabermos
utilizar as riquezas insondáveis oferecídas como complemento do conhecimento
cristológico enfim alcançado. Nunca terminaremos de progredir na ciência daquele que
é, ao mesmo tempo, nosso irmão e nosso Deus.
O grande mérito desta obra que a ASTE oferece aos estudiosos brasileiros será, sem
dúvida, de propor aos leitores um método renovado de estudar e meditar no Evangelho.
A vida de Jesus, certamente, tornar-se-á para eles a epifania do Deus invisível e de seu
incompreensível amor: “Quem me vê a mim, vê o Pai” (Jo 14.9).
Alfonso Zimmermann
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
5
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
Sumário:
Modernismo, fada sedutora. Conflito religioso — Teologia e fé da
Comunidade — Cristologia e Modernismo — Pierson e Kuyper — Decisão
existencial — A pergunta de Cesaréia de Filipos — O segredo da Revelação
— Conhecimento, dom de Deus — A atmosfera de nosso século — Novo
conceito mundial — Credo e missão apostólica — Cristologia e fundamento
da missão — Ortodoxia e tradição.
Em 1871, o Dr. A. Kuyper deu uma aula sobre o Modernismo que se tornou famosa,
“Fata Morgana em campo cristão.” Traçou um paralelismo impressionante entre o
esplêndido fenômeno luminoso dos céus de Régio e a Fata Morgana, com o movimento
modernista. Além de revestir-se de beleza sedutora, o Modernismo aparece como uma
lei natural que, embora prevista, é tão irreal como uma miragem. O discurso de Kuyper
constitui um requisitório implacável contra essa heresia do século XIX, antítese
irredutível à fé cristã. Denunciou o fato de que a heterodoxia aparece, no plano cristão,
de acordo com determinada lei, tal como surgem as miragens na atmosfera: é refração
necessária do luminoso raio evangélico no céu espiritual de todos os séculos. Cada
época produz sua própria forma de heresia na Igreja. Desde que ao século XIX é dado
um lugar privilegiado na História, deveria surgir nele — de conformidade com as leis
históricas — uma heresia majestosa. Surgiu assim o Modernismo “de beleza sedutora”.
Kuyper lembrava-se da influência que esta doutrina exercia sobre o seu espírito,
especialmente quando nos lábios de Scholten, pois em 1871 o primeiro confessava ter
compartilhado, por algum tempo, dos sonhos do Modernismo. Já octogenário, ainda
evocava diante dos alunos da “Universidade Livre” sua “petulância espiritual”, causa de
seus deslizes passados. “Em Leyden eu me achava entre os que aplaudiram calorosa e
ruidosamente quando Rauwenhoff, nosso professor, manifestou sua ruptura total com a
fé na ressurreição de Cristo.” Acrescentava, porém: “Hoje a minha alma treme por
causa da desonra que outrora infligi a meu Salvador.” Finalizando sua preleção, Kuyper
fez uma referência especial à Encarnação do Verbo, com relação à qual aparece mais
espetacularmente o imenso abismo entre a Ortodoxia Cristã e o Modernismo. Este
aparece como a ressurreição do Arianismo. “Basta modificar nomes e datas, e a história
do Arianismo será a do Modernismo”, em suas linhas gerais.
Para Kuyper, muito mais do que mera discordância teórica e científica no campo da
Cristologia, o Modernismo é uma decisiva ameaça existencial ao Cristianismo. Trata-se
de uma heresia que solapa toda a vida da Igreja, exatamente como nos tempos de
Atanásio. Em sua luta contra Ário, o grande campeão alexandrino estava plenamente
consciente do seu alvo: salvar a Igreja. De fato, o Modernismo varre completamente as
perspectivas cristãs: “Não useis mais a palavra ‘orar’. A assim chamada oração não
passa de elevação fanática da alma, de desabafo do coração, de solilóquio espiritual”.
***
Esta evocação de Kuyper permite-nos abordar as questões que serão objeto deste livro.
Renova nossa convicção de que a teologia cristã nunca está em posição de
independência quanto à fé da comunidade, isto é, quanto à religião viva da fé expressa
através da oração e da adoração. A teologia dogmática entra em muitas distinções,
inclusive em problemas relativos ao Cristo de Deus; entretanto, também nessas
sutilezas, ela deverá guardar a fiel dependência quanto à fé no depósito cristão, nunca
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
6
degenerando em meras análises científicas, como se Cristo pudesse ser “objeto” de
qualquer análise sem compromisso. Esta atitude inspirou e ainda determina as grandes
lutas cristológicas em todos os tempos. Na Cristologia sempre se faz ouvir um
testemunho, mesmo quando a exposição dogmática não coincide com a pregação.
Infelizmente, nem sempre se compreendeu esta exigência de fé, a análise científica
entrando em jogo aqui e acolá, dando-nos o fruto de uma fé desvirtuada e racional.
Kuyper, com profunda tristeza, evocava a notável figura de Allard Pierson, o chamado
enfant terrible do Modernismo. Esse aluno de Opzoomer, coerente com o empirismo do
mestre, tornou-se o cético do Modernismo. Começou duvidando da famosa síntese FéCiência e terminou demitindo-se de seu ministério na Igreja Reformada. Em sua carta
de demissão (1865), declarava Pierson que a única razão de sua retirada estava na
Ortodoxia da Igreja Reformada, pois, para ele, a idéia de uma Revelação era pura
quimera: não podia furtar-se a essa decisão existencial. Não continuaria, portanto, a
trabalhar sem reservas para uma Igreja onde, com seu espírito crítico, sentia-se
deslocado. Perseverar seria simplesmente desonestidade. A deserção de Pierson resultou
de um caso de consciência: exigir que a Igreja alargasse seus limites, equivalia a pedir
que assinasse sua própria condenação à morte; permanecer na Igreja provaria ser falta
de princípios. Não havia, pois, outra solução a não ser retirar-se. O ilustre Pierson estava
convencido da impossibilidade de unir o princípio modernista com a ortodoxia
eclesiástica. Para ele, era impossível construir uma teologia partindo das hipóteses
modernas: a consciência moderna edifica, sobre o principio de causalidade puramente
natural, excluindo a possibilidade do milagre, em particular, e de qualquer causa
sobrenatural. Ora, sendo o sobrenatural uma necessidade vital para a Igreja, não restava
senão reconhecer aberta e honestamente a irredutível antítese. Pierson recusou-se a
“continuar brincando com termos da antiga ortodoxia recheados com um conteúdo
novo”; tirou as conclusões de seu credo científico e desafiou os modernos a provarem
seus direitos de cristãos.
Embora totalmente antagônicos em seus credos, Pierson e Kuyper concordavam neste
ponto de Modernismo e fé cristã serem irreconciliáveis. Kuyper foi combatido como um
intransigente e Pierson como um incrédulo com relação a qualquer síntese.
***
Esta página de História nos leva a uma das questões capitais do sistema dogmático e
que ultrapassa de longe as fronteiras do século XIX. Continuam reinando no
pensamento os mesmos problemas, com variantes de toda classe. Ainda que não se
equipare plenamente o Modernismo do século XIX com o atual, quem penetra nas
preocupações cristológicas de hoje percebe que a luta perdura sob novos aspectos. A
problemática concentra-se ainda em torno da questão capital: “Que pensais de Cristo?”
Nomes e datas se modificam, mas a luta é a mesma. Atualidade verdadeiramente
misteriosa do eterno problema! Quem não está vendo o caráter trágico e profundamente
existencial de cada decisão tomada a este respeito? Como sempre, ainda hoje ressoam
palavras esperançosas, promessas da tão almejada síntese, da reconciliação
tranqüilizadora entre Fé e Razão; como sempre, de igual modo, ouvimos os testemunhos
firmes da antítese irreconciliável.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
7
Enquanto Cristo viveu entre nós, corriam já os conceitos mais desencontrados a seu
respeito. “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” Um via João Batista nele,
outro, Elias, Jeremias, ou um dos profetas. “Mas vós, quem dizeis que eu SOU?” Com
esta pergunta Cristo não espera ouvir, ao lado dos múltiplos conceitos que correm a seu
respeito, mais uma opinião à altura das demais; pretende provocar uma decisão de outra
índole, existencial, diretamente correlata com a verdade vista em sua Pessoa; quer uma
resposta que supere toda consideração teórica, resposta real e única, conforme a
realidade dele. — “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” — Esta resposta de Pedro
recebeu a aprovação expressiva de Cristo; Pedro é declarado bem-aventurado; é
revelada a Pedro a origem misteriosa de seu reconhecimento. “Bem-aventurado és tu,
Simão, filho de Jonas, pois não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que
está nos céus” (Mt 16.13-20). Atribui-se o conhecimento de Pedro à revelação divina.
Impossível explicá-lo pela altura ou profundeza da percepção racional, ou por uma
intuição infalível, mas pelo milagre e carisma divino. Confirmação evidente da frase de
Jesus: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai” (Mt 11.27).
Tudo na Cristologia depende, de modo mais intrínseco, do mistério desta revelação. A
Cristologia parte da revelação divina que nos ilumina os olhos. A luta secular em torno
de Cristo origina-se precisamente na poderosa iluminação do testemunho original do
evangelista João: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus” (1Jo
5.1).
Eis por que o testemunho da Igreja acerca de Cristo nunca poderá ter o caráter de
conhecimento que exalte a Igreja acima do mundo. À Igreja cabe recordar que este
conhecimento é um milagre, um dom gratuito, não um fruto de carne e sangue. Essa
humildade, aliás, não excluirá o testemunho da Igreja; pelo contrário, provocá-lo-á
carismaticamente. “Aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida” (1Jo 5.12).
Para quem ignora esta revelação, a afirmação renovada da Igreja não deixa de ressoar
como uma ameaça orgulhosa. Na realidade ela surge, como no apóstolo João, da plena
certeza de que a vida só se acha em Cristo.
A luta em torno da pessoa e da obra de Cristo revestiu-se de formas muito variadas no
decorrer dos séculos. Atingiu culminâncias cada vez que foi atacada a confissão central
da Igreja. Temos em mente, de modo particular, os séculos IV, V, XIX e XX. No século
XX a luta tem atingido o seu ponto máximo. Hoje, mais do que nunca, discute-se a
questão: Pode o pensamento moderno aliar-se à fé cristã? Terá ainda ressonância o
testemunho cristão na atmosfera espiritual contemporânea? Haverá ainda lugar para ele?
E se houver lugar, qual será ele num mundo cientificamente adulto, onde o absolutismo
religioso-cristão deixou de reinar? Ter-se-á aprofundado ainda mais o abismo que tanto
impressionou a Kuyper e a Pierson? Haverá razões de sobra para considerarmos
seriamente estas perguntas, precisamente quando impera o relativismo mais absoluto,
quando só se cogita em reconstruir o mundo sobre estruturas diferentes, quando as boasnovas de Cristo, Senhor e Filho de Deus, carecem de novidade? Porventura as novas
estruturas trarão uma visão diferente daquela que foi o conteúdo da fé cristã durante
tantos séculos? Chegará a triunfar o atual intento da Entmythologisierung, a
desmitologização do Cristianismo, sonhada por R. Bultmann e seus seguidores? E, caso
a mensagem cristã seja dissecada de seu caráter “mitológico”, o que sobrará daquilo que
a jovem Igreja trouxe ao mundo nos séculos passados, quando se declarou testemunha
de Deus, mensageira da maravilhosa salvação preparada por Deus e “que olho algum
viu, nem ouvido ouviu, nem mente percebeu” (1Co 2.9)? Será possível hoje, sem deixar
de ser honesto, proclamar-se cristão e evangelizar o mundo? Em nosso mundo, tão
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
8
aberto a toda espécie de religiões, caberá ainda lugar a uma missão apostólica baseada
num mistério insondável? Mencionamos com razão a missão apostólica, por estarem a
reflexão e a coragem da Igreja intimamente correlacionadas.
Reflexão e coragem sempre caminharam entrelaçadas. A veracidade das pretensões de
Cristo, a verdade da pregação apostólica explicam a pretensão carinhosa e humilde da
Igreja labutando no mundo. Solapar a verdade é minar irremediavelmente a
evangelização. Dogma e missão tocam-se na raiz, juntam-se na questão: “Quem dizem
os homens ser o Filho do Homem?” Uma confissão diminuída de Cristo repercute
profundamente na consciência missionária. O impulso missionário se esmigalha contra
tremendas resistências em não poucas frentes quando, na retaguarda domiciliar, não
mais ressoa o verdadeiro cântico de louvor. Já em 1906, Troeltsch, mencionando o
problema da missão num mundo transformado, analisava as conseqüências da “nova”
ciência religiosa para a consciência missionária. Sendo deixadas de lado as antigas
idéias sobre Cristianismo e paganismo, “não há razão para que devam ser convertidas as
obscurecidas e pecaminosas massas de condenados e perdidos que vivem longe do
Cristianismo; não há lugar para salvação nem tampouco para vida eterna. A ortodoxia se
armou com a teoria da Redenção, na expressão de Troeltsch, para defender sua
Alleinwahrheit, isto é, sua posse exclusiva e monopólio da verdade. Desaparecida esta
teoria, desaparece também “o mais simples e mais necessário estímulo missionário — a
piedade e o dever de salvar”. Hoje não mais se fala em conversão, mas em progresso.
Não obstante tal coisa, a vocação missionária pode sobreviver: pois quem professa um
conceito ético e religioso, conforme Troeltsch, sentirá coragem para propagar seu ideal
e, inclusive, precisará da missão em benefício do próprio desenvolvimento. Aqui
percebemos bem a crise da relação entre Cristologia e apostolado. Eliminado o
esplendor do Absoluto, rejeitada a pretensão do Nome único, nada sobrevive da antiga
convicção do Caminho, do único Caminho que é Cristo, e a respeito do qual o mundo
precisa ser ensinado para que chegue a se salvar.
Eis por que a vocação da Igreja é concentrar-se na reflexão sobre sua confissão de fé.
Caso queira testemunhar a verdade contra a apostasia, deve, mais do que nunca, possuir
a certeza do Caminho e a convicção da mensagem. E, quando professores hindus
perguntarem: — “Por que vós, cristãos, afirmais que só Cristo é o Salvador?” ela deve
possuir uma resposta perfeitamente clara. Reflita, portanto, sem cessar, acerca do
mistério revelado em Cesaréia de Filipos, a fim de saber o que fazer quando lutar pela
ortodoxia. De nada serve estender a mão protetora sobre um tradicional depósito
comum: é imprescindível que se fale com convicção, o que não é possível enquanto não
se lhe tornar visível a verdade da mensagem recebida. Até em sua própria vida deve ser
refletida a convicção de que a revelação de Cristo não vem do sangue ou da carne, mas
é um dom, exatamente como o dom da visão. Ortodoxia não significa outra coisa senão
viver nessa contínua contemplação; não apenas se movimentar rotineiramente pelos
caminhos conhecidos da tradição e do passado, mas experimentar o mistério de Cesaréia
de Filipos: “Bem-aventurado és tu, filho de Jonas!”.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
9
CAPÍTULO II – A CRISE DAS DUAS NATUREZAS
Sumário
A crise, um fato — Fato grave — Racionalismo — Progresso difícil — Schleiermacher
e Ritschl — Sua influência na história do Dogma — Harnack examina Calcedônia —
Substituiremos o dogma eclesiástico? — Uma Cristologia hegeliana — Síntese
Divindade-Humanidade — Opina Strauss — Onde a generalização degenera em
destruição — A doutrina da Kenosis — Teoria da renúncia — Atributos imanentes e
atributos relativos — Unidade de consciência em Cristo — No tribunal de Korff —
Kenosis e mutabilidade de Deus — Sintoma da crise — Dorner critica — Pesquisa
histórico-critica — Evangelho e Kerygma — Entra Khler — Noticiário histórico ou
proclamação? — Kerygma e autoridade — Ridderbos examina o Kerygma — Bultmann
abre um caminho — Kerygma e “desmitologização” — Uma concepção mitológica —
Empecilho para o homem atual — Suma mitológica e Kerygima — A cruz histórica —
Cruz e Ressurreição — Acontecimento histórico e cópia mitológica — Ressurreição e
fé na Ressurreição — Paulo e o mito gnóstico — O homem face a face com a decisão
— Agrava-se a crise — Influência do pensamento científico — João e o mito gnóstico
— O Modernismo visita a Holanda — Scholten — Um Modernismo direitista —
Roessingh — Uma Cristologia assentada em bases criticas — A casa ortodoxa —
Realidade de Cristo — Fé e História — Valor da História — Cristo, centro da História
— Deus no mundo — Realidade da História — É possível a síntese? — Contra a
heteronomia — Crepúsculo ou alvorada? — Heering não aprecia Roessingh — A
Encarnação definida pela Igreja e explicada por Irineu — Divindade de Jesus — Cristo,
mistério e dogma — Desaparece a dúvida de Roessing — Gerretsen e a tradição critica
— Aalders e Korff — Em defesa de Calcedônia — Teologia dialética de Karl Barth —
Sevenster opina acerca do NT — H. de Vos — Outra vez Sevenster às voltas com
Heering — Heering se precavê contra o poder da tradição — Cristologia, ciência atual.
Quem se interessa pelas múltiplas questões surgidas no decorrer da História em torno de
Jesus Cristo não consegue furtar-se à evidência de que se trata de uma crise de alcance
muito longo na doutrina das duas naturezas de Cristo. A antiga confissão eclesiástica
proclamando Jesus Cristo vere Deus et vere homo (verdadeiro Deus e verdadeiro
homem), tem sido submetida a uma crítica cada vez mais exaustiva. Desde os primeiros
séculos, a Igreja professou o mistério da salvação em Cristo, defendendo-o contra
numerosas heresias, que negavam ora sua natureza divina, ora sua natureza humana.
Colocou-se não apenas na atmosfera teórica, propícia à análise neutra, mas na
necessjdade de sua fé, que a fazia prorromper em exortações maternais, ecos da
admoestação joanina: “Quem não confessar que Jesus Cristo veio na carne é guiado
pelo espírito do Anticristo” (1Jo 4.3).
É exatamente nestá luz que a luta em torno de Jesus Cristo adquire caráter bem sério,
merecendo especial atenção a crise do credo da Igreja. No entanto, percebemos que
muitos oposicionistas à doutrina das duas naturezas não se sentem atingidos pela
admoestação de João, pretextando que a doutrina da própria Igreja se desviou muito do
testemunho neo-testamentário sob influência de idéias filosóficas ou outras quaisquer.
Assume, pois, importância gravissiina o problema da origem desta crise cristológica.
Desde o século XVIII surgiram objeções contra o credo de diversas partes; e,
paulatinamente, foi sendo formada certa tradição criticista considerando insustentáveis
as afirmações dogmáticas.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
10
Foi, porém, no século XIX que os ataques de peso contra a doutrina das duas naturezas
foram sendo estruturados. Começou a reinar certa unanimidade prática a respeito do
inconcebível e da irrealidade da “figura do Cristo” da fé tal como a Igreja a apresentava.
Decisões conciliares antigas foram invocadas e reapareceu um modo de pensar
cristológico de outras épocas. Há muito tempo esse pensamento vinha sendo incubado
no Socinianismo, por exemplo, cuja influência foi grande no desenvolvimento da
tradição crítica, O Socinianismo apela, antes de tudo, para uma acerba oposição contra o
dogma da paixão e morte de Cristo, mas também para uma profunda hostilidade à
doutrina das duas naturezas. Quem se dá ao trabalho de estudar os comentários dos
textos bíblicos relativos à Divindade de Cristo no Catechismus Racoviensis sociniano vê
claramente, nessa crítica, um prelúdio aos argumentos dos modernistas do século XIX, e
respira nela o mesmo sabor racionalista de total alheamento aos testemunhos
escriturísticos. A Trindade, a Redenção e a Divindade do Cristo foram minuciosamente
submetidas ao prisma critico. A união hipostática das duas naturezas em Cristo foi
simplesmente qualificada como impossível e inconcebivel. O caudal da crítica
racionalista jorra aqui com bastante evidência, tanto corno de sua fonte. Embora
discretos em tirar todas as conseqüências (Os socinianos admitiam o fato da geração
sobrenatural e do nascimento virginal de Jesus), os inovadores atingiram todos os
campos da doutrina cristológica, terminando sua critica por reduzir o Salvador a mera
figura histórica — a figura humana do homem Jesus de Nazaré.
Sem dúvida alguma, o desenvolvimento da Cristologia seguiu caminhos bem
complicados. A critica racionalista atuava sugestivamente, porém empobrecia e esfriava
o coração. Não era de se surpreender, pois, que tentativas de toda orientação fossem
empreendidas para conservar — e da melhor forma possível — Cristo como o centro
genuíno da fé cristã. Seria arbitrário e injusto acusar de racionalista a toda a tradição
cristã. Lembremos aqui apenas o exemplo de Schleiermacher, o qual se opôs com a
maior veemência ao racionalismo vulgar de seu tempo. Rejeitando a supremacia da
razão humana, Schleiermacher advogava o valor excepcional do sentimento na esfera da
religião. É muito interessante observar as conseqüências desta reivindicação para a
doutrina das duas naturezas em Schleiermacher: toma ele por base a opinião da
consciência cristã, eliminando logo tudo quanto, no transcurso de séculos de polêmica,
fora acrescentado à doutrina cristológica e que não condizia com a essência desta.
Entrando no detalhe das afirmações confessionais da Igreja, Schleiermacher descobriu
que “não há quase nada contra o qual não se deveria protestar”, a começar pela palavra
natureza, pobre demais para expressar tanto o que é divino em Cristo quanto o que é
humano nele. “Natureza implica em ser finito e, como tal, não pode ser relacionada com
Deus .“ Referindo-se à natureza e à pessoa, pergunta ele: “Como pode haver unidade
vital no dualismo de naturezas, sem que a natureza divina ceda à humana (isso porque
uma descreve uma órbita maior e a outra uma órbita menor) ou, sem que ambas se
fundam uma na outra, pois seus respectivos sistemas de leis e relações, na realidade, se
confundem num sistema único, porquanto se trata de uma só Pessoa, de um único EU?”
Do fato de chegar-se necessariamente, tanto a uma fusão, como a uma separação das
duas naturezas, Schleiermacher deduz que a própria formulação da Igreja está errada,
patenteando-se ainda mais a esterilidade da doutrina tradicional quando se aborda o
problema das duas vontades em Cristo. Inevitavelmente, em sua própria reflexão
leológica, a Igreja acabaria por se emaranhar em complicação e artificialidade. Tais
teorias devem, pois, ser consideradas como pouco valiosas para o uso da Igreja. É
mister encontrar uma outra fórmula para traduzir a impressão que recebenios da sublime
dignidade do Salvador; Schleiermacher visa aqui a esse inexplicável ineinander, ou
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
11
interpresença do divino e do humano em Cristo. Não critica, porém, a terminologia da
Igreja, mas, sim, a má apresentação de todo o problema. Sugere que se apresente o
Salvador como igual a todos os homens, em virtude da identidade da natureza humana,
e como diferente de todos pela poderosa consciência que ele tem de ser Deus,
consciência que em Jesus é uma genuína essência de Deus. Desta maneira Cristo
poderia ser novamente o irmão bem próximo de nós, mais próximo do que na doutrina
tradicional, sem deixar de ser o objeto de nossa fé e culto.
Além dessa tentativa de Schleiermacher, mencionemos ainda a Cristologia de Ritschl.
Ritschl acentua, energicamente, a revelação histórica em Cristo, mas hostiliza de modo
resoluto qualquer ingerência da metafísica na religião e teologia. A metafísica edifica
com juízos de essências e não com juízos de valor; portanto, inevitavelmente ela atacará
a religião em seu núcleo. Ritschl conclui, com esta premissa, que a doutrina das duas
naturezas é insustentável, em vista de introduzir um sistema metafísico na teologia. Essa
crítica foi popular entre os ritschuianos e inspirou muitos historiadores do dogma,
especialmente Harnack e Loofs, que se dedicaram à pesquisa da gênese da Cristologia,
persuadidos de que poderiam indicar o vititun originis (vício original). Segundo estes
últimos, influências filosóficas tinham condicionado o dogma cristológico,
distanciando-o cada vez mais da profundidade religiosa característica do testemunho
neotes tamentário. Estas asserções dogmático- históricas fortalccei’ain e estimularam
consideravelmente a tradição crítica. Mediante esses novos pontos de vista constatar-seia que o dogma cristológico estava alicerçado não na verdade absoluta, mas num
sistema cósmico. Era necessário portanto — e cada vez mais urgentemente — extrair da
Cristologia essas categorias ontológicas.
De modo consciente e intencional, os modernistas se afastaram da antiga confissão da
Igreja. Para Harnack, a doutrina do Logos é uma invasão metafísico-grega no
Cristianismo; essa influência deforma e desfigura o verdadeiro homem que foi Ci’isto e
inspira as afirmações insípidas e negativas de Calcedônia. Do único sujeito, Jesus
Cristo, foram feitos dois sujeitos, doutrina fatal à união dos cristãos, como a luta contra
o Monofisismo demonstrou. O dogma perdeu seu valor prático para a piedade. Objeções
do mesmo teor pululam nos autores: todos se unem para defender a unidade da figura de
Cristo, ameaçada pela doutrina da Igreja. Loofs chega a dizer que, para quem pensa com
sinceridade, não é possível imaginar “uma Pessoa divina sujeitando-se a uma vida
humana, por si mesma temporal e limitada”. De todas as partes chovem os argumentos
racionais, que podemos resumir nesta frase de Nietzsche: “Um verdadeiro homem não
pode ser, metafisicamenle falando, um verdadeiro Deus”. O argumento permanecerá
vivo através de todo o século XIX: a confissão da Igreja é absurda; o vere Deus et vere
homo é absurdo.
Não falta interesse em constatar como, no século XIX, houve uma tentativa de substituir
essa doutrina absurda. O século indicado possui, aliás, várias configurações de cunho
muodernista. A figura de maior destaque cabe à chamada “Cristologia especulativa”.
Foi ela profundamente influenciada por Hegel; “a filosofia hegeliana foi tida como
apoio principal da renovação dogmática cristã”. Um exemplo evidente desse tipo (le
Cristologia nos é dado por Biedermann, o qual confessa dever a Hegel grande parte de
sua ideologia. Esta confissão vale particularmente para a sua Cristologia. A intenção do
Hegelianismo era demonstrar a síntese do divino e do humano, daí sua atração profunda
pela doutrina da Encarnação do Verbo. O Verbo fazer-se carne, que maravilha digna da
atenção dos hegelianos! O Ser Divino não ficou fechado em si mesmo, mas sofreu um
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
12
processo, uma evolução, uma revelação. A revelação realiza-se no finito, na História,
com toda a sua riqueza diversificada e também com todas as suas limitações. O humano
não é unia contraposição ao Divino, mas uma modalidade de revelação do Divino.
Assim, na teologia influenciada por Hegel muito se falou — e com bastante
desenvoltura — de uma Encarnação de Deus, vinculando esta Encarnação divina com o
dogma da Igreja. Entretanto, descobrimos nesla pseudoteologia uma critica acerba ao
dogma cristão que limita a Encarnação à Pessoa do Cristo, não dando lugar à tão
sonhada sintese absoluta do humano e do divino.
Os hegelianos pretendem estender a Encarnação à humanidade inteira: a doutrina cristã,
assim dizem eles, deve ser compreendida em sua universalidade e em sua necessidade.
A Encarnação de Cristo não é de modo algum coisa nova, mas simplesmente a
ilustração de uma idéia universal. Cristo não é o Deus-homem, mas a manifestação
típica da síntese do Divino e do Humano. A humanidade em bloco é o Filho de Deus, a
antítese destinada à síntese final. Não existe individuo, nem sequer Cristo, no qual esta
síntese já se tenha realizado de maneira perfeita. Strauss, discípulo de Hegel, é formal:
“O modo como a Idéia se realiza não é despejar sua plenitude total num só exemplar.”
Deve-se, portanto, generalizar a todos os homens o que a doutrina da Igreja atribui a um
só. Além do mais, deve-se distinguir entre o princípio cristão e a Pessoa de Cristo: o
princípio, a Idéia do Cris tianismo, não é identificável com a Pessoa do Cristo; a Pessoa
de Cristo, sua vida religiosa, é a primeira realização autônoma da Idéia numa
personalidade histórica. Dentro desses limites, cabe aceitar o valor relativo da doutrina
da Igreja. A Igreja compreendeu a filiação do Cristo como uma relação metafísica entre
o EU preexistente de Cristo e DEUS, inferindo dai a união do SER com uma verdadeira
natureza humana: “assim deveria ser a expressão da idéia cristã fundamentalmente
verdadeira.” Até certo ponto pode ser também aceita como “verdadeira” a existência
pré-mundana do Cristo, na consagrada expressão do Logos. Esta expressão, em vista de
ser um modo de apresentar, ou seja, de transformar a verdade em mito inteligível,
encaixa-se bem ao Espírito Absoluto para se revelar num espírito limitado.
Acontece, pois, que, de modo especulativo, a teologia hegeliana destrói o dogma
cristão, e, bem consideradas as coisas, estamos já (antes mesmo de Bultmann escrever
sua Entmythologisierung) com um programa decidido de desmitologização. Isso porque,
quando entendermos a Idéia em sentido absoluto, deveremos purificar de seu caráter
mitológico as idéias expressadas na doutrina cristã.
Depois da “Cristologia Especulativa” convém denunciar outra forma do pensamento
modernista que teve enorme influência no século XIX e expressa, com igual clareza, a
crise da doutrina das duas naturezas: a Kenosis-Cristologie (ou seja, a “Cristologia do
Esvaziamento”). Compenetrada igualmente das dificuldades da doutrina tradicional, não
renuncia a se unir aos estágios do desenvolvimento passado da Cristologia e, por essa
razão precisa, nessa longa história descobre indícios múltiplos que a induzem a urna
doutrina toda especial da kenosis ou do “esvaziamento” de Cristo. Não é sua pretensão a
de pura e simplesmente eliminar a doutrina das duas naturezas, mas sim (te eliminar o
escândalo para as mentes modernas mediante uma purificação e transfcrmação do
dogma. Empresta o seu nome ao termo de Fp 2.7, kenosis (“Antes a si mesmo se
esvaziou, assumindo a forma de servo”), apontando, deste modo, a sua pretensão de
possuir um genuíno caráter bíblico. A idéia de Cristo esvaziar-se de sua Divindade
serviu de ponto de partida a um novo movimento cristológico: a famosa fórmula “duas
naturezas numa só Pessoa” e as dificuldades nela inerentes constituem o ponto
nevrálgico dessa Cristologia que pretende — coisa impossivel à Igreja — chegar à
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
13
unidade da figura de Cristo. A teologia da kenosis ensina, pois, que o Logos asarkos (o
Verbo não-encarnado) teve que despir-se total ou parcialmente de sua Divindade, para
se encarnar: mediante esse processo de esvaziamento foi que o Verbo se tornou homem.
Não se fala mais em assunção da natureza humana por parte do Filho de Deus. Contudo,
em lugar de assunção, preconiza-se uma transformação, no sentido definido por
Thomnasius: “Kenosis é a troca de urna forma de existência por outra.” Isso quer dizer
que, nesta maneira de considerar as duas naturezas, sempre acabamos forçosamente
numa dualidade, na duplicidade da figura de Cristo, na duplicidade de sua vida, suas
obras e sua consciência. Na opinião de Thomasius, só escaparemos desta dualidade se
considerarmos a kenosis como um esvaziamento genuíno da natureza divina, um ato
soberano de renúncia e autolimitação divinas. Os partidários desta doutrjna, entretanto,
não ensinam que a própria natureza divina fora eliminada de Jesus Cristo, pois que isso
seria “um erro contra as Escrituras”.
Embora sem desistir da Divindade, o Logos encarnado desiste da magnificência e de
outros atributos divinos. Assim, Thomasius pensa evitar o perigo de desvirtuar a
afirmação patrística de que em Deus não há mudança. Disfingue, pois, entre atributos
imanentes e atributos relativos: os relativos dizem respeito ao rnurtdo,e os imanentes,ao
próprio Ser Divino. Os atributos imanentes permanecem no Verbo encarnado, mas os
relativos são esvaziados. Evidentemente esta é uma tentativa de superar as dificuldades
do vere Deus et vere homo clássico, embora conservando urna Cristologia na qual seja
tanto possível como concebível uma união verdadeira. A intenção não prossegue sem
hesitações rnanif estas: se por Encarnação entendêssemos o processo “primeiramente
Deus e agora Homem”, a dualidade ver-se-ia eliminada. Mas quase todos recuam diante
desta expressão e, conseqüentemente, reaparece a dualidade sob outra forma. Se, de
fato, o Verbo encarnado desistiu dos atributos relativos, não afastou os atributos
imanentes, permanecendo, portanto, o problema dualista: os atributos imanentes de
Deus e o homem genuíno na Pessoa de Cristo. É compreensível que alguns
“kenosistas”, insatisfeitos, ensinassem o afastamento de todos os atributos divinos em
Cristo, inclusive os imanentes; o Logos torna-se, assim, homem no pleno alcance da
palavra e o problema dualista recebe, enfim, uma solução. Gess pode escrever que “a
Divindade transformou-se em Humanidade” e Godet que, “em virtude da própria
liberdade de Deus, ele não está indissoluvelmente ligado ao seu modo de ser divino”.
Tal Cristologia, coerente com o seu ponto de partida, concluiria necessariamente à
consideração racional de um Jesus Cristo, puro homem, sem lugar para um Jesus Cristo
divino. Mesmo sendo guardado o mistério original do Verbo Divino nos antecedentes
deste Homem, o fato é que agora ele se tornou homem, pura e exclusivamente homem.
Já não cabe mais qualquer duplicidade; o problema foi resolvido eliminando-se um dos
constituintes da Pessoa de Cristo. A teologia da kenosis nasceu do desejo de urna visão
racional sobre a unidade da autoconsciência de Cristo; sendo admitida, porém, a
doutrina da desistência, quem ainda acreditará que, em Cristo, é o próprio Deus quem
nos visita? Como falar ainda em união genuína, em encarnação autêntica? Este é o
ponto capital utilizado por Korf, em sua crítica à teologia da kenosis, na qual “não há
lugar para uma vinda de Deus ao mundo, quer dizer, para o mistério da Cristologia”.
Baur, com muita razão, julga que “esta kenosis, total desistência de si mesmo, é, de fato,
a autodissolução do dogma”. Uma tentativa da eliminação da dupljcidade de Cristo
acarreta o ensino da mutabilidade de Deus.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
14
Essa doutrina contradiz termínantemente a doutrina da Igreja. Elimina a verdadeira
relação entre as duas naturezas de Cristo, guardando apenas a idéia de Cristo “ter-se
tornado homem” mediante urna transição do modo divino de ser para um modo humano
de existir. Esta evolução ocupa o lugar da união hipostática. Lembremo-nos de que essa
doutrina foi condenada, tanto explícita como implicitamente, pelos concílios. Por
exemplo, no Símbolo de Atndsio, afirma-se que “na Encarnação não há mudança da
Divindade para a carne, mas assunção da humanidade. Até a Confissão Reformada
Holandesa é explicitamente anti-“kenosista”, professando que, em Cristo, ambas as
naturezas conservam os seus atributos. Longe de esclarecer a doutrina das duas
naturezas, a doutrina “kenosista” atenta contra a mesma, dissolvendo-a. É o sintoma da
gravidade da crise dogmática. Dorner e outros denunciaram-na como sendo um atentado
à imutabilidade divina. Aludindo ao velho “patripassianismo”, (= uma Pessoa da
Trindade, o Pai, sofreu na Cruz), renovado no “teopassionismo” (= Deus sofreu a
Paixão), Dorner reconhece nos “kenosistas” um profundo motivo religioso, pois eles
vêem corno, no esvaziamento de Cristo, é realizada a obra do amor de Deus, Redentor e
Sofredor. Também reconhece o esforço “kenosista” em vista da ênfase ao “tornar-se”
Cristo homem. Mas, aos ultras que aceilam a mudança radical do Verbo ou sua
desistência radical dos atributos divinos, Dorner cita as palavras de 2Tm 2.23: “Deus
não pode negar-se a si mesmo”, texto particularmente duro para quem, em vista da
liberdade soberana de Deus, pensa na possibilidade de Deus desistir de seu modo divino
de ser.
Em resumo, a doutrina da kenosis não oferece melhor solução para tirar a Igreja de seu
embaraço dogmático. Renasce a eterna questão: É Cristo ou pode ser Cristo “verdadeiro
Deus e verdadeiro homem?” No final do edifício “kenosista” assomava o perigo de
humanizar Cristo, o que seria o fim da Cristologia.
***
O mesmo século XIX viu surgir outras dificuldades no campo da crítica histórica.
Muitos foram levados a aceitar uma figura histórica de Jesus, depurada dos adornos e
transformações acrescentados pelos dogmas eclesiásticos. A tendência era a de
contentar-se com o homem Cristo, sem qualquer preocupação pela tradição das duas
naturezas. Por mais qualidades e prerrogativas que dessem a Jesus, não podiam disfarçar
que, de fato, deixara de existir o problema da dualidade de Cristo, visto que a natureza
divina do Salvador tinha sido eliminada a priori. Foi encarniçada a Juta travada em
torno do Jesus liberal. Hoje em dia está definitivamente superada a teologia liberal,
especialmente sua Cristologia. Eles negavam que se pudesse reconstruir uma figura do
Cristo historicamente válida, com base nos depoimentos neotestamentários. Nos
Evangelhos não temos documentos fidedignos que nos apresentem um Cristo autêntico.
Em vez do Cristo histórico, temos um Cristo da fé. elaborado em base de testemunhos
de fé, de pregação e interpretação desta mesma fé. Nunca encontraremos a figura
histórica de Cristo nos Evangelhos.
Para muitos, era grande a tentação de acolher essa crítica dos Evangelhos, bem como o
novo método de se compreender os depoimentos evangélicos, não como possuidores de
valor histórico, mas repletos de Deutung ou interpretação; à sua luz conhecemos o que
significava a vida de Jesus para a comunidade primitiva,, através do prisma da
Ressurreição.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
15
Freqüentemente entrava em questão a historicidade da vida do Cristo, alternando-se
idéias radicais e idéias moderadas. Mas, por mais que variasse a forma crítica, no campo
liberal reinava a unanimidade acerca de que não cabia buscar nos Evangelhos a
humanidade do Cristo histórico: os Evangelhos retratam apenas o Cristo da
comunidade, os aspectos da fé primitiva; não desincuinbem nenhum papel biográfico.
De acordo com o que pensavam os liberais, era esta a única maneira de conservar uma
atitude crítica diante dos relatos evangélicos, dando a estes seu grande significado de
testemunhar a fé primitiva. Surgiu, logicamente, a pergunta capital: visto que a crítica
histórica descobre em Jesus apenas um homem essencialmente igual aos demais, a
transfiguração deste homem em Deus, realizada na comunidade primitiva, porventura
não explicaria suficientemente a doutrina das duas naturezas?
Muitos saudaram, na idéia liberal, uma libertação, uma perspectiva luminosa sobre as
inúmeras dificuldades da Cristologia, ainda mais agora que a crítica histórica estava
criando juízo. Anteriormente era conhecida uma crítica histórica cujo alvo parecia
tornar incerto o que antes era tido por verdadeiro. Essa primeira crítica histórica
terminava em ceticismo universal: acusava os narradores sagrados de terem desenhado a
figura do Cristo à luz da Ressurreição e das fábulas de uma fantasia fecunda. Quem
poderia seguir por semelhante caminho de negação?
Reina agora seriedade no campo liberal: ninguém desacredita a priori o depoimento da
fé evangélica. Kãhler teve o mérito de indicar o caminho libertador na confusão da
pesquisa histórica, ou seja, o caminho do kerygma (proclamação da promessa). Kähler
aceitou, como ponto de partida, o fato de não possuirmos fontes fidedignas acerca da
vida de Jesus. “Toda essa problemática da vida do Cristo é uni beco sem saida. Não
podemos retroceder aos escritos evangélicos; em outras palavras, não há maneira de
voltar ao Cristo bíblico, ao Jesus histórico.” Se isto fosse possivel, a fé ficaria
condicionada à pesquisa histórica. Os Evangelhos são dâcumentos da fé; não pretendem
esclarecer a biografia do Cristo histórico, mas simplesmente provocar a fé em Jesus
Cristo. Não são um noticiário, mas uma proclamação, com base na pregação. Kähler
deu assim “a resposta salvadora” (Althaus) que nos libertou do historicismo e do
ceticismo. Não mais havia necessidade de se ficar angustiado, na incerteza e à espera
das decisões dos historiadores. Era suficiente atentar para a pregação do Cristo bíblico.
O kerygma debelou o historicismo. O verdadeiro Cristo está no kerygma. Os problemas
históricos perdem sua tensão ofegante. Não é exagero se dizer que a idéia fundamental
de Kähler exerceu — e ainda exerce — enorme influência. Brunner, por exempio,
reedita o pensamento kähleriano.
Isto nos leva à questão decisiva. Por acaso Cristo sairia ileso do conflito? Permanece
ainda possível a Cristologia? Cerlniiwnte, pois que as dificuldades não encontram
solução satisfatória na teologia liberal. A despeito das considerações ‘kerygmáticas”, o
problema ainda fica de pé: até que ponto os assim chamados “testemunhas da fé” nos
põem em contato com o Cristo genuíno? De fato, cada vez que pregamos, surgirá a
pergunta justificada: “Qual é a autoridade de tua pregação”? Mesmo quando não se
exige a prova da veracidade da nossa pregação, persistem dúvidas quanto à sua
autenticidade. Não nos admiremos, pois, se, mesmo onde se aceita a visão
“kerygmática”, a Cristologia continua subordinada às conseqüências necessárias do
“kerygmatismo”.
A questão “kerygmática” não é apenas liqüidada com estas considerações superficiais.
Não negamos que os Evangelhos fornecem uma biografia de Jesus, e muito menos ainda
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
16
que têm por intenção consciente despertar a fé no Cristo. Foi abundantemente
demonstrado pelos três Sinóticos que a mensagem evangélica constitui “uma
anunciação do Cristo para a posteridade” (Ridderbos). Admito sem dificuldade que não
é o “quando” que interessa mas o “aquilo”, ou seja, que o interesse histórico cede lugar
ao interesse “keryginático”.
Mas as dificuldades não estão resolvidas. A questão genuína e básica visa precisamente
a relação que há entre o kerygma e a própria história. Que é e o que nos dá, afinal, o
Evangelho? A figura do Cristo tal como a encontraram na fé expressa pela comunidade,
ou a vida do Cristo tal como na realidade ocorreu? Ou deveremos aceitar que este Jesus
é, ao mesmo tempo, o Cristo crido na comunidade e o Cristo histórico que, de fato
pregou, operou milagres, sofreu, morreu e ressuscitou? Ridderbos está convencido de
que a resposta a esta pergunta implica absolutamente na fidedignidade dos Evangelhos.
Embora os autores sacros circunscrevessem seu relato à finalidade visada e ao caráter
pessoal de cada um, eviderieia-se que a finalidade profunda de todos foi precisamente
demonstrar a fidedignidade das coisas que relatavam a respeito de Cristo. De nada
serve, pois, decretar que os Evangelhos foram escritos conforme a fé, se esta mesma fé
tem por objeto o Cristo histórico, que é o Filho de Deus, ou, em outros termos, se o
Cristo da fé e o Cristo histórico coincidem na realidade e no fato. A solução do
problema pelo “kerygmatismo” é, portanto, bem ilusória: as dificuldades da crítica
histórica não são superadas através de um conceito formal, corno é o kerygina; este
conceito não nos liberta dos problemas criticos. Eis por que, também dentro do sistema
“kerygmático”, a luta em torno das duas naturezas continua ininterrupta.
O problema máximo do século XIX, o da Fé-Ciência (particularmente Fé-História),
penetrou profundamente nas pesquisas modernas em torno do Evangelho de Jesus
Cristo.
Quem se desprender da história (como acontece na teologia especulativaj subordinando
Cristo à própria verdade histórica, não percebe a gravidade do problema. Para lal, a
doutrina das duas naturezas não é perturbadora. Mas quem de alguma maneira coloca o
Cristo histórico no centro de sua fé ou de sua teologia, este se desespera em encontrar
soiução para as questões históricas nos ensinos da “kerygmática”. O próprio sistema de
teologia “kerygmática” leva o problema consigo e sofre-o como espinho na carne, pois a
pregação acarreta responsabilidade: descansa sobre testemunhos de fé, que são os
alicerces necessários de qualquer Cristologia. Isso se evidencia nos refinamentos de
Bultmann, o qual se compraz em destacar a crise da doutrina das duas naturezas sobre o
fundo obscuro do conceito kerygma. Bultmann chega a distinguir o “kerygma da
comunidade primitiva” e o “kerygma da comunidade helenistica”. Bultrnann, porém,
submete esta pregação a um inquérito crítico: ela não exige implicitamente a fé do
homem moderno, mas chega a constituir o objeto de uma análise crítica. Dai a
necessidade cada vez mais evidente de seu programa de desmitologização do Novo
Testamento. Bultmann não duvida que o mito entrou em proporção considerável no
coração do kerygina. O alvo bultmanniano é a veracidade da pregação para o homem
moderno. Tendo o conceito cosmológico do Novo Testamento uma indole mitológica, o
encontro entre Evangelho e Homem moderno constitui uma problemática peculiar.
A concepção mitológica vê no céu a morada de Deus, na terra, o campo onde laboram
forças sobrenaturais, divinas e angélicas, ou satânicas e demoníacas: estas forças
intervêm, hoje aqui e amanhã acolá, nos acontecimentos naturais. O mundo está hoje
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
17
sob o dominio dos demônios, mas tal situarn ção terá de acabar quando vier o juiz
celestial para ressuscitar os mortos.
Bultmann está convencido de que a representação global da salvação no Novo
Testamento está de acordo com este mesmo conceito cosmomitológico. Acaso aí não é
questão de plenitude dos tempos, de missão de Deus através de seu Filho, o qual, sendo
um Ser divino preexistente, aparece no mundo em forma de homem, carrega o pecado,
reconcilia, vence os demônios, morre e ressuscita, devendo vir nas nuvens do céu como
juíz do mundo? São todas as coisas próprias do conceito mitológico. Ora, este conceito
não mais possui fôrça convincente. Assim, o problema encontra uma formulação clara e
precisa. “A pregação cristã moderna acha-se, pois, diante da questão: quando exige a fé
por parte do homem, tem ela o direito de obrigá-lo a aceitar também o antigo conceito
cosmomitológico?” E, na negativa, Bultmann lança sua segunda pergunta: “Existe,
acaso, alguma verdade na pregação do Novo Testamento, toda vez que esta depende
deste conceito mitológico? Sendo assim, cabe à teologia extrair da pregação cristã o
elemento mitológico e comprovar se o conteúdo essencial do Evangelho não mais é
barreira para o homem moderno.” Dentro das perspectivas bultmannianas, baseadas na
cosmologia atual, que pode significar o “desceu aos infernos, subiu aos céus” do credo,
fora do contexto do velho conceito cosmológico? “Ficaram sem sentido os relatos da
subida e da descida de Cristo; igualmente sem sentido, a esperança da volta do Filho do
Homem nas nuvens do céu, e o arrebatamento dos fiéis, nas alturas, ao encontro dele.”
Bultmann faz questão que se fale aqui com sinceridade absoluta. Evidentemente a
religião mítica oriental desfalece na medida em que a higiene e medicina progridem; da
mesma maneira, nós não podemos nos contentar com as idéias mitológicas do Novo
Testamento, vivendo sob a influência de outra cosmologia. Não temos o direito de
deixar a comunidade na incerteza acerca do que ela deve ou não deve considerar como
verdade. Não há outra solução, exceto a desmitologização, solução insinuada já pelo
próprio Novo Testamento. Entretanto, surge espontaneamente a pergunta: Eliminandose o material mitológico, não se ataca o próprio kerygma? Pergunta particularmente
sensata, em vista da experiência repetidamente feita nos tempos passados. Caberá lugar
ainda para um Heilsereignis, para uma salvação, depois de enveredarmos por esses
caminhos? Quando não mais pensar mitologicamente, o homem moderno encontrará no
kerggma alguma mensagem autenticamente verdadeira? Poderemos continuar pregando
com autoridade, uma vez desprendidos da velha mitologia, do apocalipsismo judáico e
do gnosticismo? Numa palavra, poder-se-á falar de uma “história de Cristo”, de uma
iniciativa de Deus em Cristo, sem que se incorra em conceitos e expressões
mitológicas?
O Novo Testamento apresenta mitologicamente a história de Cristo. Será isto uma
necessidade expressiva, ou uma simples modalidade estética? Conforme Bultmann, a
característica do Novo Testamento é nele se misturarem a ficção mitológica e a verdade
histórica. Assim, Jesus Cristo é, por um lado, o Filho de Deus, ser divino preexistente,
ou seja, uma figura mitológica; por outro lado e de maneira simultânea, ele é um
homem histórico, Jesus de Nazaré, cujo pai e mãe todos conhecem. Do mesmo modo,
ao lado da cruz histórica, temos a Ressurreição mitológica. Eis o problema que
atormenta Bultmann. Para Paulo, essa confusão entre mitologia e história constitui o
“mistério”: Deus revelado na carne. Não é assim para Bultmann: admite ele que o
elemento mitológico (em particular a preexistência do Cristo) não carece de sentido,
porquanto expressa a importância da Pessoa do Cristo. Coisa bem evidente no caso
típico da cruz e da ressurreição! A cruz torna-se mitológica por ter sido o Filho de Deus
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
18
preexistente quem morreu nela e por ter sido o sangue de tal vítima um alcance
substitutivo e libertador da morte. O homem moderno nada pode aceitar dentre todas
essas coisas. Mas o Novo Testamento transforma a cruz histórica, elevando-a a
dimensões cósmicas. Na realidade, a cruz é um fato histórico; na Biblia, este fato se
apresenta de tal modo que alcança projeções decisivas, cósmicas e escatológicas.
Note-se, portanto, que “desmitologizando” a pregação cristã não desaparece a própria
pregação, muito ao contrário: a compreensão histórica faz com que, nestas formas
mitológicas e através de sua ingenuidade, descubramos o sentido da cruz: Deus tratando
o mundo com graça e plenitude de perdão. A cruz constitui um fato propriamente
histórico de grande importância. O vestido mitológico expressa esta importância. Não
há, porém, motivo para que aceitemos este vestido.
Na ressurreição, entretanto, trata-se de coisa bem diferente. Isso porque “mais além da
expressão significativa da cruz”, não há nada histórico: Cristo, na realidade, não
ressurgiu dos mortos. A ressurreição indica que a cruz de Cristo não se pode
compreender como uma morte puramente humana, mas como o juízo libertador de Deus
sobre o inundo. Eis por que cruz e ressurreição dependem inseparavelmente uma da
outra. Não são dois eventos históricos da salvação que, na realidade histórica, se
sucederam um ao outro. A ressurreição não é um milagre, a despeito de ser apresentada
como tal no Novo Testamento (nas lendas do sepulcro vazio e nas aparições). Tais
lendas são formas posteriores, ainda desconhecidas por Paulo. Na ressurreição não se
trata de um fato histórico, qual seja a volta de um falecido; a ressurreição é objeto e
expressão de uma fé. “O evento pascoal não representa uma ressurreição histórica; só
aparece como histórica a fé dos primeiros discípulos.” A fé cristã não está interessada
no fato histórico da ressurreição. Interessa, é o sentido do modo de agir de Deus na cruz.
A fé na ressurreição não insinua outra coisa, não obstante o Novo Testamento, inclusive
Paulo, insinuarem tal fato através de um acontecimento historificado. No entanto, isto é
uma argumentação fatal, pois, nas narrativas bíblicas, não se trata de qualquer
ressurreição histórica, mas do sentido e do alcance da cruz. Deus age na cruz e sua ação
não é mitológica, mas histórica; não é sobrenatural, mas realmente histórica. Deus
reconciliou o mundo consigo. Pregue-se, portanto, Jesus, o homem histórico, em sua
significação histórica na ordem da salvação. Jesus é o Verbo escatológico pronunciado
por Deus ao mundo. Este é o escândalo que só pode ser vencido pela fé. Jesus é um ato,
uma dádiva de Deus. Desta maneira é que estão ligadas morte e ressurreição do Cristo.
Quem percebe esta ligação compreenderá bem a Paulo. Paulo aponta a ressurreição de
Cristo como um fato objetivo, sustentando-a em sua fidedignidade histórica com
referência a múltiplas testemunhas. Paulo interpreta a morte do Cristo “segundo as
categorias do mito gnóstico”, mas não é desta maneira que o homem pode ser
alcançado: Paulo postula, antes de tudo, a fé nos fatos, na encarnação, na preexistência,
na ressurreição do Verbo. Entretanto, fatos não têm caráter alusivo. Aliás, pouco im..
porta o revestimento gnóstico; importa é a significação final da cruz. A pregação da
cruz é que pode emocionar o homem: a palavra da cruz colocada no caminho do
homem, qual iniciativa salvadora de Deus. Esta é a verdade de todos os tempos, que
surge e fica a resplandecer quando desnudamos a mensagem neotestamentária de seus
ouropéis mitológicos.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
19
Sem dúvida, na teologia de Bultmann é que se entrevê o ponto culminante da crise
doutrinárja das duas naturezas. Essa teologia tem a pretensão de se aproximar da
pregação evangélica, de finalidades precisas pastorais, com a preocupação da
veracidade devida ao homem moderno; este cresce num ambiente cosmológico bem
diferente da cosmologia usada no Novo Testamento. Bultmann não dá importância à
pregação do Cristo histórico, como se costumava fazer no século XIX, na tentativa de
mostrar o homem Jesus em suas qualidades superiores. Reconhece francamente que, no
Novo Testamento, é questão de preexistência, de Encarnação, de Ressurreição histórica
e de Ascensão; não intenta qualquer esforço para alterar os fatos ou contestar sua
compreensão histórica passada: “assim, a preexístência do Logos foi entendida e dada
por histórica pelos escritores do Novo Testainento.” Bultmann, porém, rejeita a
historicidade destes fatos “que não passam de mitos”.
Quem não vê as conseqüências dessas premissas para a teologia de Bultmann? Fora de
Jesus, o homem crucificado, nada sobrevive ao naufrágio da Cristologia. A cruz do
Cristo, entretanto, não significa o malogro do Nazareno, mas a iniciativa divina para a
reconciliação do mundo. Nada resta da problemática vere Deus et vere homo. Lendo o
prólogo joanino com o Logos revelando-se na carne, com o Verbo feito carne,
Bultmann sacode a cabeça, declarando: “Fala-se aqui a língua mitológica”, a linguagem
gnóstica, cujo credo central professava precisamente que um Ser Divino, Filho do
Altíssimo, seria revestido de carne e sangue para nos dar a revelação e a redenção.
Foi totalmente eliminado o mistério do Filho do Homem, proclamado por Paulo e a
Igreja. Subsiste um kerygma finalmente purificado dos resíduos mitológicos; prega-se a
mensagem pura! É desta maneira que a libertação que muitos esperavam da teologia
“kerygmática” foi ilusória: a concepção “kerygmática” não abre qualquer saída às
dificuldades. A problemática CRISTO continua, inclusive dentro do kerygima,
É evidente que toda a concepção bultmanniana está influenciada pela moderna ideologia
científica. A despeito das diferenças consideráveis entre Bultmann e o século XIX,
perdura aqui o apriorismo racionalista, excluindo Deus da natureza para fazer do mundo
um mecanismo fechado. Bultmann usa exatamente os mesmos argumentos que os
modernistas forjaram contra a possibilidade da Encarnação ou da Ressurreição de Jesus
Cristo. Bem examinados os pontos, verifica-se que Bultmann chega a postular a
desmitologização em virtude da conceituação científica. Mesmo se admitirmos suas
razões pastorais e missionárias (necessidade de preservar o homem atual de rejeitar o
Evangelho por causa da sua índole mística), não podemos dissimular o orgulho
teológico manifesto em toda esta empresa. A longa luta em prol do dogma eclesiástico
das duas naturezas leva aqui à constatação de que se estava combatendo em torno de um
mito, O que a Igreja compreendia como a ação divina na História é levado à degradação
de um mito. Esta teologia leva a crise ao seu auge. Postergada a pregação da Escritura
Sagrada e do dogma nela revelado, Bultmann coloca a cruz como fato irracional da
decisão mediante a qual o homem chega à autocompreensão de si mesmo. A História da
salvação reduz-se, estreita-se na “significação” da cruz, mas da cruz desligada de todas
as suas relações. A iniciativa salvadora de Deus não perde, desta maneira, sua plenitude
significativa para o homem nascido no atual sistema cosmológico. O Cristo da Bíblia,
objeto da atenta reconsideração bultmanniana, tinha-se tornado desprezível por causa de
seu revestimento cosmomitológico, hoje intolerável.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
20
Para finalizar, demos alguma atenção às formas peculiares da crise em foco, na Holanda
teológica dos séculos XIX e XX.
A doutrina das duas naturezas não podia sair ilesa da luta modernista que está sendo
travada na Holanda há um século. Scholten, pai do movimento modernista entre nós,
tinha a pretensão de explicar a Cristologia à luz da teologia Reformada. Aparenta
sustentar a doutrina clássica das duas naturezas. Enumera as sucessivas heresias
condenadas pela Igreja, cita as decisões cristológicas de Nicéia e Calcedônia. Procura
logo verificar se o Protestantismo conservou íntegro os princípios destes concílios:
responde negativamente, pois o Luteranismo tendia nitidamente para o Monofisismo, e
o Calvinismo nunca conseguiu superar a posição nestoriana.
Esta Cristologia da Reforma, a despeito de suas intenções antinestorianas, continuou
sendo deficiente. Torna-se, pois, necessário eliminar esta deficiência, prestando atenção
ao princípio decisivo, base de toda Cristologia: “união, em Cristo, das naturezas divina e
humana, a partir do depoimento joanino — o Verbo se fez carne”. É desejável uma
unanimidade mais plena entre as Cristologias luterana e reformada-holandesa. Isso só
poderá suceder quando nos negarmos a ver os conceitos Deus e Homem como
contraditórios. Em Cristo há unidade do Divino e do Humano. Cristo é o Deus- Homem,
mas este Deus-Homem não é independente, nem isolado, nem único: toda a comunidade
é chamada a tornar-se Deus-Homem, como Jesus Cristo. Assim, na raiz do Modernismo
holandês, encontramos a famosa Cristologia especulativa hegeliana. A síntese do Divino
e do Humano, segundo a dialética de Hegel, toma o lugar da confissão tradicional de
“Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. Nada estranho, pois que Scholten se
oponha tão veementemente ao Docetismo. Ele defende o que é humano em Cristo,
porque na humanidade está a base da sonhada síntese entre o Divino e o humano.
***
O dogma das duas naturezas continuou a ser, na evolução posterior do Modernismo
holandês, o ponto nevrálgico da questão. Em toda parte percebia-se a tensão entre a fé e
a ciência moderna, que culminaria na rejeição da fé. Surgiu um Modernismo direitista e
alarmado, que intntou debelar o anterior. Roessingh rios permite ver as qualidades deste
modernismo direitista quando denuncia o Monismo e o antisupernaturalismo dos
modernistas da primeira edição e anuneia sua determinação de ser especificamerzte
cristão. Refere-se a uma mudança de rumo que diz respeito especial à confissão de
Cristo; afirma que retornaria a uma teologia cristocêntrica e construiria uma Cristologia
sadia, muito embora sobre alicerces críticos. Roessingh reata a tradição cristã, porque
nela se vive mais intensamente o trágico antagonismo entre pecado e graça,
antagonismo esse quase eliminado pelo Modernismo anterior. “Nosso coração reclama a
tradição cristã; quase contra nossa vontade, principalmente quando pregamos, sentimonos reconduzidos à velha mansão da ortodoxia.”
Entretanto, Roessingh não dissimula sua ligação com as tradições liberais. Por um lado,
intenta escapar ao antisupernaturalismo, ao Monismo e ao determinismo natural, que
não deixa lugar à personalidade e à religião; reconhece que há hiatos no enlaçamento
causal dos acontecimentos, influências de outro mundo sobre o nosso, intercâmbios
religiosos entre o homem e Deus. Por outro lado, não restaura o valor do milagre bíblico
nem a arbitrariedade de Deus nem a plena fé nos milagres do Novo Testamento. Se bem
que resista ao Monismo, sua intenção é simplesmente possibilitar uma vida religiosa
própria, mesmo que totalmente fora do campo da vida histórica. Admite o sobrenatural
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
21
sem as conseqüências históricas do sobrenatural. Pensa ter salvo o intercâmbio entre o
homem e Deus, mas não resiste ao embate da crítica histórica.
Contudo, convém ressaltar que Roessingh focaliza e reivindica o caráter especialmente
cristão do Modernismo direitista. Colocado em face à tradição cristã das duas naturezas,
tenta construir uma Cristologia, sem abandonar sua ideologia moderna. No fundo, ele
não está satisfeito com a figura de Cristo dos antigos liberais, pois nela falta o traço
principal: a graça de Deus em Cristo. A despeito das críticas contra a história biblica,
Roessingh experimenta Cristo como o poder de Deus. Cristo é realidade, “mais real do
que qualquer coisa na História”. Dai surge o problema da relação entre fé e história,
problema que, cada vez mais, absorverá a atenção de Roessingh. Urgia também definir
o que, em nossa fé pessoal, poderia produzir Cristo tal como é descrito pelas
comunidades da Igreja primitiva. Cada vez menos furtava-se a esta pergunta, sendo-lhe
finalmente dada uma resposta enigmática: “Eu respondo: Nada e tudo. Nada faz em
mim a descrição de Cristo conforme as primitivas comunidades. Tudo devo à descrição
de Cristo segundo as primitivas comunidades. O nada me distingue da rotina ortodoxa;
o tudo me distingue da grei liberal”.
Quem entendeu esta resposta: “nada e tudo”, penetrou no âmago da Cristologia de
Roessingh. O “nada” protesta contra qualquer tentativa de encontrar, na total
relatividade da História, o ponto absoluto e inelutável que evidencie a fé. Roessingh
declara enfaticamente que nunca seguirá tal caminho: o fundamento de nossa fé nunca
se achará em algum ponto histórico; “a História nada significa em relação à fé”
(declaração que não significa, em Roessingb, que a historicidade cristã não passa de
simbolismo, de idealização ou de mito). O “tudo” — prestemos atenção a este tudo —
protesta contra o racionalismo apriorístico. Qual é o sentido desta resposta paradoxal?
Depois de declarar a História sem valor para a fé, Roessingli revaloriza, em seguida, a
História. Cabe perguntar se é por acaso ou por conservantismo que a vida religiosa
sempre volta a concentrar-se na historicidade. Existe, de fato, uma intuição da
significação histórica, pois “a História é metafisicamente translúcida; contém muito
mais do que acasos ligados causalmente”. O espírito nela trabalha a fim de se realizar.
Não é privilégio da ortodoxia discernir e declarar onde isso acontece; nem se deixa
cristalizar, num fato empírico, a norma absoluta. Mas mesmo assim não se pode negar
que existem “centros de vida divina” dos quais nós vivemos. “Para mim, Cristo é o
centro da História. Portanto, minha visão das revoluções espirituais passadas, todas as
minhas reações diante da realidade, fazem-me proclamar que em Cristo acho o supremo
valor de toda a História. Cristo é a revelação de maior densidade metafísica. Só
mediante Cristo é que compreendo os elementos do mistério trágico do mundo e da
vida. Escolho, pois, ele. Estarei enganado? Os homens tantas vezes se enganam em suas
valorizações. Este é, porém, o risco que a vida nos traz, fazendo com que nossa atitude
para com a História continue viva, conquistadora e enriquecedora. Centralizando minha
fé em Cristo, renovo-me a mim mesmo.” Com razão, Roessingh pode falar de uma
atenção religiosa “à revelação histórica, mediante a qual Deus vem ao nosso encontro.
Este é — acrescenta ele — o significado de Cristo para mim”.
Centro da história, ponto de convergência de minha vida, centro de valorização,
encarnação da norma. “Eliminaria a base de minha vida se deixasse de me arriscar em
Cristo.” Não existe dificuldade para Hoessingh compreender a hornogeneidade do
núcleo cristológico de todos os tempos. Cristo é o Senhor de cada um e do universo
inteiro; o Cristo é cósmico e domina a História universal. O Novo Testamento causa tal
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
22
impacto em Roessingh que este não duvida, às vezes, em negar competência à ciência
profissional. “Parece-me bem duvidoso que o problema da historicidade, latente na
descrição do Cristo bíblico, seja da alçada exclusiva das disciplinas críticas.” Outras
vezes, porém, assaltam-no as dúvidas e a insegurança com respeito a Cristo. Eis por que
Roessingh declara que o caminho do Cristo, partindo do Novo Testamento e entrando
na História, comporta um salto; finalmente a Cristologia fica isolada da História. Mas,
ainda que a historieidade de Jesus desaparecesse, Cristo continuaria sendo “o centro de
valor” da História. Causa repulsa a Roessingh a atitude cética diante do Novo
Testamento, “porém merece ser considerada com toda a seriedade”.
Para a teologia de Roessingh a problemática se firma na tepão entre a evidente
relatividade da História e a super-eminente realidade de Cristo nesta mesma História.
Deparamos com a luta emocionante entre o testemunho bíblico e a mentalidade
moderna rebelde a qualquer revelação genuinamente histórica. Em 1924, Roessingh
escrevia uma carta bem significativa: “Procuro uma síntese entre os princípios da
filosofia idealista e os princípios do Cristianismo Reformado... É possível, porém, que
tal síntese nunca seja encontrada”.
Estas palavras, datadas da fase final de seu pensamento teológico, caracterizam bem sua
posição. O Idealismo sempre predominou na história da Cristologia, marcando certa
distância do sentido profundo da História, procurando transcender a significação dos
fatos concretos. A revelação absoluta de Deus através da História particular foi sempre
tida como ameaça contra a autonomia da razão humana, essa revelação sendo sujeita à
razão e ao jugo dos fatos contingentes. Roessingh pretende, pois, salvar a autonomia do
espírito humano, preservar contra o Monismo a personalidade e a religião. Nessa luta
trágica, entretanto, afiguravam-se-lhe como inimigos de nossa autonomia racional tanto
a autoridade bíblica como o valor absoluto conferido ao fato da Salvação. Não foi em
vão aluno do grande Hermann, o lutador contra qualquer forma de heleronomia.
Roessingh optou, pois, entre o Idealismo e a Reforma, pelo caminho da síntese. A
despeito do resultado incerto, continuou pesquisando infatigavelmente. Na teologia
dialética, valoriza e enfatiza grandemente o paradoxo pecado-graça, valorização, aliás,
limitada: “Queiramos ou não, temos Erasmo por predecessor. Quem poderá bani-lo?”
Solicitado, certo dia, a definir o liberalismo espiritual, ele se pronunciou com soberana
clareza: “A Igreja Católica Romana e demais grupos unidos dogmaticamente, possuem,
agora e por muito tempo ainda, todas as prerrogativas psicológicas na orientação e no
domínio das massas. Mas, nos alicerces mais profundos de seus grandiosos sistemas,
deixaram de ser verdadeiros, findaram pertencendo já ao passado”. “Toda a evolução da
filosofja moderna, da História e da critica biblica constrange imperiosamente ao
rompimento radical com todos os fortes e abençoados núcleos do passado”.
Segundo nossa opinião, o conflito espiritual de Roessingh atinge o seu climax no
antagonismo entre o seu conceito de autonomia racional e a revelação de Deus no Cristo
histórico. Procura ele contornar o problema valorizando o Cristo cósmico pela
autonomia da razão. Mas, afinal de contas, estamos sempre às voltas com o velho
problema do valor do “testemunho do espírito”. Que vale o testemunho do espírito, que
é caro à confissão reformada? Scholten opinava que esse “testemunho do espírito” era
dirigido antiteticamente contra qualquer autoridade externa. Por sua vez, Roessingh
pensa do seguinte modo: “O critério último, a autoridade final à qual terei de render-me,
está no testemunho de meu próprio espírito”. O que parece ser mais evidente na agonia
de Roessingh é seu ceticismo acerca de uma possível síntese entre Idealismo e Reforma.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
23
***
Em 1925, na flor de seus 39 anos, morreu Roessingh. Sua vida curta bastou para
reatualizar o velho conflito: “Ortodoxia versus Modernismo.” Desaparecido o jovem
campeão, como evoluiria o Modernismo direitista? A pergunta surgiu espontaneamente
em todas as igrejas holandesas. W. J. Aalders, referindo-se à Cristologia de Roessingh,
escreveu: “Certamente o crepúsculo está brilhando. Mas quem dirá se é crepúsculo da
noite ou se é alvorada?” Heering tentou resolver o caso de modo crítico, pronunciandose a favor da noite: a teologia de Roessingh falhava na categoria básica da fé e da
revelação. Roessingh não construiu sobre os alicerces do Evangelho, descuidou do
kerygina bíblico. Como resistiria o edifício?
Não obstante isto. Heering aceita o conceito da autonomia racional, rumando, por sua
vez, pelo caminho da heterodoxia. Nega-se, é certo, a continuar “divagando pelas
margens de um ceticismo irrestrito”, pois existe uma base de certeza na Revelação, no
Evangelho. Heering parece ter avançado bastante, mais do que Roessingh, no caminho
da Cristologia: impressão essa que se fortalece quando ouvimos o próprio Heering,
julgando os motivos básicos da Cristologia de Boessingh demasiadamente fracos para
constituírem verdadeiros centros de valor e alicerces seguros. A pretensão de He.ring é
avançar bem mais e considerar criticamente a vinda de Jesus ao mundo, ou seja, o
aparecimento do Eterno no contingente. O que importa é a revelação de Deus na
História, a iniciativa divina de salvação, derramando o Amor não criado sobre esta
miserável humanidade em marcha, aproximando-se de nós para atrair-nos a si. Opina
que o reconhecimento desta realidade salvífica não depende, em absoluto, da doutrina
da Igreja relativa à Encarnação. Pelo contrário, essa doutrina está em contradição
flagrante com a realidade da vida de fé. Foi ela gradativamente formada como uma
teoria emitida pela comunidade primitiva, sem quaisquer raízes no Novo Testamento. O
venerável Irineu assumiu a paternidade desse filho ignorado dos Evangelhos Sinóticos.
Quando Heering, na encruzilhada de sua reflexão, depara com o Evangelho de João, ele
rejeita o prólogo: este prólogo, embora uma profunda meditação acerca da revelação de
Deus em Cristo, não faz parte do depósito revelado; foi a Igreja que, apoderando-se
desta especulação, inferiu dela a Divindade e, em seguida, a Humanidade de Cristo e,
finalmente, a união hipostática de ambas as naturezas. Foi formado um dogma com
pretensões a exaurir os mistérios divinos. Heering não pôde aceitar tal arbitrariedade,
não aceita falar em “Divindade” de Jesus, mas consente em falar no “Ser-como-Deus”
de Cristo, pois assim se elimina o espectro da “segunda Pessoa da Trindade”.
Escutemo-lo formular seu ponto de vista: “Por mais que nos ilumine o conceito de que o
Ser-como-Deus de Cristo é eterno e santo, por muito que acreditemos no Filho assim
definido, declaramos honestamente que nunca houve urna necessidade religiosa que nos
obrigasse a preocupar-nos com a origem de Jesus, sua preexistência e Encarnação, numa
palavra, com tudo quanto se vincula à Encarnação no sentido realístico da antiga
ortodoxia.” Raramente escritor moderno emitiu conceito mais arrasador, nem juízo mais
inválido, porquanto este mesmo Heering, dispensado de se preocupar com a origem de
Jesus Cristo, dispõe-se a edificar urna Cristologia na qual Cristo aparece como
“encarnação do espírito de Deus”. Ainda mais surpreendente é o apelo que este
visionário moderno faz ao respeito pelo mistério! É precisamente o respeito do mistério
que nos impede de considerar a filiação divina de Cristo como “realisticamente
biológica”; pois tanto o Ser como o aparecimento de Cristo são mistérios, conforme
ensina a Igreja. O paradoxo é grande: um Heering afasta-se, invocando o mistério, este
mistério mencionado pelas Escrituras, a respeito do qual não cessa de balbuciar a
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
24
comunidade cristã de todos os tempos. Importa pormenorizar mais as reflexões de
Heering. Francamente, gostamos mais da quase constante hesitação de Roessingh e de
sua repugnância a qualquer síntese. Heering não hesita. Entretanto, sua severidade em
condenar a carência de base e de critério no seu antecessor recai sobre ele próprio com
redobrada força. Raramente se pronunciou na história do Modernismo, juízo mais
injusto do que esta condenação contra Roessingh, pelo menos quando a consideramos à
luz da própria criação teológica de seu acusador. De fato, Heering levou o crepúsculo
até as trevas da noite.
***
Temos assinalado alguns pontos altos na crise doutrinária das duas naturezas. Vejamos
agora algumas reações contra essa crise gravíssima. Não imaginemos que tudo foi
silenciosa cumplicidade: houve, e ainda há, fervorosa oposição ao assalto maciço da
critica. Isso porque, além da teologia reformada dos séculos XIX e XX, fiel defensora
do Credo tradicional, multiplicaram-se as tentativas de ver e explicar melhor a posição
ortodoxa. Na antiguidade já se havia pensado que uma crítica honesta da palavra
“natureza” bastaria para resolver o problema. Hoje em dia compreendemos que se trata
da própria verdade professada no dogma e que as palavras expressam, a despeito de sua
fragilidade humana, a própria iniciativa de Deus. Sirvam de exemplo as respectivas
Cristologias de Gerretsen e de Aalders. Gerrelsen ainda está influenciado pela tradição
crítica; não percebe a diferença básica que separa Ário de Atanásio, por partirem ambos
de um postulado que não é ético, mas metafísico, a respeito do conceito de Deus: o
conceito ético funda-se no amor e na vontade de Deus, enquanto que a doutrina da
Igreja parte do ontológico, “areal seco onde a vida não brota”. O espírito helenistico
sepultou bem profundamente, sob o conceito de “natureza”, a simplicidade evangélica.
A teologia ética, aliás, colaborou no recuo do dogma das duas naturezas. Porém — e
estamos pensando especialmente em Aalders e Korff — hoje em dia a expressão da
teologia ética tem mudado consideravelinente. Aalders compreende a decisão de Nicéia
como um triunfo sobre a idolatria. Considera-se o mistério da Pessoa de Cristo em
harmonia com a confissão da Igreja, especialmente com a definição de Calcedônia que,
em suas quatro decisões negativas, estaciona no mistério do Filho do Homem. A
unidade de Pessoa na dualidade de naturezas, em Cristo, constitui a reivindicação básica
de Aalders contra a crítica moderna. Korff apoia em tudo a reivindicação de Aalders,
considerando a doutrina ortodoxa não como mera especulação, mas como credo
religioso: houve uma vinda de Deus ao mundo, em Jesus Cristo; eis o que a Igreja quis
expressar na sua confissão das duas naturezas unidas hipostaticamnente.
Entretanto, não cantemos vitória prematuramente! Certamente, a doutrina da velha
Igreja ainda não foi posta de lado, como mera especulação metafísica. Pelo contrário!
Por motivos vários, o interesse pelo credo cristológico da Igreja antiga foi aumentado
novamente na Holanda e fora dela. A teologia dialética, de Barth e Brunner
especialmente, tomou posição contra a Cristologia do século XIX, e defendeu as
declarações ecumênicas, com evidente intenção de distanciar-se da dogmática de
Harnack e outros. Já em 1927, em sua obra sobre o Mediador, Brunner combatia
declaradanzente as idéias harnackianas. A situação tornou-se tão tensa para a equipe de
Barth, que urna crítica acerba, partida de certo campo teológico desligado de qualquer
tradição reformada, começou a fazer obstrução sistemática, nada poupando. A reação,
porém, tomou vulto. Na Holanda ouviram-se vozes novas, como,por exemplo,a de G.
Sevenster que, na sua “Cristologia do Novo Testamento”, chega à conclusão de que a
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
25
antiga exegese ortodoxa tinha base bem real nas Escrituras. Sevenster denunciou a
arbitrariedade da oposição Jesus-Paulo que, entre os modernistas, era considerada como
absolutamente inegável; observou que cabia constatar muito mais harmonia nos
Evangelhos do que supunha a crítica de outrora; demonstrou que os Evangelhos
Sinóticos repetidamente afirmam a preexistência de Jesus e que não era possível, com
base nos textos sagrados, falar de filiação adotiva, no caso de Jesus. Sem qualquer
exagero entra em cena uma exegese totalmente renovada. Comparem-se, a titulo de
exemplo, as enormes diferenças entre Sevenster e Heering. A renovação penetrou até no
campo dogmático. O Dr. Vos, longe de atacar a fé nas duas naturezas de Cristo,
defende-a contra todo mal-entendido. “Cada vez que a Igreja fala da união hipostática
das duas naturezas, sentimos sua reverência perante o mistério... Mantenhamos o fato de
que Cristo, na unidade de sua Pessoa, era simultaneamente Deus e homem... pois aqui
não se trata duma pretensa projeção da fé da comunidade, mas de uma realidade
misteriosa, amplamente testemunhada pelas Escrituras...” Vos não teme recorrer aos
argumentos gastos da velha ortodoxia, caros a Kuyper, e que são as afirmações de Jesus
sobre sua relação com o Pai e sua pretensão de perdoar pecados. “Jesus fala com
autoridade divina. De duas uma: ou ele fala a verdade ou profere mentiras. Se profere
mentiras, ainda existe a alternativa: mente consciente ou inconscientemente. Se mente
conscientemente, é o impostor máximo de todos os séculos e, se inconscientemente, é a
maior vítima da megalomania religiosa. Preferimos acreditar que Cristo disse a verdade,
que tinha autoridade divina para ensinar, porquanto era Deus.” Em franca oposição a
Heering, Vos formula a tese de que a doutrina da Encarnação é realmente bíblica.
Reaparece o tradicional apelo às Escrituras. Ouvem-se novamente palavras cheias de
louvor a Cristo, tiradas dos Evangelhos e das Epístolas. Considera-se a preexistência
divina de Jesus Cristo como incluída formalmente no testemunho do Novo Testamento.
“É preciso ensinar a preexistência: se Cristo é Deus, necessariamente existia antes da
Encarnação”. Enfaticamente reata-se o vinculo indissolúvel entre a divindade de Cristo
e sua pre existência eterna.
***
A essa altura, ninguém se surpreenderá que justamente Heering — o pontífice do
Modernismo direitjsta — elevasse protestos contra o enfraquecimento da visão crítica
nos teólogos atuais. Este retrocesso preocupa-o francamente. Estabeleceu, entre outras,
as seguintes teses: 1º. — A teologia liberal protestante redescobriu, nos últimos
quarenta anos, muitas e importantes verdades evangélicas (obscurecidas pela Igreja),
motivando isso uma reestruturaçõo,na qual a Cristologia teve papel importante. Motivos
internos, de índole crítica, tornaram necessária esta reformulação. 2º. — A honestjdade
critica impõe-lhe, hoje em dia, o dever de resistir à pressão da tradição eclesiástica,
refortalecida por circuntâncias do momento.
Heering tinha por alvo evidente o de acautelar os teólogos modernos contra a força
absorvente da doutrina tradicional: devido à confusão espiritual hodierna, eles se
deixam impulsionar em direção à tranqüilidade da tradição. Assim, o homem que em
1913 advertia contra o Modernismo da esquerda, por causa da superficialidade deste,
agora, em 1948, está a clamar veementemente contra a tradição, em nome da crítica.
Contra a teologia semicritica, “defenderei a tradição da crítica absoluta e da pureza
intelectual”. Denuncia o deslizamento para a direita, particularmente de Sevenster, “cuja
Cristologia me decepcionou profundamente, porquanto nela se aceita, praticamente do
princípio ao fim, a velha tradição, apelando para o Novo Testamento como se nele
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
26
subsistisse ainda a Cristologia do passado”. Tensão e intranqüilidade acompanham a
Cristologia: ainda não vislumbramos o fim da lula. Muitos dos problemas hoje
discutidos atestam que a luta da Ortodoxia contra o Modernismo não está relegada ao
passado. Consideremos apenas o caso do nascimento virginal de Jesus, ou da
reconciliação redentora, e outros, levantados pela teologia barthiana. É interessante
notar, aqui e acolá, certa insegurança na teologia modernista, que exerce, às vezes, uma
autocrítica de se admirar; mais interessante ainda é constatar que a insegurança
modernista provém da pesquisa mais profunda das Escrituras. Um indício da força
convincente e da clareza do Verbo de Deus bíblico é que a Escritura renasce a cada vez,
a despeito de nossos sábios esquemas. Entretanto, a Igreja não terá vocação de anexar
outros à sua ortodoxia, até que ela mesma dispense o nome “modernista”. Fica, porém,
comprovado que o credo ortodoxo e a confissão tradicional de Cristo possuem papel
providencial, nesta época de confusão e perigos — o papel de atualizar e personalizar a
pergunta de Cesaréia de Filipos: “Que dizes tu a respeito do Filho do Homem?”
Convém, pois, proclamar bem alto que a crise doutrinária da Cristologia é, bem mais do
que questão teórica, crise religiosa. A Igreja, mesmo com o risco de ser acusada de
arrogante, não pode abandonar a seriedade de João nem esquecer as advertências de
Paulo.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO III – DECISÕES ECUMÊNICAS
Sumário:
Igreja e heresia — A orientação das decisões — Nicéia — Postulado da Cristologia de
Ano — Ontologia ou vontade de Deus? — Cristo, a criatura perfeita — Pai e Filho —
Ário apela para a Biblia — Nicéia replica — Homoousios, história de uma palavra
rejeitada e logo reabilitada — Novidade da situação no tempo de Ário — O
Guosticismo e o homoousios — Centram Nicaenum — Nada de sofismas! — O
interesse religioso — O Concílio de Constantinopla — Apolinário, soldado de Atanásio
contra Ário — Apolinário interpreta Jo 1.14 — O problema da união das duas naturezas
— Logos e homem perfeito — É mutável a natureza divina? — Uma antropologia
tricotomista — A idéia da substituição — O motor e o movido — A resistência da
Igreja é pura — A genuína Encarnação — Apolinário e o Monofisismo — A Igreja
antidocetista — Um nome decisivo: Calcedônia — A Escola de Antioquia — O homem
perfeito — União moral — Nestório Eutiques — Estão misturadas as duas naturezas em
Cristo? — Quatro advérbios em Calcedônia — Calcedônia adora o mistério — O
Monofisismo — Decisão contra o Monotelismo — Perspectiva dos historiadores do
Dogma — Os místicos sonham com a união — Equilíbrio das decisões eclesiásticas —
Decisões antigas e rebeldias ulteriores.
No capítulo anterior tratamos da crise dogmática das duas naturezas e, por diversas
vezes, defrontamo-nos com a crítica adversa ao credo antigo. Muitos estimam ser a
confissão tradicional inadequada à expressão contemporânea da fé cristã. Urge, pois, ter
primeiramente um conhecimento das decisões eclesiásticas dos primeiros séculos, que
surgiram com a necessidade de expressar em palavras concretas os artigos desta fé,
atacada por toda espécie de heresias. Sem dificuldade descobrimos os motivos que
orientaram a Igreja nesses conflitos. Passando por alto os detalhes específicos, diremos
sumariamente que a Igreja defendeu tanto a Divindade como a humanidade de Cristo
contra os embates da negação.
A luta em torno de Jesus Cristo alcançou culminância suprema no decorrer do século
IV. Nessa época a Igreja devia resistir aos erros de Ário, o qual negava a divindade de
Jesus Cristo: o Concílio de Nicéia condenou-o em 325. Condenou, pouco depois, a
Apolinário (Cone. de Constantinopla, 381), que, a juízo da Igreja, não conferia valor
suficiente à verdadeira humanidade do Salvador. Com base nestas condenações, iniciouse uma reflexão sobre as duas naturezas de Cristo, surgindo as heresias de Nestório e de
Eutiques. Em 451, o Concílio de Calcedônia chegou à importantíssima fixação
cristológica, a qual põe termo às divergências e reúne na mesma fé os cristãos. O que
seguiu Calcedônia foi apenas elaboração e aprofundamento das decisões conciliares
mencionadas. Tentaremos, de modo suscinto, sublinhar o significado dessas lutas e
decisões.
***
A. NICÉIA
O ano 325 figura na História da Igreja como o mais decisivo na expressão da
Cristologia. Marcou a vitória sobre uni dos mais graves ataques feitos à genuinidade da
fé. Não se confundam, entretanto, as decisões conciliares de Nicéia com o famoso
Símbolo de Nicéia (Nicaenum) que é um dos três simbolos clássicos do Cristianismo,
pois aquele data da segunda metade do século IV, sendo redigido parcialmente em
28
Constantinopla. Interessamo-nos aqui pela decisão conciliar proclamando a Divindade
de Cristo contra Ário.
Na escola de Luciano de Antioquia é que encontramos as raízes remotas do Arianismo.
Harnack qualifica Luciano de Arius ante Arium. Luciano baseava-se na Cristologia
adocianista de Paulo de Samosata, o qual ensinava que o homem Cristo fora adotado
por Deus. Definitivamente influenciado por Luciano, Ário entrou em conflito com a
Igreja, desligando-se dela para sempre no Concílio de Nicéia. Em sua base profunda,
este rompimento referia-se propriamente à Divindade de Cristo, terminantemente
negada por Ário, como se constou da leitura dos escritos do heresiarca na assembléia
conciliar. Reinava então a convicção de que, vistas a eternidade e unicidade de Deus,
não cabia falar de seres criados consubstanciais a Deus, mas apenas de seres criados ao
lado e sob a dependência de Deus. Ário aplicou o princípio a Jesus Cristo, negando,
portanto, ser o mesmo coeterno e consubstancial ao Pai, declarando ser ele apenas uma
criaidra. Escrevendo a Eusébio de Nicomédia, Ário se lamenta: “Somos perseguidos
porque afirmamos que o Filho tem urna origem, enquanto que Deus não tem começo.”
O Pai não foi Pai desde o princípio; houve época em que o Filho não era ainda criado.
“Deus só se tornou Pai com a criação de seu Filho”. Este Filho, porém, não se origina da
substância do Pai, mas somente da sua vontade. Portanto, ele não é verdadeiro Deus,
mas uma criatura decerto maravilhosamente perfeita e excepcionalmente relacionada
com Deus. Como base de suas opiniões, Ano citava numerosos textos bíblicos, tais
como Dt 6.4: “O Senhor é o único Senhor”; Pv 8.22: “O Senhor me possuia no inicio de
sua obra”; Jo 14.28: “O Pai é maior do que eu”. Portanto, o Filho é inferior ao Pai. O
Pai é incriado, mas o Filho foi gerado; aliás, gerado apenas da vontade e não da
substância do Pai. Ano obstina-se contra qualquer forma de emanação e rejeita qualquer
expressão do tipo “Luz da Luz”, aplicada a Cristo. Devido à sua relação privilegiada
com Deus, Cristo merece o nome de Filho de Deus, sem que isto acarrete o fato de que
seja Deus segundo a natureza divina. Ário opta, pois, por urna Cristologia subordinada,
em nome do Monoteísmo, que não consente outro Deus ao lado do único Deus
verdadeiro.
Neste contexto, devemos colocar Nicéia. Depois de muitas discussões, os Padres
concordaram na seguinte fórmula: “Cremos em um único Senhor, Jesus Cristo,
unigênito Filho de Deus, consubstancial ao Pai, Luz da Luz, gerado, não feito, da
mesma natureza do Pai.” Condenaram a opinião dos que afirmavam que houve um
tempo em que o Filho ainda não era. O mais importante, porém, foi a palavra técnica
homo-ousios (consubstancial) imposta pela definição, pois, nesta palavra evidentemente
antiariana, o Concílio definja sua própria definição. Segundo Ano, o Pai e o Filho não
tinham a mesma ousia ou substância comum. Fato bastante importante, pois um sínodo
de Antioquia, em 268, tinha rejeitado expressamente a palavra homo-ousios. Sem
dúvida, os padres conciliares sabiam dessa rejeição; apesar disto, recorreram ao termo
para evidenciarem sua posição. Cabe perguntar por que Nicéia fez desta palavra um
quase imperativo categórico ou uma norma da ortodoxia. Pergunta importante, pois o
Gnosticismo também empregava o homo-ousios, aplicando-o preferencialmente aos
eons que emanavam de Deus como forças reais. Podia semelhante termo utilizar-se
impunemente numa disputa cristológica? Não sugeria ele a emanação gnóstica,
condenada pela Igreja? E a expressão “Luz da Luz”, de sabor tão gnóstico (os gnósticos
ensinavam emanação à maneira do “raio do sol” ou dos “ramos da árvore”), não
comportava iguais perigos?
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
29
Houve uma razão decisiva para que a Igreja, em 325, usasse esse termo em definição de
tamanho vulto. Quando o Sínodo de 268 rejeitou o vocábulo, as circunstâncias eram
outras: nessa época ameaçavam as idéias sabelianas, contrárias à distinção entre as três
Pessoas divinas, ponto de vista este confirmado pela atitude dos semi-arianos pósnicenos, que rejeitavam ainda o homo-ousios como perigosamente sabeliano. Nicéia,
contudo, pensou que o termo era suscetível de um uso sério e luminoso (como também a
expressão “Luz da Luz”) precisamente no perigo ariano. Cada situação histórica
conhece perigos de determinado matiz. Ocorreu, pois, que, em 268, o consubstancial
tinha um sabor herético. Mas, depois de Ário ter degradado Cristo até o nível de uma
simples criatura feita sem relação consubstancial ao Pai, a Igreja serviu-se hic et nunc
deste mesmo consubstancial que, neste momento e contra este erro, tomava um valor
deveras excepcional. Fato bem demonstrado pela atitude dos arianos que, impotentes de
continuar suas ligações eclesiásticas, optaram por excluir-se da comunhão universal. A
fórmula de compromisso proposta por Eusébio de Cesaréia teria evitado este cisma, mas
ela não era clara. Muitos teólogos afirmam ser evidente que a Igreja, usando o termo
consubstancial, queria evitar recair na ideologia da emanação dos gnósticos. A Igreja
propugnava ostensivamente a honra e a Divindade do Cristo e, candidamente, lançou
mão da palavra que servia melhor à sua intenção. Atanásio, porém, antes e após Nicéia,
relutava contra esta palavra, talvez por causa do Sabelianismo redivivo em Marcelo de
Ancira. O próprio dogma, no entanto, estava garantido para Atanásio, o qual viu como o
homoousios ia sendo mais e mais valorizado na luta anti-ariana, a despeito de Marcelo
de Ancira e do Sabelianismo alertado.
Finalmente, o termo consubstancial tornou-se o centrum nicaenum, o coração da
confissão cristológica: a Igreja precisava confessar Jesus Cristo como verdadeiro Deus e
proclamar que, em Jesus Cristo, o próprio Deus aproxima-se de nós. No decorrer dos
tempos não faltou quem considerasse a controvérsia em torno do homo-ousios como
sofisticada e abstrata, sem importância religiosa. Tal crítica desconhece os motivos
religiosos que opuseram Atanásio e os Padres conciliares contra a Cristologia ariana. O
Credo de Nicéia e de Atanásio baseia-se diretamente no depoimento escriturístico;
baicamente não é outra coisa senão o eco da adoração que ressoa em todo o Novo
Testamento. Usando o termo consubstancial, o Concilio apenas pretendeu traduzir e
declarar o que o apóstolo do amor, João, escrevera muitos anos antes: “Este é o
verdadeiro Deus e a Vida eterna”.
* * *
B. CONSTANTINOPLA
De 325 a 381 a controvérsia sobre a Divindade de Cristo continuou, com seus altos e
baixos bem perceptíveis na vida agitada de Atanásio. O resultado final, contudo,
permaneceu inalterado: a definição nicena foi incorporada à fé cristã, enquanto o
Arianismo, fatalmente inclinado ao Politeísmo, não conseguiu enraizar-se na Igreja.
Subsistia o perigo, nada imaginário, de que, satisfeita pela unanimidade a respeito da
Divindade do Cristo, a Igreja pensasse ter superado todos os perigos.
Mas a Igreja não tardou em vislumbrar perigos vindos de outro lado, a saber, das
doutrinas de Apolinário. Este não atacou Nicéia; pelo contrário, fez-se célebre como
admirador incondicional de Atanásio e partidário de Nicéia. Não obstante, entrou em
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
30
conflito com a Igreja e emitiu opiniões destinadas a repercutirem amplamente na
evolução da Cristologia.
A Igreja não poupou Apolinário. não obstante estar este de acordo com Nicéia;
demonstrou mais uma vez que sua luta não visava uma formulação cristológica,
consoante a seus princípios próprios mas conforme as exigências da obediência às
Escrituras. Apolinário de Laodicéia atinha-se preferencialmente a Jo 1.14: “O Verbo se
fez carne.” Tentava compreender a unidade hipostática de Cristo a partir do Logos
eterno feito verdadeiramente carne. Esta Encarnação levou-o a toda classe de
inquirições de grande alcance, especialmente acerca do sentido da união hipostática.
Como podem dois seres se unirem para formar um só ser?
No intuito de solucionar esse problema realissimo para a mente humana, Apolinário
põe-se a ensinar que o Deus-Logos, em Cristo, não teve possibilidade de se unir a um
homem genuíno e completo, pois o resultado seria um ser intermediário. Se o Logos
tivesse assumido a forma de homem completo, também teria assumido a mutabilidade e
pecaminosidade integrantes da natureza humana. Dada a imutabilidade evidente e
bíblica de Jesus Cristo, é inadmissível que Cristo se tenha unido a um espírito humano
(mutável). Uma verdadeira união só é possível com a condição de o Logos fazer o papel
de espírito humano, princípio da autoconsciência e da autodeterminação. Neste caso,
que forma o Loqos assumiu? Apolinário elaborou a resposta de modo penoso e por
gradação. Originalmente idealizou urna espécie de dicotomia antropológica, ahna e
corpo, o Verbo assumindo apenas o corpo. Mais tarde adotou os princípios da
tricotomia, alma, corpo e espírito, o Verbo assumindo somente alma e corpo. Tais
distinções carecem de interesse para nós; o evidente é que, através delas, vemos a
mesma idéia apolinariana de substituição: o Verbo substituia o elemento inassimilável,
penetrava o humano, assumindo-o como um órgão seu. No Verbo, porém, não cabia
urna natureza humana integral, que, forçosamente, introduziria a mutabilidade nas
operações de Cristo. Em palavras resumidas: o Verbo empenhava-se para que a
Salvação não fosse comprometida. Eis por que sua humanidade não podia ser
absolutamente consubstancial à nossa. Assim, tudo em Cristo é Divino; o seu elemento
humano só serve corno instrumento passivo. No âmago desta consideração, há a
afirmação da unicidade de natureza em Cristo. Apolinário, aliás, proclamava
abertamente que Cristo não era homem genuíno.
Era inevitável o conflito com a Igreja. Esta demonstrou que, não satisfeita em confessar
a Divindade do Cristo, defendia também os textos bíblicos relativos à Encarnação e as
afirmações escrituristicas proclamando que Cristo nos é igual em tudo, menos no
pecado.
No Concílio de Gonstantinopla (381), a Igreja proclamou a perfeição da humanidade de
Cristo e condenou o Apolinarismo. Mesmo antes do concílio, os grandes capadócios,
Gregório de Nissa, Gregório Nazianzeno e Basilio, repudiaram a doutrina de
Apolinário, hostil à natureza humana genuína e autêntica de Cristo. A Igreja sempre
rejeitou qualquer diminuição da humanidade de Cristo. A posteridade, porém, julga
diversamente de Apolinário, o campeão da definição nicena. Harnack demonstra
admiração por ele, sem deixar de ver em sua doutrina as raízes do futuro Monofisismo.
Harnack reconhece, aliás, que, defendendo a humanidade genuína de Cristo, a Igreja
prestava grande serviço às gerações ulteriores. De fato, a mesma Igreja, que pouco antes
condenou os inimigos da Divindade de Cristo, travou uma luta não menos árdua em
favor de sua Humanidade: a natureza Divina não absorve a natureza humana.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
31
Chegamos às fronteiras dogmáticas de Calcedônia e de seu vere Deus et vere hoino.
Sem pronunciar-se a respeito desta ou daquela antropologia, a Igreja rejeitou qualquer
substituição, por parte do Logos, de qualquer elemento próprio da humanidade: para
fazer-se homem, o Logos não mutilou a humanidade, mas tornou-se nosso igual em
tudo, salvo no pecado. A Igreja, em 381, defendeu o mistério da união liipostática de
Cristo contra uma impugnação que, posteriormente, ressurgirá 0 derosamente no
Monofisismo. Quem considera esta discussão sofisticada, dá mostras de não entender
nada do Cristianismo. Nesse problema há, para o Cristianismo, uma questão de vida ou
morte: to be or not to be.
* * *
C. CALCEDÔNIA
Devido às lutas ciistológicas do século IV, o problema da inter-relação das duas
naturezas de Cristo não cessava de renascer. Evidenciou-se isso particularmente no
princípio do século V, com a luta contra os ensinos de Nestório e de Eutiques. A Igreja
viu-se levada a condenar ambos no Concílio de Calcedônia, em 451. O Nestorianismo já
tinha sido condenado pelo Concílio de Éfeso (431).
Para descrever este momento com maior exatidão, lembremos como a Escola de
Antioquia, oposta ao Apolinarismo, defendeu a genuinidade da natureza humana de
Cristo. Os antioquianos reivindicavam as duas naturezas, sem vacilar ante as objeções
de Apolinário. O Logos habita, ou melhor in-habita o homem Jesus: assim pretendia-se
compreender a condenação de Apolinário. A união hipostática deveria ser entendida
como uma união moral, análoga à presença de Deus em nós, embora fosse esta, como
no caso de Jesus, eminentemente superior. Nesta direção movia-se o pensamento de
Neslório. O célebre bispo de Constantinopla relutou contra a proclamação de Maria
como Theotokos, Mãe de Deus, porque Maria só podia ser chamada “mãe da natureza
humana de Jesus” e, de modo algum, de sua natureza divina. Conforme geralmente se
compreende a teologia nestoriana, as duas naturezas confundiam-se com duas pessoas,
natureza sendo para Nestório sinônimo de pessoa. Posteriormente, porém, a crítica
suscitou dúvidas a respeito da interpretação tradicional do Nestorianismo. Houve quem
julgasse injusta a condenação do heresiarca. o qual teria sido vítima das intrigas
políticas de Cirilo de Alexandria, seu grande adversário. Loofs, por exemplo, opina que
Nestório foi condenado injustamente e que, nos tempos de Nicéia, ele teria sido um
glorioso campeão da ortodoxia; até mesmo ele poderia ter aceito, de bom grado. a
terminologia de Calcedônia. Polman, por sua vez, estima a condenação das idéias
nestorianas em conjunto, como injusta e incorreta, embora não advogue sua absolvição,
pois há provas de que Nestório ensinava a dualidade de pessoas em Cristo. Esse ponto
jurídico, porém, não se reveste de grande importância, em virtude de nosso interesse
agora ser a intenção cristológica da Igreja condenando a heresia. Consta, em qualquer
hipótese, que ela quis determinar que as duas naturezas, em Cristo, não existem
separadas e que a união hipostática representava uma realidade ontológica, não uma
simples união moral, análoga à amizade entre duas pessoas. Vale dizer que a Igreja,
ultrapassando sua condenação de Apolinário, manteve a genuinidade da natureza
humana de Cristo e sua perfeita união ao Verbo.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
32
A luta contra Eutiques reveste-se de um caráter bem diferente. Eutiques achava que
depois da união hipostática só cabia falar de uma única natureza (Monofisismo).
Enquanto Nestório convertia as (luas naturezas em duas pessoas distintas, Eutiques,
impressionado pela unidade do Cristo, inferiu a unicidade de natureza no Senhor
Divino. Com toda razão foi acusado de professar a fusão das duas naturezas.
O Concilio de Calcedônia pronunciou-se não só contra a separação, como contra a
fusão. Esta decisão foi rantajosamente preparada pela famosa carta de Leão 1 ao Bispo
Flaviano (449), especificando a diferença das duas naturezas, dando lugar a repetidas
dúvidas do Nestorianismo. O Sínodo dos Ladrões (449) lavou a ortodoxia de Eutiques e
anaternatizou a todos quantos ainda se atrevessem, depois da Encarnação, a falar em
duas naturezas. O Concílio de Calcedônia (451), no entanto, decidiu que era preciso
rejeitar tanto a separação como a fusão das naturezas em Cristo. Condenando as
heresias, definiu que Jesus Cristo é “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem:
segundo a Divindade, corzsubstarzcial ao Pai; segundo a humanidade, consubstancial a
nós.” Quanto à relação entre ambas as naturezas, definiu que elas estão unidas “sem
mistura, sem modificação, sem divisão e sem separação”, conservando cada qual, na
união, a sua própria especificidade. Houve freqüentes críticas a este caráter negativo (la
definição conciliar. Harnack julga as conclusões de Calcedônia “negativas e insípidas”.
Tal opinião implica desprezo pela luta da Igreja no século V. A melhor atitude cabível,
na situação concreta, criada por Nestório e Eutiques, era rejeitar suas doutrinas que
desvalorizavam a unio personalis de Deus e homem em Cristo. Mesmo que o concílio
só tivesse falado negativamente, deveríamos ainda reconhecer que ele marcou os rumos
para a futura Cristologia. Mais adiante, examinaremos se a Igreja deveria ir além de
Calcedônia. Entretanto, vemos, à luz da História, o papel primordial da definição
calcedônica na História eclesiástica. Esta indicou os caminhos errados na solução do
mistério da união. Não é de se estranhar, pois, que na crise modernista, as definições
calcedônicas tenham sido objeto dos ataques mais graves: o que não prova o pleno
acerto nem o valor absoluto do concilio, pois este só forneceu a diretriz luminosa para
uma consideração renovada do mistério de Cristo.
* * *
Não pretendemos ter descrito totalmente a luta; demos apenas alguma atenção às
definições eclesiásticas contra Ano, Apolinário, Nestório e Eutiques. Sabemos que estas
definições foram básicas e influenciaram decididamente os rumos da Igreja no futuro. O
dogma cristológic.o vigorou sem retoques muito tempo depois de Calcedônia,
inspirando a reflexão teológica na definição das inter-relações da Divindade e
humanidade em Cristo. A luta da ortodoxia concentrou-se, durante séculos, no problema
do Monofisismo. De fato, o Nestorianismo não morreu; surgiu mesmo com força
renovada no Adocianismo do século VIII. Entrementes, a Igreja teve que lutar contra
mil tentativas de desviá-la da declaração calcedônica. Reinava a impressão de que não
se dava o devido valor à unidade da Pessoa de Cristo. Interveio finalmente uma nova
definição em Constantinopla (680), que condenou o Monofisismo. O Monotelismo,
reivindicando uma só vontade em Cristo, procurou prolongar o Monofisismo, mas sem
êxito.
O leitor atento das definições de 680 constata como, até nas fórmulas, foi preservada a
posição de Calcedônia. Quando o Monotelismo foi descoberto como reedição disfarçada
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
33
do Monofisismo, o Concilio de Latrão (649) condenou ambas as heresias, declarando
que as “naturezas, em Cristo, estão unidas sem fusão nem separação”, e que admitir
uma só vontade em Cristo é heresia condenável, “destruidora do mistério de Cristo”.
Novamente o Concílio de Constantinopla examinou a doutrina das duas vontades em
Cristo. Aderindo fortemente às definições de Calcedônia, declarou que a Igreja professa
duas vontades e dois modos de agir, “em Cristo, sem mistura, sem modificação, sem
divisão e sem separação”.
* * *
A definição constantinopolitana contra o Monotelismo foi ainda mais acerbamente
combatida do que a calcedonense, porquanto era perceptível nela certo dualismo, que
faria periclitar a unidade da Pessoa de Cnisto, perigo tanto mais persistente que a
definição de 680 constituía, de certo modo, o encerramento da luta contra a Calcedônia.
Porém, andam bem errados os que consideram esta definição como dualista,
esquecendo-se de ler atentamente, levando a sério, o advérbio “sem separação”. Seeberg
comete, portanto, um deslize quando, fazendo eco a Harnack, declara as resoluções
conciliares como “políticas”, visando uma “apologia dos antioquianos”, em virtude de
haver certa intervenção da política eclesiástica e da lógica dos conceitos. A verdade é
que novamente a Igreja denunciou e condenou, em 680, a. tendência mística, unionista
do Monofisismo. Sentiu que a procura da unidade na Pessoa de Cristo levaria a uma
total absorção da humanidade pela Divindade. Negando tal absorção e mantendo a
posição de Calcedônia, prestou-nos imenso serviço conservando o conceito do vere
homo.
É quase um milagre da história dogmática que a Igreja, depois de defender valentemente
a Divindade de Cristo contra Ário, tenha tido a coragem de opor-se contra qualquer
diminuição da humanidade perfeita de Cristo. Em meio às agitações políticas, até o fim
e corajosamente, ela repudiou qualquer construção cristológica na qual não fosse
plenamente possível confessar o Cristo igual a nós em tudo, menos em pecado.
Rejeitou a eterna tentação de se elaborar uma unidade confessional na qual se ataque
radicalmente o mistério professado em Calcedônia. Sua luta frutificou em inúmeros
aspectos.
Posteriormente, fizeram-se tentativas para superar as declarações eclesiásticas mediante
conceitos mais refinados. Mas, invariavelmente, chega-se ao resultado de que,
combatendo os termos consagrados, combate-se a intenção final da Igrej a, pois que
suas declarações nunca visaram uma formulação científica do mistério de Cristo, mas
uma enunciação da fé cristã: “Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem.”
Seguimos as lutas dos primeiros séculos em torno de Cristo com mais alegria do que as
tentativas antiespeculativas dos modernistas. Sintoma de tradicionalismo? Prurido de
tornar concebível a unidade de Cristo? Não. Temos consciência simplesmente de situarnos na continuidade da Igreja. A Igreja, lutando denodadamente por nada ceder nem à
direita nem à esquerda, conservou o depósito, guardou tudo que tinha ouvido na
pregação bíblica acerca de Jesus Cristo, o Verbo feito carne.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
34
CAPÍTULO IV – AS CONFISSÕES REFORMADAS
Sumário
Fidelidade aos credos antigos — Catecismo de Heidelberg — Um ponto controvertido:
o extra-calvinisticum — Não há dualismo Pessoa-Obra — Confessio Belgica contra a
heresia antiga — O art. 10 proclama a Divindade de Cristo — O art. 18 defende a
Encarnação — Vere Homo — Contra o Docetismo — Contra os anabatistas — O art. 19
confessa a união hipostática — Nas pisadas de Calcedônia — A verdade da
humanidade de Cristo e a bem-aventurança — Outras Confissões Reformadas — A
confessio gallicana — A confessio helvética posterior — Confissões inglesas — Critica
dos credos reformados — Doedes e Korff — O balbuciador calcedônico —
Interpretação do mistério — Continuidade com Calcedônia e evolução dogmática.
Depois das considerações sucintas em torno dos momentos capitais que viveu a Igreja
antiga, travando lutas para preservar seu credo cristológico contra as diferentes heresias,
detenhamo-nos uns instantes, ouvindo o testemunho que dão as confisões Reformadas
sobre a Pessoa do Salvador. As Igrejas da Reforma, e logo as Igrejas pós-Reformadas,
não se satisfizeram declarando-se acordes com as formulações ecumênicas antigas, mas
chegaram a uma nova fixação cristológica. Deve-se o fato às diversas controvérsias da
época, especialmente entre luteranos e anabatistas. As novas formulações, entretanto,
demonstram o cuidado de não ser rompida a continuidade com os credos antigos, tanto
niceno como calcedônico. Bem se vê essa prudência nas confissões holandesas. O
Catecismo de Heidelberg, testemunhando as duas naturezas do Cristo, liga intimamente
sua declaração à sua fé na Trindade. No capítulo dedicado à Salvação de Cristo, único
consolo na vida e na morte, entoa louvores à fidelidade do único Redentor — Jesus
Cristo — que se ofereceu para salvar a vida humana perdida. A meditação dos
Domingos (4 e 6) professa que Cristo é Redentor e Mediador, homem verdadeiro e
justo, mais forte que todas as criaturas, porque é ao mesmo tempo verdadeiro Deus.
Cristo é o Filho Unigênito de Deus, o único e verdadeiro Deus Eterno junto ao Pai e ao
Espírito Santo, beatificador ordenado pelo Pai para ser nosso profeta, sacerdote e rei.
Distinto de nós, Filho natural de Deus, Senhor nosso, nascido da Virgem Maria pelo
poder do Espírito Santo, Mediador nosso.
A respeito deste Cristo, afirma-se que ele é “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.
“Segundo a humanidade, não mais está entre nós na terra; segundo a Divindade,
majestade, graça e Espírito, nunca deixará de estar conosco.” Admite-se uma evidente
distinção entre ambas as naturezas em Cristo. Mas, não obstante isso, o artigo 48 do
Catecismo de Heidelberg suscita uma polêmica contra o Luteranismo, em torno da
inclusão da Divindade de Cristo na natureza humana do Salvador, divergência
geralmente conhecida como o ponto extra-calvinisticum.
Todas essas declarações cristológicas conservam relação intima com a obra salvífica do
Cristo, não deixando o mínimo lugar para qualquer dualismo entre a Pessoa e a Obra do
Senhor. Todo o Catecismo de Heidelberg evidencia o consolo propiciado aos mortais
pela Pessoa e Obra de Cristo.
* * *
A Confessio Belgica acusa, nas definições cristológicas, um caráter algo diferente do
Catecismo de Heidelberg, como é patente de modo especial nos artigos 18 e 19 (mas
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
35
também, nos demais artigos, a profissão de fé aparece numa perspectiva bem
determinada). Aqui, igualmente, é visada a relação com a confissão trinitária. O art. 9
rej cita expressamente as heresias de Paulo de Samosata e de Ário. O art. 10 reconhece
Cristo como o “verdadeiro e eterno Deus”, “o Filho Unigênito, gerado eternamente, não
feito nem criado (porque assim seria uma mera criatura), mas consubstancial ao Pai,
eterno como o Pai, a imagem expressa da autonomia do Pai e reflexo de sua glória,
sendo em tudo igual ao Pai”. É Filho de Deus não apenas no momento de sua
Encarnação, mas desde toda a eternidade, como Verbo e Filho, por meio de quem todas
as coisas foram criadas. No final do art. 10, afirma-se que nós adoramos, invocamos e
servimos o Cristo. Em sua totalidade este artigo respira a continuidade com as
confissões dos grandes concílios da Igreja.
Nos arts. 18 e 19 considera-se a Encarnação de Cristo (art. 18) e a distinção das duas
naturezas em Cristo (art. 19). Comentaremos ambas separadamente.
O art. 18 confessa que na Encarnação de Cristo é dado cumprimento à promessa Divina.
O modo de agir de Jesus, sua maneira de vir ao mundo, tudo é encarado dentro dos
planos da Salvação, dentro da História providencial. Não se trata de um acontecimento
ocasional, ao qual daríamos sentido posteriormente, mas de um cumprimento, da
realização das promessas feitas por Deus em tempos passados. É em relação ao plano
profético-histórico que se dá ênfase aqui à natureza humana de Jesus: “Em verdade, ele
assumiu a humanidade genuína e autêntica, fazendo-se igual a nós, homens.”
Confessando a genuína Divindade do Filho, o art. 10 salientava já esta perfeita
humanidade em relação à Encarnação. Aqui, para explicar plenamente seu pensamento,
a confissão acrescenta: “Encarnando-se, o Verbo assumiu perfeita humanidade, não só
quanto ao corpo, mas também quanto à alma, para ser um homem verdadeiro”. “Foi
necessário assumir corpo e alma de homem, para salvar o corpo e a alma dos homens”.
Cabe aqui o qualificativo de “confissão antidocetista”, pois a Confessio Belgica segue
plenamente os ensinos da Igreja antiga: corpo e alma, todo homem estava inteiramente
perdido, “portanto, Cristo precisava tomar alma e corpo humano para redimir nossa
alma e nosso corpo”.
Esses têrmos evocam o estilo de Atanásio e da própria Igreja às voltas com Apolinário.
No século XVI reinava, contudo, um estado de coisas bem diferente da situação do
século IV, motivo da originalidade de nossa Confessio Belgica. O artigo 18 toma
posição contra os anabatistas, que “negam que Cristo tomou a carne de sua mãe”, sendo
necessário afirmar o contrário de todas as maneiras: “Cristo compartilha a carne e o
sangue das crianças, é fruto da linhagem davídica; quanto à carne é fruto das entranhas
de Maria; nasceu de uma mulher.” Repisa a mesma idéia: “Rebento de Davi, rebento da
raiz de Jessé, da raça de Judá, da nação judaica, da semente de Abraão, conforme a
carne”. Que acúmulo excepcional de aspectos históricos (e proféticos)! Demonstra quão
importante era a confissão da humanidade de Cristo. Jesus vive plenamente na carne; é
preciso confessar a realidade objetiva de sua humanidade. Conferindo-se essas
declarações com a importância capital que o art. 10 dá à fé na Divindade do Cristo,
vemos, sem possibilidade de dúvida, a clareza espiendente desta fé na sua humanidade.
Não satisfeita em afirmar que Deus age em Cristo, confessamos que a Salvação vem a
nós através do homem Jesus Cristo.
Houve uma admirável unanimidade, por parte da Reforma, na aceitação desta fé
antidocetista, embora mais tarde houvesse de surgir uma discrepância entre luteranos e
reformados holandeses a respeito destes problemas e, em particular, a respeito da
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
36
comunicação das qualidades. Nessa discussão os reformados acusaram repetidamente os
luteranos de não apreciarem suficientemente a verdadeira natureza humana do Cristo;
porém, inegavelmente, uns e outros concordavam em rejeitar a concepção anabatista de
que “Cristo não tomou a carne de Maria, mas trouxe-a do céu”.
Se em algum lugar couber gratidão, sem dúvida será aqui: brilha aqui plenamente a luz
ecumênica da fé cristã. A Reforma, particularmente a confissão calvinista, viu muito
bem o dualismo latente na doutrina anabatista: “O Logos trouxera dos céus sua carne e
sangue.” Tal dualismo parte do postulado racionalista da impossibilidade da união entre
Deus e a humanidade genuína. Com ênfase total, as confissões reformadas sustentam a
realidade objetiva do vere homo, aceitando suas implicações.
***
O artigo 19 trata da união hipostática (as duas naturezas na Pessoa de Cristo). O núcleo
da exposição acha-se na tese sobre a união indissolúvel da Pessoa do Filho com a
natureza humana. União pessoal e não alguma relação entre dois filhos ou duas pessoas;
e junção de duas naturezas na unidade da Pessoa. Entre a segunda Pessoa da Trindade e
a natureza humana é realizada uma conjunção hipostática, da qual resulta a única Pessoa
de Jesus Cristo.
Plenamente fiel ao espírito de Calcedônia, o artigo 19 confessa que, na união das duas
naturezas, cada qual conserva suas qualidades próprias e distintas, o que forma uma
evidente antítese contra qualquer deificação da natureza humana ou humanização da
natureza Divina. Não cabe aqui nenhuma forma de Monofisismo; Cristo não é uma
mistura de Deus e de homem, nem uma natureza Divino-humana. Especifica-se isso,
concretamente, para cada uma das naturezas. A natureza Divina é incriada, continua
enchendo céus e terra; como não teve começo, do mesmo modo não terá fim. Na
Encarnação, ela não é incluida na natureza humana (notemos a unanimidade, aqui, com
o Catecismo de Heidelberg). A natureza humana, em Cristo, não perdeu seus atributos:
continua sendo criada, finita, passível, conservando tudo que é próprio de um ser
humano (exceto o pecado). Através de todas essas explanações percebe-se o ensejo de
conservar o mistério de Calcedônia. Em Cristo não é afetada a plena autenticidade da
natureza humana. Infere-se mesmo que a nossa bem-aventurança e ressurreição
dependem da veracidade do corpo de Jesus. Afirma-se que nem mesmo na morte de
Jesus as duas naturezas se separam, porquanto sempre há de ser certo que o Cristo é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, vere Deus et vere liomo. Para terminar, o artigo
19 resume magnificamente sua confissão das duas naturezas declarando: “Cristo era
verdadeiramente Deus, para vencer a morte com sua força, e verdadeiramente homem,
para morrer por nós na fraqueza de sua carne”.
***
Encontramos igual continuidade com as decisões ecumênicas tradicionais nas outras
confissões das igrejas reformadas. A perfeita sintonia não deixa de impressionar. Assim,
a Confessio Gallicana diz: Dieu et homme dans une Personne. Condena a Michel
Serveto lequel attribue au Seigneur Jésus une divinité fantastique. As duas naturezas
são vraiement et inseparables conjoinctes et unies, demeurant nean moins chacune en
sa distincte propriété. A natureza Divina é incriada e infinita, preenche todas as coisas;
a natureza humana est demeurée finie, ayant sa forme, mesure e propriété.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
37
Doutrina idêntica é professada, com plena evidência, pela confissão helvética de 1562
(Confessio Helvetica). A carne de Cristo é “verdadeira, não fantástica, nem trazida do
céu”. As duas naturezas são unidas, mas não misturadas. Nunca foi questão a deificação
da natureza humana de Cristo. Rejeita-se a separação das naturezas do Nestorianismo.
Nas confissões inglesas temos a mesma declaração de maneira inalterada, especialmente
no referente à união indissolúvel das naturezas. Com particular ênfase, a confissão de
Westminster rejeita qualquer fusão delas e proclama a unidade da Pessoa by each
Nature doing that which is proper to itself.
As confissões reformadas, indubitavelmente continuam na linha de Calcedônia.
***
Não dissimularemos que a Confessio Belgica não tenha sido criticada severamente,
precisamente por sua formulação cristológica. Basta lembrar as impugnações de Doedes
e de Korff. A crítica de Korff é particularmente interessante, pois foi Korff quem
defendeu, com singular vigor, as decisões de Calcedônia contra o embate modernista.
Reconhece, na verdade, que a Corzfessio Belgica apresenta a Cristologia à maneira
reformada. Mas impugna o art. 19, em particular, por não expressar de modo feliz a
idéia especificamente reformada. “A redação é deficiente, direi mesmo balbuciante”, e
seu conteúdo fica abaixo das expectativas. As objeções de Korff enveredam, antes de
tudo, contra o extra-calvinisticum. Mas, além disto, não se dá por satisfeito com a
formulação “assaz obscura” da união pessoal (hipostática).
Korff subscreve o juizo de Doedes: Na Confessio Belgica encontramos apenas um
balbuciar dogmático. Porque enfatiza Korff esse caráter obscuro e balbuciante da
formulação? Acaso não foi ele mesmo quem acentuara a necessidade de deixar seu
lugar ao mistério, ponto tão caro à Igreja? Esperava-se mais compreensão de sua parte.
Evidentemente, a Confessio Belgica não pretendia dar a interpretação do mistério, pelo
contrário, apenas ambicionava formular a aceitação real e simples daquilo que a Igreja
antiga professava: “Em Cristo, as duas naturezas unem-se sem divisão, sem separação,
sem mistura e sem modificação.” Concordaremos em que o texto da confissão dá certa
impressão de balbucio, mas neste balbuciar ouve-se bem inteligivelmente a rejeição de
toda e qualquer tentatjva contra Calcedônia.
***
As confissões reformadas situam-se, pois, consciente e intencionalmente, no esquema
de Calcedônia. Cabe perguntar, agora, se convinha aceitar esta continuidade com
Calcedônia e se, de fato, houve alguma alteração essencial no progresso ulterior destas
confissões. Korff está convencido de que ocorreram tais alterações em diversos lugares.
Koopmans é de opinião contrária e vai até considerar o art. 19 como “a perfeita
elaboração da fórmula de Calcedônia”. “Quem penetra a intenção profunda da
Confessio Belgica, não achará dificuldades na expressão do art. 19.” Fica em pé a
pergunta acerca de algum progresso ulterior na formulação cristológica. Korff aceita o
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
38
texto calcedônico sem concordar com a interpretação dada pelos teólogos no decurso da
história da Cristologia.
Importa, pois, considerar se houve, e em que medida houve, uma evolução do dogma.
Embora todos concordemos na possibilidade de certo progresso dos dogmas,
costumamos hesitar antes de mencionar um progresso no dogma cristológico. O
Concilio de Calcedônia, reverentemente, confessou a unidade da Pessoa na dualidade
das naturezas em Cristo; ressaltou, porém, o aspecto “mistério” desta doutrina. Caberia
aqui um progresso ulterior? Esta pergunta tem, em Korff, uma indole sui generis; pois
Korff, com tenacidade ferrenha, intentou manter intata a confissão elaborada em
Calcedônia, sem admitir que, posteriormente, houvesse qualquer progresso positivo que
não redundasse em redução do mistério de Cristo. Eis-nos levados a perguntar: Teremos
de parar em Calcedônia?
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
39
CAPÍTULO V - ESTACIONAR EM CALCEDÔNIA?
Sumário
Problema de Miskotte e Korff — Korff exige um ponto final que fixe a Cristologia —
Advérbios que são bóias no mar da teologia — A Igreja tentada — Será dogma a
interpretação? Alcance da formulação cristológica — Nada de conclusões em torno de
Calcedônia! — Respeito ao mistério — Honig faz reflexões sobre Calcedônia —
Inexistência de um desenvolvimento ulterior — Inexistência de oposição contra
declarações ulteriores — Aalders em face do mistério — Como se interpretou
“estacionar em Calcedônia” — Perigo da racionalização — Evolução dogmática —
Visão dogmática de Korff — Regressão e progressão — Senhores do mistério? — Um
pseudoprogresso — É Calcedônia puramente negativa? — Como o negativo pode se
tornar positivo — Quatro advérbios de alcance positivo — Ambas as naturezas de
Cristo conservam sua peculiaridade — Uma única natureza ou uma só vontade? —
Novamente o extra-calvinisticum Referência a Calcedônia — Que é o mistério? —
Desenvolvimento não é interpretação logistica — Encerra realidade o vere Deus vere
homo? — Mistério e paradoxo — Calcedônia e a Biblia Credos e pregação — Um
estacionamento genuino.
Este capítulo aponta para uma questão capital. Foi ela apresentada por Miskotte a
propósito de uma apreciação critica da obra de Korff, não cessando desde então de
ocasionar vivas discussões. Estacionar em Calcedônia? Esta pergunta alcançou
atualidade particular em 1951, pois muitas denominações cristãs comemoraram
solenemente o aniversário do Concilio de Calcedônia. Coube a Korff delimitar com
precisão o alcance da questão que agitaria o mundo teológico. Em vez de um ponto de
interrogação, a frase “estacionar em Calcedônia” era seguida por um ponto de
exclamação, com a intenção declarada de conferir às decisões calcedônicas um caráter
final e intangível, decisivo e definitivo para a fixação da Cristologia, sendo que todo
desenvolvimento ulterior era condenado. Incansavelmente Korff protestava em seu
respeito sagrado e em sua profunda estima pela confissão de 451, a qual, em suas
definições negativas, não violava o mistério da Pessoa de Cristo. Conforme sua opinião,
o concílio não pretendia definir o indefinível, mas confessar Cristo vere Deus et vere
liomo. Longe de constituir uma deficiência, os famosos quatro advérbios negativos de
Calcedônia (asynchytôs, atreptôs, adiairetôs, achoristôs = sem confusão, sem mudança,
sem divisão, sem separação) enriquecem a fé e a humildade da Igreja. Esses advérbios
assemelham-se a um alinhamento de bóias cercando o estreito canal navegável e
alertando os navios contra os perigos ameaçadores dos dois lados. Não são uma
definição nem servem para definir, pois tal não foi a intenção da Igreja. Infelizmente a
teologia não soube resistir à tentação de enveredar por outro caminho, trabalhando a
decisão de Calcedônia, manipulando suas fórmulas e tirando conclusões de maior vulto
para deixar transparecer a unidade e a diversidade do Cristo. “O estudioso da história
cristológica constata que, não raras vezes de modo geral, caiu-se nesta tentação.”
Desejando-se saber o segredo da união pessoal, manipulava-se o esquema das duas
naturezas na esperança de fazer uma “radioscopia” da história evangélica, determinando
exatamente o que Jesus fizera em virtude de sua Divindade e o que havia feito em
virtude de sua humanidade.
Mas semelhante intento não evita que se resvale em alguma heresia: separação ou
confusão das naturezas. “Esquecendo que dogma não é interpretação, a teologia, com
pretensões de interpretar mistérios, acaba entrando em conflito com o dogma”... “A
confissão de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é um ponto final que não se
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
40
deve converter em ponto de partida.” Calcedônia não se presta para especulações
dogmáticas e exegéticas ulteriores. O mesmo acontece, aliás, com as outras formulações
dogmáticas. Mas, no campo cristológico, a regra é de especial rigor.
Evidentemente, para Korff, a questão acarreta conseqüências múltiplas e sérias, como
não tardou a patentear-se com o Monofisismo e o Monotelismo. As conclusões de
Nestório e de Apolinário pareciam teologicamente válidas: tomando-se Cal-. cedônia
como ponto de partida, incorreu-se na tentação de explicar o como da Encarnação e
concluiu-se pela fusão das duas naturezas, ou, quando menos, das duas vontades. Para
Korff, não existe falta de lógica nisso. Mas nesse campo não cabe articular qualquer
conclusão, seja ela lógica ou não. Concluir seria errar. Eis por que resta somente
estacionar na adoração do mistério proclamado por Calcedônia: Deus veio ao mundo,
pois Crísto é verdadeiramente Deus, embora também verdadeiramente homem. Em
resumo, só nos resta “estacionar em Calcedônia!”.
***
O problema atualizado por Korff é antigo, diretamente relacionado com as formulações
negativas de Calcedônia. Kuyper julga que a luta teológica dos primeiros séculos
concretizou a Cristologia, alcançando esta maior clareza com a Reforma. Honig diverge
ligeiramente: “A Cristologia não é susceptivel de progresso e já foi formulada em toda
sua exLerzsão; no campo cristológico, a definição atingiu os limites possíveis e não
tenho a mínima dúvida em sustentar que a doutrina sobre Cristo Mediador não comporta
qualquer progresso.”
Aalders considera os quatro advérbios de Calcedônia como escoras levantadas em
lugares perigosos. O concílio não declara como é possível a união entre as duas
naturezas, mas “indica os limites,que não devem ser ultrapassados”. Atestado de
indigência? Os padres conciliares aceitavam essa pobreza de bom grado e até se
vangloriavam dela, pois há coisas superiores à nossa compreensão, diferentes, mais
altas, impene tráveis, que adoramos como façanha de Deus e mistério de sua majestade..
“Aqui a Igreja deve parar ante os limites vedados: é questão vital para a Igrej a de
Cristo.” Por outra vereda estamos novamente diante do “estacionar em Calcedônia!”
Porém, diversamente de Korff, Aalders pondera que a Igreja foi sábia e não ultrapassou
as barreiras.
***
Do que precede evidencia-se que o imperativo “estacionar em Calcedônia” recebe
diversas interpretações difíceis de serem harmonizadas. Assim fica mais claro o alcance
do título deste capítulo. Qual pode ser o significado do verbo “estacionar” para o dogma
cristológico? A pergunta excede o campo teórico, pois atinge diretamente as decisões
confeccionadas pela Igreja, tais como a decisão antimonotelita ou a extra-calvinisticum.
De fato Korff as rejeita como conclusões injustifícadas de Calcedônia.
É necessário, pois, indagar se Korff, com sua visão do mistério, nos conduz ao bom
caminho. Antes de mais nada, persuadamo-nos de que está cheia de perigos a tendência
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
41
de racionalizar o mistério hipostático e diminuir, de uma forma ou de outra, a confissão
da Igreja antiga. O perigo tornou-se realidade nas décadas posteriores à Calcedônia.
Terminaram mal as tentativas de se ir além, de tornar concebível ao pensamento a união
hipostática. Há, portanto, determinado “estacionar em Calcedônia”, erigido contra as
especulações de qualquer tipo que pretendam desvendar o mistério apresentado e crido
unicamente à luz da revelação. Mas isto não comporta, ipso facto, a justificação da
atitude intransigente de Korff. Importa somente que sejam definidas as noções de
desenvolvimento e de conclusões dogmáticas. Na pressuposição de Korff,
desenvolvimento do dogma significa tratamento logistico do mesmo, mediante o qual o
pensamento racional toma o conteúdo bíblico e desnuda-o cada vez mais do seu caráter
misterioso. Para Korff, não há possibilidade de uma compreensão progressiva da
mensagem revelada mediante uma ligação crescente com o Verbo da Escritura, nem de
uni ouvido progressivamente mais atento à harmonia de toda a Escritura Sagrada. Caso
existisse apenas um “desenvolvimento” dogmático, que nos desviasse sempre mais da
simplicidade da fé, Korff teria plena razão concitando-nos a parar; luas, então, devia
concitar-nos a parar, não em 451, mas no próprio início da reflexão dogmática cristã.
Ora, a Igreja nunca compreendeu o progresso dogmático como superação dos dados
escriturísticos, ou vitória sobre a impenetrabilidade do mistério. Evidentemente o
imperativo de Korff está ligado à sua compreensão do progresso. Ele mesmo o
reconhece. Sem advogar um indiferentismo dogmático, Korff parece sofrer de certo
arrepio inato e ético diante de qualquer formulação dogmática, o que o impele a
escrever: “a ciência dogmática não deve trabalhar nem sistemática nem
progressivamente” e, em outro lugar: “deve trabalhar prudentemente”, o que é um
conselho excelente. Mas, com prudência ou sem ela, Korff sente o perigo em qualquer
elemento conclusivo, necessariamente inerente à pesquisa dogmática. Sua convicção é
que não devemos tirar conclusões num campo onde nem sabemos “se a conclusão tem
valor”. Ora, na Salvação não há vislumbre de sistema; há apenas uma série de
iniciativas Divinas contingentes que nos levam de surpresa em surpresa. Que lugar fica
então para a nossa função dialética? Não há dúvida que o raciocinio de Korff impugna o
logicismo e a sistematização racionalista aplicados às iniciativas Divinas. Pretende
introduzir nas disciplinas dogmáticas um modo de pensar regressivo, em vez do
pensamento progressista: voltar cada vez mais ao ponto de partida ou seja, à revelação
de Deus. Entretanto, desta maneira nunca superaremos a confusão.
A oposição entre progressivo e regressivo é insustentável, pois ela pressupõe uma
caricatura da evolução dogmática e do desenvolvimento confessional da Igreja. A
caricatura deve-se às circunstâncias vividas por Korff,que viu, de fato, certo pretenso
progresso, que nada tinha a ver com o retorno necessário e repetido às fontes reveladas,
mas era um afastamento progressivo da Escritura, e logo abandono da Escritura
“superada”. Essa evolução não era imaginária e deveria, portanto, ser encarada como
um real perigo. Neste ponto o evolucionismo católico romano entra em conflito com o
progressismo reformado: é o progresso originado por um aprofundamento da Escritura,
ou por um afastamento dela? Nesta perspectiva, conipreendernos a antítese korffiana
regresso-progresso. Não obstante, o problema de Korff está mal proposto na forma de
um dilema falso: pode haver um progresso que corra paralelo a um constante regresso à
Escritura. É precisamente através da constante pesquisa escrituristica que a reflexão da
Igreja descobre sua missão e programação “kerygmática”; em virtude deste regresso
constante às Escrituras, ela pondera a quatidade de suas reflexões e de sua pregação,
corrigindo-as, caso necessário. Tal progresso teve papel preponderante na história da
Igreja. A reflexão cristã ideal não consiste num progresso formal, mas na expressão
perfeitamente fiel da Escritura, crescentemente compreendida. Esta compreensão
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
42
crescente capacita a Igreja para descobrir e rejeitar as heresias. Dizer sempre coisas
novas não pode nem deve ser intenção da teologia dogmática. No entanto, ela se
defronta sempre com situações novas que ameaçam a salvação dos homens; em tais
casos, incumbe-lhe encontrar outras formulações sem redigir dogmas novos. Ela
compreende a verdade de Deus na realidade nova, acontecendo não raras vezes que, sob
a iluminação do rerbo e do Espírito, torna-se mais consciente da riqueza da salvação,
que sempre lhe foi concedida.
Pensamos que este ponto de vista esclarece o problema do “estacionar em Calcedônia”.
Em primeiro lugar, não há razão para fazer com que a Igreja fique estancada em
determinada definição, particularmente na Cristologia. Isso teria sentido na
interpretação korffiana do progresso, ou seja, como dominio racional do mistério. Em
segundo lugar, não só na Cristologia como em toda a dogmática cristã estamos em
contato com o mistério, pois toda a doutrina cristã converge para o mistério e participa
dele. Portanto não é possível fazer da decisão de Calcedônia o ponto final, por mais
valiosa que tenha sido. Porventura a Escritura não é mais rica do que qualquer
pronunciamento eclesiástico, por mais excelente e atento ao Verbo divino que este
possa ser? Assim opinando, não pensamos aderir ao relativismo dogmático, senão
determinar o dogma em seu lugar correto, ou sei a: um lugar na Igrej a, cuj a existência
dependa totalmente do Verbo de Deus. Se a Igreja compreender esta sua total
dependência, não incorre no perigo do falso progresso, mas também não se furta às
exigências dum progresso genuíno. O erro de Roma não consiste, portanto, no progresso
como tal, e,sim,nos postulados errôneos de seus teólogos, especificamente na
equiparação de Escritura e Tradição invocada em qualquer progresso dogmático de
Roma. Tal perigo, por sua vez, não exclui que a Igreja, no seu desenvolvimento e a
despeito das multifárias ameaças de sua marcha histórica. seja seguida pela Escritura,
para uma crescente clareza,e habilitada a formular sua fé dentro das normas da cautela e
da prudência.
Assim mesmo, invoca-se urna razão especial para esse estacionamento em Calcedônia.
Esta razão é o caráter negativo da declaração calcedônica. O concilio não disse como
devemos compreender a união hipostática do Verbo, mas como não a devemos
compreender. Esta mesma discrição, que se satisfaz com um pronunciamente negativo,
defensivo, porventura não implica no repúdio a qualquer progresso?
Para responder a esta pergunta, convém examinar, primeiramente, se há fundamento
para acentuar o caráter meramente negativo da fórmula de Calcedônia. Para um leitor
atento e circunspecto, a qualificação “meramente negativo” não faz jus ao decreto de
Calcedônia, porquanto as quatro indicações negativas equivalem, evidentemente, a uma
declaração positiva. Da mesma forma, a sinalização prevenindo um precipicio equivale
a uma indicação positiva. Também outros textos negativos, por exemplo os textos da
Biblia relativos à nova Jerusalém, possuem um alcance altamente positivo. Portanto,
não convém exagerar o caráter negativo da definição em foco; Aalders não hesita em
acentuar o lado positivo da mesma. Acrescentemos que, embora não seja incluído
diretamente nos quatro advérbios negativos, o alcance positivo da decisão conciliar está
no contexto geral que sói ser preterido na discussão, pois as quatro palavras citadas
pertencem a um texto bastante considerável,em que Jesus Cristo é reconhecido como
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, consubstancial ao Pai, segundo a Divindade, e
consubstancial a nós, segundo a humanidade; nascido, segundo a humanidade, no fim
dos tempos, para nós e para nossa salvação, da Virgem Maria, a Mãe de Deus; um só e
mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, reconhecido em duas naturezas, “sem
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
43
confusão, sem mutação, sem divisão, sem separação”, visto que a diferença das
naturezas de nenhum modo foi tolhida pela união, mas antes as caraterísticas de cada
natureza foram preservadas, contribuindo a formar uma só pessoa e hipóstase.
As quatro palavras, assim recolocadas no seu contexto, embora negativas, significam de
fato que a Igrej a não consegue penetrar o mistério da Encarnação, mas, com base no
âmago das Escrituras, revelar algo positivo acerca desse mistério, em particular a
persistência dos atributos nas respectivas naturezas. É sumamente importante constatar
que foi exatamente este caráter positivo que influiu nas formulações posteriores,
impugnadas por Korff. Este equivoca-se, portanto, quando insinua que Calcedônia
emitiu apenas uma declaração determinando como não se devia pensar acerca da união
hipostática. Por que Korff não diz que Calcedônia se extralimitou, devendo concluir a
definição logo após os quatro famosos advérbios? Deveria concluir sem especificar a
persistência dos atributos de ambas as naturezas? Há bastante ilogismo no fato de
combater tão acerbamente as definições posteriores contra o Monofisismo e o
Monotelismo.
Não menos ilógico é Korff atacando o extra-calvinisticum o qual afirma simplesmente
que, depois de encarnado, o Logos não ficou encerrado na carne, mas, na expressão do
Catecismo, “sendo a Divindade incompreensível e onipresente, ela existe fora da
humanidade assumida, sem deixar de ser-lhe pessoal- mente associada.”
Korff reconhece que o ponto “extracalvinistico” não é peculiar do Calvinismo. Esta
doutrina não era nova em si; expressava uma convicção comum a quase toda a teologia
pré-reformada. Atanásio conhecia-a bem; recebera ela de Agostinho esta típica
formulação: Cristo acrescentou a si próprio o que ele não era, sem perder o que ele era.
A carta de Leão 1 que tanto influiu na decisão de Calcedônia declara que Cristo desceu
de sua sede celestial, sem se despojar da glória de seu Pai. Korff percebe, na realidade,
que esta perspectiva recebeu singular relevância na teologia reformada e julga dever
impugnar isso, pois tal doutrina presume mais do que convém. Perguntaremos, porém, a
Korff, em que a teologia reformada nega a afirmação calcedônica da persistência dos
atributos em ambas as naturezas de Cristo? Na acentuação adotada no conflito com os
luteranos, não consta a mínima adição às decisões de Calcedônia. Se tal acusação não
passa de suposição gratuita, deve-se ao fato de que Korff compreendeu o Concílio de
Calcedônia em sentido totalmente negativo, negligenciando toda a parte final do decreto
relativo à união hipostática. Não se pode, pois, rejeitar a priori as declarações
posteriores da Igreja, como se fossem conclusões especulativas à margem de quatro
advérbios. Tampouco cabe rejeitá-las, invocando urna compreensão a priori do mistério.
No capítulo sobre a crise da doutrina cristológica, já vimos como se repetiu o apelo ao
mistério para rejeitar o conteúdo concreto do dogma (Heering), prova de que não nos
devemos contentar com o refúgio rio mistério. De fato, a história da Cristologia
demonstra que o conceito de “mistério” foi, muitas vezes, obscurecjdo, mais ou menos
gravemente, e Jransformado numa vaga idéia de incompreensibilidade; esqueceu-se que
o mistério revelado pela Escritura diz respeito ao caráter insondável do amor de Deus,
dando-nos Deus revelado na carne. Calcedônia indica este mistério como iniciativa do
Filho de Deus assumindo a carne humana. Menciona esta união em termos negativos
para afastar a suposição de que se pretendia compreender tal iniciativa segundo
categorias humanas, elucidativas, com o risco de sacrificar a unidade pessoal ou a
duplicidade das naturezas. Foi com estes termos que o Concílio combateu as heresias do
século IV, que concretizavam realmente a ameaça ao mistério da Encarnação.
Calcedônia, exatamente para expressar sua fé no mistério, pronunciou-se sobre a
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
44
permanência específica das duas naturezas, o que não constitui um segundo dogma
acrescentado ao vere Deus et vere liomo, mas é apenas uma nova expressão da
Encarnação do Verbo. Isto porque a união hipostática das duas naturezas é a realidade
inteligível que nos comunica que Deus, na Pessoa de Cristo, veio a nós em carne
humana. Rejeitar a autenticidade, quer da Divindade quer da humanidade, faz periclitar
a Encarnação do Verbo, ou seja, a fé cristã. Tudo isto é atinado; portanto, não é possível
falar de estancamento contra formulações ulteriores, como se a declaração de
Calcedônia ocupasse um lugar único; nem se pode afirmar que a Igreja manipulou
posteriormente o credo de Calcedônia, logisticamente, como insinua Korff; nem
podemos sacrificar o extra-calvinisticum, que não atenta contra o vere Deus et vere
homo, mas preserva-o.
Fato curioso: o próprio Korff não escapa de certa maneira de falar “extra calvinística”.
Assim, ele escreve que há em Cristo “uma humanidade que reflete a Divindade”, ou que
“a Divindade pôs o seu selo sobre a humanidade de Cristo. Expressões bem
surpreendentes na boca de quem recusa interpretar com a ajuda de Calcedônia, e se
declara incapaz “de dar opinião sobre a influência da natureza Divina de Cristo em sua
natureza humana 1” O próprio exemplo de Korff demonstra, pois, que em Calcedônia
não se tratou apenas da indicação de um mistério impenetrável como qualquer outro
mistério, mas da Encarnação do Verbo, “Deus e homem”; não da união misteriosa e
paradoxal de duas pessoas, mas da operação de Deus em Jesus Cristo.
Por terem enfatizado a peculiaridade de ambas as naturezas em Cristo, nem Calcedônia
nem os credos posteriores merecem censura. Mas exatamente depois de Calcedônia,
manter-se-á plenamente que o Filho de Deus veio em carne, sem descambar para
especulações abstratas sobre o finito e o infinito. Só depois de tomar a sério a fé
cristológica vere Deu.s ei vere lwzno, poder-se-á falar, com base nas Escrituras, tanto
nas coisas que dizem respeito a Deus quanto nas que dizem respeito ao homem.
Destarte, os limites da reflexão dogmática não estão contidos em determinada decisão
histórica da Igreja, mas na exegese, ou melhor, na própria Escritura. Sem dúvida, a
Igreja ameaçada pelas muitas heresias e especulações fátuas, saberá ser cautelosa. Mas,
por outro lado, ela tem a liberdade e o dever de manter, a despeito dos heréticos, que
este mistério não é um paradoxo reservado à intuição irracional da fé, mas um ato de
Deus, daquele que permanece verdadeira e plenamente Deus, mesmo quando assume a
natureza humana.
Para a Igreja prevalece a plenitude do testemunho bíblico. Segura desta plenitude
inesgotável, ela poderá rejeitar, com igual direito, todo o empobrecimento da fé
cristológica e todo apelo covarde ao mistério. Para ela, Calcedônia é bem menos do que
essa plenitude escriturística, perene alimento da pregação. Nem por isso desmerece a
confissão calcedônica; simplesmente, uma confissão não prevalece contra a riqueza e a
plenitude da Bíblia. A própria confissão refere-se a esta riqueza e plenitude. A riqueza
bíblica não se identifica com o tal mistério incompreensível, a cuja irracionalidade nós
nos inclinamos; mas ela se identifica com a realidade, centro e coração da Escritura:
“Aquele que era rico se tornou pobre por nosso amor, para que pela sua pobreza
fôssemos feitos ricos.” Deste mistério é que a Igreja testemunhou em todo tempo e
ocasião. Ela não conhece outro limite senão o da própria revelação feita por aquele
sobre quem está escrito: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai”.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
45
CAPÍTULO VI – PESSOA E OBRA DE CRISTO
Sumário
É possivel distinguir Pessoa e Obra em Cristo? Será pura especulação a questão das
duas naturezas? — Doeilinger diverte-se com o Papa — Ontologia e Soteriologia —
Qui propter POS — Uma palavra ambígua de Melanchton — Melanchton se defende
Lutero comprometido — Os beneficios de Cristo e a Pessoa de Cristo — Brunner se
torna fenomenologista — Considerar-se-á primeiramente a Obra de Cristo? —
Princípios e perspectivas — Pessoa e Obra na unidade — Ponto de partida — Althaus
caminhando de “baixo para cima” — Metodologia cristológica — Um teólogo chamado
Gogarten — Revelação e Jesus Cristo — Interesse ontológico — Calvino e a mystica
cominunicatio — Ilustração típica: a Santa Ceia no ensino de Calvino — O maravilhoso
artigo 36 da confessio gallicana — Concretização da Salvação — Cristo inseparável de
sua função salvadora — Descambar para a abstração?
Antes de proceder a aprofundamentos em torno da Pessoa de Jesus Cristo, convém
examinar se a distinção comumente feita entre Pessoa e Obra de Cristo é justificada
metodológica e religiosamente. Não faltaram críticas a respeito disso, baseadas no
temor de que tal distinção relegasse a fé na Pessoa de Jesus Cristo ao mundo das
abstrações e desse lugar a discussões especulativas sobre as duas naturezas. É
compreensível que tal temor se tornasse contagioso, especialmente nos círculos afetados
pela acerba crítica desencadeada contra as duas naturezas. Entretanto, a questão capital
que nos deve preocupar é precisamente a de saber se a critica em torno das duas
naturezas é acertada ou se não passa de mera especulação metafísica.
Não é sem interesse o incidente jocoso narrado certa vez por Doeilinger e anotado por
Ritschl. Numa ocasião Benedito XIV estava visitando um mosteiro de irmãs. Cantavam
elas uma dessas missas cheias de repetições sem fim: não saíam do genitum, non factum
(gerado, não feito). O papa perdeu a paciência; levantou-se e cortou o credo
interminável com as seguintes palavras: Sive genituin, sive factum, pax vobiscum! (Quer
tenha Cristo sido gerado ou feito, a paz seja convosco!) Ritschl gostou tanto da piada,
que comunicou-a por escrito a Harnack, com este comentário: “Uma ironia magnífica
contra a dogmática e suas teses!” No campo dogmático, Ritschl não prestava
importância aos juízos metafísicos, mas aos juízos de valor; a ontologia não interessava,
mas a salvação. Exatamente deste ponto de vista antiontológico é que a critica da
distinção tirou seus argumentos. Alguns opinam que a doutrina da Pessoa de Cristo é
necessariamente de índole ontológica e, portanto, tende a dar caráter secundário ao
aspecto soteriológico da Cristologia. Estes apelam insistentemente aos Loci de
Melanchton: “Confessar a Cristo significa reconhecer seus benefícios, e não, como se
pretende às vezes, apreender suas naturezas e os aspectos de sua Encarnação.” Esse
argumento e citação são caros ao século XIX para reivindicar a genuína Cristologia que
não se interessa pelas duas naturezas do Cristo nem pela essência da Pessoa de Cristo,
mas primordialmente pelos seus beneficios, pela graça dada a nós. A frase de
Melanchton passou desta maneira,por toda classe de críticas, terminando por ser
compreendida como uma crítica à própria confissão da Divindade de Cristo atribuida à
Metafisica e, portanto, rejeitada. Quão longe estamos das intenções de Melanchton! Este
referia-se à teologia• escolástica, que, com seu palavrear e prestidigitação conceitual,
obscurecia tantas vezes gravemente o Evangelho dos benefícios de Cristo. Para refutar
estes abusos, Melanchton apontava o poder do pecado, a lei e a graça, elementos dos
quais nasce o conhecimento de Cristo. Nesta perspectiva é que escrevia as referidas
palavras, acrescentando: “Se ignoras para que fim Cristo se encarnou e foi crucificado,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
46
de nada te aproveita saber sua história”. preciso conhecer Cristo como remédio nosso,
como nossa salvação integral, cojsas que os escolásticos não nos ensinam. Veja-se
Paulo: ele não se extravia em teorias filosóficas acerca da Trindade ou da Encarnação,
mas fala do pecado, da graça, da salvação preparada em Cristo. Melanchton julga que
nunca se deve prestar importância às especulações frias, ontológica, que não dizem
respeito à salvação: elas podem ser filosóficas, mas não são cristãs. Na Pessoa e Obra de
Cristo trata-se, primordialmente, do consolo e da esperança da consciência atribulada.
Tal contexto revela-nos que a intenção de Melanchton não era de gerar indiferença para
com a confissão de Cristo “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, mas de protestar e
precaver-se contra as especulações infrutíferas dos teólogos escolásticos. K. Barth
observa acertadamente que a linguagem de Melanchton é bem diferente quando defende
a Trindade contra os antitrinihrios. Na sua obra construtiva, Melanchton propugna a
índole especial do conhecimento religioso, que é experiência da salvação que Cristo nos
propiciou. As suas frases incriminadas, se bem merecidas por aqueles que se perdem em
vaidosas especulações sobre a Pessoa e as naturezas de Cristo, não constituem
argumento contra a distinçãa entre a Pessoa e a Obra de Cristo. Lutero também foi
invocado contra esta distinção, pois ele sentia como Melanchton: “Não é em virtude de
ter duas naturezas que o Salvador é chamado Cristo. Mas Jesus leva este nome senhorial
e consolador, em virtude de seu ofício e de sua obra. Se ele é, por natureza, Deus e
homem conjuntamente, isso interessa tão somente a ele; mas o que a mim me traz
consolo e proveito é que Jesus exerceu seu ofício a meu favor, derramou seu amor sobre
mim, aceitando ser meu Salvador e meu Redentor.” A idéia de Lutero, parecida com a
de Melanchton, é que o caminho para o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo não
envereda pelas teorias em torno das duas naturezas, mas pela experiência de sua graça.
Isto não acarreta qualquer menosprezo pelo conhecimento da Divindade e humanidade
de Cristo, como se evidencia através da obra de Lutero. Mesmo usando de reserva com
relação a certas expressões típicas que podiam causar mal entendidos e de fato os
causaram — devemos reconhecer que Lutero, não menos do que Melanchton, repudiava
a ideologia futura, segundo a qual não importam, na Cristologia, os juízos metafísicos,
mas os juízos de valor. Ambos os reformadores expressaram, como melhor lhes cabia,
que os benefícios de Cristo não podiam ser separados de sua Pessoa, pois são benefícios
pessoais, não gerais. Não podemos interpretar a Reforma partindo das opiniões de
Ritschl. A Reforma, tal corno a Escritura Sagrada, desconhecia qualquer diferença entre
juízos metafísicos e juízos de valor na elaboração de sua Cristologia.
Referindo-se às palavras de Melanchton, Brunner construiu, recentemente, uma
Cristologia que considera primeiramente a Obra e depois a Pessoa de Cristo. Justifica a
inovação fenornenológica com as seguintes considerações: “A Pessoa de Cristo
conhece-se por sua Obra. Eis por que a consideração da Obra precederá o estudo da
Pessoa.” Mas nós opinamos contrariamente a Brunner. A metodologia de Brunner,
situando falsamente o problema, tira seus alicerces à Cristologia... O mesmo raciocínio
inferiria, com a mesma razão, que o sentido da Obra de Cristo só seria conhecido
através de sua Pessoa, através da realidade que ele representa, visto que esta Obra é
pessoalmente sua. É fato que, só conhecendo a salvação e os benefícios de Jesus Cristo,
acedemos ao genuíno conhecimento da fé. Mas isto não implica absolutamente que, na
teologia dogmática, devamos principiar com a Obra de Crísto. A Escritura Sagrada levanos à unidade inseparável da Pessoa e da Obra do Cristo. Certamente, no Evangelho,
trata-se de compreender a Obra de Cristo, mas simultaneamente, de conhecer sua
Pessoa, de saber quem é Cristo, como consta na pergunta de Jesus em Cesaréia de
Filipos. No célebre texto de Mt 16.18, a pergunta interessante, capital, versa sobre quem
é Jesus, o Enviado do Pai, o Messias de Israel. Quem não possui este conhecimento não
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
47
compreende sua Obra. Dirá simplesmente: “De onde é que lhe vem esta sabedoria e este
poder? Não é ele o filho do carpinteiro? A mãe dele não se chama Maria, e seus irmãos
não são Tiago, José e Judas? E não conhecemos todas as suas irmãs? De onde é que lhe
vem tudo isto? — E eles se escandalizaram com ele” (Mc 6.2; Mt 13.54). Quem não
sabe o mistériO de sua Pessoa nada compreende de sua Obra. Quem não enxerga sua
Obra sob a luz verdadeira, não pode compreendê-la. Só resta lugar ao escândalo. Eis por
que a Revelação lança luz tanto sobre a Pessoa como sobre a Obra de Cristo.
Certamente não apreendemos o alcance da Obra de Cristo que, de per si, apenas nos
permite inferir o que Jesus é; mas quando a Revelação nos ilumina, diremos que ele é o
Filho do Deus Vivo e, por isso, faz as obras que ele faz. A Revelação, pois, não se
resolve numa abstração sobre a essência de Cristo, distinta da Obra de Cristo. Pedro,
iluminado pela graça do Pai, vê em Jesus o Cristo, Filho do Deus Vivo, empenhado no
seu trabalho messiânico. Aqui não cabe oposição entre Pessoa e Obra: a Revelação
ilumina uma e outra siniultaneamente; nisto se baseia a unidade da Escritura,
perceptível em todas as suas partes. Paulo fala de Cristo que, “sendo cm forma de Deus
e não tendo por usurpação ser igual a Deus, aniquilou-se a si mesmo... pelo que Deus o
exaltou” (Fp 2.6ss). Cristo veio, mas sua vinda vincula-se diretamente à procura do que
estava perdido e à destruição das obras de Satanás (Hb 2.14s). Quem intentar uma
Sistemática a partir das Obras de Cristo, com a convicção de que estas Obras revelam
sua Pessoa, diminui o mistério desta Pessoa: a Pessoa de Cristo é que confere às suas
Obras um valor eterno e universal. No há a mínjina esperança de se compreender
satisfatoriamente a Obra de Cristo, sem a Revelação e a percepção da ação de Deus em
Jesus Cristo. Aliás, o próprio Brunner, na verdade, não consegue ser fiel a seu ponto de
partida. Quando ele toma a Obra de Cristo como princípio de conhecimento da sua
Pessoa, dedica já sua atenção aos Würdenamen Jesu, aos nomes alusivos à dignidade de
Jesus, tais como: Filho de Deus, Emanuel, Salvador, Ungido... e anota que “Jesus é
recognoscível naquilo que Deus opera nele.” Assim, nas próprias páginas de Brunner,
evidencia-se o erro metodológico do sistema. Brunner considera — não podia evitá-lo
— as funções de Cristo na Obra de Cristo; abandona, assim, o método fenomenológico
e indutivo, do qual pretendia partir. Não pode evitar de mencionar, desde já, a luz que a
Revelação de Deus lança sobre Cristo no desempenho de st+as funções. Ninguém
escapa da necessidade de alicerçar a Cristologia sobre todo o testemunho da Escritura
Sagrada, relativo à Pessoa e à Obra de Cristo.
***
Segunda indagação preliminar: Que vale a opinião dos que pretendem que o
conhecimento da salvação não é caminho para uma genuína apreensão de Cristo? A
pergunta aplicou-se, especificamenle, ao método a ser seguido na Cristologia. Althaus,
consultado, opinou que o caminho da Cristologia neotestamentária vai “debaixo para
cima”, e explicou que “é, na realidade, do homem Jesus que se origina a certeza da
presença de Deus nele; infere-se desta convicção a Divindade de Cristo e sua
eternidade; inevitavelmente concluir-se-á pela Trindade e a Encarnação do Filho Eterno.
Este é o caminho que eu denomino “debaixo para cima”. Este caminho deveria ser o da
Cristologia. O raciocínio de Althaus pressupõe que o caminho da Cristologia se
confunde com o caminho da fé; a pregação do Jesus histórico leva à fé. Mas a
Cristologia não está em presença apenas do Cristo histórico, mas de toda a Revelação
escriturística e de todo o kerygma apostólico.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
48
Portanto, a evolução da Cristologia não se deve ao processo histórico, mas aos
depoimentos da revelação integral que esclarecem tanto a humilhação como a exaltação
de Jesus Cristo. 1
Ao tratarmos especificamente da Pessoa de Cristo, nesta nossa Cristologia, não nos
move algum interesse unilateral:
consideramos a Pessoa e a Obra de Cristo igualmente dignas e primordiais. Na realidade
revelada nos Evangelhos, julgamos que não cabe uma distinção entre primário e
secundário. Quem toma a Pessoa de Cristo como ponto de partida só pode fazê-lo
porque descobriu, na Revelação biblica, a maneira como Deus age na Pessoa e na Obra
de Jesus Cristo. Sabemos que, se na luta da Igreja antiga foi a qualidade da Obra de
Cristo que motivou a batalha, tal fato foi devido à existência de quem duvidasse que o
próprio Deus esteve entre nós, agindo em Jesus Cristo. Combatia a Igreja primitiva
contra toda negação da Divindade genuína, bem como contra todo ataque à humanidade
de Jesus Cristo. Ela não o fazia levada por um interesse “ontológico”, oblíquo e
unilateral, pela “essência” do Cristo, mas, com evidência meridiana, ela tinha
consciência de pelejar pela pureza do Evangelho da salvação e pela significação
transcendental da Obra de Cristo.
A Igreja não mudou posteriorniente. A Reforma, em particular, compreendeu com
excepcional exatidão a unidade e inseparabilidade da Pessoa e da Obra de Cristo.
Naqueles dias felizes pregava-se Cristo manifesto a nós em sua Obra. E, quando se
alegavam essas Obras benéficas, as mentes aderiam àquele de quem procedeu a
salvação. Não era concebível que a salvação e suas projeções multifárias pudessem se
abstrair da Pessoa de Cristo. Na sua obra, Calvino expressa muito bem essa fé: “A soma
total de nossa bemaventurança e de todos os seus elementos está em Cristo... Estando
em Cristo a fonte de todos os bens, hauri-los-emos dele até nos saciar; não procuremos
outra fonte” (Inst. li, 16, 19). Existe uma comunicação mística dos fiéis com Cristo; os
fiéis estão arraigados em Cristo, ligados a Cristo. Esta idéia encontrou uma expressão
particularmente feliz na doutrina calvinista da Santa Ceia. O critico Bawinck considera
tipicamente calvinista a opinião de que “não é possível comungar com os beneficios de
Cristo, senão após e através da comunhão com sua Pessoa, na Eucaristia.”
Nossa fórmula da Santa Ceia ensina que Cristo nos serve de comida e bebida em seu
corpo crucificado e em seu sangue derramado, com a mesma certeza que temos de
receber o pão e o cálice. Dá-se, na Ceia, não apenas a comunicação dos benefícios
impessoais da Redenção (os quais poderiam ser, de certo modo, considerados à parte da
Pessoa de Cristo), mas uma comunhão com ele mesmo, com seu corpo verdadeiro e seu
sangue verdadeiro, isto é, com a totalidade do Cristo, Deus e homem, pela virtude do
Espírito Santo. Bawinck nota que encontramos em Calvino a convicção de que, na
Santa Ceia, participamos da substância da carne e do sangue de Cristo. Mais um indício
evidente da escrupulosa vigilância contra qualquer separação entre Pessoa e Obra de
Cristo. A Obra de Crislo, apreendida na sua realidade total, é Obra do vere Deus et gere
1
Muitas construções falsas deveriam ser denunciadas aqui, as quais afetam até a interpretação de
teologias passadas. Citemos, a titulo de exemplo, as asserções de Gogarten, relativas às posições
cristológicas de Lutero: Para Lutero, não é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade que forma o centro
da Cristologia, mas o homem Jesus, o crucificado do Gólgota; reformou assim uma tradição teológica de
mais de milanos, na qual o Cristo glorioso e celestial era o centro da reflexão. É certo que Lutero pouco
se interessou pela confissão da Divindade de Cristo, de sua glorificação e prerrogativas eternas; certo
também, que há oposição entre Lutero e a Cristologia escolástica. Mas dai às conclusões de Gogarten há
muitos passos
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
49
homo: quem não compreende esta indissolúvel unidade pela fé, não alcançará a
salvação incluída em Cristo. A mesma insistência encontra-se nt Confessio Gailicana,
artigo 36: “Na Santa Ceia comungamos com o corpo e o sangue de Cristo, para que
sejamos um com ele,e sua vida nos seja comum... Acreditamos que, pela virtude secreta
e incompreensível do Espírito Santo, Cristo nos alimenta e vivifica com a substôncia de
seu corpo e de seu sangue.” O Sinodo de La Rocheile (1517), interpretando a palavra
substância, acentuou: “Na Santa Ceia, não participamos simplesmente dos seus méritos
e benefícios, mas ele mesmo se faz nosso (Lui-même se fail nôtre).”
***
Korff, comentando a distinção entre Pessoa e Obra de Cristo, adverte contra o perigo de
que, “em nossa consideração, a Obra se desvincule da Pessoa do Cristo”. De fato, é
admissível o perigo denunciado por Korff e Calvino. Mas, por outra parte, há igual
perigo de desvincularmos a confissão da Pessoa e deixarmos a Obra na penumbra,
descambando para uma Cristologia especulativa e empobrecida. Evitaremos ambos os
perigos, não mediante qualquer técnica racional, mas pela fé iluminada nas Escrituras.
Estudando a Pessoa de Cristo, sabemos da necessidade de meditar continuamente
naquilo que a Escritura relata acerca da Pessoa do chamado Jesus, o qual, como Cristo,
exerce sua função no cumprimento da Obra que lhe fora confiada pelo Pai. A meditação
humilde e devota situa-nos em base íntima e profunda, onde o que Cristo é e o que
Cristo faz não podem mais ser considerados unilateralmente. Com esta ressalva,
confiamos que nos seja dada a possibilidade de estudar previamente a Pessoa, e a seguir,
a Obra de Cristo, sem que nos precipitemos nos vazios da abstração.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO VII – PROMESSA E CUMPRIMENTO
Sumário
Como o anti-semitismo serve o AT — O AT testemunha de Cristo — Um programa de
Vischer — Alegorese? — O AT é a Biblia, o NT é seu índice de matérias — Que diz o
NT acerca do AT? — Como opina Cristo a respeito do AT — Paulo discorre em torno
da inter-relação de ambos os Testamentos — Relações multifárias — Uma correlação
indissolúvel — A exegese messiânica suscita criticas — A arbitrariedade exegética
alimenta as dissenções — Von Rad contra Vischer — Como nasceu a alegorese? — O
texto escandaloso Filão, o conciliador — Origenes e a Escola de Alexandria — Os
quatro sentidos escrituristicos — Reforma e hernienêutica — Calvino não aprecia a
“fertilidade” do texto — Texto escrito e verdade divina — Vischer e o testemunho de
Cristo — Alternativa: critica histórica ou interpretação vischeriana? Testemunho será
igual à história? — Excluir a perspectiva histórica da salvação? Como se peca por
excesso — Identidade de AT e NT? — Um conceito não-histórico do testemunho — O
sinal de Caim e a justificação — O sacrifício de Abraão — Arbitrariedade piedosa —
Compreender teologicamente a História — Exegese católica romana A interpretação
mística — Exegese dos Padres da Igreja — Promessa e Cumprimento — Van Iluler e a
Revelação progressiva — História cíclica ou história Unear — O cumprimento tira o
valor da promessa? — Unicidade do cumprimento — O cristológico pode prescindir do
trinitário? — Progresso nos atos de Deus — O NT não desvaloriza o AT — Caráter
histórico do AT — Inter-relações entre ambos os Testamentos — Quem sistematizaria a
História da Salvação? — À Bíblia fragmentária, iluminação fragmentária! — AT,
história e exemplo — O caminho da Revelação — Origem da salvação — O “mistério
guardado em silêncio” de Rm 16.25 — Iniciativa divina — Cumprimento presente Fé e
AT — Isaías 53 e o eunuco de Candace — Origem do Messiansmo em Israel — Uma
interpretação psico nacionalista — A calamidade que gera fé na salvação — Projeção
das saudades — Enlace causal? — Esperança não projetada, mas divinamente
provocada — Esperança e orientação — Uma página explícita de 2Sm 23.1-7 — Um
messianismo de concepção mitológica? — A idéia do Rei-Messias Um Rei humilhado?
Um Messias, Filho do homem? Coccejus quer pensar “historicamente” — Coecejus e a
missa romana Continuidade ou hiato? — Quem rejeitou o AT saiu empobrecido Cristo
perseverou invocando o AT.
Quem estuda a mensagem escriturística relativa a Cristo depara-a necessariamente com
urna questão, objeto da alencão de todos os nossos contemporâneos: Qual é a
imporlância do Antigo Testamento? O interesse renovado, do qual testemunham as
numerosas teologias do Antigo Testamento publicadas ultimamente, em parte, é devido
à reação contra a onda violenta de anti-semitismo cine caracterizou nossa época. A
propaganda anti-semita conseguiu apagar em muitas mentes o apreço pelo Antigo
Testamento: este foi considerado como o expoente da religião tipicainente judaica.
Contudo, seria errado culpar exclusivamente o anti-semitismo. A acentuada
desvalorização do Antigo rfestanlento possui uma história já volumosa, desde Márcion
até Harnack. Harnack denunciava ‘enfaticamente o valor escasso cio Antigo Testamento
para a Igreja Cristã. Mas o anti-semitismo provocou, em nossos dias, uma reação às
vezes comovedora; hoje, constatamos urna crescente simpatia pelo livro incriminado;
não mais é considerado corno especificarnente judaico, mas antes reivindicado como o
Livro da Revelação divina, reunindo-se assim à fé constante (la Igreja de Jesus Cristo,
que considera o Antigo e Novo Testamentos sob o prisma da unidade e da harmonia. O
estudo do Antigo Testamento orientou-se novamente para Cristo; atualizou-se, mais do
que nunca, o problema da exegese cristológica da Bíblia. O magnífico livro de W.
Vischer, O Testemunho Cristológico do Antigo Testamento, estimulou grandemente esta
exegese renovada, tendo tido a virtude de dividir o mundo dos teólogos; uns aceitando
51
entusiasticamente a tese de Vischer e aplicando-a nos mínimos detalhes; outros
suspeitando que esta nova exegese — alegórica, conforme diziam — provocaria outras
e mais graves reações antiveterotestamentárias, além de novas relutâncias contra
qualquer Cristologia do Velho Testaníento. Descobriam, estes, no programa de Vischer,
uma total falta de espírito crítico-histórico: Vischer, sem a mais elementar aproximação
histórica do texto, via, em toda parte, testemunhos cristológicos.
Mais uma vez renasceram as tensões em torno do Antigo Testamento. Hoje, entretanto,
ninguém pode ter a segurança de Harnack e seus discípulos. Pelo contrário, as
declarações mais ousadas, radicalmente opostas ao negativismo dos lustros passados,
são feitas acerca da significação incomparável do Antigo Testamento. Assim, Van Ruler
escreve que “o Antigo Testamento é propriamente a Bíblia”, em virtude de que os
apóstolos e evangelistas não pretenderam escrever uma nova Bíblia nem, de fato,
acrescentaram novidade alguma à única Bíblia: o Antigo Testamento. “Eles apenas
quiseram escrever o epílogo da Biblia, o índice das notas explicativas. Tal índice não
contém nada diferente do próprio Livro.” Esta maneira de pensar suscitou a indignação
daqueles que opinam que ela não faz jus ao sentido soberano do Novo Testamento,
desconhecendo a Revelação bem mais clara sobre a salvação de Deus e o Evangelho da
plenitude de graça. Mais do que nunca está na pauta leológica o problema das relações
entre ambos os Testamentos. Não podemos, aqui, deixar passar despercebidas estas
questões, pois elas afetam essencialmente a Cristologia, ou melhor, a profecia
cristológica dos tempos pré-messiânicos.
O problema reveste-se de interesse especial, pois diz respeito à luta ferrenha entre a
Sinagoga e a Igreja; a Igreja enfatizando sua fé na correlação entre a promessa e o
cumprimento, ou seja entre o AT e o NT, e a Sinagoga rejeitando com igual ênfase o
sentido histórico da salvação cristã e a realização, em Cristo, das profecias antigas.
Nesse conflito, importa destacar que a Igreja apelara sempre para o NT, no qual se
argumenta a base desta correlação entre profecia e realização. O NT cita inúmeros casos
de “cumprimento” das profecias em Jesus. A correlação evidencia-se tanto nos
Evangelhos como nas Epístolas, tendo ali um caráter decisivo.
Lembramos, em particular, a palavra do próprio Cristo, afirmando que os livros do AT
dão testemunho dele (Jo 6.30). Jesus compreendia o AT, não como uma obra reservada
ao povo judeu e alusivo só à história de Israel, mas como um livro que diretamente diz
respeito à sua Pessoa e Obra. Assim, de modo concreto, no caminho de Emaús,o Jesus
ressuscitado indaga as causas da extrema desilusão dos dois viajeiros. Depois de
imputar esta depressão a um mal-entendido, verbera-lhes a falta de fé, especialmente, no
que está escrito no AT: “Ó nécios e tardos de coração para crer tudo que os profetas
disseram! Porventura não convinha que o Cristo padecesse e assim entrasse na sua
glória?” (Lc 24.25s). Embora não detalhadamente, podemos seguir o esquema desta
conversação: “Começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes
o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.” Inúmeras vezes, esta mesma
relação é invocada pelos evangelistas e apóstolos. Consideram eles a vinda de Cristo na
carne como o cumprimento da profecia do AT; enxergam uma correlação misteriosa e
profunda; o AT não se lhes afigura corjio um documento judaico, mas como um livro
repleto de Jesus Cristo. Embora sem apresentar exposições sistemáticas sobre as
concordâncias e relações entre o AT e Jesus, nelas baseiam formalmente seu
pensamento e sua pregação. À luz destas concordâncias, inúmeros acontecimentos
históricos alcançam uma clareza maravilhosa: assim, relacionada com a palavra de
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
52
Isaias (Jo 12.41: este viu a glória dele e falou a seu respeito), a cegueira dos judeus
chega a ser trágica. Pedro, em seu discurso de Pentecostes, invoca estas relações ao citar
o SI 16: “A respeito de Cristo, diz Davi”, demonstrando como Davi, numa visão
profética, olhou para o futuro e falou da Ressurreição de Cristo (At 2.25ss e 13.32ss).
Esta visão, formal e vivencial, sobre certas concordâncias proféticas, nunca traduzi da
numa sistematização elaborada, possui uma índole singularmente concreta e móvel.
Aqui e acolá assomam certas caracterizações mais generalizadas, como, por exemplo,
em 2Co 3. l4ss, onde Paulo torna explícita a relação entre o Antigo e o Novo
Testamento e o progresso da inteligência de um pelo outro, chegando a escrever estas
palavras significativas: “Até agora, quando os filhos de Israel lêem o Antigo
Testamento, o véu que encobre seus olhos permanece, enquanto não o remover Cristo
Jesus.” Hoje em dia, é quase impossível repudiar o fato de que “o NT nunca pressupõe
cisão com oAT’. Admite-se que o NT, antes de tudo, manifesta-se como complemento,
pleno de significação, e como cumprimento do AT. A mesma aceitação do cânone dos
Escritos Sagrados, pela Igreja, revela bem a união orgânica entre os dois Testamentos.
A antítese promessa-cumprimento, tão cara a teólogos e pregadores, não visa senão
expressar esta inegável continuidade orgânica. Cada vez mais, tanto a Igreja como a
teologia redescobrem que o AT é cristão; e cada vez menos tal afirmação parece
paradoxo ou anacronismo.
Estudando melhor o NT, descobrem-se mais relações multifárias, explícitas ou
implícitas. Vemos relacionados o nascimento do Messias com a profecia sobre o
Emanuel (Mt 1.23; is 7.14), a fuga ao Egito com a profecia de Oséias (Mt 2.15; Os
11.1), o abandono de Cristo pelos discípulos com a profecia do Pastor ferido (Mt 26.31;
Zc 13.7), Jesus, o Varão de Dores, com a profecia de Isaias (At 8.32ss; 1Pe 24ss; Is
53.9). Percebemos em Jesus Cristo o cumprimento de todo o Antigo Testamento. Tornase-nos compreensível todo o AT, à luz da realização feita por Cristo; afigura-se-nos o
AT como a elucidação antecipada da salvação vindoura; nada mais eloqüente do que a
correlação entre o cordeiro sacrificial e Cristo, entre o Maná e Cristo, a serpente de
bronze e Cristo (Jo 1.29; 6.22ss; 3.14). Em Cristo cumpre-se todo o AT — essa a idéia
dominante nos escritos do NT. As citações explícitas são bem mais do que simples
ilustrações incidentais e arbitrárias; trata-se de um testemunho total e constante,
anunciando o Redentor vindouro — Jesus Cristo. Até as figuras que acompanham ou
envolvem Jeus participam destas relações e correspondências; assim, a pregação do
Batista (Mt 11.10; Ml 3.1) e a traição de Judas (Jo 13.18 e At 1.20; Si 41.10; 69.26;
109.8). Notemos o caráter concreto de muitas profecias: Jesus nascerá em Belém (Mt 1
.5s; Mq 5.1); os ossos de Cristo não serão fraturados (Jo 19.36 e Sl 34.21); as vestes de
Cristo serão repartidas (Jo 19.26 e Sl 22.19).
Entre tantos outros, estes exemplos evidenciam suficientemente os caminhos em que a
Igreja chegou a enfatizar a soberana correlação e continuidade entre ambos os
Testamentos, os quais se tornaram Antigo e Novo Testamentos, cânones de vida e fé da
Igreja, distintos embora misteriosamente unidos.
Precisamente pelo fato da referência da Igreja ir direlamente aos testemunhos do AT, é
que qualquer discussão a respeito assume tanta seriedade. Não faltaram objeções contra
a evidência do NT em matéria interpretativa. Chegou até a ser negada à Igreja o direito
de regularizar a utilização do AT a favor do NT, a fim de indicar e evidenciar a
correlação deles.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
53
Resumamos o nosso pensamento: não raras vezes essa exegese cristológica do AT
constitui um atentado contra a verdade, uma aplicação arbitrária ou uma interpretação
forçada a favor de Cristo: parte-se de um apriorismo, usa-se de certa manipulação
caprichosa dos textos, sem considerar que a Biblia revela o que ela quer e não o que
gostaríamos de ouvir. Embora piedosas, tais interpretações são falsas ou. pelo menos,
pouco verdadeiras. Deveria recrudescer o conflito entre a exegese critico-histórica e a
exegese messiânica do AT. A arbitrariedade em estabelecer correspondências e
correlações explica a ofuscação suscitada no campo criticista: uns e outros devem
lembrar que a decisão do problema é, afinal, uma decisão de fé. Basear-se em paralelos
imaginários para inferir conclusões cristológicas não é novidade: não devemos
subestimar-lhe o perigo, pois inevitavelmente isso leva a uma nova desvalorização do
AT. Por demais freqüente é a atitude dos que julgam como certa a sua interpretação
acomodatícia, alegando que a própria interpretação messiânica de Mateus, João e Paulo,
apoiada no AT, foi objeto de crítica. Assim vou Rad, em sua crítica de Vischer, parte do
poslulado de que o Cristianismo histórico merece a primazia e tem que dar a última
palavra na exegese. Conseqüentemente, não lhe é possivel aceitar uma indicação
cristológica no texto de Gn 3.15, visto que a ciência do AT reconheceu unanimemente o
erro desta interpretação; não pode compreender os cantos do “Servo Sofredor” de Isaias
em sentido messiânico, e nem tampouco prestar ao Salmo 22 outro significado além da
“lamentação dum devoto em angústia física e espiritual”. Von Rad não nega a
possibilidade de encontrarmos Cristo no AT, mas onde e como? Só o poderemos dizer
após estudar os documentos em sua limitação histórica e em sua singularidade.
A questão é capital, cercada totalmente por perigos: de uma parte, as exigências da
critica histórica tomam posição contra uma interpretação do AT à luz do NT; por outra
parte, os pruridos piedosos procuram interpretar o AT com a mais pueril arbitrariedade.
Quem não se lembra da “alegorese” de Orígenes? Esta exegese alegórica influiu
grandemente no kerygma e na teologia; mas ela se distanciava cada vez mais do texto,
esperando encontrar, debaixo do significado literal, uma verdade escondida e reservada
aos espirituais. Esta “alegorese” foi aplicada não só ao AT, mas também a autores
profanos, como Homero. É evidente que fatalmente incluiria preocupações apologéticas,
querendo justificar o texto ou reivindicando a necessidade de um texto cheio de
dificuldades, inteligível só na sua profundeza. Embora sem eliminar o texto, interpretao. Na antigüidade o predecessor desta “alegorese” foi Filão, o qual pretendia que a
filosofia grega derivava diretamente do AT; portanto, Filão tentou superar o sentido
literal em demanda de um sentido mais profundo. Só os espirituais encontram esse
“maná escondido”, só eles transcendem bastante os dados sensoriais, para enxergar, por
exemplo, nos reis de Gn 14, certos estados psicológicos compreensíveis para nós.
Neste caso, o sentido literal é desvanecido na nebulosa da “alegorese”. Na realidade,
Filão não monopolizou o sistema: a própria Igreja de Cristo lançou mão dele, no ardor
do combate, para furtar-se às dificuldades do AT. Temos exemplos na Epístola de
Barnabé, e principalmente na Escola de Alexandria. Clemente e Orígenes ensinavam
que a Escritura esconde seu verdadeiro sentido e que devemos procurar o significado
oculto por debaixo da letra. Origenes distinguia três sentidos: o literal, o psíquico e o
“pneumático”. A Idade Média discernia até quatro sentidos num mesmo texto.
Como não penetraria a arbitrariedade em semelhantes interpretações? A influência da
“alegorese” é explicável: além de abrir novas e inesperadas perspectivas, prometia
explicar o Cristo niisterioso, melhor do que a exegese literal. Não obstante isso, a
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
54
“alegorese” nunca foi bem vista. A própria Escola de Alexandria preconizou a volta ao
texto literal e a interpretação comum das profecias que falavam evidentemente de
Cristo.
A Idade Média patenteou, por sua vez, os perigos da exegese alegórica. Tomás de
Aquino afastou-a muito prudentemente; com ainda maior prudência, Nicolau de Lira
rompeu com a tradição dos quatro sentidos, voltando para a literalidade sadia do texto.
Contudo, era reservado aos tempos da Reforma a autêntica renovação hermeiiêutica.
Erasmo, Lutero e Calvino, forcejaram em descobrir o conteúdo genuíno do texto
sagrado, mostrando-se inimigos ferrenhos da arbitrariedade. Ao juizo de Calvino,
Orígenes deturpou o verdadeiro sentido biblico, pretextando a insignificância da letra e
preconizando a riqueza oculta e só acessivel aos iniciados. “Procedimento de Satanás!”
comentava Calvino. “Alegando a ‘fertilidade’ do texto, o tentador desvia astutamente
nossa visão da verdade revelada.”
Calvino não admitia distinção entre o sentido literal e o espiritual; na sua exegese de
2Co 3.6, rejeitava a “alegorese” origenista como um erro perniciosissimo, fons
multorum malorum. A intransigência de Calvino repercutiu profundamente contra a
arbitrariedade exegética e o empobrecimento escriturístico na Cristandade. Esta
arbitrariedade pielosa, sem dúvida, na variabilidade do sentido descobre coisas tenras,
engenhosas e edificantes: nada, porém, a justifica em si. A variabilidade se reduz ao que
Deus, realmente, quer fizer no texto; eis por que Calvino lutava tão zelosamente pelo
sensus literalis. Para ele, não havia a tal tensão entre o texto e a verdade divina: a
profundidade do Verbo deve ser procurada no próprio texto. Na “alegorese”, o texto não
passa de pretexto, de ponto de partida, de trampolim para o salto no mistério. O texto
fica relegado para não estorvar a consecução imediata do alvo distante.
A questão alegórica recobrou nova vida, na atualidade, porque houve outra vez
distanciamento cio sentido óbvio das Escrituras. Evidentemente não ressuscitou a
exegese pueril das gerações passadas; não mais se interpretou a parábola do Bom
Samaritano com os cândidos pormenores de outrora: “Jericó é o mundo, o viajor
assaltado e ferido é Adão, Jerusalém é o Paraíso.” Os èegos não mais são os carnais nem
os leprosos os hereges. A “alegorese” ressurreta é de outra índole e de outra cultura:
originou-se como reação contra a exegese técnico-critico-literária; quis debelar a turba
das interpretações psicológicas, “pneumáticas”, teológicas, existencialistas, espiritistas,
e outras; quis fazer jus ao AT, como testemunho de Cristo. Portanto, era preciso
ultrapassar a exegese histórica que, se bem informava o pregador acerca de uma
infinidade de aspectos e eventos, não lhe fornecia elementos diretos para anunciar
Cristo. Enfatizaram, pois, que o AT não trata de moral e religião nem de exemplos
propostos à nossa imitação, mas se deve referir a Cristo, “testemunhar” de Cristo.
Entrincheirados por detrás do livro de Vischer. fulminavam contra a ciência do AT,
emaranhada toda na Arqueologia e na ciência das religiões. Deram-se à procura de
analogias e correlações que evidenciassem para a Igreja universal que o AT, de modo
global, é um Testemunho de Cristo.
Isso nos coloca diante de um dilema singular. Ir do lado dos que, anatematizando
qualquer exegese cristológica, só admitem uma interpretação crítico-histórica? Ou
aderir à exegese cristológica, embora ela dê a impressão de forçada e arbitrária? O
dilema só pode ser resolvido por outra pergunta: Como Cristo está no AT?
Quem ouve os partidários da exegese cristológica suspeita de que eles se atribuem um
carisma intelectual capacitando-os a pesquisar todo tipo de paralelos inesperados e
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
55
descobrir correlações maravilhosas. Mas quem garante que estas surpreendentes
harmonias traduzem a verdadeira intenção e significado da Escritura? Vischer escreve,
com muita razão: “Para a Igreja de Cristo, a unidade dos dois Testamentos é questão de
vida ou morte.” Com muito direito são empunhadas as armas em defesa do direito de
elucidar o AT mediante o NT. Mas, na prática concreta, não escapamos facilmente da
tentação de arbitrariedade. Certo dia, foi-nos lembrado o caso de Pascal. Ele era
partidário da interpretação cristológica do AT. Sua versão da Bíblia é um tecido de
transposições e de omissões. Este é exatamente o perigo que correm todos os exegetas:
deixar a fantasia governar o texto, desvalorizando a Escritura, em benefício do sistema.
Isto é o que acontece a Vischer. À força de ver em toda parte o “testemunho de Cristo”
constrói uma antítese Testemunho-História. Assim, em sua exegese de Josué, julga ele
não se tratar duma história de índole singular e individual, mas de uma história de
caráter coletivo e transcendental, acúmulo de urna série de elementos de todos os
tempos, inclusive do passado de Israel e do futuro ainda não vivido em tempos de Josué.
A história, portanto, é ultrajada pelo narrador bíblico. É, pois, necessário perceber o
valor de testemunho, subjacente a esse acúmulo de fatos incoerentes. Assim, elimina
Vischer todo o problema crítico-histórico. Para ele, não tem relevância o caráter
histórico do texto nem a historicidade intrínseca, porquanto Josué não pretende ser
história, e, sim, testemunho. “Esta interpretação destaca o alcance genuíno dos relatos”
e o destino genuíno de Israel.
Em conseqüência disso, Vischer desclassifica a perspectiva histórica da salvação,
concentrando tudo no testemunho, independentemente da historicidade dos eventos.
Essa desclassificação é ainda mais completa em Hellbardt, o qual tira das premissas de
Vischer os corolários mais exagerados, não deixando lugar algum para uma história
progressiva da salvação, tolhendo toda diferença real entre ambos os Testamentos na
perspectiva da evolução salvífica. “De fato, Hellbardt parece pensar que a exegese se
torna digna na medida em que exclui a dimensão tempo”, escreve o Scottish Journal of
Theology (1948, pág. 142). Pois nem sequer conserva a tradicional relação promessacumprimento ou a oposição paulina lei-graça. Tanto o AT como o NT fazem ref erência
ao Evangelho, sendo este anunciado, no AT, como verdade, e, no NT, como realidade.
Nada subsiste da história salvífica nos tempos veterotestamentários, tendo a Escritura
simples valor de testemunho: “O AT proclama o que é Cristo, e o NT quem é Cristo.”
Sem hesitação, fala-se de identificação dos dois Testamentos: não mais se trata de
progressão, conforme uma linha histórica, mas de um círculo traçado em redor dum
ponto central e constando de dois semicírculos, um à direita e outro à esquerda,
equidistantes do centro. Assim é totalmente modificada a antiga doutrina da Promessa e
do Cumprimento. Em expressão de Hellbardt, “nas perspectivas veterotestamentárias, a
futuridade dos acontecimentos não é a futuridade histórica do nascimento e da vida de
Jesus. Teologicamente falando, pouco importa que Jesus apareça precisamente no
tempo posterior ao AT”. Nesta luz, descarta-se qualquer preocupação pela crítica
histórica; o testemunho, mesmo que dado historicamente, ultrapassa e transcende a
História: “A única coisa importante é saber descobrir, em toda parte, apenas o
testemunho cristológico .“ Este principio, elementar como um postulado, dispensa-nos
de ver o progresso histórico. Empalidece a majestosa história de Israel; não mais se
diferencia essencialmente da história evangélica: ambas fornecem o mesmo testemunho.
Não é dificil demonstrar que semelhante conceito do testemunho cristológico finalmente
prejudica o testemunho total, o que, apontando o progresso das iniciativas Divinas,
necessita entrar na história, e não apenas alertar o conhecimento cristológico. Na
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
56
revelação de Deus feita História, na entrada de Deus na História, Eichrodt vê — e com
muita razão — a chave da exegese cristológica. De fato existe um caminho de Deus,
uma progressão escatológica de Deus, escolhida por ele, através do mundo e da História
sagrada. Indubitavelmente, o Povo de Israel nos fornece o conhecimento da salvação,
preparada por Deus e a ser realizada por Deus; mas sua História, ademais, relata as
iniciativas Divinas ordenadas a esta realização. Denunciamos como falsa a tese de
Hellbardt de que “as Escrituras, Lei e Profetas, não anunciam que Deus saluará Israel,
mas testemunham que Deus o salvou dos pecados”, Não negamos que Deus tenha
salvado Israel, mas quando o salvou do Egito, sua iniciativa referia-se imediatamente à
promessa da Terra de Canaã e a um futuro ainda mais amplo. “Toda a literatura israelita
leva o selo de uma consciência: Israel tinha plena consciência da correlação muito
significativa, impressa por seu chefe, Deus, e controlada por ele, entre a marcha
histórica e o Reino escatológico de Deus sobre todos os povos” (Eichrodt, Theol.
Blcitter, 1938, págs. 78-81). Explicitamente, o AT reconhece tais iniciativas como
Divinas; não é possível ler isoladamerzte essas iniciativas, pois vão acompanhadas da
declaração expressa de que Deus as fez. O relato histórico é sempre abundantemente
determinado e relacionado, tornando-se inaceitáveis as teorias de Viseher e de
Hellbardt. De fato, se considerarmos as coisas à maneira destes, não mais seria possivel
falar em progresso nem em variação alguma, determinada pelas intervenções de Deus.
Ao escrever que “não se pode introduzir na Revelação a categoria do mais e do menos ‘
Elellbardt parece reverenciar muito a autoridade da Escritura, especificamente do AT;
mas, condena-se ao achar, em todo lugar e texto, um testemunho igualmente explícito
da “verdade cristológica”; por exemplo, condena-se ao reconhecer, no sinal posto por
Deus em Caim, não o sinal da inalienável propriedade de Deus, como indica o contexto,
mas o sinal da cruz: “O sinal da cruz renovou e ratificou, no seu sentido mais intimo, o
conteúdo simbólico do sinal de Caim.” Tal interpretação não surge do contexto, baseiase em analogias rebuscadas e fantasistas. Aceitamos as considerações de Vischer em
torno do sacrifício de Abraão; mas soa falsa, anacrônica, totalmente desprovida de
historicidade, sua repentina evocação litúrgica: “Quem não vê, aqui, pairando sobre o
Moriá, as trevas da Sexta-Feira Santa, orladas já pelo brilhante sol da Páscoa?” A
seguir, lendo como o próprio Deus providenciou um carneiro para ser oferecido em
lugar de Isaque, “Como é possível exclama — não ver o Divino Cordeiro, como que por
umi janela aberta sobre o futuro, carregado dos pecados do mundo e subindo o
Calvário?” Nas analogias rebuscadas desse tipo, não há qualquer perspectiva histórica
da salvação; daí a fraqueza e arbitrariedade de Vischer. Na sua convicção de que
qualquer texto, explicitamente, deve apontar a Jesus Crislo e dele testemunhar, não
percebe Vischer que o testemunho veterotestamentário, a favor de Cristo, está integrado
numa longa história, relacionado com a orientação providencial de Israel em marcha.
Não serve para nós o tal testemunho monótono de Vischer, mas, pelo contrário,
reconhecemos uma revelação de Deus, extremamente viva e movimentada, com seu
centro absoluto na Promessa de Cristo, mas relacionada com as peripécias mais
diversas, embora todas orientadas para Cristo, que está por chegar. Como resultado, um
estudo inicial, focalizando essas relações, historicamente planificadas por Deus
Revelador, impressiona bem mais e penetra mais profundo do que as analogias gratuitas
e os paralelos rebuscados de Vischer. Isso,sem contar que não descambaremos na
incoerência de dever recusar parte alguma do AT como inapta para testemunhar de
Cristo.
Embora diversos trechos das Escrituras não digam respeito à linha messiânica
diretamente, não é lícito declarar que há partes bíblicas totalmente desligadas da
Cristologia. Sendo de teor histórico a profecia em torno de Cristo, ela está vinculada a
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
57
todas as obras de Deus. É verdade que a profecia visa a vinda do Messias, mas,
precisamente em relação a este Messias, visa também o acabamento da obra de Deus, o
Reino de Deus, o novo Céu e a nova Terra. Considerando o AT como cristocêntrico,
estaremos certos, com a condição de não desligar a Cristologia do dogma trinitário, que
nos ensina que Cristo se referiu sempre ao Pai e entregará finalmente seu reino nas
mãos do Pai.
Quem vir, no círculo escriturístico, apenas uma enumeração desconexa de testemunhas
que, do seu respectivo lugar da circunferência, apontam todas por igual para o centro —
Cristo — perderá o verdadeiro sentido da Encarnação deste mesmo Cristo, encerrandose nos limites dum messianismo sem horizontes teológicos, e condenando-se a se atolar
numa “alegorese” anticientifica. Se inicialmente esse método estreito parece fecundo e
fértil em recursos oratórios, não tarda em degenerar na monotonia pietista, bem distante
da vivacidade que jorra das correlações históricas no plano salvífico que a Bíblia narra.
Quem fechar o círculo e repudiar a linha histórica da salvação, acabará considerando
todas as datas e circunstâncias históricas como que sem importância, privando-se da
possibilidade de encarar uma verdadeira marcha nos atos de Deus.
Sabemos perfeitamente que, reagindo contra Vischer e suas teorias, corremos o perigo
de recair no erro oposto — a superficialidade — perdendo, portanto, a visão cristológica
do AT. O único modo de precaver-nos contra este novo perigo é penetrarmos
profundamente na plenitude das Escrituras. Cristo, falando aos discípulos de Emaús,
acautelava-os contra esta exegese superficial e inconsciente das profundezas
escriturísticas.
Felizmente, é possível um terceiro método: sem descuidar da revelação progressiva
imanente na marcha histórica de Israel nem das correlações soteriológicas entre os dois
Testamentos, bem como sem procurar debaixo das letras uma verdade que Deus não
visa, é possível compreender a conexão da história salvifica tal como foi compreendida
pelo NT, o qual, invariavelmente, assina em Jesus Cristo o cumprimento do AT. Nada
resta senão a alternativa seguinte: ou realmente o AT está cheio de Cristo, ou os autores
do NT aplicaram o AT a Cristo, arbitrariamente, a partir de sua fé, cometendo uma
falsificação histórica. Afinal de contas, tocamos no problema radical: Qual o crédito que
a Igrej a merece, comunicando-nos seu testemunho, seu cânone bíblico, o AT como
livro cristão?
É mister que a Igreja e a teologia procedam com honestidade e sinceridade absolutas no
estudo de toda a Escritura, no intuito de interpretar prudentemente a intromissão
histórica de Deus no mundo ‘e em Israel, de esclarecer as correlações patentes, sem dar
lugar à arbitrariedade.
É interessante notar que a exegese protestante, bem mais do que a católica romana,
tomou consciência dos perigos da “alegorese”. Um católico como C. J. de Vogel,
estudando a polêmica de Atanásio contra Ário, fica surpreso que Atanásio invocasse,
em defesa da Divindade de Cristo, Dt 28.66: “A tua vida estará suspensa como um fio
diante de ti.” Como é que Atanásio aplica este texto ao Cristo crucificado, fonte de vida,
quando, na realidade, o texto fala da praga que Deus reserva à infidelidade dos seus?
Contudo, Vogel não rejeita a exegese atanasiana; atenua-a: “Não há aqui exegese, mas
meditação; as palavras destituídas de verdade exegética não precisam de ressonância
profética.” O católico Vogel tolera, pois, aqui, uma exegese “pneumática”, espécie de
interpretação mística ao lado da histórica. Isso é sintomático do enfraquecimento do
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
58
sentido crítico, do desconhecimento do caráter revelado das palavras do AT. Em vez de
uma explicação, uma aplicação; em vez de exegese, meditação.
Há igual tolerância no Padre Daniélou. Depois de referir sucintamente como os Padres
da Igreja descobriam e utilizavam toda espécie de analogias e paralelos no AT (tais
como: sono de Adão e nascimento de Eva — morte de Cristo e nascimento da Igreja;
queda de Jericó — fim do mundo, etc.), Daniélou conclui que há, nos Padres, a despeito
de enormes diferenças, uma concordância profunda, bem patente em sua exegese. Esta
exegese pertence ao depósito da tradição da Igreja. Mas, afinal de contas, a
arbitrariedade enfraquece consideravelmente a exegese patrística e sua visão crítica.
Só depois de compenetrados da vocação da exegese, é que saberemos nos guardar das
confusões da “alegorese”. A exegese tem por missão interpretar, verdadeira e
exclusivamente, a palavra de Deus em toda a sua profundidade; a “alegorese”,
entretanto, perde de vista a história, em benefício do “testemunho”, esquecendo que este
testemunho se emascula quando é cortado das bases históricas.
Esta discussão está intimamente ligada ao problema capital da relação PromessaCumprimento. Esta só é possível para o conceito bíblico-histórico. Van Ruler, em apoio
à sua tese de que o AT é a Bíblia genuína, rejeita radicalmente a doutrina da Revelação
progressiva, convencido de que graves aberrações se escondem atrás dela. Em primeiro
lugar, suspeita de um conceito errado da História. A Revelação progressiva pressupõe a
História linear; a idéia estática da Revelação pressupõe a História circular (“o circulo
das testemunhas proféticas e apostólicas em torno do Ato Histórico — Cristo — na
plenitude do tempo”). Além disso, a teoria da Revelação progressiva supõe um conceito
intelectualista da Revelação, ou seja, faz dela uma participação na doutrina. A teoria
estática preconiza um encontro na realidade objetiva; “o fato transcendental da
satisfação de nossos pecados pelo Filho de Deus encarnado exclui qualquer noção de
Revelação progressiva”. Finalmente, referindo-se ao esquema Promessa-Cumprimento,
geralmente invocado para definir a relação entre o AT e o NT, van Ruler observa que,
nesta interpretação, a Promessa desaparece, porquanto é substituída pela realidade,
concretamente pela salvação realizada, o que constitui, assim diz ele, “uma das
confusões mais fatais das categorias cristãs”. O cumprimento da promessa no NT não
significa que “a promessa passou para a realidade, perdendo seu caráter de promessa;
pelo contrário, em sua qualidade de promessa, ela alcançou agora maior força e
integridade”.
Segundo nosso modo de ver, é evidente que, colocada nestes termos, nunca poderemos
esclarecer a relação Promessa-Cumprimento, menos ainda quando ela for condicionada
às necessidades apologéticas. Ultimamente, sob a influência de O. Cullmann, produziuse um deslocamento na conceituação da História; deixando de lado a conceituação
cíclica da História santa, Cullmann passou a defender o conceito linear identificando-o
como o conceito bíblico. Isto levou muita gente a apreciar mais seriamente a relação
Promessa-Cumprimento e, conseqüentemente, a teoria da Revelação progressiva. As
objeções de van Ruler contra a Revelação progressiva foram debeladas e arruinadas nas
suas premissas; longe de ver nela uma conceituação intelectualista, confirmou-se que
nela se realçava melhor a ação de Deus indo ao encontro de seu povo; ora, o agir divino
inclui Revelação; onde está, então, o tal intelectualismo? O motivo capital, porém, das
indignações de van Ruler está na própria relação Promessa-Cumprimento. Mas, a meu
modo de ver, ele não caracteriza corretamente a noção do cumprimento no NT, quando
o define como uma concentração da promessa, porquanto de fato existe, na realidade
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
59
histórica, um autêntico cumprimento da promessa, ou seja, a vinda do Cristo: esta vinda
origina uma nova situação, que Cristo denomina como “o presente” e que é, de fato,
nova relativamente áquilo que, no passado, os homens ansiaram ver e não viram.
Entretanto, esse grande cumprimento, objetivo e real, não implica em que a promessa
não mais cabe no presente de Cristo ou, como costumamos dizer, na era de Cristo. Fste
cumprimento, de índole admirável e única, diz respeito, simultaneamente, a novas
perspectivas escatológicas da salvação, a partir do cumprimento em Cristo. A promessa
da era antiga, e certamente cristológica, tinha caráter profundamente trinitário e
escatológico, comportando, pois, o anúncio do Reino final de Deus. Com muita razão,
van Ruler rejeita a idéia de que o cumprimento elimina a promessa, mas erra inferindo
dai a impossibilidade da Revelação progressiva, O NT traduz plenamente o caráter
particular do cumprimento, sem identificá-lo com a profecia de determinado evento nem
com a realização desta ou daquela profecia. O cumprimento evangélico da promessa
salvífica não é ponto final, mas inclui a visão da futura salvação de Deus, do Reino
escatológico. Cristo comenta o cumprimento da profecia, dizendo: “Hoje se cumpriu a
profecia que acabais de ouvir” (Le 4.21); e Paulo, caracteristicamente, (leclara: “Nós
vos anunciamos; a promessa feita a nossos pais Deus a tem cumprido diante de nós,
seus filhos, suscitando Jesus, conforme já está escrito no Salmo 2: ‘Tu és o meu Filho,
eu hoje te gerei” (At 13.32,33). É um cumprimento, porque a reconciliação se tornou
um fato em Jesus. No cumprimento, porém, se encerra uma promessa renovada
incansavelmente, como já o reconheceu o AT, uma promessa que aponta até a era
escatológica. Compreendendo, na ressurreição do Cristo, o cumprimento da promessa,
Paulo escreve: “A graça de Deus, fonte de salvação, manifestou-se para todos os
homens, ensinando-os a renunciar a impureza e as concupiscências humanas... na
expectativa da gloriosa manifestação do grande Deus e Salvador Jesus Cristo.” Daí não
se poder obj etar contra a Revelação progressiva. Todo o AT testifica que os atos de
Deus são dirigidos dinainicamente, em constante progressão, até a manifestação real do
mistério no Verbo Encarnado. Aliás, basta ler Hb 1.1: “Muitas vezes, de muitos modos,
falou Deus outrora aos nossos pais pelos profetas; ultimamente falou-nos por seu
Filho.” Observa-se progresso até nos atos salvíficos de Deus. A Carta aos Hebreus
acentua fortemente o caráter “único” da aparição de Cristo, bem como o sentido
universal desta unicidade, quer dizer, sua proj eção além do presente: outrora
anunciado, presentemente cumprido, futuramente perfeito, o Reino está marchando e a
Revelação está progredindo. A carta aos Hebreus trata da transição, já toda latente na
promessa veterotestamentária, da Aliança Antiga para a Aliança Nova; proclama a
abolição (lOS múltiplos sacrificios do AT em presença do verdadeiro e único Sacrifício
de Cristo. Esta transição não acarreta desvalorização dos atos divinos na Antiga Lei nem
diminui o significado da Antiga Aliança. Justamente, toda a revelação
veterotestamentária visava a esta transição, exigia-a mesmo, porquanto desde o início
ela estava nas intenções divinas. Conseqüentemente, torna-se inadequado falar de
prioridade (NT) ou de secundariedade (AT) a propósito da relação intertestamentária: a
intenção de Deus, revelando-se no AT, visava ao pleno cumprimento, e só no
cumprimento tornar-se-ia plenamente inteligível. Aqueles que, com os judeus,
pretendem descobrir o sentido do AT em alguma coisa que não seja a Redenção
prometida divinamente e sujeita à realização estão, portanto, caindo num erro grosseiro.
Estas interpretações nominalistas desconhecem a constante referência à graça, à eleição,
à aliança, à circuncisão do coração, ao sacrifício futuro.
Eis por que, após o cumprimento, o AT não perdeu o seu significado para a Igreja.
Conclusão absolutamente lógica para quem considera ambos os Testamentos
respectivamente como Promessa e Cumprimento, porquanto essas categorias Promessa-
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
60
Cumprimento são, em si, transparentes e universais. Quem tomar a sério o caráter
histórico do Antigo Testamento, não deixará de ver tudo que ele representa para a Igreja
de Cristo. Mas quem não consegue ver, no NT, a latente presença da antiga promessa do
Redentor, e só percebe a atual manifestação de Deus em Cristo, não presta atenção ao
AT. É preciso, pois, partir do caráter histórico (lo AT, reconhecer que ele não é apenas
um simples anúncio profético do Messias, mas que aponta para a Revelação total a
respeito de Deus, soberano e santo, misericordioso e justo. No AT revela- se o mesmo
Deus, o Pai de Jesus Cristo: fora destas correlacões. a nova da salvação que está
ressoando nos dois Testamentos não pode ser compreendida. Não se trata, em parte
alguma, duma salvação que se evidencie lor si mesma, mas, sim, duma Redenção
definida, duma Redenção do pecado e do mal, só compreensível mediante o
reconhecimento de Deus, de sua santidade, ira, graça e misericórdia. Necessariamente,
pois, na Igreja de Cristo continua ressoando a mensagem do AT, não tanto como
referência às coisas passadas, quanto como referência a Cristo em suas múltiplas
relações e compromissos com a obra da Santíssima Trindade no mundo. O AT oferece
uma compreensão tanto mais intima da salvação no NT. quanto melhor conhecemos o
significado através do NT, precisamente. Se fosse questão apenas de unia profecia
coroada de cumprimento, tal profecia teria um valor meramente histórico, depois do
cumprimento, doravante desprovido dc sentido para nossa vida. Mas não é questão de
uma profecia dessa índole tão particular e contingente, O cumprimento
neotestanientário é-nos revelado na graça de Jesus Cristo; esta graça nos traz o
conhecimento de Deus (que é a vida eterna). Destarte, iluminada pela luz de Cristo, a
Igreja descobre no AT o Verbo de Deus, exatamente como o próprio Jesus Cristo nele
descobriu o livro de vida e de oração. Instruída do progresso e da transição da ação
reveladora, atenta aos apelos da salvação, a Igreja reconhece em todo o AT os traços do
Varão de Dores, do Servo Sofredor, do Filho do Homem, da família de Davi e, ao
mesmo tempo, do Deus verdadeiro.
O NT está repleto do AT, não como evocação histórica, mas como plenitude de
revelação; o NT ilumina e completa a revelação do AT, provocando a admiração dos
anjos.
Tais são os corolários do caráter histórico da Revelação Dhina no AT. Nem por isso
estamos em condições de elaborar uma sistematização do processo salvifico em todos
seus detalhes. A história da Revelação tenta seguir as linhas do caminho de Deus
através de Israel e demais povos; mas, assim como é impossível escrever uma vida de
Jesus em sentido biográfico, também é impossível descrever, terminantemente, o
progresso da iniciativa da salvação no AT. Por muito que seja uma história genuína, que
a Salvação de Deus entre na História e nela se complete e ainda se completará, o AT
não nos dá a descrição na íntegra de tudo que Deus faz na História do mundo.
Tampouco os Evangelhos nos iluminam sobre tudo quanto Jesus operou durante o seu
ministério. A Revelação veterotestamentária chegou a nós fragmentariamente.
Possuimos fragmentos de um poderoso conjunto que se completará na vinda de Cristo.
Através desses fragmentos, torna-se-nos visível ora a misericórdia, ora a ira divina para
com os atores do drama — assírios, filisteus e babilônios; vemos, porém, que o modo de
agir de Deus nem sempre depende da situação histórica, assumindo soberanamente suas
atitudes e iniciativas quando assim convier. Não faltou quem, a este propósito, falasse
no relógio de Deus marcando explicitamente o começo e o fim da intervenção Divina
em texto determinado: só quem o lesse é que compreenderia o sentido da Palavra de
Deus, no AT, negligenciando cronologia e concordância científicas. Observemos
simplesmente que não nos cabe seguir os ponteiros do relógio Divino, minuto por
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
61
minuto, uma vez que a História da salvação decorre da História geral, com um
calendário que nem sempre conhecemos. Esta é uma das causas que impedem a
completa sistematização da História da Salvação; esta segue o ritmo de inúmeros
acontecimentos concretos, ordenados pela pedagogia Divina. Repentinamente, por
momentos, jorra uma luz maior e enxergamos os pontos culminantes da Revelação: sem
preparo nem informação direta explicando por que precisamente nesse momento
surgiria a Revelação e, daí, recebemos comunicação concreta acerca do Messias, de sua
cidade natal, de seu nome, de sua paixão, abandono e humilhação; ou bem,
contemplamos pontos-chaves da ação Divina relativamente à apostasia e castigo do
povo eleito, a seus reis desviados, à sua cegueira diante da legislação litúrgica, ao exílio
propício às ânsias pela redenção. Nesses fragmentos, Deus nos guardou amostras de sua
atuação no mundo, para que as relacionássemos — em benefício de nosso conhecimento
da salvação com a plenitude de sua misericórdia em Jesus Cristo. Eis por que, para o
NT, homens de épocas remotíssimas ajuntar-se-ão com os crentes que pela fé viveram e
morreram (Hb 11): a vida desses salvos da Antiga Lei ligava-se, da maneira mais
variada, aos atos de Deus se revelando no tabernáculo, no templo, durante a realeza ou o
exílio, no êxodo, na profecia, etc.
Nessa Revelação fragmentária, vemos Deus denunciando os pecados de seu povo, o
pecado e a perdição de todo o gênero humano, sua incapacidade de se redimir e seu
destino à morte eterna; ina vemo-lo também indicando o caminho da salvação,
relembrando a infinita fidelidade daquele que nunca rompe a Aliança, que nunca recua
na sua marcha graciosa. Não podemos, portanto, rebuscar, entre o fragmentos, textos
especificamente messiânicos; estes perderiam sua plenitude, porquanto também o
contexto testifica de Cristo. Se é verdade que a Pessoa e a Obra de Cristo estão
indissoluvelmente correlacionadas, essa verdade já vigora no AT. A evidência desse
testemunho aumenta de página em página: entrementes, também aqui, a evidência não
brota da carne e do sangue, mas do dom Divino e da descida do Revelador. Deus é
quem faz ver que a salvação não provém do homem, mesmo que seja israelita, mas da
misericórdia divina. Somente à luz desta Revelação enxergamos os contornos da
Salvação Absoluta, isto é, da salvação concebida no seio imaculado da Santidade
Divina, ansiosa em redimir e trazer a si o povo perdido, em destruir o pecado como se
dissipa uma névoa, em tornar branco como neve o que fora tinto como a escarlata (Is
1.18). Cada vez mais acentuadamente aparecem os contornos da salvação e já, desde
longe, Israel enxerga as sombras daquilo que se tornará plena realidade histórica com
Jesus Cristo.
Quando Obbink sustenta que Israel não podia saber ainda em que forma ou figura Deus
revelaria a futura salvação, ele erra parcialmente; embora Paulo mencione que Jesus
Cristo é a revelação do mistério “guardado em silêncio nos tempos eternos” (Rm 16.25),
nunca podemos separar realidade e forma desta realidade: fato comprovado claramente
no AT, o qual nos apresenta o Messias como sendo da família de Davi, como ReiMessias, como simultaneamente Sacerdote e Rei, como Servo Sofredor e Varão de
Dores, chamado Emanuel e Servo do Senhor.
O fato da Redenção não pode ser separado de sua forma. Aqui também, a medida da
Revelação, da descoberta do mistério, é determinada pela pedagogia e soberania
divinas. Não obstante, a Revelação aponta para aquilo que, quando vier, não deixará de
suscitar admiração: verdadeiro mistério histórico, que o NT menciona como algo
“guardado em silêncio, nos tempos eternos, e agora revelado”. Cuidemos para não
interpretar mal este texto paulino: “guardado em silêncio” não significa que o mistério
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
62
de Cristo fosse absolutamente alheio à Revelação do AT, ou que este ignorasse toda e
qualquer Revelação a respeito do Cristo. Significa simplesmente o elemento mais
surprendente do mistério de Cristo: que Cristo aparece na realidade de nossa carne —
grande mistério! — que ele é Deus revelado na carne. As sombras se dissiparam desde
que o dia chegou. Desde que a Nova Aliança se fez realidade, o significado da História
de Israel foi patenteado em Cristo, Salvador do mundo inteiro. Escrevendo aos Efésios,
Paulo explica bem o seu pensamento: “Lendo-me, podeis compreender a idéia que faço
do mistério de Cristo que, em outras gerações, não foi manifestado aos homens da
maneira como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e
profetas. É este o mistério: os gentios são co-herdeiros conosco (os judeus), membros
do mesmo corpo e participantes da promessa em Jesus Cristo.” Neste texto também
vemos que não é total a oposição entre AT e NT: as gerações passadas não conheceram
como agora nós conhecemos em virtude da Revelação. Sem dúvida, a promessa
veterotestamentária da salvação estendia-se a todos os povos, pois todos seriam
abençoados em Abraão, mas não foi revelada às gerações passadas do modo como foi
revelada agora, isto é, em uma forma tão concreta, de maneira tão clara e nítida, e tão
relacionada com a salvação concretizada. Esta, aliás, não é a única vez que encontramos
a unicidade da salvação, tão fortemente acusada na realidade histórica; as palavras de
Cristo já lhe davam relevo da maneira mais explícita: “Bem-aventurados, porém, os
vossos olhos, porque vêem; os vossos ouvidos, porque ouvem. Pois, em verdade vos
digo, muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes, e não viram; ouvir o que
ouvis, e não ouviram” (Mt 13.17). São indicados aqui tanto o progresso como o
cumprimento. Apareceu a graça divina. Mas, por causa desta realidade insuperável e
ímpar, o AT não fica diminuído. Também ele, através das inúmeras relações com o
evento-Cristo, se qualifica como “uma luz da revelação”, a qual, ainda hoje, incide
sobre a realidade da salvação em Jesus Cristo.
***
Sendo o AT o Evangelho de Deus e da Promessa divina, a Igreja deve escutar
reverentemente suas vozes. Longe de ser uma monótona repetição da profecia
messiânica, o AT contém uma série majestosa de atos divinos antepostos à vinda do
Messias, e tão repletos de conteúdo que bem se pode afirmar a impossibilidade de
entender o NT sem o auxílio do AT e, reciprocamente, de compreender o AT sem a luz
do NT. Aceitar esta mútua correlação entre ambos os Testamentos não é fruto da
pesquisa científica, mas obra da fé no Verbo único de Deus. Isso não impossibilita a
leitura do AT fora da fé cristã; os judeus apreciam-no como o Livro da Promessa,
embora sem reconhecer em Jesus Cristo o Messias Prometido. Ai está a separação entre
Igreja e Sinagoga. A Sinagoga protesta contra a apropriação cristã dos textos proféticos,
e a Igreja lamenta-se sobre o véu posto nos olhos da Sinagoga, que não lê a Escritura
como deve ser lida.
Evoca-se-nos aqui a imagem do eunuco de Atos 8.34: ele está lendo o capítulo 53 de
Isaias, sem entender “a quem se refere o Profeta, se a si mesmo ou a algum outro”.
Filipe lhe dá a explicação, evangelizando-o acerca de Jesus. A interpretação do apóstolo
não força o texto, mas surge da fé que revela o segredo do testemunho
velerotestamentário sobre Cristo. A descoberta de Filipe não se encontrou no nível
puramente racional. Não cabe decidir-se a controvérsia entre Judaísmo e Cristianismo
mediante apelos aos processos científicos. A Igreja é como Filipe: atenta à Revelação
divina, percebe o testemunho que dão as Escrituras do Varão de Dores. Sua fé no
testemunho escriturístico não lhe advém da lógica de suas reflexões, mas resulta em
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
63
conseqüências benéficas: a luz ilumina uma alma escura e alguém continua sua viagem
com alegria (At 8.39).
***
No problema Promessa-Cumprimento, o ponto mais interessante, sem dúvida, é a
origem da esperança messiânica em Israel. Especialmente aqui estoura o conflito entre
Teologia e Criticismo histórico. Para a crítica, a esperança messiânica derivou, não de
alguma Revelação divina, mas de motivos históricos e psicológicos. Foi criada uma
“interpretação nacionalista” do messianismo judaico. Israel, em contato com outros
povos, imitou-os também nesse particular, deixando que uma esperança nacional desse
forma à expectativa de um herói libertador e restaurador dos ideais do povo.
Posteriormente, motivos psicológicos plasmaram essa esperança, explicando-a pelos
múltiplos desejos, anseios e desesperos suscitados pelas calamidades nacionais. “Sendo
o desejo a mãe do pensamento”, as ânsias de felicidade geraram o Messianismo.
Reconhecemos os postulados do Criticismo histórico, o qual sempre explicou a religião
como um surto natural do coração humano.
Encontram-se em questão a religião de Israel, seu fundamento e sua garantia, qual seja a
Revelação. A esperança, para o racionalista, não passa de um clamor, psicologicamente
explicável, pela redenção; manifesta ela as saudades do povo atribulado. Teoria tanto
mais capciosa quanto, de fato, as iniciativas salvadoras de Deus guardam sempre íntima
relação com situações calamitosas: a desgraça de Israel está sempre relacionada, desde
os tempos mais remotos, com a Revelação de um Salvador. Quando os filhos de Israel
gemem e clamam, na servidão do Egito, a voz de sua tribulação sobe até Deus e Iavé
lembra-se de sua aliança. Consciente de sua aflição, o povo ruma novamente pelo
caminho da esperança messiânica. Nos dias dos Juizes, premido pela desgraça, Israel
invoca novamente o Senhor, confessando seus pecados e seus caminhos errados: o
Senhor, de início, parece ficar endurecido e não atender às súplicas, mas, como Israel
persevera em oração e arrependimento, Iavé faz reluzir sua Salvação (Jz 10. lOss). A
teoria psicológica da inter-relação de desgraça e salvação, bem como da origem das
esperanças messiânicas, peca porque apresenta essa relação como causal, considerando
a desgraça conio causa da esperança messiânica e, portanto, da ideologia messiânica.
Entrementes, achamos outra alternativa a bíblica — que postula ser a própria Revelação
a causa da esperança; basta então a recordação da Aliança para fazer jorrar a confiante
expectativa dos israelitas. Deus, nas horas críticas, ouve sempre com benevolência
renovada os clamores por salvação e céus abertos. Tais clamores não se explicam por
motivações do coração humano; pelo contrário, a esperança messiânica empalidecia
cada vez que Israel gozava de autonomia: “a autonomia do Judaísmo não era propícia à
esperança messiânica, pois que Israel tinha a Lei e se estimava justo porque cumpria a
Lei: não precisava de Redentor” (Bavinck, Ger. Dom., III, pág. 223). As saudades de
salvação e graça são a resposta às promessas divinas, o fruto do Espírito de Deus: Israel
sabe que Iavé é fiel e não deixa perecer sua obra nem seu povo, mesmo que tivesse de
desarraigar montes e colinas. Só uma construção forçada pode sustentar que a esperança
messiânica brota unicamente em tempos de desgraça e aflição.
Outrossim, a sistematização dessa “interpretação nacio - nalista” discorda com os dados
positivos do AT e com o processo salvífico de Deus no mundo. “A esperança
messiânica atingiu culminâncias em tempos de maior prosperidade e esplendor político”
(Edelkoort). Nas épocas de maior alegria, os profetas lançam seus avisos contra o
obscurecimento da esperança e fé messiânicas. Finalmente, no fundo desta teoria, não
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
64
há lugar para a fé decidida na divina Revelação. Quem não mais admite que a religião
de Israel e seu Messianismo são urna resposta à divina Revelação, proclamará que eles
são o produto do próprio Israel, influenciado pelas diversas circunstâncias anibientais ou
psicológicas. E assim encontramos a razão íntima da luta em torno do Messianismo
israelita e o porquê da gravidade do problema. Tudo é elucidado para quem acredita na
História da Salvação ou pesquisa, sem preconceito, a evolução de Israel: Israel foi o
povo eleito, favorecido da divina Revelação. Tudo se torna enigma e trevas para quem
não tiver essa fé e ficar reduzido à análise histórico-psicológica de Israel. Tal história,
na verdade, está repleta de tentativas de auto-redenção, de intentos de interpretação
monista da religião, frontalmente contrários à esperança messiânica. Foi o próprio Deus
quem sempre fez abortai essas tentativas; através da turbulenta história do povo eleito,
seu juízo divino conservou um “remanescente”, para nele conservar a viva chama
messiânica. Esse “remanescente”, resíduo de sobreviventes, aprende novamente como
esperar a redenção messiânica, aguarda a abertura dos céus e confia no nome do Senhor.
Quando este resíduo se desviava, por sua vez, nunca tardava a intervir a poda de Deus.
Através desta poda, porém, sempre manifestava-se a luz profética, guiando para uma no
va vida esperançosa.
O texto de 2Sm 23.1-7 dá uma oportunidade típica para apreciarmos a diferença entre
essa interpretação nacionalista psicológica, denunciando a origem meramente
psicológica do messianismo israelita, e a interpretação tradicional. Isso porque,
contrariarnente à asserção racionalista, não há aqui pressão nem ameaça qualquer contra
a existência de Israel; o Rei de Israel expressa sua gratidão pela vitória e exaltação, pela
misericórdia de Deus para com o seu ungido, Davi, e a raça davídíca. Nessas
circunstâncias ótimas é que ressoa a profecia de Davi sobre o Dominador dos homens, o
Justo que teme a Deus. Esta profecia é introduzida textualmente pelo Espírito: “O
Espírito de Iavé fala por mim, sua palavra está na minha língua,... o Rochedo de Israel
disse-me.” A esperança baseia-se claramente numa dádiva divina, numa Revelação
divina.
Quem ignora esta relação e desliga a esperança da sua fonte revelada terá que explicar
de qualquer outra maneira a existência do Messianismo; invocar, por exemplo, toda a
espécie de tensões, mesmo a custo de quebrar a unidade desta esperança, fazendo-a
brotar de muitas fontes disparatadas. Assim é o modo de proceder de Hans Schmidt,
assinalando três concepções biblicas relativamente à esperança messiânica: uma
mitológica (vinda do Messias acompanhada de mudanças na natureza, extensivas ao
reino animal), outra históricopatriótica (volta de Davi como rei escatológico, ou, em seu
lugar, de um rei da linhagem davídica), e outra, síntese elaborada das duas anteriores, na
era dos grandes profetas. Schmidt, desqualificando como mitológico o conceito da
Revelação (Rei-Messias, Emanuel), está reduzindo a sua discriminação de motivos,
tensões e oposições mitológicas e históricas. Nada subsiste da visão coerente e una da
Revelação divina: a relação entre AT e NT decaiu à categoria de uma construção,
aplicando a Cristo a profecia mitológica do Rei-Messias prometido. Para nós que
cremos na unidade da Revelação, as teorias de Schinidt são a recusa absoluta do
mistério sagrado da religião de Israel.
Que diremos, então, a respeito do “divino Soberano” prometido e de suas
peculiaridades? Aquilo que para Schmidt e outros é simplesmente um indício de tensões
e contrariedades no AT, para nós recebe sentido absolutamente satisfatório no
cumprimento: o conceito de realeza divina é realizado em Cristo, soberano em nada
igual aos antigos déspotas orientais, pois ele reinará temeroso de Deus; seu reinado,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
65
longe de contradizer a figura do Servo Sofredor, cumpri-la-á. Todas as profecias
relativas ao Rei-Messias vindouro são concretizadas finalmente na realeza de Jesus
Cristo: em Cristo, sem prejuízo da realeza genuína, a humilhação é o caminho da
exaltação. As profecias relativas ao Rei-Messias, melhor do que quaisquer outras,
evidenciam que não é possível ler nem entender o AT, se não for à luz do NT. Só o NT
retira o véu que encobre o AT e torna harmoniosa e coerente a figura do Rei-Messias; só
em Jesus Cristo é realizado o acorde incomparável deste modo de reinar com esta
humilhação.
A propósito de Gn 3.15 (promessa da mãe que ferirá a cabeça da serpente), Schilder
falou do “primeiro enigma proposital” deparado pela Bíblia. Mais adiante, a propósito
da famosa palavra: “O cetro não se arredará de Judá até que venha Siló”, ele acha
possível ter-se escolhido este misterioso “Siló” para indicar propositadamente a
personalidade peculiar do Messias. Esta alusão ao caráter peneirador do mashal (do
provérbio ou parábola) no AT e no NT, evoca o antagonismo Igreja-Sinagoga (o inasbal
descobre para a Igreja, encobre para a Sinagoga. Para a Igreja, Siló é o Rei Pacífico
prometido; para a Sinagoga, Siló é o desejado ainda por vir). Para nós aqui não há
enigma proposital nem escolha intencional de palavra alguma misteriosa: a dificuldade
interpretativa se deve ao caráter fragmentário da Bíblia e à índole da profecia. Profecia,
aliás, muitas vezes ligada aos atos divinos na História. Não há lugar algum no AT que
analise sistemática e transparentemente a figura do Messias; os traços dessa figura
aparecem dispersos, projetados ora numa ora noutra situação histórica. Aqui, o
dominador real é também o justo temeroso de Deus; ali, o Messias-Emanuel, o Deus
vindo ao mundo, é também Filho do Homem; acolá, o poderoso Redentor, no qual o
próprio Deus se oferece ao mundo para reconciliação, aparece como nascido da semente
davídica ou como o “Servo Sofredor”. Ainda não surge a doutrina das duas naturezas de
Cristo, mas revela-se-nos o Messias: somente no NT saberemos completamente de sua
qualidade de Filho de Deus conatural a Deus, e de Filho do Homem conatural ao
homem.
***
De passagem, abordemos, finalmente, uma questão intimamente vinculada aos fatos
considerados até agora. A partir do ponto de vista histórico da salvação, ou seja, da
progressiva ação de Deus e da transição evolutiva de um Testamento para outro, podese perguntar se os crentes da Antiga Lei se beneficiariam da salvação. Já vimos com
quanta hesitação esta pergunta é abordada. Entre muitos outros, Coccejus aceitou urna
distinção real entre fiéis da Antiga Aliança e fiéis do Evangelho: os da Antiga Aliança
apenas teriam participado da remissão dos pecados; iuas a experiência do perdão era
reservada aos cristãos, sendo aicarnente possível depois da efusão histórica do sangue
de Cristo. Para fundamentar sua opinião, Coccejus apelava para Riu 3.25 e Hb 10.18. A
preocupação de Coccejus foi a de pensar historicamente, e não a partir da idéia geral da
salvação. Opinava que, na idéia geral de salvação, a hisloricidade do sacrifício
reconciliador do Cristo crucificado não mais ocuparia lugar dominante na hierarquia de
valores cristãos. Ademais, acreditava que só depois de uma reconciliacão genuína era
possível falar em perdão dos pecados. Evidentemente Coccejus, por causa de suas
tendências antiespeculativa, descambou para um outro extremo, começando por fazer
história da salvação de Cristo, com um apelo, aliás injustificado, às Escrituras. Sua
reflexão antiespeculativa e antiescolástica levou-o a negar que a salvação “para todos os
tempos” preenche exatamente toda a realidade histórica e que a reconciliação
transcende a todos os tempos, de tal modo que mesmo aqueles que “se recolheram aos
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
66
seus pais” muito antes do Cristo nascer são feitos beneficiários de sua reconciliação e
perdão salvadores. Sem desconhecer a historicidade do drama salvador da cruz, nós
reconhecemos sua significação transcendental para todos os tempos. Rejeitamos a
opinião de Coccejus pela mesma razão que nos faz rejeitar o conceito católico da missa.
A missa católica implica a idéia de que, se não for repetido constantemente o sacrifício
de Cristo na história, a cruz do Senhor não teria significação atual: entrementes, a
Igreja, em sua confissão de fé, declara que fundamentalmente tal idéia nega a Paixão de
Cristo, sua eficácia e significação universais. Embora Coccejus parta de outro princípio,
sua concepção é, de fato, idêntica: estabelece uma descontinuidade entre fiéis do AT e
fiéis do NT, não obstante a Escritura declarar exatamente o contrário. Os fiéis de todos
os tempos, anteriores ou posteriores a Cristo e que vivem segundo o Verbo da Promessa
Divina, encontram-se diante de sua ira e de sua santidade, mas podem se esconder
debaixo de sua misericórdia. As nuvens e a escuridão cercam o trono de Deus, mas a luz
da graça refulge nesse mesmo trono. É-nos lícito orar pela plena alegria diariamente,
porque Deus nos declara que ouve a oração, mesmo em sua ira, e se lembra de suas
“eternas misericórdias”. Desconhecer essa alegria nos fiéis do AT, invocar, na salvação,
um hiato entre ambos os Testamentos, contraria frontalmente a mensagem dos dois
Testamentos, ambos repletos da força benfazeja do único Messias, outrora prometido e
agora imolado.
***
Ao começar este capítulo, lamentávamos o desprestígio recaído sobre o AT, raiz da
propaganda anti-semita. Notávamos, porém, que muitos, de muito tempo atrás, apelando
para o cumprimento evangélico, reabilitaram o AT. Certa vez, foi observado que quem
começa desvalorizando o AT, acaba desvalorizando também o NT, em virtude de certa
lógica interna. A História demonstrou suficientemente a perspicácia da observação.
Quem fechou o AT, não mais o considerando importante para a Igreja, talvez mencione
o NT ainda com certa ponderação. Mas, sem muitas delongas, revelará o
empobrecimento de sua reflexão neotestamentária, tal como aconteceu a Harnack. O
teólogo que presume conhecer a salvação sem consultar o AT é vítima duma confusão
funesta: imagina que o progresso histórico da Salvação mediante iniciativas divinas
acarreta a anulação do passado, que a transição do Antigo para o Novo Testamento
implica na abolição do primeiro. Ora, desvincular-se desta venerável fonte de
testemunho fatalmente conduz a empobrecimento. Estamos bem convencidos de que
não é outra a causa das gravíssimas mutilações do pensamento cristão moderno:
rejeitado o AT, só restaria, de Cristo, uma figura totalmente desligada do esplêndido
backgrourzd em que Deus e sua justiça estavam atuando, alternativamente com sua jra,
seu amor, sua santidade e, inclusive, com a culpa humana. As conseqüências, aliás, não
são menos funestas para o AT.
Esta constatação não surpreende o teólogo: ele lembra o próprio Cristo apelando com
ênfase para o AT, precisamente nas horas solenes do cumprimento das Escrituras,
quando as figuras se tornavam realidade na sua vida abençoada e humilhada. Até na sua
cruz ouvimos palavras do AT ressoarem. E como repercutiriam elas no coração do
Crucificado, habituado, desde o berço, a viver segundo a palavra escrita do Pai! À Igreja
importa seguir a Cristo. Fiel ao testemunho antigo, é mister que ela conserve o depósito
novo. Sem dificuldade admitimos o testemunho claro e evidente do Evangelho, ouvimos
suas mensagens sem confusão nem perturbação. No entanto, nosso coração é
essencialmente ardiloso: comprova-o com evidência nosso desentendimento bíblico. A
despeito dos perigos cercando sua compreensão, quem quiser viver segundo o
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
67
cumprimento das Escrituras deverá abrir a Biblia para adorar a Deus, impenetrável nos
seus desígnios e preferências; deverá adorar a Deus na sua marcha paciente e na sua
progressiva Revelação, a Deus que nos revela o sentido da fé em contraposição ao de
nossas obras, o sentido de sua palavra testificadora que nos fala de culpa e de graça, e
nos promete o grande Servo seu. Neste Servo é que, finalmente, aparecerá o próprio
Deus no descerramento do céu. Então todos dirão, com soberana razão, que “jamais
olho viu, nem ouvido ouviu, nem coração sentiu” o mistério sublime: Deus revelado na
carne.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO VIII - A DIVINDADE DE CR1STO
Sumário
Igreja uersus heresia — Arianismo e Modernismo O nome de cristão — A fé simples
— van Holk — Encarnação ou Transfiguração — Prova da terminologia — Deus ou
quase-Deus Heering — Credo ecumênico do Conselho Mundial Mnnich e a Igreja
Antiga — Doxologia e Hinologia — A projeção psicológica — Cristo, o quase-Deus —
Cânticos de louvor no NT — Filho e Pai O Enviado e Aquele que veio — O Pão do
Céu — Pretensões de Cristo — Além do quadro histórico — “Antes que Abraão
existisse, Eu sou” — Aoristo e perfeito — Preexistência só em João? — Sevenster dá
sua opinião — Preexistência e Divindade de Cristo O alcance do “Eu sou” —
Autoridade de Cristo — Deificação? — A Oração Sacerdotal — Resistência às
pretensões de Cristo — Cristo se defende: Si 82 — Tergiversávei a pretensão dc Cristo
— Blasfêmia leva à cruz — Cristo escarnecido e tentado devido a suas pretensões —
Cristo perdoa pecados —— Cristo, o Unigênito — Jo 1.18 Adocianismo Filho e Senhor
de Davi — O Sl 110 embaraça os líderes de Israel — Projeção psicológica ou fé? —
Preexistência e doxologia - Fp 2.6-7: de Deus a escravo — 2Co 8.9: de rico a pobre —
Todas as coisas forani feitas em Cristo — Cristo na Epístola aos Hebreus —
Preexistência apenas na ciência de Deus? — Bultmann diante das evidências do texto
— O mito, solução de Bultmann — Especulação teológica, solução de outros —
Preexistência pressupõe Trindade — O Pai será maior do que o Filho?
Subordinacionismo Jo 14.28 implicado no litigio — Apelo a Ário — “Maior” e
“menor” dizem respeito à humilhação e á exaltação — Lutero interpreta Jo 14.28 — Fé
cristã e Monoteísmo — O escândalo dos judeus e dos unitários — O Monoteísmo se faz
monarquiano — Cristo ameaça o Monoteísmo? — Campeão da glória do Pai — A
glória do Pai não foi cedida a ninguém — Não ontologia, mas fé viva.
Pecaríamos por unilateralismo se pretendêssemos que a discussão cristológica versou
exclusivamente em torno da Divindade de Jesus Cristo. Não podemos silenciar o fato de
que se travou também intensa luta em torno da humanidade genuína do Senhor. A Igreja
defendeu tenazmente contra a heresia o vere Izoino conforme ao testemunho das
Escrituras. O fato foi patenteado no mesmo século que presenciou a luta acidentada
contra Ário: Apolinário, um dos lugar-tenentes de Atanásio no conflito ariano, acabou
diminuindo a autêntica humanidade do Salvador.
Satisfeita com a unanimidade finalmente lograda em torno à confissão da Divindade do
Cristo, a Igreja corria o perigo certamente não imaginário de descuidar agora da pureza
de sua fé na humanidade do Senhor. Os padres conciliares eram mais ainda expostos à
tentação de se contentar em proclamar que o próprio Deus tinha descido para nos salvar
em Jesus Cristo. Mas a Igreja não caiu na tentação: repeliu, firme e constantemente,
toda forma de Docetismo, quer fosse ele de expressão grosseira e brutal, quer sutil e
refinada, como veremos a seguir.
A vitória da Igrej a não significa que a discussão em torno da Divindade de Cristo dali
por diante deixara de repercutir nos diversos momentos da história eclesiástica. Se bem
que na Igreja antiga a luta sobre o “consubstancial ao Pai” tivesse sido revestida da mais
profunda seriedade religiosa, repetiram-se posteriormente as fases desta luta, como, por
exemplo, na controvérsia sociniana do século XVI e na batalha contra o Modernismo
dos séculos XIX e XX.
Em muitos lugares e repetidamente renasceram os ataques contra a fé na Divindade de
Cristo. Nunca foram negadas a Jesus de Nazaré as qualificações mais excelsas; foi
reconhecida a singularidade de seu aparecimento e ele foi considerado corno um
69
“quase-Deus”, através do qual Deus se revelara de modo muito especial. Entretanto,
tantas eram as restrições e subentendidos que matizavam essa admiração e apreço, que
ficava patente o fato de Jesus de Nazaré não passar de um simples homem, por
intermédio de quem a divina Revelação proviera até nós. Suas qualificações morais e
religiosas elevavam-no acima de todos os demais homens, mas, a despeito da Revelação
de Deus na sua Pessoa, não se podia cogitar em qualquer transcendência divina a
propósito de Jesus Cristo. Era inevitável o choque entre Igreja e tais formas renovadas
do Arianismo. A luta foi particularmente difícil, porque os heréticos perseveravam em
declarar, enfaticamente, seu profundo respeito pelo que, na Cristologia, traduzia o
essencial da Revelação neotestamentária, e porque faziam questão de conservar o nome
de cristãos. Por outra parte, nas peripécias desta luta, a Igreja teve consciência clara de
não se tratar de questiúnculas interpretativas, indiferentes e toleráveis, nem de teorias
sofisticadas, mas de decisões vitais, que ela devia defender com absoluta intransigência,
a custo do repúdio que tal atitude poderia acarretar-lhe e que de fato lhe acarretou.
Como não reconhecer que estava em jogo o próprio coração do Cristianismo, ou seja, a
fé em que Deus pessoalmente se manifestara em Jesus Cristo, na Encarnação do Verbo
eterno? A Igreja não deixou de sentir e compreender que o problema de Cristo não era
reduzível a uma escamoteação verbal ou a uma prestidigitação conceitual: tratava-se do
princípio capital, de valor comparável e superior ao do célebre sola fides da Reforma. A
alternativa ineludível era: basear-se nele, ou derruir.
***
A luta teria sido bem mais fácil se as fronteiras tivessem sido demarcadas com
evidência e se, com igual evidência, os heréticos tivessem falado da humanidade nua e
crua de Jesus Cristo, sem acrescentar-lhe tantos epitetos ambíguos. Mas eles
costumavam usar termos envolventes de toda espécie, causa de mal-entendidos.
Costumava-se falar, com ênfase, da Revelação de Deus em Jesus Cristo, e mesmo de
conceder-lhe, em sentido peculiar, o nome de “Filho de Deus”; certas vezes até
outorgava-se-lhe o predicado “Deus”. No entanto, acentuava-se a discrepância com a
doutrina tradicional: não se queria entender as palavras “Deus” e “Filho de Deus” nas
alturas da Divina consubstancialidade. Eram usadas na pregação, dificultando assim a
delimitação do litígio perante a congregação cristã: pois, como trazer à discussão as
diferenças profundas e sutis de uma fé pervertida, mas obstinada em fazer uso da
terminologia consagrada e, assim, se disfarçando perigosamente. Lembro-me, por
exemplo, do liberal van Holk que declarava: “Eu sou cristão porque acredito que Cristo
é o caminho da verdade através da vida”, e, a seguir, afirmava que, não aceitando partir
“do mistério de Cristo, Filho de Deus, segunda Pessoa da Trindade”, só considerava o
Cristo a partir do seu aspecto humano. Não obstante isso, sustentava ser Cristo o
Emanuel, “o Deus conosco, na intencionalidade salvadora do Evangelho, que parte de
Deus”. Cristo “não é apenas um homem comum, mas, pelo contrário, um homem
prodigiosamente fora do comum, portador exímio da força espiritual”. “Certamente se
pode falar em supremacia do Cristo, embora a orlodoxia entenda o assunto erradamente.
Ela fala de Encarnação; deveria antes falar de transfiguração, a carne se tornando Verbo
e o homem se fazendo Deus.” Nestas últimas declarações percebemos, evidentemente, a
novidade do Modernismo; mas, via de regra, a terminologia não chegava a ser tão
cruamente transparente. Assim, o mesmo van Holk escrevia que Jesus de Nazaré “é
verdadeiramente o ungido de Deus”. Essa e outras muitas palavras do tesouro teológico
estavam na boca dos adversários da confissão tradicional. Fato bem fácil de ser
comprovado nas obras de Cristologia especulativa do século XIX, que tranqüilamente
falavam da Encarnação de Deus. Quão necessário é, pois, comparar o texto com o
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
70
contexto totail Esta precaução é indispensável uma vez que o vocabu1ário eclesiástico
figura em livros que adulteram o dogma. De que serve que nos falem de Cristo, “centro
da História universal”, “força do divino amor”, “feito Kyrios por Deus”, “ato decisivo
de Deus”, quando, virando a página, lemos: “A encarnação de Deus é realizada não só
em Jesus de Nazaré, mas em todos aqueles que se convertem à obediência”.
Os modernistas não deixavam de enfatizar a filiação Divina de Cristo, a Divindade do
Senhor, embora sem admitim’ a Encarnação, pondo obstáculos a uma atitude decidida e
compreendida da Igreja em defesa de seu credo.
Já ouvimos as análises de Heering: “Eles falam no Filho, na Divindade de Cristo, mas
sem ligação com o dogma trinitário. Jesus não é a Segunda. Pessoa da
Trindade.”“Desligados do realismo positivo da Encarnação, nem por isso afastam a
r’alidade sagrada de Cristo, pois nele Deus nos visitou, nele Deus está perto de nós,
Emanuel até o fim do mundo, o nosso Kyrios.” Na Cristologia liberal, não faltam
citações escriturís ticas, iiivocadas como procedentes contra a Cristologia ortodoxa (que
eles chamam de teológico-mitológica). Não poupam a Cristo o qualificativo de
“divino”, esvaziado, porém, do sentido de vere Deus.
Este conflito, de capital gravidade para a Igreja, só pode ser resolvido mediante os
testemunhos escriturísticos relativos a Jesus. Aí é que se deve travar a luta contra os
liberalismos antigos e modernos. A fórmula básica do Conselho Mundial de Igrejas
agravou a situação: The World Council of Churclies is a fellowship of churches which
accepís Jesus Clzrist as God uzd Sauiour. Poderão os liberais aceitar essa fórmula de
base? A controvérsia reavivou-se em torno do significado de “Cristo como Deus e
Salvador”. Que pretende o Conselho Mundial com “aceitar Cristo corno Deus”? Quer
ele definir seu acordo com o vere Deus tradicional, com a consubstancialidade de Cristo
com o Pai, da liturgia e dos hinos de outrora? Ou então, indicar apenas a proximidade de
Jesus a Deus, proximidade que faz dele um “quase-Deus”? A fórmula de base do
Conselho Mundial provocou, em certo sentido, a crise do pensamento liberal. Muitos
rejeitaram a fórmula porqu pensavam ouvir o eco do credo antigo; outros a julgaram
aceitável porquanto o as God era suscetível de ser interpretado racionalmente. Minnich
expressou a necessidade de atender ao sentido prestado pela antiga Igreja à confissão de
Crisio como Deus, estimando, por conta própria, que a filiação nularal de Deu
professada posteriormente não represnta o pensamento prístino. Divindade ou
divinização? Vere Deus ou quase-Deus? O problema tornou-se mais do que nunca
angustiante. Muito embora essa preocupação denote urna honra especial tributada a
Jesus de Nazaré, está ela ligada originalmente ao problema do politeismo e a Igreja
antiga entrou na luta bem cônscia do problema. Mõnnich aventura a opinião de que o
Cristianismo paganizado, sem ter consciência de “faltar ao elemento essencial do
monoteísmo bíblico”, podia chamar Cristo de Deus, “conservando-se este modo de
expressão tão simples, especialmente na liturgia e na hinologia da Igreja”. Onde o
elemento de oração absorvia toda a atenção, era naturalmente possível expressar o
caráter de Cristo divinizando-o, coisa bem mais fácil do que em sua descrição. Contudo,
contra esta estranha maneira de divinizar Cristo, ergue-se a História: com provas
sobejas ensina-nos que, particularmente em sua hinologia, a Igreja teve sempre o
cuidado da propriedade dos termos e que tal simplicidade de expressão originou-se de
outra maneira: da consideração atenta das Escrituras. Das Escrituras tirou ela sua fé na
Divindade de Cristo, com perfeita consciência das exigências monoteístas e dos perigos
idolátricos. Mais uma razão para perguntar se o testemunho das Escrituras pode ser
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
71
realmente a base para proclamar que Cristo é verdadeiro Deus, como rezam o credo e a
hinologia.
***
Mais de um motivo foi invocado para debelar a Divindade de Cristo. O principal,
dominando em qualquer atitwle de negação, é um motivo de projeção. A idéia da
Divindade de Jesus não passa de simples projeção piedosa das esperanças e desejos da
comunidade. Portanto, é mister examinarmos se a fé na Divindade de Cristo resulta
dessa piedosa projeção ou se ela é o fruto da Revelação através do testemunho dos
profetas e apóstolos.
***
Um fato é evidente: há grande concordância nas Escrituras a respeito da Divindade de
Cristo. Ninguém pode fechar os olhos para esta evidência, mesmo que atribua o fato à
projeção da comunidade iludida pela própria piedade e imaginação. Os mesmos
adversários da fé cristã reconhecem nos escritos neotestamentários, a onipresença do
testemunho sobre Cristo-Deus. O Cristo do NT é um homem verdadeiro, a quem nada
humano é estranho, que se tornou semelhante a nós em tudo, menos em pecado.
Contudo, não pode ser compreendido segundo as categorias humanas: sua vida e
milagres escapam destas categorias. Embora a Escritura não forneça qualquer
interpretação teórica acerca da Divindade de Jesus, o NT está cheio de caracterizações e
indícios que identificam Cristo com Deus. A Igreja Antiga se refere a Cristo “como
Deus”, instruída pelo NT, o qual dá o testemunho da adoração de Cristo como Deus, e
não de Cristo como quase-Deus. Recordemos as inúmeras palavras da Escritura
afirmando relações extra-humanas e transcendentes. O Logos, que se fez carne, estava
eternamente com Deus e era Deus: sua glória perceptível para a fé é a glória do
Unigênito do Pai. Em torno dele elevam-se hinos de louvor; anjos cantam sobre seu
berço, tributos de adoração seguem-no por onde quer que dirija seus passos. Olhos
iluminados pela Revelação divina descobrem, no Filho do Homem, rejeitado e
humilhado, o Filho de Deus Pai. Pedro confessa que Jesus é o Filho de Deus vivo.
Tomé, libertado de suas dúvidas, expressa sua certeza, adorando:
“Meu Senhor e meu Deus”. Paulo fala do Cristo “adorável na eternidade”. A
comunidade da era apostólica expressa sua adoração em palavras de admiração que
nunca destoam. Há júbilo por causa do nome de Jesus, o nome único, e por causa da
graça de Jesus, nosso Deus e Senhor. Menciona-se a expectação da feliz esperança e do
aparecimento de Cristo, nOSsO grande Deus e Salvador. Sem ignorar nem um pouco a
genuína humanidade de Cristo, expressa-se de mil maneiras sua incomparável exaltação
e glória. Mesmo nas referências ao que é humano em Cristo, as expressões superam de
longe tudo o que é humano. Ele é “o Filho”, o “Verbo eterno”, o “Santo de Deus”, a
“Luz do mundo”, o “Enviado do Pai”, o “cumprimento da profecia” deste Emanuel,
indicado por Isaías como o verdadeiro Deus. Todas essas palavras não implicam
abstrações, mas referem-se indissoluvelmente à sua Encarnação, paixão, morte,
ressurreição e exaltação, à sua obra na qual o próprio Deus nele age para salvar. Ele
conhece o Pai como o Pai o conhece. O Pai mostra-lhe tudo quanto faz, ama-o, confia
todas as coisas às suas mãos. Assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim o
Filho ressuscita a quem quer. Tudo, “para que todos honrem o Filho do modo com que
honram o Pai” (Jo 5.23). Relação, numa palavra, tão íntima, que “quem não honra o
Filho não honra o Pai, que o enviou”.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
72
Muitos trechos mencionam, é verdade, a subordinação do Filho ao Pai. O filho é
enviado, é dado pelo Pai. Contudo, qualquer subordinacionismo é rej eitado
terminantemente: “Como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter
vida em si mesmo” (Jo 5.26). O mistério do Filho está tanto em ter sido enviado quanto
em ter vindo (Jo 5. 36ss). Entramos aqui em contato direto com a preexistência de
Cristo, a qual é uma das partes mais discutidas da Revelação bíblica, pois está vinculada
indissoluvelmente com a vida trinitária do Filho. As próprias palavras de Jesus são
matéria de discussão: “Agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu
tive junto a ti, antes do mundo existir” (Jo 17.5). Esta palavra indiscutível força a
decisão. De nada serve contornar o problema, alegando que Jesus fala bem pouco de sua
preexistência, pois este texto joanino não é isolado. O próprio Heering reconhece que a
idéia da pre— existência está expressada claramente em J0 3.13: “Ora, ninguém subiu
ao céu senão aquele que do céu desceu, o Filho do Homem.” E muitos outros textos
apontam para a mesma verdade. Cristo testemunhou constantemente que sua existência
não se limitava à sua vida como homem aqui na terra. Ele é o pão descido do céu, não à
maneira do maná: “Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu
é meu Pai quem vos dá; porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao
mundo” (Jo 6.32s). Estas palavras provocaram a murmuração entre os judeus, que as
compreenderam no quadro limitado da vida temporal: “Porventura, não é este Jesus,
Filho de José? Não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois, pode dizer: Desci do
céu?” Jesus, então, confundindo suas vãs argumentações, indicou-lhes o mistério sua
Pessoa e de sua Obra, mistério vedado a todos que não o recebem na Revelação do Pai.
A descida de Jesus vindo do céu está relacionada com a Salvação (ele é o pão que dá a
vida), cuja mensagem nos coloca na necessidade de escolher entre fé e escândalo. Mais
tarde, a v3da de Cristo projetar-se-á explicitamente dentro do quadro temporal da
história humanamente compreensível: seus adversários dir-lhe-ão que sabem de onde
ele é. Saber de onde ele é serve de argumento para criticarem as altas pretensões de
Jesus. Essas pretensões contrariam sua “interpretação”, reforçando mais e mais o
escândalo em seus corações. Cristo, porém, lhes dirá categoricamente: “Vós nem me
conheceis nem sabeis de onde eu sou” (Jo 7.28). Tal conhecimento faz parte do seu
mistério, mas o conhecimento deles, que sabem que Jesus é de Nazaré, não constitui o
conhecimento de Cristo. Eles carecem de fé, vêem o Nazareno, sem auréola de mistério,
no quadro histórico limitado do saber humano. Vigorosamente, Jesus rompe o quadro
do saber limitado, e diz: “Não vim porque eu por mim mesmo o quisesse, mas aquele
que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis. Eu o conheço porque
venho da parte dele e fui enviado por ele” (Jo 7.28s).
Todas essas palavras apontam para o mistério da eterna origem de Cristo. Empregar,
neste contexto, termos de intenção critica, como, por exemplo, especulação, ontologia,
etc., seria decair em posição teológica inferior. Seria subestimar todo o Evangelho,
ignorar esta origem, este ser maravilhoso, esta relidade da graça. Outra palavra de
Cristo, orientando na direção certa, provocou a obstrução dos judeus, porque destruia o
querido quadro histórico deles: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8.58). Que
anacronismo escandaloso e louco! Cristo falando de seu dia, que Abraão teria visto e
cobiçado! “Ainda não tens cinqüenta anos, e viste a Abraão?”. “Em verdade, em
verdade vos digo: antes que Abraão existisse, eu sou.” Compreendendo que Jesus
reivindicava para si a existência Divina e se fazia igual a Deus, os judeus pegaram em
pedras para atirarem nele. Cristo não nega que fosse exato e justificado o conhecimento
dos judeus acerca de seu nascimento histórico e de suas relações terrenas. O próprio
Evangelho usa o mesmo quadro limitado de nossa história quando nos apresenta o
menino Jesus de doze anos ou o Jesus adulto de trinta anos de idade. Evidentemente é
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
73
de outra dimensão da existência de Cristo que se trata nesta conversa com os judeus.
Como não ficaria escandalizado o homem alheio ao mistério de Jesus ouvindo um
homem que não tem cinqüenta anos alegar que viu Abraão e por Abraão foi visto?
Cristo possui algo “a mais”, algo que não entra na linha horizontal e comparativa da
história. Ele é, e este é não cabe na datação histórica, mas excede-a infinitamente até os
mistérios da eternidade. Esta palavra faz parte de sua Nova. Não adianta falar aqui de
ontologia subsistente, pois Cristo nos revela o que ele é e porque ele fala dessa maneira
sem ferir a verdade. Bultmann esquiva-se aqui, relegando esta palavra às categorias
especulativas de preexistência, sendo Cristo na realidade, incluído na categoria do
tempo. Mas o contrário é verdade: o “antes que Abraão existisse, eu sou” ultrapassa as
categorias do tempo, exclui que Cristo possa pensar a partir de nós e integrar, sem mais
nem menos, o quadro de nossa vida humana destituída de mistério. Este modo de pensar
é que Cristo aqui critica, porquanto Bultmann mede Crjsto segundo as medidas de dias e
anos, do nascer e do morrer, medidas que se esboroam contra a realidade de sua
existência Divina.
***
Houve tentativas para fugir à força dos testemunhos da preexistência. Alegou-se que só
João os acolhera, denotando assim que, mais do que os Sinóticos, trabalhava para
exaltar Cristo, retocando a imagem de sua vida conforme as necessidades desta
glorificação, e, conseqüentemente, renunciando o valor histórico. Bousset declarava não
descobrir nem um vestígio da preexistência nos Sinóticos; Heering opina que os
Sinóticos ignoravam a Encarnação, a “vinda” de Jesus não significando mais do que
“ser enviado”. Mas Sevenster demonstrou que, nesse particular, é gratuita a distinção
entre João e os Sinóticos, pois a preexistência se encontra repetidamente nos Sinóticos e
a interpretação que Heering faz da “vinda” é arbitrária: ver na palavra “vinda” só uma
expressão profética indicando a missão recebida de Deus é ignorar todo o conjunto da
mensagem escriturística ou não tomar a sério o seu sentido. Quem aceita, sem
preconceito algum, o testemunho total da Escritura, sem dificuldade vê nos Evangelhos
Sinóticos o mesmo fundo tão evidente em João: Cristo desceu do céu.
***
Nada estranho, pois, se, no combate travado contra a Divindade de Cristo e na luta
contra sua preexistência eterna, encontramos a mesma negação. Vice-versa,
encontramos na Escritura igual correlação para afirmar o lado positivo da preexistência
e da Divindade de Cristo. Na Escritura nunca é encarada a preexistência numa
perspectiva ontológica forçada, mas ela aparece como conhecimento revelado de Cristo:
pela Revelação é que sabemos que Cristo é o verdadeiro Filho de Deus, consubstancial
ao Pai, Luz da Luz. O mesmo motivo explica a constante correlação entre luta
cristológica e conflito trinitário na Igreja dos primeiros séculos. Essas duas
problemáticas são, de fato, inseparáveis; não têm qualquer sentido os testemunhos de
Cristo fora do contexto trinitário. Quem solapa a fé na preexistência de Cristo, solapa
igualmente o mistério de Cristo e, querendo ou não, desvirtua as palavras de Jesus
indissoluvelmente ligadas a esse mistério. Na preexistência do Filho está a genuína
explicação das palavras proferidas com autoridade incomum, diante das multidões.
É também fora do comum que Jesus, falando de si, diga: “Eu sou.” Em outros lugares
dizia: “Eu sou a luz”, “Eu sou a vida”, “Eu sou o pastor”. Mas aqui declara
simplesmente: ‘Eu sou’, como também em J0 8.24: “Se não crerdes que “Eu sou”,
morrereis em vossos pecados”. Grosheide reconhece neste “Eu sou” uma auto-revelação
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
74
sem precedente. São palavras que qualquer um diria, indicando sua existência terrestre,
mas aqui, usadas por Cristo, significam muito além da vida terrestre e até podem definir
a fé. Lembram Éx. 3.14: “Eu sou o que sou”, ou Dt 32.39: “Vede agora que eu sou, eu
somente, e nenhum outro Deus além de mim.” O eu sou de Cristo, absoluto e sem
predicado, tem o mesmo alcance que o eu sou de Iavé. Nele é que se baseia a fé; ele
situa o homem na necessidade de optar entre a vida e a morte. Veio a nós aquele que é,
aquele que, como o próprio Iavé, é e revela-se na graça. Ele não é um mero profeta
enviado nem um homem superlativo, mas simplesmente ele é. “Quem me vê a mim, vê
o Pai” (Jo 14.9).
O mais maravilhoso é que, no modo de falar de Jesus, nada há da vaidade humana,
reconcentrada sobre si mesma e cobiçosa da veneração atenta dos demais. Raras vezes
transparece o testemunho que Jesus dá de si mesmo: pertencia à sua finalidade
messiânica deixar oculta a Divina majestade.
Essa ocultação deveria servir para o reconhecimento final do mistério de Jesus. Cristo
não joga levianamente seu segredo nas ruas, mas reserva-o para ser pregado quando o
Pai ordenar em benefício da salvação. A comunidade compreendeu o autotestemunho de
Cristo, que é perceptivel no NT inteiro, perceptível na fórmula batismal na qual Cristo é
citado au lado do Pai e do Espírito (Mt 28.19). Esta equiparaço com o Pai e o Espírito
Santo está na base de inúmeras palavras, particularmente no prólogo das epístolas, a
respeito de Cristo, que alcançam além da existência humana e denunciam em Jesus um
ser diferente da criatura humana. É a realidade desse testemunho neotestamentário que
explica a fé da comunidade: não é a fé (projeção da subjetividade!) que cria o dogma. A
Divindade eterna de Cristo transparece através de todo o Evangelho, através dos Nomes
de Cristo, através do autotestemunho de Cristo. Não explicamos nada ao alegarmos
alguma teofania, alguma manifestação da majestade Divina. O milagre do aparecimento
de Cristo é incompreensível sem o vere homo, e não menos incompreensível sem o vere
Deus. O homem Jesus de Nazaré falou da maneira que acabamos de ouvir, e tinha o
direito de assim falar mesmo durante o tempo de sua humilhação. Somente a fé ouve as
palavras do NT, cheias de luz, inauditas, convidativas: só a fé irá até o Cristo para
aprender dele (Mt 11.28) e inclinar-se quando ele começar com o seu típico: “Eu vos
digo.” A fé não hesita, mas escuta, adorando: “Meu pai... O Pai e eu... Nós... Pai santo,
guarda-os em teu nome, aos que me deste, para que sejam um, como nós somos um...
Eu estou no Pai e o Pai está em mim.”
Só um afastamento pertinaz dos testemunhos escrituristicos poderia causar receios de
falar em Divindade de Cristo. Quem ouve a Escritura sem preconceito convence-se de
que declarar Cristo um “quase Deus” ou um “ser muito próximo de Deus” não é saída
teológica, mas apenas um subterfúgio. Não é confessando a Divindade de Cristo, mas
rebaixando Cristo à categoria de um “quase Deus”, que se recái na ontologia ou na
deificação do homem. Compreendemos muito mal a pretensão de Cristo, interpretandoa segundo fenômenos e qualidades próprios de criaturas. Stauffer, à margem do
pronome plural “Nós” de Jo 17, comenta: “Este nós seria uma blasfêmia na boca de
qualquer outro... O eu de Cristo nos depara com uma singular autoproclamação: revelase Cristo como o plenipotenciário absoluto... Seu eu sou, fórmula própria de Iavé, é a
expressão plena de sua identidade sem-par e sem limites.”
O próprio Cristo, dando testemunho de si mesmo, não procura sua própria glória, mas a
honra do Pai, enquanto o Pai testemunha para honra do Filho. A comunidade cristã ouve
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
75
os dois testemunhos, compreende-os, acha natural que continuem ressoando sobre a
longitude e latitude da terra.
A autoproclamação de Cristo foi tão evidente e inteligível que motivou a mais
encarniçada oposição durante sua peregrinação entre nós. Nos Evangelhos não
encontramos a mínima veleidade de controverter o significado das pretensões de Jesus,
como ocorreria posteriormente. Foi exatamente a clareza meridiana dessa pretensão que
provocou a resistência e aplainou o caminho para a cruz. Quando, certa feita, Jesus
declarou: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo 5.17), “por isso os
judeus procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia
que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (Jo 5.18). Não houve, pois, malentendido: os judeus defendiam o Monoteísmo contra uma pretensão sacrílega.
O mesmo aconteceu quando, enfaticamente, Jesus mencionou seu Pai, asseverando sua
união com ele e invocando tudo que o Pai lhe tinha dado; eles intentaram apedrejá-lo
“não pelas suas obras boas, mas por causa da blasfêmia... porque tu, sendo homem, te
fazes Deus a ti mesmo” (Jo 10.33).
Em verdade Cristo lhes responde de maneira bem surpreendente, citando o Salmo 82.6:
“Eu disse: sois deuses” (trata-se dos magistrados e juizes). Pensaremos, então, que
Cristo equipara sua qualidade de “deus” com a desses magistrados chamados deuses
pelo Salmista? Ou pensaremos que o Salmista alude a alguma divinização desses
senhores que está criticando tão asperamente (Sl 82.2s,6, 7)? Não. Evidentemente,
Cristo quer perturbar e quebrar a tranqüilidade aparente dos judeus a seu respeito. É
como se dissesse: “Até magistrados necessitados de salvação são chamados ‘deuses,’
em vista do esplendor da majestade divina visível neles e em sua magistratura. Não
provocará isso vossa reflexão, agora que vos falo do Pai e da minha união com o Pai?
Para vós há maior razão de refletir, agora que Cristo foi santificado e enviado ao mundo
(Jo 10.36) de maneira bem diferente dos juizes do Salmo.” Com base nesta citação
inquietante da Escritura, inatacável, Cristo declara: “Vós dizeis: Tu blasfemas, porque
declarei: Sou o Filho de Deus?” Houve, porém, outro intento de prender Jesus, quando,
terminando sua argumentação, este lhes diz: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo
10.38).
A acusação decisiva dos judeus está bem fundada na pretensão inequívoca de Jesus.
Jesus se declara o Filho de Deus. Não se procura qualquer interpretação nem escapatória
rabínica que torne aceitável e compreensível a palavra de Cristo. Mas é dada, à mesma,
a seriedade trágica que ocasionará a morte na Cruz: admite-se que Cristo comete o
crime pior imaginável no judaísmo e merecedor do castigo máximo — a blasfêmia, a
ação contra Deus, a degradação de Deus, o atentado contra Deus. Conforme a Lei, este
crime dos crimes deve ser punido com a morte por apedrejamento.
A acusação dos judeus coloca Cristo no último estágio de alheamento de Deus: só cabia
o juízo. De fato, esta foi a inculpação decisiva que, finalmente, mataria Jesus. Caifás,
num último intento, objura Jesus para que declare se ele é o Filho de Deus. A resposta é
terminante: “Tu dizes bem: eu sou. Entretanto vos declaro que desde agora vereis o
Filho do Homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do
céu.” Evidente, blasfêmia! Não mais precisamos de testemunhas. “É réu de morte.
Temos uma lei, e conforme nossa lei, deve morrer, pois se fêz igual a Deus” (Jo 19.7);
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
76
e, pouco mais tarde, “se és o Filho de Deus, desce da cruz... Pois ele disse: Sou o Filho
de Deus” (Mt 27.40ss).
***
Sem lugar à dúvida, percebemos que, durante sua vida e até em sua morte, Jesus
reivindica para si a Divindade única e incomunicável, declara-se vere Deus, e não
“quase Deus”. Nem escárnios nem tampouco a morte o afastam da fidelidade a si
mesmo. Os judeus compreendem a gravidade do caso, não o reduzem às proporções
aceitáveis calculadas posteriormente para conveniência de nossa era racional.
Posteriormente foi preciso atribuir a Divindade de Cristo à projeção da comunidade
primitiva, empenhada em revestir seu Cristo cada vez melhor dos atributos Divinos. Os
judeus não perceberam nada disso: acusaram Jesus de autodivinização; êle é que se
projetou na sua loucura. Ele se fez a si mesmo Filho de Deus. O testemunho dos
próprios judeus, seu escândalo, suas críticas e resistências, sua determinação de ir até as
últimas conseqüências com o blasfemador provam até a saciedade a evidência da
pretensão de Cristo. Nem há qualquer mal- entendido que Cristo, para salvar-se do pior,
tivesse podido desvendar. Há apenas a seriedade decisiva que, fé ou escândalo, leva o
homem à vida ou à morte. Onde melhor veremos a união indissolúvel entre a Pessoa e a
Obra do Cristo senão aqui no Calvário, onde morre crucificado o Cristo, inculpado de
blasfêmia?
***
Durante sua peregrinação entre nós, de modo especial um ato de Jesus colocou em
evidência o problema da Divindade do Cristo: Jesus perdoava pecados. Este ato de
suprema indulgência certamente não foi o motivo menor para culpar Jesus de blasfêmia.
Assim como suas palavras, suas obras também são biasfematórias — “Por que fala este
assim? Ele blasfema contra Deus. Quem pode perdoar pecados senão um, que é Deus?”
Perdoar pecados era uma apropriação sacrílega. Porventura não conhecemos as palavras
do AT que dão o perdão dos pecados por um privilégio de Deus? “Eu, eu mesmo sou o
que apago tuas transgressões por amor de mim” (Is 43.25). “Eu desfaço as tuas
transgressões como a névoa, os teus pecados como a nuvem; volta-te para mim, porque
eu te remi” (Is 44.22). Contestando suas recriminações, Jesus se declarou com
autoridade e poder para perdoar pecados nesta terra. E, “para que saibais que o Filho do
Homem tem sobre a terra poder para perdoar pecados”, curou o paralítico. O poder de
curar é sinal desta autoridade (Mc 2.10). O ato de perdoar demonstra a realidade e
atualidade do tempo messiânico agora inaugurado. A João aprisionado, que pergunta se
Cristo é realmente o Messias, Jesus dá uma resposta, certificando que as caracteristicas
da era messiânica estão sendo cumpridas nele (Mt 11 .2ss), o plenipotenciário absoluto
anunciado pelos profetas. Perdão e atos de soberano poder unem-se em Cristo. O
perdão, privilégio de Deus, agora é ouvido dos lábios deste homem, Jesus de Nazaré.
Certamente Jesus não é o intermediário neutro que profere o perdão da pane de Deus,
mas é a origem e o conteúdo do perdão. Talvez por enquanto fique oculto o mistério
deste ato divino; os circunstantes admiram-se vendo que Deus propiciou tal poder aos
homens (Mt 9.8). Mas o fato desses plenos poderes está ligado indissoluvelmente à
Pessoa e à Obra de Cristo: são os plenos poderes do Filho do Homem e do Filho de
Deus, que aqui se tornam conteúdo do Evangelho.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
77
Embora todo o depoimento da Escritura forme a base da confissão da Divina natureza
de Cristo, encontramos certo número de textos privilegiados que dizem respeito ao
mistério da filiação Divina. Assim é com todos os textos que tratam de Jesus “Unigénito
do Pai’: como, por exemplo, Jo 1.18. A expressão não é usada pelos Sinóticos; ela
indica de modo eminente o que há de único e incomparável em Jesus Cristo. Os judeus
levavam a mal que Jesus chamasse Deus de “meu Pai”, “meu próprio Pai”. Este adjetivo
“meu, meu próprio” vincula-se Intimamente ao testemunho joanino sobre o “Unigênito
do Pai”. Em João 1.18, lemos essas palavras significativas: “Ninguém jamais viu a
Deus: o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”, tradução que,
conforme os melhores manuscritos, deveria ser [como a versão brasileira atualizada
(nota do tradutor)]: o Deus Unigêrzito que estó no seio do Pai... expressão
absolutamente única que indicaria a total singularidade de Cristo, falando-nos dele
como Deus, o Deus Unigênito que está no seio do Pai. Unigênito é termo do AT que
indica o filho único e, portanto, bem-amado (por exemplo, a filha de Jefté (Jz 11.34),
razão pela qual a Septuaginta traduz por “a fiiha bem-amada”). Cristo é o Unigênito do
Pai, o Deus Unigênito. Ele nos revela Deus. É o amado do Pai, não em sentido
adocianista, mas em sentido absoluto, Irinitório: estd no seio do Pai.
***
Toda a tentativa para desvirtuar, subestimar e humanizar o testemunho relativo a Cristo
deixa-nos uma impressão mesquinha e totalmente contrária à visão global da Escritura
sobre o Messias, quer se trate do autotestemunho de Jesus ou do depoimento de outras
pessoas favorecidas pela luz reveladora.
Pensamos, em particular, na mesquinhez dos argumentos visando a desvalorização da
Filiação de Cristo, a partir das pesquisas pretensas em torno da expressão “Filho de
Deus”. Tal argumentação só é possível para quem ignore totalmente o conteúdo global
da Escritura e se incapacite de valorizar as coisas no contexto próprio da Revelação. Na
realidade, constatamos que a tentação foi efetivamente de construir uma Cristologia
adocianista: para isso foi preciso isolar os textos relativos a Cristo-verdadeiro-homem
do seu conjunto escriturístico. O Adocianismo nasceu da reação contra as diversas
correntes monifisitas que pretendiam que a humanidade de Cristo fora absorvida pela
sua Divindade; mas o Adocianismo não se pode achar nas Escrituras lidas
integralmente, ou seja, à luz de todo o contexto.
***
Durante sua vida inteira na terra, Cristo reivindicou a verdadeira e única filiação divina.
Lembremos a disputa (Mt 22.4lss) em torno da expressão “filho de Davi”. Conforme a
expectativa dos judeus, o Messias deveria ser um Filho de Davi. Jesus interrogou os
fariseus: “Que pensais de Cristo? De quem é filho? Responderam-lhe: de Davi.
Replicou-lhes Jesus: Como, pois, Davi, pelo Espírito, chama-lhe Senhor? Pois no Salmo
110 está escrito: Disse o Senhor a meu Senhor...” Verdadeiro enigma que Jesus propõe
aos fariseus!
Só uma falsa interpretação poderia deduzir que aqui Jesus pretendeu protestar contra a
crença judáica num Messias filho de Davi. Nunca protestou quando os necessitados,
como por exemplo o cego Bartimeu, solicitavam sua compaixão, chamando-o “Filho de
Davi” (Mc 10.47s). O enigma não visa a filiação davídica, mas a própria Pessoa de
Cristo que, sendo filho de Davi, é chamado por este de seu Senhor: este enigma só pode
ser resolvido pela fé. Exatamente, como em Jo 8, a relação entre Cristo e Abraão
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
78
contrariava o modo de pensar dos judeus, o enigma de Ml 22.41 deixa-os confusos:
“Ninguém lhe podia responder palavra.” Evidentemente há uma lacuna na interpretação
messiânica dos rabinos, os quais, mais tarde e por certo tempo, rejeitaram a
interpretação messiânica do Sl 110, por motivo de sua hostilidade ao Cristianismo. Tal
lacuna não existe para Jesus, o Filho de Davi e, simultaneamente, o Senhor de Davi.
Torna-se bem compreensível, a partir do mistério de sua Pessoa, a dualidade de
naturezas em Cristo. Não de modo acomodado, mas com plena consciência, é que ele
faz a si mesmo a aplicação do Salmo: reconhece-se a si mesmo filho e Senhor de Davi.
***
A fé da comunidade primitiva não foi, portanto, projeção da própria subjetividade, mas
resposta à Revelação de Cristo. Temos a confirmação deste fato nos depoimentos
neotestamentários nos quais Cristo aparece como objeto de fé. Seu aparecimento
histórico permite conhecer sua filiação e parentesco humano e temporal, sua mãe e seus
irmãos; mas, para aqueles que são esclarecidos pela Revelação, Jesus é objeto de fé. A
fé em Jesus não surge sozinha no âmago do coração, mas resulta de uma vocação para a
fé, provocada pelo Espírito Santo e pela poderosa atração do Pai. Quem crer nele
libertar-se-á da perdição (Jo 3.16), identificar-se-á com a Vida eterna. É obra de Deus,
que acrediteis nele (Jo 6.29). Não crer que Ele é acarreta a morte no pecado (Jo 8.4).
“Não rogo somente por estes, mas por aqueles que vierem a crer em mim por intermédio
de sua palavra” (Jo 17.20). “Não se perturbe vosso coração: credes em Deus, crede
também em mim” (Jo 14.1).
Em íntima relação com esta fé em Cristo Jesus, observamos ainda urna advertência
típica: “Bem-aventurado é aquele que não se escandalizar em mim, nem achar em mim
motivo de tropeço!” (Mt 11.6). Essa palavra está profundamente em harmonia com a
pergunta de Cesaréia de Filipos: “Vós, quem dizeis que Eu sou?” e com o “Bemaventurado és tu, Simão Barjonas!” (Mt 16.17).
Agora, ante o mistério revelado, compreenderemos o cântico de louvor entoado nas
Epístolas do NT em honra a Jesus Cristo. É tão impossível como desnecessário citar
aqui todas as palavras que exaltam Cristo e celebram sua salvação. Contentemo-nos em
refletir por um momento sobre a força evidente do testemunho apostólico. Em todo o
NT brilha um testemunho enfático a favor do Cristo Redentor, em quem Deus fez
misericórdia. Inúmeras palavras atestam a eterna preexistência de Cristo, nunca, porém,
para satisfazer qualquer “ontologia especulativa”, mas simplesmente porque tributam
uma homenagem doxológica. A mesma necessidade doxológica anima a confissão da
Igreja: não denota o mínimo cuidado de separar Pessoa e Obra de Cristo. A coisa é tão
evidente que muitos racionalistas reconhecem como fato inegável que a fé da
comunidade primitiva era fé no Filho Unigênito de Deus, mesmo quando postos a
comentarem textos tão controvertidos como Fp 2 e 2Co 8.9.
Exortando à concórdia e à caridade, ao desinteresse humude e à benevolência para com
os outros, Paulo propõe aos Filipenses o exemplo de Jesus Cristo e os sentimentos de
Jesus Cristo “que, sendo Deus por natureza, não se apegou às suas prerrogativas de ser
igual a Deus, mas abdicou de todos os privilégios para consentir em ser escravo por
natureza e nascer como qualquer mortal” (Fp 2.6s). Paulo declara bem como Cristo,
Deus por natureza, não considerou sua majestade como algo que pudesse reservar para
si. Aceitou a natureza de escravo. O texto é certamente dos mais reveladores.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
79
Igual orientação de pensamento ditou 2Co 8.9: “Sendo infinitamente rico, fêz-se pobre
por amor de vós, para que fôsseis ricos pela sua pobreza.” Como no texto anterior,
também aqui fala-se-nos de um “antes” e de um “depois”: natureza de Deus e natureza
de escravo, opulência e pobreza. Várias explicações foram tentadas para escapar à
evidência das palavras, sem mesmo cuidar de velar o preconceito contra qualquer préexistência de Cristo. Mas, afinal de contas, muitos se rendem, como Bachmann,
acabando por confessar que a opulência de Crislo aponta uma situação anterior,
abandonada para tornar-se indigente, e que a forma de Deus abdicada alude à
preexistência do Cristo histórico. Ambos os textos manifestam claramente a correlação
indissolúvel entre a Pessoa e a Obra, entre o Salvador e a Salvação. A mesma
constatação é feita ainda em Cl 1.16ss: “Através dele todas as coisas foram criadas,
materiais ou espirituais, visíveis ou invisíveis... Tudo o que existe, por ele e para ele foi
criado... Ele é o princípio de coerência de todo o esquema da criação...” Nada de
ontologias, mas profundo conhecimento de Cristo, conhecimento tranquilizador,
animador: Cristo é poderoso e ninguém o destruirá. “Nele habita toda a plenitude da
Divindade” (Cl 2.9). Como poderia ser vencido por poderes e magistrados?
Pensamentos idênticos podem ser udos na Carta aos Hebreus, toda ordenada a apontar a
incomparável relevância do Filho de Deus, “esplendor da glória de Deus, expressão
perfeita da natureza Divina, principio e sustentáculo de tudo que existe” (Hb 1.3), único
de quem Deus pode dizer: “Tu és meu Filho, neste dia te gerei” (1.5). Palavras desse
teor provocam indignação severa e escândalo. Windisch não esconde sua opinião: “São
termos e opiniões da especulação judáicohelenística... a tradição original está aqui
transformada no mito do Filho celestial de Deus.” Declarações desse tipo evidenciam
bem a oposição radical da crítica contra o testemunho das Escrituras, contra a realidade
divina de Cristo: a Escritura representa apenas a projeção confusa de uma psicologia
comunitária, sem sentido para o homem moderno. No entanto, para quem compreendeu
a unidade e coerência dos depoimentos do NT sobre Cristo, as palavras solenes da
Epístola aos Hebreus expressam perfeitamente a natureza de Crislo e de sua Obra. O
crente não diviniza coisas criadas, mas sabe ter sido contemplado com a Revelação do
mistério, escondido durante séculos para gerações de homens, mas agora descoberto (Cl
1.26).
Longe de ser uma invenção teológica, a fé na preexistência de Cristo aparece, através de
todo o NT, como condição decisiva no plano salvífico. Deixará totalmente de ser
convergente o testemunho apostólico, se não impusermos um silêncio definitivo à
crítica altaneira e jactanciosa: eliminada a eterna Divindade de Cristo, a pregação
evangélica carecerá de sentido. De nada serviria o Cristo idealizado e aureolado de certa
eternidade, à maneira concebida por Scholten em tempos passados, o Cristo “quase
Deus” honrado com as divinas previdências. Para Scholten, a preexistência não passava
de uma presença constante de Jesus-Messias no conhecimento de Deus: “Elimina-se, em
minha interpretação — declara ele mesmo — o conceito não-reformado de uru Filho de
Deus deixando o céu e abandonando sua glória.” Mais ainda, elimina-se o escândalo de
“Deus revelado na carne”, do “Verbo encarnado”. Assim a lógica humana seria
protegida contra a arbitrariedade da teologia cristológica. Na realidade, Cristo não pode
ser Deus. Aparece “em forma de Deus”, com poder e majestade, apenas porque era um
“quase Deus”, um genuíno representante de Deus na terra.
Mas essa certeza racional, aparentemente tão firme, é contradita pela Escritura. Com sua
evidência, a Escritura vence os esquemas das exegeses prudentes, semeando
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
80
intranqüilidade no ritmo do pensamento racional, naturalmente hostil ao evento
anormal, à iniciativa divina nos quadros humanos, à intromissão salvadora.
Em conseqüência da confusão introduzida na exegese por causa da preexistência de
Cristo, declarou-se impossível interpretar Paulo a partir dos métodos modernos,
impossibilidade essa que forçou os críticos a aceitarem que a idéia da pré- existência é
bíblica sob todas as luzes. Mas qual seria a origem dessa idéia? Entre outros, Bultmann
é absolutamente franco em aceitar a biblicidade da preexistência de Cristo, mas
considera necessário apelar ao mito gnóstico para explicar a intromissão de semelhante
idéia nos textos neotestamentários: “O Salvador gnóstico é uma figura Divina do mundo
celestial da luz, o Filho do Altíssimo, enviado pelo Pai, oculto sob a forma humana e
que trouxe salvação mediante sua obra.” Este conceito, tal qual nos tempos de Paulo, já
tinha pene- trado na comunidade cristã. Bultmann decobre esse mito no texto de
Filipenses já citado, debelando-o em muitos textos joaninos que contêm expressões
“mitológicas” para estabelecer a preexistência eterna de Jesus como Filho de Deus:
assim, por exemplo, Jesus desceu do céu (fórmula acentuadamente mitológica) e será
glorificado com a glória que tinha na preexistência junto ao Pai. Evidentemente,
Bultmann não compartilha, nem de longe, a doutrina da Igreja, mesmo reconhecendo-a
explicitamcnte ensinada nos textos sagrados. A única coisa sólida, para Bultmann, é o
caráter eterno da reconciliação na cruz de Cristo, a qual nada tem a ver com a realidade
da preexistência. Afinal de contas, está sendo posta em questão a fidedignidade do NT,
a veracidade do testemunho de Jesus Cristo e dos apóstolos e, portanto, a veracidade do
próprio mistério que domina os séculos, a miciativa de Deus em Jesus Cristo, a
revelação de Deus na carne.
E, bem no fundo desse debate em torno da preexistência, encontramos a rejeição da
histórica Salvação de Deus, mediante a Encarnação do Verbo, isto é, a fé da Igreja e seu
depósito revelado.
***
Essa luta ressalta, outrossim, a intima correlação entre a preexistência de Jesus Cristo e
a Trindade de Deus. Quem combate a preexistência do Cristo denuncia o dogma
trinitário como uma especulação. Este tal, a priori, interpreta a preexistência como uma
racionalização do mistério do Cristo, sem ver que ela é, na realidade, baseada na
Revelação do Pai, do Filho e do Espírito Santo, o que, certamente, exclui a especulação.
A fé na preexistência de Cristo foi repetidas vezes taxada de especulação teológica.
Mais freqüentemente ainda, procurou-se provar que, a despeito do prestigio com o qual
o NT aureola Cristo, a fé em sua Divindade contraria muitos textos escriturísticos que
declaram Cristo menor do que o Pai. Portanto, a fé na consubstancialidade Divina do
Cristo peca por ser uma evidenle superestimação. Nessa perspectiva, além de condenar
o credo eclesiástico, o testemunho do próprio Cristo concorda plenamente com a
doutrina subordinacionista: o próprio Cristo declara-se subordinado ao Pai. “Meu Pai é
maior do que eu” (Jo 1.28). Mesmo concedendo que, repetidamente, Cristo declare sua
união com o Pai (Jo 10.30), sua relação peculiar com o Pai (“Estou no Pai, e o Pai está
em mim” — Jo 10.38 — “Quem me viu, viu também o Pai” — Jo 14.19), consta,
contudo, que ele foi enviado (Jo 3.17), fato plenamente reconhecido por Jesus Cristo (Jo
4.34; 5.24; 5.30, etc), o qual declara sua obediência e observa a mais total dependência
do Pai (Jo 4.34, etc.)
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
81
Cabe aqui, portanto, a pergunta se a preexistência não acentua unilateralmente a “vinda”
de Cristo, em detrimento de sua “missão”, ou “ter vindo”, em prejuízo do “ter sido
enviado”. Por acaso não esquecemos a declaração de Cristo de que seu alimento é
cumprir a vontade do Pai e executar sua Obra? que nada pode fazer antes de tê-lo visto
fazer pelo Pai? que o Pai foi quem lhe confiou todo o julgamento? que o Pai foi quem
lhe concedeu a vida em si mesmo? que Cristo veio em nome do Pai, tendo recebido
sobre si o selo do Pai? Por outro lado, porventura negligenciaremos o fato de Cristo orar
antes de operar milagres, dar graças por ter sido ouvido? Ou negligenciaremos a
maneira como Cristo se refere ao Pai: “Quem crê em mim, crê não em mim, mas
naquele que me enviou”, “Eu não falo por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, esse
me tem prescrito o que dizer”, “As coisas, pois, que eu falo, como o Pai me tem dito,
assim falo”? Tantas palavras de subordinação, finalmente, culminam na afirmação de
que o Pai é maior do que o Filho. Frente a essa dependência reconhecida por Cristo, que
significa o enfático “nós” da Oração Sacerdotal? De todos os modos, devemos examinar
se o credo eclesiástico tomou suficientemente em conta a limitação implicada por tantos
textos. O fato é que sempre houve quem apelasse a esta série de textos para reivindicar,
contra a Igreja, a inferioridade de Cristo em relação ao Pai. Essa reivindicação torna-se
mais áspera quando da definição da consubstancialidade Divina de Jesus Cristo.
Atanásio já observava que “os arianos, para provar que Cristo era um Deus secundário,
apelavam para J0 14.18, onde Cristo se declara menor do que o Pai”; essa prática
continua até hoje, pois os liberais ainda estão a falar do “grave perigo que há em
negligenciar de fato a afirmação de Jo 14.18: “O Pai é maior do que eu”. Atualmente os
liberais sublinham, baseados neste texto, o sentido exclusivamente messiânico da
expressão “Filho de Deus”, negando-lhe qualquer alcance metafísico; concluem que “a
Divindade de Cristo não merece consideração, por motivos bíblicos” (P. Smits).
Acresce declarar que Cristo anula aqui o que afirma em outro lugar. Essa atitude liberal,
sem dúvida alguma, é inspirada pela aversão contra a fé na Divindade de Cristo.
Observamos claramente que os liberais nunca valorizam um texto no conjunto total da
Revelação bíblica sobre Cristo, mas isolam-no do contexto e explicam as demais
palavras como formulação mitológica ou acomodação especulativa. Assim é que as
declarações de um Cristo obediente, submisso, enviado, menor, etc., são postas como
fundamento de uma Cristologia humanizada. Entretanto, se desejarmos continuar na fé
tradicional, não podemos negligenciar a série de textos “subordinacionistas”,
precisamente para não cair no mesmo unilaterismo. E, de fato, não duvidamos de que a
palavra de J0 14.18 e outras passagens vinculam-se diretamente com todo o conjunto de
testemunhos em torno da dependência do Pai. Não obstante isso, reintegramos este
conjunto de textos a um conjunto maior, à totalidade dos testemunhos de Cristo a seu
próprio respeito, e procuramos recolocar cada texto em seu genuíno contexto. Assim,
em J0 14, Cristo trata da vinda do Consolador e de sua próxima partida para o Pai: “Se
me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, pois o Pai é maior do que eu”. O
“ser maior” do Pai está, aqui, integrado num contexto autenticamente especial: o Filho
do Homem, Izumilizado, através da paixão partirá para o Pai, que há de glorificá-lo.
Fato completamente esquecido pela maioria dos críticos que apelam para este texto
contra a consubstancialidade Divina de Cristo, concluindo, com extraordinária candura,
que “maior” exclui a consubstancialidade. O contexto fala da humilhação em destaque
contra a exaltação posterior. Os discípulos deviam alegrar-se por causa da exaltação
próxima reservada a Cristo, isto é, a glória do Pai, que é maior do que ele: “O Pai, para
quem se vai, é maior do que o Mediador humilhado” (Grosheide). A partida para o Pai
vincula-se a coisas maiores que estão por acontecer: “O Pai ama ao Filho e lhe mostra
tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe mostrará, para que vós vos maravilheis”
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
82
(Jo 5.20). Estas coisas maiores são comentadas por Jesus com seus discípulos: “Em
verdade vos digo que aquele que crer em mim, fará também as obras que eu faço, e
outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” (Jo 14.12). Podemos concordar
com Grundmuann quando declara que, em Jo 14.28, Jesus, aparentemente, não
considera a totalidade de suas relações com o Pai, pois, em sua boca, “maior” não tem a
implicação que os modernos querem dar a essa palavra, inclusive para argumentar
contra a Divindade de Cristo. Pois, entendendo modernamente a palavra “maior”, eles
negam exatamente o mistério da Encarnação e a sujeição do Filho ao Pai decorrente da
Encarnação como o provam tantos textos evangélicos. Já a Igreja primitiva não
acentuava unilateralmente a Divindade de Cristo, mas simultaneamente pregava
CristoDeus e Cristo-Mediador, função na qual Cristo tinha de prestar obediência ao Pai.
Cristo não tem de crescer e igualar-se a pouco e pouco com o Pai, harmonizando-se,
posteriormente com ele. A própria Escritura ressalta constantemente a misteriosa
dualidade de Cristo, indissoluvelmente ligada ao fato (la Encarnação. Ao comentar este
fato, a carta aos Hebreus usa a expressão, certamente notável, “embora sendo Filho,
aprendeu a obediência” (Hb 5.8). Neste “embora” não encontramos contradição entre
Divindade e sujeição do Cristo, mas, pelo contrário, o reconhecimento da verdadeira
Divindade e da Encarnação do Verbo, que tem vindo e foi enviado como Mediador.
Foi, pois, com toda razão que Kunze rejeitou o apelo adocianista a João, lembrando o
comentário de Lutero do texto de J0 14.28: “Ir ao Pai significa ocupar o reino do Pai,
porque lá se torna igual ao Pai, sendo reconhecido e glorificado na Majestade do Pai.
Por isso vou para o Pai, porque serei maior do que sou presentemente. Só assim Cristo
podia falar corretamente sobre sua atual função na Terra: o Pai é maior do que eu, que,
no momento, sou servo. Chegará, prnm, o tempo quando deverei me juntar ao Pai e
então ficarei maior, isto é, tão grande como o Pai, com ele reinando em igualdade de
poder e majestade.”
Essas palavras de Jo 14 referem-se à glória que Cristo encontrará quando, deixando
cumprida sua missão de Filho do Flomem humilhado, reassumir seu lugar à direita do
Pai: palavra plenamente em harmonia com todas as palavras da Escritura que qualificam
Cristo de enviado ou de Mediador. Em lugar nenhum a Escritura deixa suspeitar uma
contradição, embora este mistério ultrapasse a compreensão humana. Assim os louvores
que Paulo canta a Cristo, digno de elerna glorificação, não impedem que o Apóstolo fale
da vinda do Filho sob a lei (Gi 4.4). Somente faltando à Regra Áurea da interpretação
(regra chamada por Origenes de Analogia da Fé: interpretar através do conjunto das
Escrituras e nunca através de textos isolados), isolando textos do contexto e do
conjunto, poderia se chegar à visão unilateral da moderna Cristologia liberal.
***
Examinados os testemunhos do NT em torno da Divindade de Cristo, resta analisar
outra pergunta relacionada com essa Divindade: Sendo Cristo Deus, não correrá riscos o
Monoteísmo, tão caro à Igreja? A pergunta está ligada diretamente ao dogma da
Trindade. Já os unilórios afirmavam tenazmente que a fé na Divindade de Cristo
sacrifica a unidade e unicidade de Deus. Os judeus, com toda a veemência, acusavam
Jesus da blasfêmia de se fazer igual a Deus. Notemos, de inicio, que o NT proclama a
Divindade de Cristo sem deixar transparecer a menor ameaça ao Monoteísmo. A Igreja
rejeitou categoricamente essa acusação cada vez que foi incriminada a este respeito.
Isso não significa que a Igreja não lenha considerado profundamente este problema
durante os longos séculos de reflexão e de defesa; aliás, na luta cristológica, esse
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
83
problema estava sempre presente, quer se quisesse ou não. Lembremos o
Monarquianismo: intentou ele fazer prevalecer a unidade de Deus em tal sentido que
nunca poderia haver um lugar para a Divindade de Cristo; logicamente professou uma
Cristologia adocianista, a única que lhe parecia compatível com a monarquia divina. Os
monarquianistas queriam defender o Monoteismo ameaçado pela fé na Divindade de
Jesus Cristo.
Stauffer introduziu muito bem o problema, observando que o próprio Cristo foi o
enérgico campeão do Monoteismo, porquanto ninguém melhor do que ele defendeu a
glória e honra do Pai (Kittel, Theol. Wört. III, pág. 103). Sem dúvida, sendo consciente
de seus poderes divinos, Jesus até perdoa pecados. Stauffer pode escrever: “Jesus
assume as funções divinas e ocupa o lugar de Deus no sentido mais amplo, porém não
põe Deus de lado.” Seu objetivo único e perene é o Reino de Deus; sua dignidade não
suplanta a dignidade do Pai; pelo contrário, anuncia-a e reivindica-a até o fim. Nesta
evidência é que o cântico de louvores da Igreja se fundamenta, explicando a fé no Pai,
no Filho e no Espírito Santo como perfeitamente antjpoliteísta. Para ela, pois, a fé na
Divindade de Cristo não pode ser desligada da fé na Trindade. Quem reduzisse Cristo
ao nível de um “quase Deus”, ou avaliasse sua Obra como sendo de um super-homem
mais próximo de Deus, acabaria por rejeitar claramente o mistério da Santissima
Trindade.
Para quem aceita a autoridade da Escritura, nunca houve contradição entre a fé na
Divindade de Cristo e o testemunho divino da profecia de Is 42.8: “Eu sou o Senhor,
este é o meu nome; não darei a outrem a minha glória.” A Igreja sempre soube que seu
credo honrava o Pai: aprendeu-o do próprio Jesus Cristo. Ela se defendeu de ameaçar o
Monoteísmo, mesmo quando não preconizara um método de pensar estritamente
matemático na sua fé em Cristo-Deus, pois essa teologia seca obstruiria a plenitude e a
riqueza da vida de Deus.
Objeta-se-lhe de expressar sua fé monoteísta apenas hinolog camente, isto é,
impressionisticamente; mas ela nunca esquece que Tomé viu-se livre de suas dúvidas,
quando, iluminado, exclamou: “Meu Senhor e meu Deus”, e que Cristo, proclamando
ser Pedro bem-aventurado depois da confissão de Cesaréia de Filipos, declarou que o
próprio Pai iluminara o apóstolo para a glorificação de Cristo.
***
Para finalizar o capítulo, ressaltemos mais uma vez que, para a reflexão teológica, bem
como para a defesa contra os erros, convém discorrer separadamente a respeito da
Divindade e da Humanidade de Cristo, em lugar de agrupar num único tratado tudo
quanto atinge a Pessoa de Cristo. Assim fazendo, concordamos com aquilo que a
própria Escritura estabelece, em vista de defender a glória de Cristo contra ataques
sempre inúmeros e renascentes. Lembremos, no entanto, que essa defesa só pode ser
feita no campo da fé viva. Bem sabe a Igreja que uma apologética cristã só tem sentido
quando brota como uma irradiação da única Luz indivisível que ilumina as trevas do
mundo. Eis por que a Escritura e sua pupila, a Igreja, quando falam da plenitude da
salvação, nunca se referem ao vere Deus separadamente do vere homo: um não pode ser
entendido nem tampouco crido independentemente do outro. Mas, em troca não se pode
falar do vere Deus e do vere homo sem que, indissoluvelmente, tal confissão encerre a
salvação trazida por Cristo. Na batalha contra ontologias e especulações em torno das
duas naturezas de Cristo, a Igreja só vencerá quando compreender estas correlações
íntimas. Dará, então, um testemunho real e servirá de bênção para os de fora,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
84
fornecendo as provas de que sua vida e pregação transcendem a abstração,
fundamentando-se na fé viva. Então poderá falar doxologicamente e, portanto,
indivisivelmente sobre Cristo, em atitude de genuína adoração:
Ó grande Cristo, Luz Eterna,
Perante a tua face nada há oculto.
Onde andamos, tu nos iluminas,
Mesmo ausentes sol e luz.
Assim eliminar-se-á a tensão ontologia-salvação. Esta doxologia se harmoniza bem com
os testemunhos que, na ontologia e na salvação, nos falam do mistério único de Cristo
no mundo. Mistério tão grande que o próprio Cristo torna-nos atentos a ele, dizendo: “O
Filho do Homem, quando vier, porventura encontrará ainda fé na terra?”.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO IX – A HUMANIDADE DE CRISTO
Sumário
“Verdadeiro homem também?” — Tentação humanistica, ou realidade? — O divino
modo de agir e nossa fé na humanidade de Cristo — A Escritura, fonte de equilíbrio —
Igreja versus Docetismo — Tem Cristo um pseudocorpo? Historicidade de Cristo —
Scholten examina o Docetismo — Raízes dualistas do Docetismo — Dualismo gnóstico
— Genuína Encarnação — Márcion — “Nascido de mulher” — Inácio na luta —
Tertuliano combate — Um Docetismo refinado — Apolinário e o Monofisismo —
Monotelismo — Foi Paulo doceta? — Sarx e Pneuma em Paulo — Van Bakel dá sua
opinião — Harmonia entre João e Paulo João contra os docetas — Índole da heresia —
Água e Sangue — Os Sinóticos antidocetas — Quarenta dias de aparições — Cristo
come com seus apóstolos — Ressuscitou o que fora crucificado — “Nossas mãos
apalparam” — Vau der Leeuw e J. S. Bach — O divino e o humano em competição? —
Vida terrestre de Jesus — Jesus sofre e é tentado — O anjo do Getsêmane — “O
menino crescia” — “Em idade” — “Em sabedoria” — “Nem o Filho, nem os anjos
sabem aquele dia” — Exegese católica romana— Decreto do Santo Ofício (1918) sobre
a onisciência de Cristo — Onde a exegese se faz dogmática — Onisciência e “saber
experimental” — Onisciência “relativa” — A exegese de Roma em dificuldade —
Visio beatifica et passio — Uma antropologia tomisti — Isaías pode mais do que a
Lógica — Christus viator et comprehensor — Teve Cristo medo? — Houve fé e
esperança em Cristo? — A cândida simplicidade de João Calvino — “Eh, Eh, lammj
sabachtani” — Onde Guardini segue Calvino — Catecismo de Heidelberg — Cristo, o
primogênito, entre irmãos — Uma antropologia invertida em K. Barth — Finalmente,
unanimidade na fé — Ecce hõmo — Pilatos entra no Catecismo de Heidelberg —
Diptico: Caifás e Pilatos — Vogel comenta o Ecce hõmo — Pilatos, o profeta —
Opinam os exegetas — O juízo de Pilatos ratificado por Deus — O valor do contexto
— Ecce homo - Declaração de um particular ou de uma autoridade competente? — O
homem Cristo — Pjlatos e seus motivos — Humanismo, não — Reconciliação, sim —
A salvação docetista e ‘a salvação divina — O depósito sagrado.
Realmente o perigo da Igreja primitiva era reconcentrar sua reflexão quase exclusiva em
torno da Divindade de Cristo. A inclusão da cláusula vere homo no credo salvou-a desse
perigo. Cumpre-nos agora estudar mais pormenorizadamente a confissão do vere homo,
ou da genuína humanidade de Jesus Cristo. Primeiramente, qual é o significado desta
confissão? Como chegou a Igreja a reconhecer o sentido de redenção, não apenas da
Divindade, mas também da Humanidade do Senhor? Pergunta interessantíssima: pois se
era bem compreensível que a Igreja colocara em primeiro plano a fé na Divindade, que
importância poderia ter, eventualmente, a luta a favor da humanidade de Cristo? Certa
de que Cristo é Deus e que só Deus poderia nos remir da culpa e da perdição,
convencida de que a Salvação não podia vir de homem algum, a Igreja bem poderia
reservar eventualmente para um plano secundário sua confissão de Cristo, verdadeiro
homem. Tinha aprendido da própria Escritura o desprestígio de todo homem: “Assim
como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim
também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12).
Que esperança haveria ainda para o homem e para o mundo humano? De fato, a Igreja
não deixou um instante de lutar contra qualquer forma de Humanismo que, de uma ou
de outra maneira, esperasse a salvação das forças regeneradoras da humanidade. Tal
esperança humanística acompanha o pensamento dos homens até hoje em dia,
infundindo-lhes ideais de auto-salvação e de autolibertação. Sempre reaparece o
homem, pretenso salvador de si mesmo e dos demais. Sempre, também, a Igreja
86
contrapõe a esta ilusão sua doutrina invariável: só Deus pode salvar do pecado e da
morte.
Incansavelmente, a Escritura nos ensina que não tem sentido buscar apoio no homem e
nas coisas do homem. “Maldito o homem que confia no homem e faz da carne mortal o
seu braço... Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor” (Jr
17.5-7).
“Porventura, haverá quem entenda, quem busque a Deus? Todos se extraviaram... não
há quem faça o bem, não há nenhum sequer” (Sl 14.2s).
“Não confieis nos príncipes nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação. Sailhes o espírito e retornam ao pó; e, juntamente com eles, perecem todos os seus
desígnios” (Sl 146.3s).
Estas e inúmeras palavras parecidas formaram a consciência de Israel e da Igreja: só o
Senhor pode salvar da culpa e da morte. Era bem natural, portanto, que a reflexão da
Igreja, desde o início, se dedicasse completamente aos atos privativos de Deus, nos
quais não cabe lugar para o humano, e cuja honra, total e exclusivamente, pertence a
Deus. Ele salva da morte, ele faz milagres, misericórdias e façanhas. A ele pertence o
poder.
Nestas condições, quais foram as fontes de informações que levaram a Igreja a defender
a humanidade de Cristo, com não menor ardor, que sua Divindade? Nenhuma outra,
senão a Escritura: é através da Escritura que repercute a Nova do Verbo feito carne, do
Verbo feito homem autêntico, igual aos demais homens em tudo, exceto o pecado. A
Sagrada Escritura preservou a Igreja de confundir a fé na humanidade de Cristo com a
confiança no homem afastado de Deus, bem como de diminuir, por vãs precauções, a
importância da natureza humana do Senhor. Certamente, o cântico de louvores em
honra de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, pode passar por uma forma de
humanismo, uma vez que introduz a natureza humana, embora seja a do Cristo, como
elemento de salvação na Obra Redentora. A reflexão sobre o significado da humanidade
de Cristo pode não ter alcançado sua plena profundidade, mas, ainda assim, a Sagrada
Escritura evidencia que violentaria o mistério do Cristo quem reconhecesse, no Verbo
encarnado, apenas um enviado celestial que nada tivesse de comum conosco. Assim,
iluminada pela meditação do texto sagrado, a Igreja ofereceu a mais tenaz resistência a
seus filhos que, embora confessando a Divindade de Cristo, não valorizavam a realidade
de sua natureza humana. Não se contentou em repudiar decididamente o erro ariano,
mas velou pelo depósito total da fé e soube condenar, com igual decisão, o erro
docetista.
Abordando o Docetismo da maneira mais popular, podemos afirmar que ele sustentava,
em Cristo, apenas um corpo aparente e não carnal como o nosso. Esta forma grosseira
de Docetismo teve curso entre os gnósticos da Igreja primitiva, Márcion e outros.
Existiu, porém, um Docetismo menos tosco e mais disfarçado, feito de mil elementos
sutis, que atentavam à perfeição e autenticidade da natureza humana de Cristo. Nem
todos os docetas sustentavam que o corpo de Cristo era mera aparência; muitos
aceitavam a humanidade de Cristo, porém amputada e incompleta. Sej a corno for, cabe
perguntar se o Docetismo é, para nós, um perigo definitivamente vencido e se, passada
sua primeira virulência, não mais pode infeccionar o pensamento atual. Não faltou quem
declarasse ser o Docetismo uma corrente contrária à Divindade do Cristo e, como tal,
uma corrente bem viva e presente entre nós. A generalidade dos críticos, porém, aceitam
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
87
a existência do homem Jesus, o Nazareno, não negando que ele seja um genuíno
homem, filho de homem, mas que seja o Filho de Deus, genuíno Deus. Nossa pergunta
sendo posta nesta perspectiva, muitos opinam que desde já estamos curados do
Docetismo, porquanto ninguém entre nós nega a humanidade de Cristo.
Impõe-se uma distinção preliminar: o reconhecimento da historicidade de Jesus Cristo
nada tem a ver com a fé da Igreja na humanidade de Cristo. É preciso não fazer
confusão: admitir a historicidade de Cristo quase nada tem em comum com o dogma
cristológico. Trata-se de uma questão de Pessoa histórica no dogma e que a História
pode reivindicar, porquanto ela viveu de fato; muito mais, porém, é questão da
significação do vere Deus, vere Iioino na unidade hipostática de Cristo. Esta é a razão
pela qual, muito embora o dogma concorde com a História na historicidade de Jesus, a
confissão da Igreja continua tendo um sentido crítico muito especial, em virtude da
relação indissolúvel que a natureza humana e a natureza Divina de Cristo adquirem, na
união hipostática. Por outro lado, subsiste ainda o perigo de diminuirmos o significado
da humanidade de Cristo, não em favor de um Docetismo grosseiro, mas de
refinamentos ainda mais perigosos. Convém, pois, estudar agora a fé na humanidade
com tanto interesse como estudamos a fé em sua Divindade. Possuímos, aliás, motivos
sobejos para conhecer o surto das Cristologias estranhas dos primeiros séculos, bem
como as opiniões anabatistas, de caráter docetista, as quais teriam que ser debeladas
pelos Reformadores.
***
Sem muita dificuldade encontramos o ponto de partida do Docetismo na convicção da
radical impossibilidade de uma união genuína entre Deus e o Homem, ou seja, entre o
espiritual Divino e o material humano. No âmago dessa convicção está radicado o
Dualismo metafísico, tão perigoso para a Igreja. Antes de aparecer o Maniqueísmo, já se
pensava na oposição irreconciliável entre o Bem e o Mal, entre a natureza Divina e a
humana. Os docetas não compreendem que João possa escrever: “O Verbo se fez
carne”, pois julgam totalmente fora de cogitação que o Logos divino possa, de alguma
maneira, unir-se com a carne humana. Tal pensamento é considerado indigno do Deus
Santo, Eterno e Transcendente. Se João falasse do Verbo que se fez espírito humano,
assumindo uma união com a parte huniana mais elevada e mais próxima de Deus, as
objeções docetistas talvez tivessem sido menos virulentas: sendo admitida uma
afinidade entre Deus e o espírito humano, seria concebível algum ponto de ligação. Esse
ponto de ligação, entretanto, é totalmente impossível entre o Divino e o carnal. O
Docetismo devia, pois, rejeitar a união hipostática, não admitindo em Cristo mais do
que um pseudocorpo, uma aparência carnal, um fantasma humano. Mesmo procurando
uma síntese entre Paulo e a oposição gnóstica de espírito versus matéria, Márcion não
conseguiu reconhecer em Cristo mais do que um corpo aparente.
O Docetismo surge, logo de início, na Igreja antiga. Jesus nasce, Jesus é batizado, Jesus
morre na cruz, todas estas afirmações são vinculadas com a corporeidade de Jesus.
Escândalo para os gnósticos! Para eles é preciso que o homem seja livre do terrestre e
do carnal, fonte do pecado e da perdição. O Divino Cristo, o mais perfeito eon emanado
de Deus, o Salvador, o Libertador das partículas de luz caídas na matéria em virtude do
pecado, porventura se encarnaria nesta matéria humana, causa de todo o mal? Que
horror e que contradição! Só é concebível um pseudocorpo, com objetivos pedagógicos
e metodológicos. Contudo, uma verdadeira natureza humana igual à nossa desvirtuaria
basicamente a verdade gnóstica.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
88
Sem medir o grau de Gnosticismo de Marcion encontramos evidentemente a raiz
gnóstica em sua ideologia. Pretendera o mesmo, com base em Paulo e na luta paulina
contra a Lei, erradicar o Monismo: não deixou de lutar pelo postulado dualista do
Gnosticismo, selecionando unilateralmente textos paulinos; pretendeu até expurgar os
escritos do Apóstolo das interpolações neles introduzidas pelos impostores judeus.
Assim foi que ele denunciou como interpolação o texto de Gi 4.4: “Nascido de mulher”
que, radicalmente, contrariava seu Dualismo. Sem dúvida, Deus vem salvar o mundo
em Cristo, mas este Cristo, ou melhor este Deus em Jesus, é um Deus estranho, alheio à
criação, alheio ao caráter e à conservação deste mundo e, ainda mais, alheio à carne
fundamentalmente pecaminosa. Que outra coisa caberia aqui senão uma forma
fantástica e temporal, uma aparição, um pseudocorpo? Márcion passou a ensinar que
Deus apareceu em Jesus com a aparência humana, disposto a sentir, agir e padecer como
homem, embora só fosse aparente sua identidade com o corpo, humanamente gerado e
carnal, porquanto, de fato, faltava-lhe a substância autêntica de carne.
Ainda no berço, a Igreja lutou contra a forma grosseira do Docetismo. Sentia de instinto
a ameaça contra a Encarnação do Verbo. Lutou-se, em particular, contra o conceito de
humanidade-fantasma. Inácio, em sua Carta a Esmirna, denunciou o erro, destacando a
autenticidade da Encarnação e a veracidade da carne do Cristo, bem como a realidade
da morte do Senhor. “Alguns pretendem que Jesus sofreu só em aparência... fechai-lhes
os vossos ouvidos... Se Cristo sofreu apenas em aparência, de que proveito me será
carregar as algemas e ir lutar contra as feras do circo?... Neste caso, morrerei em vão...
“Inácio reivindica a natureza concreta da carne e da vida de Jesus Cristo: “Negar sua
carne significa blasfemar contra ele”; contudo, faz a ressalva de que, afirmando isso,
não pretende negar a Divindade de Cristo, “mas afirmar que o Logos Divino se fez
verdadeiramente carne, pois, quem nega isso atenta contra a salvação do Senhor” (Trall.
IX; Smyrn. V; Magn. VIII).
Por sua vez, Tertuliano tomou posição contra o Docetisino, merecendo o nome de “o
mais poderoso antidoceta” (van Bakel). Seu adversário foi Márcion, o qual julgava
indigno de Deus vir na carne mortal. Tertuliano reprova-lhe eliminar o escândalo da fé,
o mistério de “Deus revelado na carne”: destruis necessarium dedecus fidei (destruís o
escândalo indispensável da fé). Certamente que não podemos esquecer aqui que a
polêmica tertuliana está ligada à sua idéia em torno da corporalidade, “parte integrante
de tudo que existe, inclusive de Deus”. Nem por isso desmerece o fato dele ter
combatido acerbamente o Docetismo como ideologia da incompatibilidade entre Verbo
de Deus e carne. Logo, sem qualquer apoio na corporalidade de Deus, Irineu entra na
lide com igual vigor. Dentro de sua famosa doutrina da “recapitulação de tudo em
Cristo”, e partindo do fato de que a desobediência de Adão foi vencida pela obediência
de Cristo, Irineu destaca muito fortemente a veracidade da carne humana de Cristo
(Adv. haereses, 3.18, 6). São suficientes esses nomes gloriosos para demonstrar que a
rejeição do Docetismo foi tida como uma necessidade premente, a realidade da carne
humana de Cristo não sendo matéria para discussões neutras ou pacíficas, mas assunto
relacionado com a mensagem essencial do Verbo Encarnado.
Posteriormente encontramos um Docetismo muito mais refinado, colocado dentro da
problemática das duas naturezas na união pessoal de Cristo. Neste novo contexto, os
contornos do erro foram bem mais difíceis de ser definidos e, portanto, o perigo foi bem
maior. A idéia de um pseudocorpo tinha sido vencida pelas argumentações de Inácio e
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
89
pela consideração atenta do texto neotestamentário. Não mais era questão de negar
absolutamente a natureza humana de Cristo, mas, dentro do contexto da união
hipostática, foi diminuída a importância desta, até deixá-la mutilada, incompleta,
inautêntica. Apolinário e o Monofisismo, mais tarde, nos deram a forma clássica desse
Docetismo sutil e agudo. Como vimos anteriormente, Apolinário concordou com a
definição de Nicéia, condenando a heresia de Ário, mas ensinou que o Verbo, fazendose carne, não assumiu o espírito humano, e,sirn,apenas o corpo humano. O Monofisismo
operou a síntese das duas naturezas em uma única natureza divino-humana: a natureza
humana assim divinizada é absorvida através da supremacia do Divino em Cristo, de tal
modo que não mais é possível falar em veracidade e perfeição da natureza humana. O
vere Deus absorve o vere homo. Evidência tornada ainda mais patente no Monotelismo,
o qual não deixa o mínimo lugar para uma vontade ou um querer genuinamente humano
em Jesus Cristo.
***
Não faltou quem pensasse descobrir vestígios de Docetismo no NT, inclusive nas cartas
paulinas, por mais estranho que isso possa parecer. Decerto, não se afirmou que Paulo
fosse doceta ou que descresse da veracidade da natureza humana de Cristo, mas
aventurou-se em denunciar certa tendência nesta direção, principalmente nas idéias
paulinas relativas à carne. Porventura não é verdade que Paulo ressalta incansavelmente
a oposição Carne-Espírito, fundamental para os docetas? Van Bakel descobre em São
Paulo uma oposição entre pneuma espiritual e carne: a carne, indissoluvelmente ligada
ao pecado, não impede que o homem carnal possa e deva tornar-se homem espiritual
mediante o batismo. Comentando o problema da carne de Cristo, de conformidade com
esta opinião, van Bakel insinua que Paulo, logicamente, devia também considerar a
carne de Jesus Cristo como um elemento que contrariava este Homem “pneumático” por
excelência. Mas Paulo, que não gostava de se lembrar da própria carne, certamente
evitou aludir ao assunto. van Bakel julga ter a comprovação dessas suas presunções na
frase de Paulo em Rm 8.3: “Deus enviando o seu próprio Filho na semelhança da carne
pecaminosa...” ou naquela outra de Fp 2.7: “tornando-se em semelhança de homens”.
“Aqui Paulo chega até os limites do Docetismo”, escreve nosso autor, cujo pensamento
sucintamente damos a seguir. Paulo não prevê ainda qualquer perigo de heresia; encara,
pois, o Docetismo sem medo, atitude esta já não mais possível para João, que viu os
primeiros sinais da heterodoxia. Essa maneira de compreender Paulo, entretanto,
contradiz ostensivamente as epístolas do Apóstolo, tão dedicadas em ressaltar a natureza
autenticamente humana do Salvador, inclusive nos trechos referidos por Bakel, Rrn 8.3
e Fp 2.7. Este pretenso docetista — Paulo — fora quem havia escrito as palavras
escandalosas: “Crísto nasceu de uma mulher” (Gl 4.4). A palavra sarx (carne) nos lábios
de Paulo, longe de expressar qualquer simpatia pelo Dualismo antropológico, declara
sua convicção de que o pecado, surgindo da carne, destrói a vida: isto não implica em
que Paulo acredite encontrar um elemento superior e mais perto de Deus nas qualidades
do espírito humano, uma defesa contra o pecado: o espírito humano não é isento da
perdição da carne. Posto diante da humanidade de Jesus Cristo, Paulo, pois, assume a
mesma atitude que os demais autores do NT, e, igual aos demais apóstolos, fica
extasiado diante do grande mistério de Deus revelado na carne. Mostra de leviandade
dá aquele que estabelece, a este respeito, uma contradição irredutível entre João e Paulo.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
90
Longe de descobrirmos qualquer vestígio de Docetismo no NT, encontramos, pelo
contrário, indícios de luta contra ele. Evidência particularmente clara na 1 Carta de
João, precisamente dirigida contra aqueles que negam que Jesus Cristo
verdadeiramente tenha vindo na carne. Conforme João, aqui é que se distinguem os
crentes dos que não crêem, os verdadeiros, dos falsos profetas: “Todo espírito que
confessa que Jesus veio na carne é de Deus, e todo espírito que não confessa Jesus. ..
procede do Anticristo” (1Jo 4.2s). “Quem é que vence o mundo senão aquele que crê ser
Jesus o Filho de Deus?” (1Jo 5.5). Tudo está comprometido nesta confissão, na qual
coincidem testemunho humano e testemunho Divino: “Este é o testemunho de Deus,
que ele dá acerca de seu Filho” (1Jo 5.9).
Depois de pertencerem à comunidade cristã, os falsos profetas visados por João
separaram-se posteriormente dela (1Jo 2.18s). A intenção de João parece ser a de
reprovar a doutrina desses anticristos que rejeitavam a verdadeira Encarnação.
Incontestavelmente, o Docetismo surge nessa heresia que, como ponto de partida,
tomou a impossibilidade de Deus se ligar ao terrestre e humano. Provavelmente a
afirmação de 1Jo 5.6 (“Este é aquele que veio por meio da água e do sangue”) visa a
prevenção contra a doutrina de que temporariamente um ser celestial (no intervalo entre
o batismo e a crucificação) se associara ao homem Jesus de Nazaré. “Esse Docetismo se
radicava na resistência à idéia escandalosa de que o Filho de Deus, o Revelador e
Mediador, sofresse a degradação do contato direto com a matéria, que é a encarnação do
mal absoluto” (C.H. Dodd). Deparamo-nos, pois, já no NT, com a rejeição direta da
motivação, que mais tarde foi invocada pelo Docetismo multiforme e insidioso.
***
A índole verdadeiramente humana de Cristo é-nos descrita não apenas por João, mas
também pelos Sinóticos. O Docetismo está em evidente antagonismo com os
Evangelhos. Para nos convencermos, basta analisar os quarenta dias da vida gloriosa de
Cristo ressurreto: nada melhor para desenganar aqueles que se inclinam a crer numa
humanidade de Cristo plenamente sombreada pela Divindade. No ressuscitado,
constatamos uma sensível mudança; entretanto, não muda o homem Jesus, mas ele
permanece o que era. A história das aparições constitui um típico requisitório contra o
Docetismo. Lucas, por exemplo, descreve as aparições de Jesus aos discípulos:
surpresos, atemorizados, estes acreditam estar vendo um fantasma (Lc 24.37, onde a
palavra grega edoxoun pneuma theorein é precisamente a que originou o termo
Docetismo), mas Cristo dissipa as falsas suposições deles: “Por que vos perturbais e
duvidais em vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés; sou eu mesmo,
apalpai-me e verificai, porque um espírito não tem carne e ossos como vedes que eu
tenho” (Lc 24.38s). Observamos que esta impressão se reforça quando, vendo seus
discípulos receosos e hesitantes, Cristo lhes pede, realista e “antidocetamente”, alguma
coisa de comer e se serve, ostensivarnente, do peixe assado. Unanimemente, os
evangelistas se referem a este traço tão eminentemente antidocetista. Nenhum texto
relativo às aparições do Ressuscitado insinua a mínima tendência docetista. Lc 24.34,
relatando o regresso dos dois viajantes de Emaús, conta como eles encontraram os onze,
alegres, e comentando que “verdadeiramente ressurgiu o Senhor”. Aqui,
verdadeiramente (ontôs), acentua bem a realidade do Ressuscitado. Mt 28.5s, especifica
que este mesmo Jesus que fora crucificado ressuscitou à vida e se relacionou, sem
demora, novamente com este mundo. Ele precederá os discípulos na Galiléia (Mt 28.7;
Mc 16.7). A Tomé, que duvidara, são ditas estas palavras: “Põe aqui o teu (ledo, e vê as
minhas mãos, chega também a tua mão e põe-na no meu lado” (Jo 20.27), palavras
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
91
expressas também aos outros discípulos (Jo 20.20). As mulheres abraçaram os pés do
Ressuscitado (Mt 28.9). A insistência nas feridas da crucificação confere aos relatos um
caráter intransponivel de realidade. Quanto à palavra dirigida a Maria: “Não me
detenhas assim, porque ainda não subi para meu Pai” (Jo 20.17), não deve ser traduzida
“Não me toques. . .“ em sentido docetista, como para insinuar a impossibilidade de tocar
fisicamente a Cristo, mas visa informar Maria de que, entre a situação humana do Jesus
anterior e atual existe uma novidade, novidade inclusive para Maria, a qual,
precisamente do Ressuscitado recebe sua missão: “Vai ter com meus irmãos...” (Jo
20.17). A este respeito, Marcos Barth comenta acertadamente: “Aqui não aparece de
forma nenhuma o pensamento que abraçar ou tocar a Jesus ressuscitado fosse
irreconciliável com a nova realidade do Ressurreto.” Todo o contexto evangélico
elimina qualquer dúvida nesse particular (comparar a promessa de Jo 16.16). Com o
Senhor ressurreto, os apóstolos usam da mesma segurança e confiança que lhes
caracterizava o trato com ele antes da Paixão. Jesus sopra sobre eles (Jo 20.23), impõelhes as mãos (Lc 24.50). João, com absoluta literalidade, escreve: “Nossas mãos
apalparam-no” (1Jo 1.1), não com um apalpar comum — muitos casualmente tocaram
Jesus — mas com este apalpar próprio da vocação apostólica de testemunhar a
realidade da Ressurreição. Um simples contato casual não se equipara com o apalpar
consciente, ordenado pelo Ressuscitado, o qual “teve para o apostolado uma
significação determinante e fundamental de constatação e comprovação. O Senhor
manda que eles se certifiquem da verdade de sua ressurreição; não é um fantasma
oferecido aos seus olhos.” Como outrora, andando sobre as ondas do mar, ele precisou
dissipar os temores dos discípulos e declarar- lhes não ser um fantasma. Jesus agora usa
as mesmas palavras de identificação: “Não temais: sou eu” (Jo 6.50).
Inconfundivelmente, mesmo depois da Ressurreição, destaca-se a genuína humanidade
de Cristo; os apóstolos poderão declarar: “Comemos e bebemos com ele depois que
ressurgiu dentre os mortos” (At 1.4; 10.41). Apalpar e ver o Senhor ressurreto é da
essência do Evangelho: comprova a firmeza da salvação que foi revelada em Cristo,
vencedor da morte. O que ressuscitou é o mesmo que morreu crucificado: aqui não
existe outra atitude senão a crença: “Não sejas incrédulo, mas crente” (Jo 20.28). Essa
verdade impressionou tão profundamente a Paulo que ele conseguiu traduzi-la numa
forma lapidar: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, ainda estamos no pecado
nosso. Mas Cristo, de fato, ressuscitou” (1Co 15.17ss). Ora, este Cristo é um homem
bem real e não uma simples aparência, como queriam os docetas, partindo do postulado
gratuito da impossibilidade da Encarnação.
***
Assim como não pode haver dúvida a respeito da humanidade genuína do Ressuscitado,
conversando e comendo com os seus durante quarenta dias, tampouco pode havez
dúvida quanto à humanidade de Cristo antes de sua Paixão. Inúmeras são as palavras
que, dessa ou daquela maneira, expressam a genuinidade desta natureza humana. Não
há lugar para qualquer tendência que elimine essa índole humana, por mais estranha ou
escandalosa que seja. Pelo contrário, nunca poderemos subscrever palavras como as de
van der Leeuw: “A figura de Cristo em João é semelhante às imagens bizantinas —
imóvel, hermética, intangível, insensível.., acontece nesse Cristo que nos fala sua
palavra divina, como aos homens que se apresentam em conjunto: quase não são
homens.” Nada mais aberrante: o quarto Evangelho é o poderoso testemunho da
Divindade de Cristo e precisamente ele é o que nos apresenta o Verbo Encarnado.
Replicaremos a van der Leeuw que alegara que João, contrariarnente aos Sinóticos,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
92
nunca deixa a humanidade transparecer, e diremos que João, constantemente, ilumina o
que, em Cristo, é plenamente humano. Sejam quais forem os matizes do quarto
Evangelho, eles nunca sombreiam a humanidade genuína de Cristo. Veja-se o caráter de
absoluto realismo dado à crucificação: “Testifica aquele que presenciou, seu testemunho
é verdadeiro; ele sabe que profere a verdade para que também vós creiais” (Jo 19.35 —
testemunho imediatamente alusivo ao golpe de lança que abriu o lado de Jesus para
comprovar sua morte. Grosbeide observa que João reivindica sua veracidade, antes
mesmo de escrever que “isto aconteceu para se cumprir a profecia...” (Jo 19.36), o que
seria indício bem claro de que o quarto Evangelho visava combater o Docetismo.
Menos infeliz foi van der Leeuw quando, comentando a Paixão segundo João, de J. S.
Bach, escreve: “Bach gostava tanto do mistério da kenosis ou auto-esvaziamento do
Verbo Divino que, depois de celebrá-lo através do seu alegre e tão popular oratório de
Natal, agora medita nele em sua tragicidade, representando-nos o Soberano Divino que
aceita a figura do servo feito rei através do martírio e da humilhação.” Os traços Divinos
e os humanos nunca entram em competição nos relatos sagrados. O Evangelho, porém,
em toda parte apresenta-nos o homem Jesus Cristo, que nasce, tem origem histórica, é
Filho de Israel, Filho de Davi (Lc 2; Gl 4.4), cresce como qualquer pessoa, sente e
deseja como todos, experimenta fome e sede, sono e cansaço, ira, tristeza e angústia,
padece e morre como todos. Seu modo de agir não deixa, contudo, de impressionar
singularmente: “Jamais homem falou como ele” (Jo 7.16); nem por isso, aparece no
texto o mínimo ensejo de contestar-lhe a autêntica humanidade. Pelo contrário, tudo, na
Escritura, converge para a declaração de Hb 2.17: “Convinha que em todas as coisas,
ele se tornasse semelhante a seus irmãos”, e ainda a de Hb 2.18: “Visto que os filhos
participam da mesma carne e do mesmo sangue, Cristo também da carne e do sangue
participou...” Assim também Paulo declara que Cristo “se tornou semelhante aos
homens” (Fp 2.7). Não se lhe negam tentações, elas até constituem matéria de ênfase
para Liii 2.18 e 4.15. “Por ter ele mesmo se sujeitado às provas do sofrimento, está em
condições de auxiliar os que sofrem... Não é um pontífice insensível às nossas dores,
pois passou pelas mesmas provações que nós, fora o pecado.” Que ele, durante a vida
inteira, fosse o Santo impecável, não é obstáculo para que a Escritura no-lo apresente,
enfaticamente, homem como nós, amargurado na paixão e assaltado pela angústia no
Getsêmane e isso tão mortalmente, que “um anjo dos céus desceu a reconfortá-lo” (Lc
22.48). Esse anjo não foi o que menos dificuldades proporcionou aos adeptos do
Docetismo. Consta simplesmente que não pode ser compreendido sem uma autêntica
humanidade de Cristo.
Aliás, quem resistirá à evidência evangélica? Os textos sagrados prosaicamente narram
o desenvolvimento comum de Jesus nascido como todos, sem nada que insinue qualquer
absorção do humano pelo Divino. A criança crescia, se robustecia e se enchia de
sabedoria; a graça Divina estava nela (Lc 2.40); crescia em sabedoria, estatura e graça,
diante dos homens e de Deus (Lc 2.52). Analogia patente com as demais crianças, com
João Batista, que “foi crescendo e fortificando-se em espírito” (Lc 1.80), com Samuel,
que “crescia, tornando-se agradável a Deus e aos homens” (1Sm 2.26). As mesmas
palavras vulgares designam o desenvolvimento do menino Jesus e de qualquer menino:
palavras menos rotineiras não poderiam ser encontradas para pintar o crescimento
daquele a quem os modernistas dedicarão um tributo tão altissonante em palavras. A
modéstia dessas expressões vulgares é tanto mais significativa quanto a Escritura
silencia os trinta anos da vida oculta, com a única exceção da viagem a Jerusalém, do
menino que deixa os doutores assombrados com sua inteligência e suas respostas (Lc
2.47).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
93
Quão longe estamos dos contos fantasiosos das mil e uma noites, das fábulas apócrifas
de Natal, das tentativas de introduzir o milagroso na infância do Senhor, de subtrair o
menino às necessidades da idade e ao socorro alheio, à proteção de José e Maria! Restanos apenas uma palavra salva do silêncio de trinta anos: “Não sabíeis que me cumpre
estar nas coisas de meu Pai?” (Lc 2.49). Nenhuma ação milagrosa, nada de
extraordinário. Num vislumbre, apenas, a consciência de ter que cuidar das coisas do
Pai; indício da ligação permanente desta vida jovem com a orientação do Pai. Logo,
“desceu com eles a Nazaré e era-lhes submisso” (Lc 2.51). Essa infância que, em
séculos místicos, tornara-se objeto de reflexão piedosa, de admiração e adoração,
aparece aqui descrita com a maior simplicidade: a criança Jesus caminhando por nosso
mundo como qualquer outra criança.
Não negamos que este silêncio excessivamente sóbrio admire a quem investiga a vida
total dos homens, imparcialmente, através dos mínimos acontecimentos. Esse interesse
biográfico está ausente nos Evangelhos, que só rompem seu silêncio para seguir o
trabalho funcional de Cristo. Indicar que o menino cresce sob a graça de Deus,
consciente da sua vinculação com as coisas do Pai, é suficiente para introduzir toda a
caraterização desta vida exclusivamente dedicada aos interesses do Pai. “Meu Pai”: eis
todo o programa e quão oneroso! — desta existência. Por agora, prelúdio infantil e
coerente do tema que se desenvolverá abundante e plenamente na sua doutrina e vida: o
zelo da casa de Deus levá-lo-á à morte de cruz.
Quaisquer tentativas de subestimar esta humanidade menosprezam a figura bíblica:
embora conhecendo o mistério do Filho, as Escrituras nunca discutem ou condicionam a
humanidade autêntica de Cristo, pretextando a natureza Divina ou a glória do Senhor.
***
No correr dos tempos, deveriam surgir muitas perguntas relativas à fé da Igreja na
humanidade autêntica do Senhor. Quem confessa como fundamental, segundo a
expressão bíblica, a unidade da Pessoa em Cristo, porventura não se verá reduzido a
eliminar o humano ou, pelo menos, a condicioná-lo às exigências do divino? De fato, a
história da Igreja conhece tentações docetistas, não originadas pelos antigos postulados
(impossibilidade de união entre Deus e a realidade criada), mas pelas exigências mútuas
das duas naturezas em Cristo. Certos exegetas deram para ler as Escrituras de tal
maneira que perdessem paulatinamente a sua força original os textos mais fortemente
penetrados da realidade humana do Cristo. Entre outros, citemos os textos relativos ao
conliecimento de Jesus Cristo: tal conhecimento, porventura, não era total e
exclusivamente Divino?
A questão tornou-se particularmente interessante com respeito ao texto de Mc 13.32 ou
Mt 24.36: “Mas a respeito daquele dia ou hora, ninguém sabe; nem os anjos do céu,
nem o próprio Filho, senão somente o Pai.” Qualquer leitor deduz deste texto o caráter
limitado do conhecimento de Jesus em relação ao dia do Senhor. Posteriormente,
porém, os teólogos não se satisfizeram com esta simples dedução: partindo da união das
duas naturezas em Cristo, perguntaram se era possível traçar um limite entre o
conhecimento próprio de cada natureza, visto ser Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. Porventura, a união hipostática não comporta que o homem Jesus participe do
conhecimento Divino relativo ao dia e à hora do Senhor? Não foram poupados esforços
para solicitar o texto de conformidade com a respectiva orientação teológica. Uma
ilustração típica dessa problemática nos é dada pela exegese católicaromana de Mc
13.32.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
94
A exegese romana segue a explicação tomista tradicional. Tomás de Aquino opina que
não se podia deduzir do texto que Cristo ignorara o dia de sua volta, mas que não
entrava em seus desígnios revelar o dia e a hora. Jesus sabia, porém, não com a scientia
communicabilis (Sum. Theol. III, 10.2): seu saber não se destinava a ser comunicado a
outrem. Tomás de Aquino relaciona este texto com At 1.7: “Não vos pertence saber os
tempos ou épocas, que são da exclusiva competência do Pai”, e opina que Cristo
mantém propositalmente escondida a hora do estabelecimento do Reino, opinião já
proposta por Gregório I (509-604), e por Santo Agostinho (“Embora enviado como
mestre, Jesus declara ignorar aquele dia, como Filho do Homem, porque não pertencia a
seu magistério revelá-lo.” Enar. in Psalmo 36, Sermo 1.1). Gregório Magno justifica
esta exegese com um apelo a Gn 22.12: “Agora sei que temes a Deus.” O pontífice,
seguido por Tomás de Aquino, argumenta que este “agora sei” não implica que só agora
Iavé vem a saber que Abraão teme a Deus, e, sim, que só agora é que o declara a
Abraão. Este é o caminho para entendermos o texto de Mc 13.32.
Em 1918, este texto foi objeto de um decreto do Santo Oficio (ver Denziger,
Enchiridion symbolorum, 2183-2185), rejeitando que Cristo, corno homem, não
conhecesse o dia do juízo, e, além disso, repelindo a opinião dos que sustentam que a
alma do Cristo não conheceu, desde o princípio, todas as coisas passadas, presentes ou
futuras, porquanto a união hipostática das duas naturezas exclui a idéia de qualquer
limitação do saber de Cristo.
Evidencia-se aqui a tradição de unia exegese puramente dogmática (julgada
severamente por Calvino: “Muitos, julgando indigno de Cristo qualquer ignorância,
tentaram suavizar a dureza da palavra com seus comentários.” Ver Com. im Marcum). A
aproximação do texto é feita com preconceito; não leva em conta que, tanto Marcos
como Mateus incluem os anjos e o Filho do Homem na ignorância aludida — nem os
anjos, nem o Filho, mas só o Pai é que sabe. O texto nada diz com referência a scientia
communicabilis vel incommunicabilis; apenas acena para a prudência, o que é
necessário aos que vivem na ignorância do tempo e da hora. O apelo a Gn 22 nos parece
insustentável, inspirado pela preocupação dogmática. Greitemann, aliás, reconhece que
o exegeta católico toma em consideração a doutrina dogmática e que precisamente no
texto aqui em foco, a exegese parte da posição dogmática. Contra tal exegese é que
protestamos, porquanto ela despoja o texto de seu verdadeiro significado. Para a
exegese romana é impossivel, a priori, qualquer limitação do saber em Cristo, a qual
limitaria também sua natureza Divino-humana. E assim estamos diante de uma reflexão
que, por si, acarreta enormes conseqüências para uma valorização digna da humanidade
de Cristo por parte da exegese romana. O “impossível” autoritário e dogmático domina
a exegese de Roma, forçando-a a procurar paralelos sem fim para furtar-se à evidência
das palavras. Denunciamos tajs postulados dogmáticos. Isso, porém, não significa que,
para a exegese reformada, a união hipostática tenha sido feita clara e evidente. Quem
sondará o mistério insondável? Mas, no caso em debate, não é questão daquilo que
transcende nossa compreensão, do mistério insondável; é questão simplesmente da
leitura correta do texto. Fala-se-nos do poder de Cristo em contraposição à onipotência
divina, e do saber de Cristo em contraposição à onisciência de Deus. Se nalgum lugar
cumpre deixar as normas da Escritura canalizarem o nosso pensamento, este lugar é
aqui. A interpretação católica imposta pelo Santo Ofício é sintomática de um sistema
que, em vez de partir das Escrituras, parte do dogma eclesiástico.
Não é de se surpreender, pois, que as evidências bíblicas suscitem, ali e aqui, sérias
dificuldades para a dogmática romana, especialmente a sua Cristologia. Quem aceitou
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
95
pensai’ de conformidade com processos logísticos, para tirar conseqüências que afetam
a Divindade de Cristo, talvez contornará dificuldades de vulto, mas não deixará de
perverter palavras bíblicas que evidentemente demonstram a genuína natureza humana
de Cristo. Entretanto, essas palavras são tão claras que impõem o caráter limitado e
humano na vida de Cristo.
Quando, raciocinando a partir da scientia beatifica de Cristo, excluímos dele qualquer
ignorância relativa ao presente, passado e futuro, devemos afinal de contas aceitar que a
alma de Jesus gozava de certa “onisciência Divina” em virtude de sua união com a
inteligência Divina. Precisamente nesta onisciência relativa é que está a dificuldade. O
mesmo raciocínio levar-nos-ia a aceitar “certo progresso” em Cristo, inclusive na
ciência de Cristo. “A alma de Cristo conhece urna ciência adquirida, experimental,
progressiva”, ou seja,a ciência própria do homem na terra. Assim, Cristo como homem
aprendia tudo quanto a experiência lhe ensinava. Era sujeito a um autêntico
aprendizado. Todas as coisas que sabia intuitivamente, como Deus, podia aprendê-las
experinientalrnente. Nessa base, Pohle intenta provar que não foi ilusória nem inútil a
ciência experimental de Cristo; porém enreda-se quando afirma que tal conhecimento
experimental é acrescentado ao conhecimento Divino, fornecendo ao Senhor
“momentos valiosos, antes não experimentados e capazes de enriquecê-lo”, tese difícil
de se coadunar com o dogma católico da onisciência própria de Cristo. Pelo menos, esta
problemática revela a insatisfação da própria exegese católica, quando reflete sobre o
processo da vida humana de Cristo.
Isso nos leva a considerar, de relance, outro problema vinculado com o anterior: a
relação entre a ciência de Cristo e a sua Paixão. Mais urna vez estamos às mãos com a
dogmática romana. Esta combate o Monofisismo com as declarações de Calcedônia
sustentando as duas naturezas de Cristo; entretanto, deixa a natureza humana de Cristo
elevar-se a alturas desconhecidas, em virtude de sua união com o Logos. Deveria surgir
para a teologia romana o problema da realidade da Paixão. Como conciliar a dura
experiência da Paixão com a contemplação ininterrupta de Deus? O que surpreende
mais, na teologia de Roma, é que a coordenação das idéias não é determinada pelos
dlados bíblicos, e, sim (como anteriormente em Mc 13.32), pela formulação de
Calcedônia. Problema bem mais agudo para quem parte do ponto de vista da
humanidade de Cristo contemplando sempre a Divindade. Assim, Tomás de Aquino
ensina que Cristo se distinguia dos outros mortais porquanto possuía a visão de Deus
plena e perfeita, desde o momento de sua concepção, coisa negada aos outros, pois para
os homens a visão de Deus é um dom sobrenatural e escatológico. Não há possibilidade
de um espírito criado conhecer intuitivamente a Deus. Contra os beguinos, o concílio de
Viena (1311) determinou que, sem unia luz carismática, nenhuma alma pode
contemplar Deus, a não ser unicamente Jesus Cristo. Só depois de gozar a luz da glória,
é que os bem-aventurados contemplarão intuitivamente a essência de Deus. Cristo goza,
entretanto, já nesta terra, a visio beatifica, contemplando face a face a essência divina.
Bartmann, com absoluta franqueza, declara: “Esta teoria se motiva na união
hipostática”; motivação dogmática, pois, e não revelação bíblica. Aliás, o mesmo autor
reconhece que a Bíblia oferece certo número de textos “que, aparentemente,
contradizem a perfeita ciência de Ci’isto, normalmente decorrente de sua visão beatifica
de Deus”. Nada estranho, pois, que os teólogos exegetas objetem contra a visão
beatifica e terrestre de Cristo. Afinal de contas, também Bartmann resolve todos os
argumentos em contra, à luz da união hipostática, valor supremo e imutável, imperativo
decisivo neste conflito. Nessas alturas é que surge a pergunta se a visão beatifica pode
ainda condizer com a veracidade da paixão (te Cristo. Sem dúvida, a teologia romana
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
96
iõe corno base a realidade dessa paixão, embora sem abandonar seu postulado da visão
beatifica, procurando conciliar ambos os extremos: o saber irrestrito de Cristo e a paixão
autêntica. “Pela contemplação de Deus indefectivelmente aberta à alma de Cristo, nem a
capacidade (te sofrer nem a realidade sensível das dores de Cristo foram sustadas”
(Manual de Teol. Cal., J. Braun). Qual será, então, a solução desse paradoxo? A
escolástica opinava que, dividindo-se a alma ciii superior e inferior, a visio beatifica
localizar-se-ia na alma superior, enquanto a alma inferior sofria os tormentos e a morte.
Essa é urna solução antropológica, errada em si mesma e ilógica dentro da doutrina
hipostática, pois que, na união hipostática, Cristo assumiu uma completa natureza
humana. Não obstante, é nesta direção que se está procurando a conciliação entre visio
e passio. A posição de Tomás de Aquino merece atenção; mencionando a opinião de
que “a visão beatífica de Cristo comportava a bem-aventurança”, faz ele a seguinte
distinção: “de conformidade com a natural relação de corpo e alma, a glória do corpo
redunda na glória da alma. Porém esta relação normal em Cristo estava submetida à
vontade de sua própria Divindade, de tal sorte que a bem-aventurança permanecia no
espírito sem derivar para o corpo” (Summa Theol. 111.14,1). Em outras palavras,
cumpria ao Filho de Deus aceitar a carne humana com toda a sua fraqueza, para nela
poder sofrer e, desta maneira, ajudar-nos. E aqui, o grande doutor deixa a Escritura
Sagrada prevalecer contra as premissas dogmáticas, acolhendo Isaias 53: “Ele foi ferido
por causa de nossas prevaricações” e citando Fp 2.6ss. Repudia a opinião que declara
serem incompatíveis visio e passio e afirma taxativamente: “Isto contraria a asserção de
Isaias 534, que diz: Verdadeiramente carregou sobre si as nossas dores” (ibidem). Mas,
reintegrando outra vez o dogmatismo, conclui, dizendo: o gozo da contemplação Divina
ficou de tal modo restringido ao espírito de Jesus Cristo que não se propagava aos
sentidos nem insensibilizava contra a dor (Id. III. 15,5). Podia-se, pois, falar em
autêntica tristeza e genuína paixão de Cristo. Na expressão tomista, Cristo é juntamente
viator e comprehensor, quer dizer viajante a caminho, passível e sujeito à dor, e
vencedor, tendo chegado à meta que apreende já a bem-aventurança escatológica.
Esse problema é também resolvido antropologicamente. Em Cristo, contemplação
beatifica e paixão dolorosa pertencem respectivamente a diferentes esferas humanas. A
esfera superior da alma humana de Cristo mergulha nos mistérios hipostáticos,
compartilhando dos privilégios da alma Divina; a realidade da Paixão, inculcada pela
Escritura, explica-se pela condição peculiar da alma inferior de Cristo. Tomás de
Aquino sabe usar bem suas distinções antropológicas. No entanto, não se evidencia
como, de fato, esta parte inferior escapa dos privilégios da parte superior. A Escritura
ignora tais sutilezas, mas poderosamente nos mostra a Pessoa de Cristo à luz das
funções e humilhações messiânicas. É no texto sagrado que percebemos a
impossibilidade de separar Pessoa e Obra de Cristo, e, portanto, de tirar conclusões
exclusivamente a partir da Pessoa considerada em si. A Escritura nos fala do Filho do
Homem sofredor, do Varão de Dores que padece, entristece-se, angustia-se, ora e
deseja, maravilha-se e espera, confia em Deus e geme no abandono. Deste problema não
se sai com uma distinção entre esferas superior e inferior da alma humana, nem com
postulados de camadas biológicas em nós. Considerado o problema segundo o esquema
visio-passio, os teólogos sistemáticos de Roma, embora não negando a Paixão,
consideram-na muito à luz da visão beatifica e, quando nos ouvem — a nós,
Reformados — falar do horror e da profundeza dos sofrimentos e do abandono, por
parte de Deus, do Cristo sofredor, levantam graves objeções contra o nosso modo de
sentir.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
97
Divergências deste teor surgem cada vez que se trate — na teologia católica — de
angústia, fé e esperança em Cristo. Tomás de Aquino pergunta; “Houve temor em
Cristo?” Citando o texto relativo à angústia de Jesus em Getsêrnane (Mc 14.33),
responde que, em si, o medo não existia em Cristo. Porém, na necessidade de salvar a
verdadeira humanidade de Cristo, acrescenta que este assumiu espontaneamente temor e
tristeza (Stzmma Theol. III.15.4ss). A seguir, examina se houve fé e esperança em
Cristo. Quanto à fé, citando 11h 11 .1 (“a fé é a garantia das coisas que se esperam e a
prova das que se não vêem...”), declara que não havia nada que Ci’isto não visse:
“Desde o primeiro momento (le sua concepção, Cristo viu perfeitamente a Deus em sua
essência, de tal modo que a fé, em Cristo, é absolutamente impensável. Quanto à
esperança, apoiado em Rm 8.24 (“O que alguém vê como o espera?”), Tomás não a
concebe possível em Cristo. Reconhece, porém, que Cristo, na terra, ainda não tinha
tudo quanto pertence à sua perfeição, como, por exemplo, a glorificação de seu corpo.
Esta complementação posterior podia ser objeto da expectativa de Jesus, embora não de
verdadeira esperança, porquanto esta diz respeito à bem-aventurança da alma, e não do
corpo.
Evidentemente, toda esta argumentação católica romana está condicionada pelo
postulado da visio beatifica em Cristo. Às vezes, as palavras da Escritura sugerem certas
restrições, mas nunca são suficientes para recolocarem basicamente a problemática da
verdade humana de Cristo. No Tomismo, a natureza Divina, hipostaticamente unida à
humana, chega a ameaçar a plenitude da segunda, surgindo um novo tipo de Docetismo,
digno de ser denunciado aqui. Tomás de Aquino, graças ao seu amor às Escrituras, erige
um contrapeso ao perigo de ofuscar a natureza de Cristo pode detrás da Divina.1 Na
teologia calvinista não precisamos restringir pensamentos e raciocínios originados em
determinado conceito da união hipostática, não porque não professemos ex corde esta
união das duas naturezas, mas porque nossa referência invariável é a Escritura, e nosso
propósito é de nos guiarmos exclusivamente pela Revelação. Como poderíamos
encontrar argumnentos extensos para proposição e defesa da problemática em foco?
Nossa teologia não precisa de qualquer distinção antropológica para explicar a
possibilidade da paixão de Cristo.
1
Digno de nota é o fato de Roma ter sempre resistido aos julianistas que ensinavam, como Eutiques, que
o corpo de Cristo tinha substância diferente da nossa, seu corpo sendo impassível em virtude da união
hipostática, e inacessível à fome» sede, cansaço, etc. Essa opinião foi universalmente qualificada de
docetista. O concílio de Éfeso (431) já decretava ser anátema “quem negasse que o Verbo de Deus tinha
sofrido na carne, tinha sido crucificado na carne e morrido na carne” (Denziger, 124). O Concílio de
Florença (1439) reconheceu “a essência passível de Cristo, conseqüência de sua humanidade” (Denziger,
708).,devendo-se declarar Cristo vere natum, vere passum, vere mortuum et sepultum (ibid.). No fundo,
entretanto, os teólogos romanos estão ainda na mesma perspectiva que Julião de Halicarnasso, o qual
também não negava absolutamente os sofrimentos de Cristo, embora declarando a impassibilidade de
Cristo. A respeito desta apathia observa justamente Draguet que “Julião não atribuiu a Cristo como Deus,
mas ao Cristo como homem, as prerrogativas da impassibilidade e da imortalidade” (René Draguet, Julien
d’Halicarnasse, pág. 124). Por sua vez, Turmel, que dá pouca atenção ao Monofisismo dos julianistas,
não hesita em declarar que “estes foram os herdeiros de Eutiques” (J. Turmel, Hist. des Dogmes, II, 1932,
pág. 382).
Para maior explicitação, comparem-se finalmente os comentários de Tomás de Aquino sobre Lucas 2.52:
“Não podemos dizer que, em Jesus, o crescimento em graça fora real, porquanto Cristo possuía a
plenitude da graça em virtude da união hipostática” (Summa Theol. III, 7, 12), e ainda: “A união
hipostática respeita a diferença das naturezas; entrementes, a alma humana de Cristo recebia, através de
sua alma Divina, participação na perfeição e no saber Divinos, onisciência e visão beatífica” (Id. III, 9, 2).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
98
A simplicidade característica da exegese de Calvino permite compreender sem
escândalo tanto o “não-saber” como o martírio e morte de Cristo. Calvino reconhece as
naturezas Divina e humana em Cristo, indissoluvelmente unidas numa unidade
hipostática; mas ele, fiel à atitude de Calcedônia, respeita o mistério, não amputa os
atributos da natureza humana nessa adorável hip5stase. Sabe que essa prudência (em
não inventar arbitrariamente privilégios de onisciência e bem-aventurança a favor da
humanidade de Cristo) seria tida como uma tentativa de diminuir a natureza humana em
Cristo. Contudo, não hesita em aceitar a coexistência da fé e da contemplação em
Cristo: Cristo creu, Cristo esperou. O pensamento de Calvino é bem claro. Um católico,
como G. Brom, escandaliza-se de que Calvino e o Catecismo de Heidelberg ousem
apresentar o Crucificado como submetido a “tormentos infernais”. Não sem razão,
preocupa-se a teologia reformada com a quarta palavra de Cristo na Cruz — Eli, Eli,
lamma sabachtani — achando nela a chave do problema visio-passio. “Quem ousaria
sustentar a plena realidade de um abandono Divino? Como seria possível tal abandono
no caso da união hipostática? Como pode Deus ser abandonado por Deus?” Todas essas
perguntas negligenciam a grande lei: que não se deve separar, nem provisoriamente, a
Pessoa e a Obra ou função substitutiva de Custo. Talvez essa negligência seja a causa
mais profunda da controvérsia sobre este particular. Podemos constantemente discernir,
no pensamento romano, a tendência de considerar a unio personalis, passando por alto
as humilhações e a obra substitutiva de Cristo e, afinal de contas, vendo-se na obrigação
de impor restrições à “perfeição” da natureza humana ou adorná-la de privilégios
arbitrários, com grave risco de torcer os textos evangélicos. O paradoxo visio-passio
deve ser resolvido numa espécie de sintese, com suma prudência, considerando bem o
“Eli, Eli, lamma sabachtani” e os tormentos daquele que orou a quem o podia livrar da
morte (Hb 5.7). Não faltou quem imaginasse que “Deus teria impedido milagrosamente
os efeitos da alegria decorrente da visio beata (M. Scheeben, Dogmatik II, pág. 276) e
que Cristo, desta maneira, teria sofrido seu martírio plenamente.
Felizmente, abandonando estes caminhos especulativos, muitos católicos dedicados à
meditação desbravarn outra vez a senda até os Evangelhos, com êxito, o que a literatura
dogmática não sugeriria. Vejam-se, por exemplo, as nieditações sobre a Paixão, de van
der Meer. Embora não contradizendo a doutrina da visio beatifica, van der Meer põe
ênfase sobre a Escritura, reconhecendo um autêntico desespero, abismos genuínos de
dores, um infinito abandono, uma capacidade de sofrer fora do comum, um
desfalecimento iminente, que só pôde ser remediado pelo anjo enviado para reconfortar
o Redentor. Igual novidade encontramos na obra de Romano Guardini, que, fiel às
indicações bíblicas, escreve: “Aqui nada pode fazer a psicologia.” Referindo-se à
função substitutiva do Salvador, escreve: “Cumpre, talvez, pensar que, na hora do
Getsêrnane, chegaram ao paroxismo a consciência da culpabilidade e perdição humana
que sobre ele pesavam, quando em presença do Pai que já começava a abandoná-lo”
(Guardini, O Senhor, Meditações, pág. 483). Colocado nessa perspectiva, Guardini
devia alcançar uma visão real da cruz e comentar sem restrições a terrível realidade da
quarta palavra. Assim Guardini junta-se a Calvino e, quase em idênticos termos,
escreve: “Cristo desceu, numa forma inconcebível, às profundezas do inferno.”
São concebidas aqui a Pessoa e Obra de Cristo numa mesma perspectiva — a do amor
de Deus em Jesus Cristo. Se sempre se tivesse procedido assim, teríamos podido
encarar, com simplicidade e candura, na problemática teológica, a palavra de Cristo
sobre seu infinito abandono, sem necessidade de retornarmos à meditação para
redescobrir o que foi submerso pela sistematização. Nesse caso, Roma ter-nos-ia
poupado a impressão renovada de que, sustentando Calcedônia formnainiente, não se
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
99
importava com ela. Assim, novamente, poder-se-ia considerar o mistério dessa
humilhação, deste Cristo que, submerso nas dores e no abandono do Pai e dos homens,
não deixou de esperar e acreditar em Deus, segundo proclama a Escritura: “Nele porei a
minha confiança” (Sl 22) e conforme observaram os seus inimigos, presentes no
suplício: “Ele pôs sua confiança em Deus” (Mt 27.43).
***
Quando a dogmática aborda a Obra de Cristo é que, em sua grandeza, toda a
problemática da humanidade de Cristo é encarada. O Catecismo de Heidelberg, assim
como as outras confissões de fé cristã, pergunta: “Por que deve ser Cristo um homem
verdadeiro e justo?” (Cat. Heid. 16). A pergunta será objeto de estudo niaisdetalhado
em outro livro sobre a Obra de Cristo. Ela não surgiu de uma especulação conceitual,
baseada em considerações racionais, mas da meditação atenta do plano bíblico de
salvação, tal como no-lo revelam os fatos Divinos e suas correlações bíblicas. Assim faz
o Catecismo de Heidelberg na meditação destinada ao primeiro domingo litúrgico.
Observemos, porém, sem maiores delongas, que nada pode separar Pessoa e Obra de
Cristo: isso implica em que, nessa Obra salvadora, não se pode ver acaso, arbitrariedade
ou imprevisão, mas exclusivamente a sabedoria de Deus. As evidências escrituristicas
proibem que a Igreja se sujeite a um conceito monofisita de Cristo, por maior que fosse
a ênfase dada à indole Divina da Redenção. Pois a Escritura fala de Jesus Cristo, ora
corno Deus verdadeiro, ora como homem verdadeiro, deixando-nos a tarefa de conciliar
esse enigma teológico. Ele é consubstancial a nós, um conosco, semelhante a nós em
tudo, nosso irmão, nossa carne e nosso sangue. Não veio como enviado para atemorizarnos com sua Divindade onipotente, embora oculta, mas veio a nosso mundo real e
verdadeiro, assumindo a forma de servo. Se a essa forma de servo nossa atenção é presa
carinhosamnte, não é porque desejamos conceder, de algum modo, as honras da
Redenção ao “homem”, mas porque reverenciamos o método seguido por Deus para nos
redimir. Essa atitude foi adotada por Paulo, em seu famoso paralelo entre Adão e Cristo:
“Como por um só homem entrou o pecado, assim, e muito mais, a graça de Deus é dada
num só homem, Jesus Cristo” (Rm 5.l2ss). Essa palavra coloca novamente, diante de
nós, o mistério do Verbo feito homem. À sua luz, mais urna vez, comprovamos como,
com sua lógica especiosa, o Monofisismo e todas as formas de Docetismo violentam o
texto sagrado. O caminho da Redenção não pode ser compreendido através de nossas
construções racionais, mas somente através da humilde consideração dos pensamentos
revelados de Deus: a Escritura, afinal de contas, preservar-nos-á da confusão ideológica.
Não é possivel uma especulação em torno do SER de Cristo Mediador; mas imporia —
e Deus quer — que todos os homens cheguem à verdade e se salvem, “porque há um só
Deus e há um só mediador entre Deus e os homens — Jesus Cristo homem que se deu
em resgate por todos” (1Tm 2.4ss). Este texto proclama que o ato redentor está inserido
indissoluvelmente no homem Jesus Cristo. Não podemos medir aqui qualquer
concorrência entre Divino e humano; é-nos simplesmente revelado o caminho de Deus,
traçado com sabedoria e misericórdia. Observemos que Paulo aqui se absténi de
mencionar que Jesus é também Deus, coisa bem sabida e proclamada em tantos outros
lugares: o apóstolo, em posse da verdade total, acentua ora a humanidade, ora a
Divindade para expressar a plenitude da riqueza de Cristo. A Escritura não fornece base
para especular ou estabelecer certa concorrência e rivalidade entre as duas naturezas do
Senhor. De modo muito belo, Calvino comenta o texto de 1Tm 2.5: “Paulo,
qualificando Cristo de homem, não lhe nega a Divindade, mas sendo o seu propósito
recalcar o laço de nossa união com Deus, menciona a humanidade de Cristo, e não sua
Divindade, coisa muito digna de atenção.” Pela mesma razão, Hb 2.17 nos descreve
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
100
Cristo, Sumo Sacerdote, tentado em tudo, necessariamente semelhante a nós,para poder
cumprir sua missão. Pode-se imaginar maior delicadeza nesse Jesus homem que “não se
envergonhou de nos chamar irmãos”? (Hb 2.11). De sua parte Deus não se envergonha
dele, aceitando ser chamado seu Deus (Hb 11.16). Quem vendo apenas a Divindade de
Cristo, pensasse que sua humanidade é urna parte negligenciável, enveredaria por um
caminho muito obscuro, condenando-se a não coipreender o testemunho da Escritura, a
qual coloça a união hipostática bem no âmago da humanidade de Cristo. A Escritura nos
ensina que Cristo assumiu nossa carne para nos trazer a Salvação, merecendo assim o
título de “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Sem dúvida, mereceu também o
título de “primogênito de toda a criação” (Cl 1.15ss), pois tudo foi estabelecido nele, o
que, aliás, não significa que ele faz parte da criação, como pretendia Ano. “Primogênito
entre muitos irmãos” implica numa comunhão fraternal conosco, mediante a qual Cristo
nos pode preceder como guia e se conservar como reconciliador. Estas relações são tão
evidentes no texto sagrado que não mais podemos acusar a Igreja de arbitrária ou
ingênua, quando está a lutar em defesa da verdadeira humanidade de Cristo. Com ênfase
insólita, a Confessio Belgica aplaudiu a Antiga Igreja, declarando nossa salvação
indissoluvelmente ligada à veracidade da natureza humana do Senhor (Art. 19). Urna
leitura atenta das Escrituras tira qualquer dúvida a respeito da oportunidade e verdade
desta fé que tão ampla visão nos abre sobre a plenitude da salvação e os tesouros de
reconciliação que nós temos naquele em quem corporalmente habita toda a Divindade
(Cl 1.15-23). 2
***
Baillie começa o seu Deus Estava em Cristo com um capítulo sobre o fim do
Docetismo: alegra-se com o fato de que praticamente, hoje em dia, todas as correntes
teológicas confessam a humanidade de Cristo, cuja significação evidencia-se-lhes cada
vez mais. Observa que todo o pensamento teológico sério sempre acabou eliminando o
Docetismo, o Eutiquianismo e o Monofisismo: estes erros, construindo à distância da
humanidade de Cristo, arrasam com a realidade da Encarnação. Acabou, pois, o
Docetismo. Morto Eutiques, não é provável que lhe nasça um herdeiro póstumo.
No entanto, há razões para temer: nem todo o perigo do Docetismo foi eliminado.
Reconhecemos que, presentemente, a teologia acentua de modo vigoroso a natureza
humana de Cristo. Longe de nós aludir aqui à descoberta do “Jesus histórico”, como se
o reconhecimento da historicidade do Nazareno significasse aceitar a fé da Igreja, no
que tange à verdadeira natureza humana do Crista. Simplesmente, observamos urna rara
sensibilidade na dogmática, para que as solicitações docetistas sejam anuladas.
Cumpre reconhecer a tendência geral de acentuar a humanidade de Cristo, não mais
considerando-o o remoto embaixador celeste, o Verbo alheio e afastado longe de nós.
Logicamnente, originar-se-á agora outro perigo: o de huzuanizar Cristo ao extremo de
lesar a verdade de sua natureza Divina. Daí poderia surgir, se não uni NeoEutiquianismo, uma forma nova de Adocianismo. Vislumbramos ainda outros perigos
(indicá-1os-emos no capitulo seguinte), tais como o de aviltar a humanidade de Cristo
2
Karl Barth interpreta a qualificação “um dos nossos”, dada a Cristo, de maneira peculiar. Procura ele
basear a Antropologia na Cristologia. Só conhecemos Cristo, opina ele, na reconciliação. A participação
de Cristo em nossa natureza humana é formulada em termos invertidos: somos nós que participamos nele
e não ele em nós. “Não é Jesus que deve compartilhar da natureza humana, mas o ser humano precisa
tomar parte nele” (K. D. III, 2, 69).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
101
de tal forma que não mais respeitemos a confissão da Igreja acerca da impecabilidade
positiva, ou seja, da santidade de Cristo.
Aplaudiremos, assim mesmo, toda tentativa de eliminar os remanescentes do
Docetismo. A História nos mostra que esta heresia constituiu uma ameaça mortal à fé.
Cumpre, pois, à Igreja estudar com interesse as múltiplas tendências atuais de valorizar
a natureza humana do Senhor, zelando pela plenitude do depósito. Pois só com a
condição de não afetar a fé na genuina Divindade, de Cristo, é que o estudo de sua
natureza humana tornar-se-á bênção para a Igreja.
***
O Ecce Homo de Pilatos (Jo 19.5) — “eis o homem” — bem poderia dar expressão
adequada à nossa fé na genuína natureza humana de Cristo. É impressionante que o
nome de Pilatos figure no Credo, corno se a Igreja visse nas ações do Procurador algo
mais do que a mera arbitrariedade de um oficial romano. A menção de Pilatos não
passa, para muitos, de simples referência histórica. Entretanto, o Catecismo de
Heidelberg relaciona a sentença de Pilatos com a autoridade Divina (delegada a Pilatos):
Cristo, condenado por Pilatos, sofreu o julgamento Divino e, desta maneira, libertou-nos
do ‘inflexível juízo de Deus (Cat. Heidelb. 39. Comparar Calvino, Inst. II, XVI, 5).
Portanto, não será arbitrariedade relevar o Ecce Homo de Pilatos. Nem será imprudência
observar-lhe a especial e providencial caracterização. Pilatos foi, tal como Caifás, um
profeta encarregado de urna revelação excepcional. Caifás, declarando a oportunidade
da morte de Cristo para a poupança da nação inteira, não falou de si mesmo (Jo 11 .51).
Pilatos, porventura, falou de si mesmo com o seu imortal Ecce Homo? Evidentemente, a
despeito da sedução que a pergunta exerce sobre os nossos contemporâneos, devemos
respeitar os limites da Escritura e usar de circunspecção cada vez que tiramos
conclusões desse ou daquele aspecto do relato evangélico. Quanto a Caifás, o texto
declara que ele profetizou, em sua qualidade de Sumo Sacerdote. Com relação a Pilatos,
o texto cala; porém explica a condenação de Jesus por Pilatos, em virtude da suprema
autoridade conferida ao Governador, “de cima” (Jo 19.11). Há uma indicação latente
para que procuremos descobrir o sentido especial do Ecce Homo, bem corno da epigrafe
pregada na cruz: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” (Jo 19.19).
H. Vogel impressionou-se profundamente com o Ecce Homo, o qual “não procede de
uma pessoa particular, mas de um juiz competente declarando a inocência do acusado.”
Compreende o Ecce Homo conforme a orientação do Catecismo de Heidelberg, o qual
salienta a competência jurídica de Pilatos, admitida pela própria vítima: “Não terias
autoridade sobre mim, se não te fosse dada de cima.” Sem perguntar como Pilatos
compreendeu essas palavras, Vogel analisa a índole especial das relações entre Crislo e
Pilatos, estudo que pode iluminar a correlação de um texto repleto do mistério do Verbo
encarnado. Evitando construir uma fantasia gratuita, espera ele descobrir harmonias
preciosas, não vistas sequer pelo próprio Pilatos. De fato, quem lê a Escritura percebe
que Pilatos, com seu Ecce Homo, não pretende aumentar sua galeria antropológica, nem
expressar simpatia ou compaixão eventual; não diz simplesmente: “Olhai, ele é um
homem!” mas, absolutamente: “Eis o Homem!” Vogel conclui, pois, num testemunho
altamente profético, objetivando “kerygmaticamente” esta palavra, elevada às alturas
duma profecia sobre o Grande Humilhado, por cuj as pisaduras nós fomos sarados. i
apanágio da fé ouvir tão profundas harmonias a ressoar no Ecce Homo.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
102
Também van Niftrik considera no Ecce Homo algo mais do que um sentimento de
compaixão humana. Coloca Caifás e Pilatos em um paralelo. Caifás profetizou a morte
de Jesus; Pilatos, obedecendo ao impulso revelador de Deus, declarou uma realidade
inacessível à psicologia humana. Muito a despeito de si mesmo, Pilatos profetizava
cegamente diante das turbas.
Vogel e van Niftrik coincidem em reconhecer uma intenção evangélica. Mas, instados a
precisarem exatamente onde reside tal intenção no texto, não ultrapassam as meras
probabilidades, aliás, de índole mais dogmática que exegética. Suas considerações
sublinham, acertadamente, o caráter autêntico da humanidade de Cristo, mas isso não
prova urna profecia de Pilatos, repentinamente instrumento do Espírito para evidenciar
o aspecto substitutivo da paixão de Cristo.
O caso é que tais considerações aparecem também fora da literatura dogmática. O Ecce
Homo atraiu sempre a atenção dos exegetas; alguns vendo uma tentativa de Pilatos para
acalmar a multidão, outros considerando Pilatos como tendo autoridade “de cima” para
qualificar a humanidade de Cristo. Entre outros, escutemos Grosheim: “Aqui Pilatos
parece profetizar, como profetizaram Balaão e Caifás — Jesus é o Filho do Homem,
Homem por excelência; exposto ante os judeus como o Homem feito pecado perante
Deus; exposto e condenado em lugar dos seus” (Coment. João, II 479); ou a Bouma:
“Eis o Homem — a História do mundo em duas palavras! O pecador ironizado por
Satanás para escarnecer o Criador, substituido por Cristo. Aqui Pilatos cerra fileiras com
os profetas descrentes de Cristo, Balaão e Caifás” (Evang. de João, II, 169). Por sua
vez, Smelik rejeita as explicações psicológicas: “Ecce Homo; eis o Adão, o novo
homem, o novo portador da imagem de Deus” (Evang. de João, em O Caminho do
Verbo, 1948, pág. 261). Ecce Homo: eis a nova medida, o novo mandamento.
Se, de verdade, pretendemos ir ao significado certo desta palavra, devemos aceitar uma
distinção. Por um lado, o Evangelho evidencia que o decreto Divino se cumpre
misteriosamente, inclusive na paixão de Cristo, mediante palavras e atos dos homens.
Exemplo disto são as palavras de Caifás que, sob a capa de uma ostensiva hostilidade
humana, revelam a soberania Divina até mesmo nas expressões literais. Semelhante
proceder de Deus encontra-se também na condenação de Jesus por Pilatos, cuja
competência foi reconhecida pelo próprio condenado. Através do “julgamento” injusto
do Procurador romano, cumpre-se o juízo de Deus; o rótulo colocado acima da cruz é
significativo, revelando bem a série de motivações humanas que estão agindo aí.
Grosheide escreve: “A inscrição “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” fere profundamente
Jesus, rebaixando sua realeza. Mas ela proclama a verdade: Jesus é o verdadeiro Rei dos
judeus, a despeito de qualquer intenção de Pilatos” (ibid.). De igual modo, Schilder:
“Aparentemente, o sarcasmo de Pilatos visa os judeus; mas através da irrisão irrompe
incontida a exaltação. Acima do dístico de Pilatos, é Deus quem escreve.., O que tu,
Pilatos, escreveste, Deus o escreveu e o escreve ainda lodos os dias” (Cristo em Sua
Paixão, III, 173ss).
A exegese evidentemente reconhece o estilo de Deus; na Paixão de Cristo é Deus quem
reina soberana e exclusivamente, assumindo as palavras e atos dos homens
independentemente das intenções destes, para cumprir o seu desígnio eterno em Cristo,
e mostrando que ele pode tornar os homens testemunhas da verdade sobre Cristo,
embora involuntariamente.
Se fizermos exceção para Caifás, a Escritura não designa explicitamente outro caso de
testemunho involuntário de Cristo imolado; contenta-se com relatar o que os homens
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
103
opinam e fazem; refere-se à sentença inocentando Jesus no mesmo ato de entregá-lo à
morte. O exemplo de Caifás, no entanto, ensina como devemos ver as correlações entre
os atos e palavras do homem e os atos e palavras de Deus. Basta isso para não pecarmos
por especulação ou arbitrariedade, pois o caminho assim traçado não permite
descambarmo-nos para conclusões fantasistas. É, portanlo, inteiramente baseada no
firme contexto bíblico, a opinião do Catecismo de Heidelberg, vinculando a condenação
de Jesus à nossa absolvição, e auscultando, por detrás do julgamento de Pilatos, o
tribunal Divino do qual sai condenado aquele que carregou nossas culpas.
Por outra parte, aberto este caminho, não poderá a exegese usar este processo para as
demais palavras humanas? Antes do mais, reconheçamos a diferença que há entre o ato
de Pilatos, condenando Jesus, e a sua palavra Ecce Homo, que visa apiedar o povo, O
Ecce Homo, como tal, nada tem a ver com a autoridade judicial. Eis por que acredito
que não se justifica qualquer conclusão baseada no fato de Pilatos ter falado como juiz
competente, instituído de cima, pois que a frase pertence mais a um particular,e não a
um oficial, coisa, aliás, evidente no contexto que fala das hesitações e temores de
Pilatos. Não digamos, pois, que o Ecce Hommo é uma declaração oficial e, portanto,
ratificada por Deus. A Igreja, certamente, pode dar uma plenitude de sentido ao Ecce
Homo, alheia ao pensamento de Pilatos, que fora provocado por motivações humanas.
A Igreja vê no Ecce Homo a nova que ultrapassa tudo quanto Pilatos pretendia dizer.
Ecce Hommo, na boca da Igreja, tem um sentido totalmente diferente, o sentido de toda
a sua fé: eis o verdadeiro Homem, escarnecido e crucificado por nós! Eis o Varão de
Dores, que viveu verdadeiramente sob a maldição de Deus, no qual podeis ver a
condição do pecador justamente ultrajado e condenado, no qual, porém, tereis a
reconciliação e a redenção.
Mas este Ecce Homo, na boca da Igreja, pressupõe indissoluvelmente a fé na Divindade
de Jesus: só assim pode o Ecce Homo inspirar cânticos de louvores. Na realidade, o
Filho de Deus, Luz da Luz, é igualmente este homem, coroado de espinhos, um dos
nossos, sobrecarregado com a culpa de seu povo. Quem dirá o mistério de tal caminho
de salvação? A fé na humanidade de Cristo encontra sua plena expressão na Paixão. Os
motivos de Pilatos, seu Ecce Homo e sua inscrição Jesus Nazarenus, Rex Judaeorum
dão cumprimento ao Evangelho e, ao mesmo tempo, revelam o que este homem há de
ser, para todo o mundo, para todas as raças e para todas as culturas. Nesta mensagem
salvadora — paradoxo misterioso! — a humanidade compreenderá que este homem,
visivelmente homem e rei de verdade, salva-nos e, não obstante, a salvação não vem dos
homens.
Na introdução deste capítulo perguntávamos por que a Igreja defende tão vigorosamente
a realidade da carne de Cristo. Porventura, não há um motivo humanístico secreto, o
desejo de fazer surgir a salvação da própria natureza humana? Na realidade, a pregação
da humanidade autêntica de Cristo não comporta qualquer forma camuflada de
humanismo. Por detrás do “Eis o Homem”, do homem que apregoamos, a humanidade
fica na sua realidade assaz vergonhosa, cada um escondendo sua face dele. Na hora
suprema, Pilatos procura suscitar a compaixão. Somente a fé descobre neste rei de burla
o Homem verdadeiro, o Irmão verdadeiro que, “sem qualquer usurpação, sendo igual a
Deus, assumiu nossa forma de servo e se tornou semelhante aos homens”.
Teolàgicamente falando, a expressão piedosa de Pilatos, Ecce Homo, bem poderia ser
invocada para finalizar o trágico litígio entre Deus e a culpa humana.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
104
Em parte alguma se justifica melhor o Humanismo do que na crucificação deste homem,
Jesus Cristo. Em parte alguma, Jesus Cristo nos é tão próximo, não apenas pela
comunhão da humanidade, mas pela reconciliação com Deus.
***
Mais uma vez, protestamos contra toda a forma de Docetismo, contra qualquer intento
de afastar de nós aquele que é o Mediador de Deus e dos homens. Embora pregando a
salvação Divina, o Docetisino nos afasta da salvação Divina: pretende dar-nos uma
salvação que não é a das Escrituras, um caminho que não é o de Deus. Desde o início, a
Igreja denunciou os perigos dlesta perversão, proclamando não a salvação realizada por
“um homem” clamor apaixonado de autolibertação! — mas a salvação conforme as
Escrituras. À guisa de conclusão, demos graças a Deus que nos confiou o depósito,
permanente e necessário, da verdade decisiva: “O Verbo se fez carne e habitou entre
nós.”
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO X – A IMPECABILIDADE DE CRISTO
Sumário
Crista diante da pecaminosidade humana — Não pecar de fato e não poder pecar —
Testemunho das Escrituras — Feito pecado para salvar do pecado Réu por violar o
Sábado — Sua comida: a vontade do Pai — Argumentos contrários — “Por que me
chamas bom?” — O batismo de Jesus, exigência de pureza ou cumprimento de toda a
justiça? — Desenvolvimento ético em Cristo — Aprende a obediência na Paixão —
Embora Filho de Deus, aprende — Cristo e a vocação de obedecer — Obediência sem
revolta, mas não sem luta — No Getsêmane — Sem pecado, mas com a carga (los
pecados do mundo — “Feito pecado” — “Eu sou a Luz do mun(lO” — Apenas
inocência de fato? Non posse peccare Entra na luta “cheio do Espírito Santo” Windisch
gosta do pOSSe peccare — Schleiermacher elimina a luta (la vida (te Jesus — Althaus
sabe Psicologia, mas não lê a Bíblia — Unio h!JposÍafica et impeccabilitas — Conceito
católico romano — Conceito reformado — Vogel critica a posição ortodoxa —
Conclusões (la velha ortodoxia — A impecabilidacie tem a ver com a função de
Mediador? — Não poder significa não querer? — Tentado com a glória —
Impecabilidade e liberdade Dilema difícil para Pohle Há um “calcanhar de Aquiles” na
teologia ortodoxa? Primazia da lógica ou tIa fé? O motivo da Encarnação A espada de
Pedro ou doze legiões de anjos? — “Para se cumprirem as Escrituras” — Harmonia
verbal de todos os cre(los: Ëfeso, Calcedônia, Florença, Catecismo de Heidelberg,
Confessio Belgica, etc. — Quem lerá o sine peccui o no contexto das Escrituras? — O
sine peccoto de Crista e o sine peccato de Maria — Em definitivo o mistério está
radicado na vontade do Pai.
A consideração da genuína natureza luiinaiia de Cristo, leva-nos espontaneamente a
outra pergunta conexa e bem conhecida nas pescluisas teológicas, a saber: Que tem a
ver o homem Ciite com o pecado humano? Houve em Cristo a pecaininosidade
humana? Se ele é plena e verdadeiramente homem, acaso não deveria necessariamente
participar da natureza pecammosa, atributo de todo homem neste mundo? Haverá razão
para eximir Cristo desta dimensão humana universal, qual seja, a luta contra o mal? E,
aceita eventuatmente para Cristo a isenção de qualquer pecado de fato, haverá motivo
para reivindicar sua inipecabilidade absoluta, em virtude da união hipostática? Não
faltaram teólogos para opinar que a tal “impossibilidade de pecar” ataca a realidade
humana de Cristo e tira qualquer valor às lutas do Senhor. Eles tinham em vista a luta
do Varão de Dores na Paixão e na morte e, particularmente, sua luta contra a tentação.
Como conciliar a impecabilidade a priori do Cristo, com a realidade de suas tentações e
de suas angústias?
É evidente a importância do problema. Cristo, de fato, não pecou. Para reconhecê-lo é
suficiente o exame empírico de sua vida breve e de seu comportamento na tentação.
Mas houve tentação, houve a alternativa de escolher entre obedecer e desobedecer.
Acaso esta mesma alternativa, colocada diante de Cristo, não implica em todo um
problema interessante para a fé cristã?
Esse o assunto do presente capítulo.
***
Tomaremos como ponto de partida os testemunhos claros e evidentes da Sagrada
Escritura sobre a positiva santidade de Cristo e sua isenção de culpa atual. A
106
concordância e abundância dos textos quase não dão lugar para duvidar da inocência de
Jesus Cristo e de Sua santidade.
A santidade de Cristo forma a essência de inúmeras palavras bíblicas, além de ocupar
um lugar de destaque no conjunto do testemunho cristológico. “Aquele que não
conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de
Deus” (2Co 5.21). “Ele não cometeu pecado, nem se achou falsidade na sua boca” (IPe
2.22). Sem dúvida, Cristo tem uma relação com o pecado, uma relação singular e de
índole única, resumida na palavra de 1Jo 3.5: “Ele se manifestou para tirar os pecados,
mas nele não existe pecado” ou de 1Pe 3.18: “Cristo morreu, o Justo pelos injustos.”
Cristo é o Sumo Sacerdote sem mácula, separado dos pecadores, exaltado sobre os céus;
o Justo, morto pelos homens; tentado em todas as coisas, mas sem pecado. Igual
unanimidade observa-se no kerygma apostólico e no testemunho dos Evangelhos: Cristo
é o Santo de Deus. O anjo anuncia a Maria “o Santo que há de nascer”; Pedro confessa a
Jesus: “Tu és o Santo de Deus” (Lc 1.35; Jo 6.69).
Os próprios espíritos imundos reconhecem a eminente santidade de Cristo: “Bem sei
quem tu és, o Santo de Deus” (Mc 1 .24). De toda parte concentram-se sobre ele, os
reconhecimentos de que foi santificado pelo Pai (Jo 10.36), que, em todos os seus
pensamentos e atos, ultrapassa plenamente as fronteiras do mal e, imaculado, se coloca
sob o cetro da lei de Deus. Até quando avança com a cruz nas costas, segue-o o
testemunho inequívoco dos observadores. Pilatos não acha culpa nele; Judas confessa
ter traído sangue inocente; o centurião proclama que quem morreu no Calvário é um
justo.
Profunda impressão nos causa a consciência da própria santidade que acompanhou
Jesus durante a vida inteira. Parlicularmente evidente, reveladora, é a palavra de Cristo
aos seus opositores: “Quem de vós pode argüir-me de pecado?” (Jo 8.46).
Sem dúvida, foi acusado de transgredir a Lei de Deus e, em particular, o primeiro e o
quarto mandamento; mas nunca foi comprovada a coisa. A acusação de ter violado o
sábado partia de uma falsa interpretação, injusta e legalista; Cristo, aliás, declarava-se
Senhor do sábado e deu o sentido profundo do descanso sabatino. A acusação de
blasfêmia partia da negação do mistério de sua Pessoa, razão pela qual Cristo, com
muita ênfase, exigia provas de seus acusadores. Deu constantes marcas de escrúpulo na
obediência ao Pai. Jesus observa aos judeus que lhe incriminam sua violação do Sábado:
“Um homem pode ser circuncidado no sábado, sem violação da lei, para que fosse
obedecida a Lei de Moisés. Vós vos indignais comigo porque curei um homem flo
sábado? Julgai não segundo as aparências mas segundo a justiça” (Jo 7.23). Segundo a
justiça julgarão eles se reconhecerem a santidade de Jesus, a orientação pura de sua
vida: “Minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou para sua obra”
(Jo 4.34). Seus atos não são feitos desordenada e desconexamente, mas formam um
conjunto operante que ele chama a obra do Pai, e para o qual ele se sabe ser chamado.
Glorificou o Pai na terra, revelou o nome do Pai, fez a vontade do Pai, orando,
agradecendo, oferecendo, perseverando no amor dos seus, que estavam no mundo, até o
fim.
Entretanto, de diversos lados foram aduzidos argumentos para demonstrar que o NT
conhece falhas que nos autorizam a julgar diversamente a respeito da impecabilidade (lo
Senhor. Sem entrar demasiado no mérito destes argumentos, examinaremos três das
supostas falhas; encontramo-las no episódio do jovem rico, do batismo de Jesus e em
pormenores tirados da Cristologia da Carta aos Hebreus.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
107
Ao jovem rico, Jesus replica: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão Deus.”
Furtando-se à qualificação de bom que lhe dava o jovem, Jesus porventura não se
coloca a si próprio entre os homens que não são bons, mas pecadores? O único bom é
Deus, como, aliás, vemos no texto paralelo de Mt 19.17: “Por que me perguntas a
respeito do que é bom? Só Deus é bom”. Do texto de Mateus, parece que se procurou
tirar aquilo que escandalizava no texto de Marcos: a possibilidade do pecado em Jesus.
Windisch opina, portanto, que o conceito da impecabilidade de Jesus originou-se
dogmaticamente a partir da declaração de Jesus: “Quem me argüirá de pecado?” ou a
partir da teologia joanina do Logos. Entretanto, a conclusão que se pretende tirar da
citação: “Por que me chamas bom?” evidentemente não procede. Mesmo admitindo que
Mateus, para evitar qualquer equívoco, apresentara a réplica de Jesus em forma
atenuada, nem por isso temos aqui uma confissão de fraqueza ou uma negação da
santidade do Senhor. A palavra deve ser recolocada no contexto. A atitude do jovem
revela um conceito beni superficial do que é bom; julga ter cumprido plenamente a lei,
sem, contudo, conseguir satisfazer as exigências de Crislo. Sob este prisma o vocativo
do moço: “Bom Mestre”, não tem muita relevância. Neste contexto, Jesus bem podia
dizer-lhe: “Por que me chamas bom?” sem confessar qualquer pecaminosidade ou falha.
Aliás, temos tantos outros pronunciamentos de Jesus que revelam sua plena consciência
de cumprir a vontade do Pai. A resposta de Jesus considera o “bom”, não diminuído e
parcial, mas pleno e total.
Procura-se, em segundo lugar, inferir a pecabilidade de Jesus do fato de ele ter-se
submetido ao batismo de João, cujo caráter é-nos explicado pelo texto sagrado. João
pregava um batismo de arrependimento para remissão dos pecados (Mc 1 .4).
“Aconteceu que, sendo batizado todo o povo, também Jesus o foi” (Lc 3.21s). Que pode
haver de comum entre Jesus Cristo e este batismo de penitência para remissão dos
pecados? Pergunta agravada pelo contexto, pois João, defrontando-se com o problema
de não ser digno de batizar Jesus de Nazaré, procura dissuadi-lo. Há confusão e inversão
de ordem: “Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” Se, a propósito desta
exclamação de João Batista, cabem perguntas teolóicas importantíssiinas relacionadas
com a Obra reconciliadora de Jesus, fundamento do batismo, a pergunta imediatamente
interessante para nós é esta: Porventura o batismo de Jesus não o situa na categoria dos
pe cadores? Mais ainda, não era necessário, porventura, que João batizasse Jesus para
possibilitar ao Salvador sua missão reconciliadora e perdoadora?
A resposta de Jesus a João é muito significaliva: além de ratificar a insistência de ser
batizado, ela declara que é exatamente assim que se cumprirá toda a justiça — “Deixa
por enquanto, porque assim nos convém cumprir toda a justiça.” João capitulou, e
batizou Jesus.
Cristo, conforme todas as aparências, obedecia desta maneira ao preceito de seu Pai.
Aliás, a obediência marcou sua vida inteira. Desde sua circuncisão e apresentação no
templo, até a sua sepultura, em nada se distinguiu ele de seu povo: nasceu de mulher,
nasceu sob a Lei.
Daí a importante questão: Uma vez que o batismo e a apresentação de Jesus no templo
estão diretamente correlacionados com a redenção do pecado, como não concluir que
também Jesus Cristo estava ligado ao pecado, da mesma maneira que todo o povo de
Deus? Uma vez deduzido que o batismo de Cristo implica confissão de pecados, a
questão estaria solucionada a priori, sem levar em consideração a relação única e
específica de Jesus Cristo para com o pecado, tão bem definida pelos textos bíblicos,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
108
relação de modo nenhum pessoal, e, sim, vocacional, intimamente vinculada à
encarnação, humilhação e sujeição à Lei do Salvador. Quando Cristo solicita o batismo,
não é simplesmente a uma tradição ou ordenança comum que ele pretende se submeter,
mas a uma ordem especial de Deus; sem aceitar qualquer privilégio, Cristo entra a
formar parte do povo prevaricador e, a despeito de não ter conhecido pecado algum nem
precisar de purificação nenhuma, solidariza-se conosco, nascendo e vivendo sob a Lei.
Assim cumpre ele toda a justiça, assim vence as restrições de João Batista. Sua decisão
de receber o batismo não visa apenas obedecer formalmente a uma regra da
comunidade, mas reveste uma sigificacão profunda: Jesus batizado é revelado como o
Cordeiro de Deus que carrega os pecados do mundo.
Entre a Obra reconciliadora de Cristo e seu batismo não há uma contradição ou um
antagonismo, mas uma surpreendente e profunda harmonia. Aqui, como em tudo, Cristo
cumpre a justiça e leva a termo sua missão, porquanto veio precisamente para dar
cumprimento à Lei, em sua qualidade de Cristo e mediante sua obra messiânica.
Penetrando mais fundo no problema, discernirernos no batismo, bem como na
circuncisão e apresentação no templo, fases lógicas das humilhações messiânicas. Corno
é possivel que certos comentaristas não tenham percebido isso? Goguel, por exemplo,
opina que o batismo de Jesus fora um verdadeiro enigma para Mateus, porquanto
subordinava Jesus ao Batista e que, por esta razão o narrador pusera na boca de João
essas objeções: “Eu é que necessito ser batizado por ti, e tu vens a mim?” Nada mais
arbitrário, pois é precisamente este mesmo Mateus que relata também a resposta de
Jesus às objeções de João. Goguel aventura, ainda, a este respeito, que os Padres da
Igreja não omitiram esforço para fornecer uma explicação desse batismo, a qual pudesse
estar de acordo com a Cristologia da Igreja (ver M. Goguel, Au seuil de l’Évangile. Jean
Baptiste, 1928, pág. 147). O erro de Goguel é de procurar, fora do Evangelho, a solução
de sua dificuldade. A palavra do próprio Cristo: “assim nos convém cumprir toda a
justiça”, põe-nos no caminho certo. É forçoso reconhecer que todas as objeções
formuladas contra a historicidade do batismo de Cristo provêm do desconhecimento do
sentido único da Pessoa e da Obra de Cristo.
***
Em terceiro lugar, examinemos algumas dificuldades provindas da Cristologia de
Hebreus. Em geral, a Escritura enfatiza o desenvolvimento de Cristo. Daí perguntarmos
se tal desenvolvimento não comporta também um progresso ético e, na afirmativa, se
este é conciliável com a impecabilidade atribuida ao Cristo. A pergunta é tanto mais
importante quanto a Escritura que, não satisfeita com relatar o crescimento físico de
criança a adulto, assinala a luta que acompanhou este progresso. Assim, particularmente
comentada, a palavra de Hb 5.7: “Jesus, nos dias de sua vida mortal, dirigiu preces e
súplicas, entre clamores e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, e foi atendido
pela sua piedade. Embora fosse o Filho de Deus, aprendeu a obediência mediante seus
sofrimentos.” As palavras grifadas sugerem, renovadamente, a idéia de que a obediência
de Cristo passara de um momento negativo: “ainda não”, para um “sim” positivo.
Tratando-se especificarnente do “Filho de Deus”, a questão merece particular atenção.
A seguir, o texto expressa que: “Uma vez chegado ao termo, Jesus tornou-se uma fonte
de Salvação eterna para todos que lhe obedecem, porquanto Deus o proclamou
sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 5.9s). À luz deste contexto, que
vem a significar isso: “Embora Filho de Deus, aprendeu a obediência mediante seus
sofrimentos”? Antes de saber obedecer, houve, porventura, uma fase de desobediência?
Windisch presume que Hebreus diverge do chamado Cristo joanino. João enaltece,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
109
repetidamente, a obediência de Cristo ao Divino Pai, como espontânea e não aprendida
com dificuldade; Hb 5.7s e Fp 2 pressupõem já, no âmago do pensamento, a doutrina
das dluas naturezas, e conhecem, portanto, a problemática da Pessoa de Cristo,
problemática que afeta certamente a controvérsia em foco. A mesma expressão:
“embora Filho de Deus”, indica que tocamos aqui o mistério do Filho de Deus na carne:
embora Filho de Deus, Jesus teve que suportar o sofrimento em todo o seu peso.
Hebreus reconhece plenamente o que há de humano em Jesus: sua humanidade não
contradiz sua Filiação eterna, mas forma com ela urna misteriosa unidade. “Como ele, o
Filho, teve que aprender a obediência? Ele, cuja paridade com Deus se declara no
começo da carta, aprendiz de obediência! Isso excede nossa compreensão.” Contudo, é
possível urna exegese. Grosheide, por exemplo, vê,no aprendizado da obediência, não
alguma evolução ética, luas, sim, maturação “no cumprimento da função cristológica”.
Cada dia mais e melhor, Jesus compreendeu e cumpriu sua missão, O contexto, aliás, dá
razão a Grosheide. As palavras de Hb 5.7s se relacionam com o sofrimento no
Gelsêmane. Lá Cristo luta e ora: “Pai, tudo te é possível, passa de mim este cálice!” (Mc
14.36). Cristo evidentemente sofre uma paixão real; um anjo precisa confortá-lo (Lc
22.43). Referindo-se às angústias do Getsêmane, o autor de Hebreus nos apresenta a
este insigne “aprendiz de obediência”, sem cogitar em nenhuma transição da rebeldia à
obediência, mas simplesmente maravilhando-se ante o crescimento do Cristo dentro da
sua própria função. Já Hb 4.15 nos apresenta o Cristo tentado, tornado semelhante a nós,
mas sem pecado. E Hb 10.7ss ouve Cristo caracterizando-se a si mesmo com as
palavras: “Eis que venho; (porque de mim é que está escrito no texto bíblico) eu venho
para fazer, ó Deus, a tua vontade.” Declara Jesus que, entrando no mundo, pronunciou
estas palavras em cumprimento do Sl 40: sua vida é orientada totalmente para o Pai,
sendo objeto da Divina complacência. Não há, pois, lugar para a presumida oposição
entre o Cristo joanino e o Cristo de Hebreus. Na realidade, a carta aos Iiebreus nos faz
contemplar a vida de Cristo como de obediência a toda prova. Esta obediência, porém,
não é uma virtude estática, mas uma realidade dinâmica na vida diária do Filho do
Homem: este é levado de uma situação para outra, chamado a prestar, no progresso do
juízo de Deus, uma obediência renovadamente atual. Eis o que, com maior evidência,
devemos destacar na luta do Getsêmane, onde tão visivelmente percebemos angústia e
temor, e não menos a obediência e a resolução de esvaziar o cálice até o fim.
O drama da paixão é cumprido através das súplicas e do temor, das angústias e das
lágrimas. Hebreus não cogita numa transição da desobediência para a submissão. Cristo
aprendeu a obediência nesse caminho de dores: seu Pai ouviu as súplicas angustiadas do
Getsêmmiane, não retirando o cálice, mas tolhendo o medo mortal do coração daquele
para quem, afinal de contas, fazer a vontade do Pai constituía a maior felicidade (Jo
17.4).
Vere homo. Cristo foi verdadeiramente homem no caininho da compreensão de sua
paixão e da necessidade de obedecer. Sua obediência em trilhar o caminho de Deus não
foi uma disposição tranqüila, abstrata, escondida no fundo de sua alma; foi, pelo
contrário, urna esforçada marcha nesse caminho de julgamento, onde ele devia patentear
que carrega a culpa do mundo. Certamente antes do suplício Jesus podia já declarar:
“Eu te glorifiquei na terra: terminei a obra que me deste para fazer.” Nem por isso fica
menos real a grande paixão (passio magna), nem menos real a necessidade dele
aprender, Izie ei nunc, a obediência em meio da angústia e sob o temor do terrível juízo;
aprendizado inserido na genuína natureza humana de Jesus. No entanto, nada nos ajuda
a decifrar o mistério da Pessoa de Jesus; ficamos parados diante da palavra emocionante
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
110
“embora Filho de Deus’ Assim mesmo, sem sondar o mistério, somos colocados diante
da realidade da paixão do Senhor e é-nos permitido contemplar o caminho
verdadeiramente humano, que vai da paixão à exaltação. A simples palavra “embora
Filho de Deus” corta qualquer fuga para esta ou aquela forma de Docetismo. 1 Nenhuma
especulação sobre a natureza Divina pode iludir. Exclusivamente a reflexão
escriturística levar-nos-á ao reconhecimento de Cristo vere Deus et vere homo, deste
Cristo que se apresenta como garantia e redenção para seu povo e que, lutando e
vencendo dificuldades, seguiu até o fim o caminho da obediência.
***
As objeções contra nossa fé na impecabilidade de Crislo não enfraquecem, pois, o
testemunho das Escrituras: Cristo não conheceu pecado.
Nenhuma sombra empana a vida de Cristo, nenhum pecado ou vício ofusca o seu rosto.
Não se nos propõe nele um homem ideal, de extraordinário desenvolvimento humano, e
digno, portanto, de nossa imitação. Mas os testemunhos convergem em declará-lo Filho
de Deus que, embora vivendo verdadeira e autêntica vida humana, estava totalmente
voltado para a Vontade do Pai e, por este motivo, irradiava a luz da perfeita santidade
até nos momentos mais dolorosos de sua existência, O fato dele carregar OS pecados do
mundo nunca deslustra sua orientação pessoal para com o Pai; pelo contrário, é
carregando esta culpa que sua santidade resplandece. No mistério do Filho do Homem
vemos (luas coisas serem combinadas: a tremenda carga de todos os pecados e a
santidade imaculada; o inocente Cordeiro de Deus levando os pecados do mundo.
***
As Escrituras atestam tão evidentemente a santidade de Cristo que esta se impõe a nós.
Não obstante isso, nem sempre foi respeitada a fé da Igreja. Muitos, embora
reconhecendo na vida de Jesus uma santidade empírica, acreditam que ela, em princípio,
não passa da santidade de outros que, de progresso em progresso, elevaram-se à igual
altura. Eis por que podemos agora perguntar se devemos satisfazer-nos com a fé nesta
santidade empírica, ou seja, de fato, em Cristo. Não faltou quem se recusasse a ir mais
adiante da mera constatação desta santidade de fato, não admitindo a radical
impecabilidade de Cristo. Como conciliar esta impossibilidade absoluta de pecar com a
tentação de Cristo no dleserto, logo no início da vida pública?
Mesmo admitindo que Cristo triunfasse da tentação, houve autores que ressaltaram que
o mesmo fato da tentação supunha uma alternativa real entre duas escolhas concretas,
entre a fidelidade e o pecado, não se concebendo significação qualquer para uma prova
da qual fosse ausente essa mesma alternativa entre o bem e o mal.
Nosso ponto de partida será a Escritura, que, enfaticamente, narra-nos uma tentação
real. E por certo não se trata de um evento casual, devido à iniciativa do Maligno: o
Evangelho declara que o Espírito de Deus impeliu Jesus para o deserto a fim de ser
1
No Theol. Wörterb. de Kittel, IV, pág. 413, Manthano, ataca-se o conceito nosso de um
“desenvolvimento” de Jesus. Não percebemos qualquer razão para eliminar este elemento da Cristologia.
Comentando Hh 5.7s, Rengstorf, escreve: “É com plena lucidez e liberdade e sem a menor resistência que
Cristo entrou na sua paixão e morte, porquanto as Escrituras e, mediante elas, o próprio Deus, indicaramlhe este caminho como o mais apropriado à sua missão.” K. Schilder, mais explicito, declara: “Cristo,
corno portador de uma vida natural e criada, estava sujeito à lei da instabilidade e à necessidade de
aprender. Cristo era fiel, constante, porém não imóvel, nem petrificado (Theol. Wörterb. II 581).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
111
tentado pelo demônio (Mc 1.12). O aconteciniento é, sem dúvida, de capital
importância, pois Lc 4.1 declara que, neste instante, Jesus estava “cheio do Espírito
Santo”. Para abrir o caminho, acrescentemos que a duração da estada de Cristo no
deserto, a diversidade das acometidas satânicas, e, posteriormente, o serviço dos anjos
não são óbice à seriedade da tentação: não faltaram, pois, tentativas de subestimar com
semelhantes alegações a profundidade da luta de Cristo. Os dados da Escritura são
sóbrios: Cristo foi tentado pelo Maligno, triunfou da tríplice arremetida, protegendo-se
com um tríplice “está escrito”.
A Escritura conclui o episódio com as seguintes palavras: “Depois de tê-lo assim
tentado de todos os modos, o demônio apartou-se dele até outra ocasião.” Não foi, pois,
o fim das tentações de Jesus. Mais adiante ouviremos Jesus declarar: “Aí vem o príncipe
deste mundo, mas ele não tem nada em mim” (Jo 14.30). Não podemos limitar a
tentação à tríplice luta do deserto. Na hora suprema, Crislo dirá aos seus: “Vós sois os
que tendes permanecido comigo nas minhas tentações” (Lc 22.28). Todo o caminho da
paixão foi pontilhado de tentações: “Tem compaixão de ti, Senhor”, suplica Pedro, “isto
de modo algum te acontecerá” (Mt 16.22). Para o Senhor, a tentação satânica estava na
voz de Pedro: “Afasta-te, Satanás, tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não
são de Deus, mas dos homens” (Mt 16.23). Satanás, para colocar a pedra de tropeço no
caminho doloroso de Cristo, lançou mão de Pedro. Certamente, Cristo triunfa também
aqui, não deixando a Satanás qualquer base para construir um dique contra o
messianismo doloroso em marcha. Mas a realidade da tentação aparece, bem evidente,
contra o fundo do sofrimento que se podia evitar dando ouvidos ao Tentador.
Entretanto, impressionados pela insistência bíblica em fazer-nos ver Jesus tentado,
certos teólogos concluem que não podia ser outra a vida do Cristo senão esta, colocada
na encruzilhada e na alternativa da tentação, tendo implicitamente o poder de optar pelo
pecado: embora não tivesse de fato pecado, ele podia, em si, pecar. Para apoiar sua
opinião, citam 11h 4.15: “Temos uirz pontífice capaz de compreender nossas fraquezas,
porquanto passou pelas mesmas provações que nós, fora o pecado, e foi tentado em
todas as coisas” (2.17s). Queni experimentou a tentação é magnânimo para com os
fracos. Eis por que Cristo está perto de nós, os que somos provados. Neste contexto,
pode-se falar de urna memória consciente que faz Cristo lembrar-se da força da
tentação, outrora experimentada em carne própria. Sendo assim séria a tentação, como
poderíamos reduzir a santidade de Cristo a uma impecabilidade a priori? Porventura,
ela não é antes um perpétuo ato de Cristo na encruzilhada dos riscos da vida dando
provas de ser o Santo?
Windisch opôs-se fortemente à impecabilidade absoluta de Crista. Eis como ele
comenta o texto aludido: “Dado que Jesus, em virtude de ter experimentado o peso e
malignidade das tentações que nos afligem, pode compadecer-se de nossas fraquezas,
preciso é que ele tenha tido o poder de seguir os estímulos da tentação, o posse peccare,
e que tenha tido o mérito de não anuir ao pecado, de preferir a fidelidade ao abandono.”
Em outros termos, se Cristo se guardou do pecado, isso não se deve a uma
impecabilidade de natureza, mas à vontade de resistir ao mal a despeito de sua
pecabilidade de fato. “Que Jesus não pecara, não se deve à sua natureza Divina, mas à
sua luta consciente e perseverante.” Para Windisch, essa opinião é o corolário
necessário do fato bíblico que Cristo se assemelhou a nós em todas as coisas.
Tropeçando então com a dificuldade de conciliar pecabilidade e origem Divina em
Cristo, Windisch escapa desajeitadamente: “O autor da Carta aos 1—lebreus foi infeliz
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
112
na formulação do conceito da Encarnação. Este conceito agrada apenas a Lógica e a
Psicologia modernas, satisfazendo-lhes a necessidade de uniformidade intrínseca.”
Seja como for, Windisch considera ineludível a conclusão da pecabilidade de Cristo,
corolário de suas tentações. Tal maneira de argumentar prova, evidentemente, que
Windisch examina o assunto de maneira abstrata, sem considerar o mistério de Cristo.
Do fato da tentação conclui a pecabilidade, corno se se tratasse de uma verdade em si,
aplicável a qualquer homem. No entanto, o texto em foco considera precisamente o
mistério da Pessoa de Cristo, e, por esta razão, renuncia as especulações caras a
Windisch.
Conforme Windisch, a pecabilidade é o corolário necessário da tentação: sem
pecabilidade, a que serviria a tentação e qual seria o seu sentido? A tentação só tem
sentido na encruzilhada da opção possível e da decisão livre, quando ninguém sabe a
priori o desfecho da luta.
Os problemas em causa são muito importantes. Defrontam-nos outra vez com o dilema:
aceitar irrestritamente a pecabilidade natural de Cristo, ou eliminar de sua vida a luta e a
tentação. Schleiermacher abraça a última opinião: partindo da impecabilidade de Cristo
e de sua perfeição absoluta, estima que o desenvolvimento do Senhor se processou sem
luta, “porquanto não é possível que alguma lula interior ocorra sem deixar vestígios”.
Schleiermacher, entretanto, ignora o testemunho evidente da Escritura, que insiste na
luta de Cristo. Na procura do equilíbrio entre iinpecabilidade de Cristo e tentações de
Cristo, outros tomam por ponto de partida a nossa condição humana: somos tentados e
podemos pecar; nosso coração é sempre um tanto cúmplice da tentação, resultando dai
que o pecado, o mal e a pecaminosidade nos acompanham toda a vida. Isso nos impede
de (lar a devida importância àquilo que é único em Jesus Cristo, à Santidade tentada: a
pedra de tropeço insidiosamente posta no caminho messiânico, para impedir-lhe a
ascensão à cruz redentora. A luta em Jesus Cristo é muito real, como vemos na agonia
do Getsêmane. Nela nada observamos próprio do herói que, superando todas as nossas
expectativas, angústias e incertezas, persevera impávido no seu roteiro impassivel.
Razão por que a opinião de Schleiermacher não encontrou favor, e, sim, a de Windisch,
que entrou na moda: a realidade da tentação e a pecabilidade em si de Jesus Cristo
seduzem mais nossa sensibilidade humana. Os partidários de Windisch não titubeiani
em diminuir a própria Santidade de Cristo, conforme a gravidade das suas tenlações.
Assim Althaus, embora reconhecendo a inexistência de culpa no Cristo, insiste na
relação ineludível entre tentação e pecabilidade. Em conseqüência de sua humanidade,
Cristo tinha em comum conosco a inclinação arbitrária contra Deus e o egoísmo hostil
ao próximo, inclinação inerente à sua natureza e não apenas aparente ou exterior (a
tentação vindo de fora, não é tentação, desde que não se fundamente em alguma raiz
humana, em algum estímulo interno rebelde contra Deus); quem considera esta
inclinação rebelde como pecaminosa, certamente não evitará de reconhecer ipso facto a
pecabilidade de Cristo. Jesus experimenta o estimulo hostil a Deus de modo tão
poderoso que, cônscio de poder pecar, refugia-se em Deus orando. Se bem cumpre falar
da vitória da oração, não cabe idealizar uma natural impecabilidade em Jesus: sua
obediência é fruto da vitória sobre si mesmo e sobre a sua rebeldia espontânea.
Acrescentemos a este raciocínio o adereço da Psicologia, e estaremos em pleno campo
do desejo, da insurreição e do pecado. Quer dizer, estaremos bem longe dos
testemunhos escriturísticos que, certamente, não aludem apenas a uma vitória final
sobre desejo, rebeldia e pecado, mas afirmam uma santidade absoluta, subjetiva e
objetiva, interna e externa, constante e inalterável na vida de Cristo.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
113
***
O Evangelho demonstra que esta santidade não suprime as emoções, temores, angústias
de Cristo, nem seu desejo da glória já desfrutada junto ao Pai, antes do mundo existir.
Mas em todos estes sentimentos não aparece relutância alguma entre sua íntima
disposição de afastar o cálice e a vontade do Pai. Invariavelmente as Escrituras se
referem às lutas e tentações do Senhor, vinculando-as ao fato de que ele, precisamente
em sua qualidade de homem sem pecado, carregara as culpas do mundo. É exatamente
na condição de Varão sem pecado que Cristo participa dos pecados de seu povo.
Essa vinculação é especial e evidenciada com particular força na agonia de Getsêmane,
quando Cristo ora para que lhe seja passado esse cálice. À primeira vista, parece que
presenciamos um antagonismo entre a vontade de Jesus e a vontade do Pai; até a própria
expressão faz distinção entre as duas vontades: “Não a minha vontade, mas a tua.” Mas,
o extraordinário é que, precisamente neste momento e nesta frase do Senhor, a vontade
de Jesus acata com extrema prontidão a vontade do Pai. Sem dúvida alguma, Jesus
consegue triunfar mediante a oração, mas — e aqui contrariamos a teoria de Althaus —
a vitória de Cristo mediante a oração reveste-se de índole inconfundível e única, bem
visível no próprio ritmo da narração. De início, Jesus implora: “Meu Pai, se é possível,
passe longe de mim este cálice! Todavia, não se faça o que eu quero, mas, sim, o que tu
queres.” Voltando a orar uma segunda vez, exclama: “Meu Pai, se não é possível que
este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade!” (Mt 26.39-42). Analisemos
as respectivas proposições principais de ambas as orações: a primeira solicita que seja
passa(lO esse cálice, a segunda que se faça a vontade do Pai. Ritmo bem revelador da
luta de Cristo mártir e de seu progresso.
Progresso explicável — já que não plenamente compreensível — unicamente pelo fato
de Cristo, em virtude de ser o homem sem pecado, ter tomado sobre si os nossos
pecados em caráter substitutivo. Por esta razão é que sua luta constitui evento único:
Getsêmane e suas tensões, a paixão e suas circunstâncias só tomam significação e
tornam-se compreensíveis através do “ser sem pecado.” Cristo tem uma função
diferente de qualquer outra: a função de sofrer a pena, salário do pecado. Eis por que,
psicologicamente, nunca poderemos devassar a luta de Cristo. Eis por que erra quem
insiste em descobrir uma tensão entre a Santidade ou o Ser-sem-pecado e a tentação.
Entenderá, embora impcrfeitamente, quem considerar os fatos do Getsêmane através da
reconciliação e da substituição messiânica. Nada de inipassibilidade, mas tristeza e
temores e orações insistentes. O cálice é absolutamente autógeno, quer dizer, transborda
de pecados alheios; e quem o propicia ao Varão sem pecado é o próprio Pai. O Pai
abandona o grande lutador; os últimos resplendores da Divina comunhão parecem
apagar-se para o Varão de Dores, o qual sai dessa luta tremenda com a evidente
disposição de encarar a fase final de sua via crucis. “Eis que é chegada a minha hora!”
***
Assim torna-se possível compreender — ou pelo menos vislumbrar — a impecabilidade
de Cristo. A teologia, tanto reformada quanto católica romana, raciocina a partir da
união hipostática e conclui que a impecabilidade de Cristo decorre do fato da união
pessoal que faz de Jesus Cristo um verdadeiro homem e um verdadeiro Deus.
Escutemos aqui as proposições de ambos os ramos do Cristianismo, na formulação
típica de alguns de seus melhores teólogos.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
114
Entre os católicos domina a conclusão seguinte: “A união pessoal de Jesus com o Verbo
Divino constitui como que uma Santidade Substancial” (Philips). “A impecabilidade de
Cristo deriva da impecabilídade de Deus” (Winkler). “Cristo só podia ter pecado por
uma oposição livre de sua vontade contra a vontade de Deus. Ora, isso é impossível,
porquanto o conteúdo da vontade de Deus é precisamente a vontade do Verbo. Deus terse-ia levantado contra si mesmo, o que é absurdo” (Bartmann). Aos que consideram
possível o pecado em Cristo, porquanto a humanidade comporta a pecabilidade,
Barlmann responde que não compreende como eles têm a coragem de antepor essa tese
antropológica à tese teológica. Schmaus argumenta a paitii’ do único “Eu” de Cristo:
“Embora dlotado de vontade humana livre, Cristo não é um ‘Eu’ humano, mas um ‘Eu’
Divino. O ‘Eu’ Divino é o responsâvel lor todas as iniciativas de Cristo”. Pohle
considera a questão da impecabitidade e da liberdade de Cristo como inu problema
abismal da teologia: “Se Cristo não tivesse liberdade, sua morte não teria mérito; mas se
tem liberdade, pode inclusive revoltar-se.”
Para os reformados, mais ou menos os mesmos argumentos têm valor. Segundo Kuyper,
em Cristo houve a possibilidade de pecar (exatamente como em Adão antes da queda).
Mas, urna vez que Cristo revestiu, não uma pessoa humana, mas só urna natureza
humana, nunca houve nele um “eu” humano que pudesse realizar tal possibilidade de
pecar: sua natureza humana, eternamente ligada à Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, não podia jamais tornar realidade a mera possibilidade de pecar. Bavinck não
se satisfaz com a impecabilidade empírica, admitida por todos, e exige uma
impecabilidade necessária: “Cristo é o Filho de Deus, o Logos que estava no princípio
com Deus e era Deus. Cristo é um com o Pai, cumpre sempre sua vontade e faz sempre
suas obras. Para quem crê nessa revelação, a pecabilidade de Cristo é um absurdo, pois,
neste caso, Deus poderia pecar, o que é blasfêmia. Admitir a pecabilidade de Cristo é,
praticamente, negar a união hipostática das duas naturezas.”
Essa opinião clássica encontrou veemente adversário em H. Vogel. Vogel rejeita a
impecabilidade, atributo natural ou hipostático de Cristo, “calcanhar de Aquiles” da
ortodoxia. A impecabilidade de Cristo em nada tem a ver com a impecabilidade Divina,
mas é simplesmente a impecabilidade da Pessoa de Cristo, impecabilidade não
metafísica nem necessária, mas contingente e ligada à vontade do Pai de nos dar — nele
— o Salvador, o reconciliador sem mácula. Vogel critica a posição ortodoxa, porquanto
ela considera a impecabilidade como uma dedução lógica da Divindade de Cristo. A
crítica não procede: a opinião ortodoxa não é uma dedução da lógica que dseorre
abstratamente sobre a Pessoa de Cristo. Contudo, a crítica de Vogel foi provocada,
evidentemente, por intemperanças vçrbais, principalmente católicas: freqüentemente
falando do Cristo, sujeito Divino, “Eu” Divino unicamente responsável, consideramos
simplesmente a natureza abstrata, e não a Pessoa de Cristo, o Filho de Deus feito
carne. O erro da posição ortodoxa não está em ver, na impecabilidade de Cristo, um
coroláiio da união hipostática; errada é a teoria desta união, impregnada de lógica e de
metafísica. de apriorismo e de dogmatismo. Cada vez mais a teologia reformada procura
fugir da teorização e da abstração. Nas conclusões católicas romanas, quanto à natureza
Divina de Cristo, bem mais do que nas conclusões luteranas e reformadas, vemos graves
problemas surgirem em torno de tudo o que diz respeito a crescimento, ciência,
sofrimentos, tentações e lutas na vida terrestre do Salvador. Aliás, tivemos oportunidade
de denunciar este mal em páginas anteriores.
Assim mesmo, o raciocínio de Vogel aponta, certamente, para um elemento não
negligenciável e que nos servirá de adverlência contra a teorização de nossa fé na
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
115
impecabilidade de Cristo: a santidade de Cristo, bem como sua vitória sobre a tentação
são idéias biblicas, integrantes da Revelação. Na vida de Cristo há um mistério de
santidade e de impecabilidade que devemos sustentar, em união com a Igreja, contra
todos os negadores. Devemos munir-nos contra qualquer mania de abstração, para
confessarmos eficazmente a impecabilidade de Cristo, sem prejuízo da realidade de suas
tentações. Guardando-nos do prurido teorizante, atingiremos uma visão cada vez mais
elevada da impecabilidade de Jesus Cristo. Esta inpecabilidade não é uma qualidade
metafísica, logicamente endossável; pelo contrário, é o ato permanente de Cristo. Cristo,
misteriosamente, não pode pecar. Em virtude de seu amor e de sua misericórdia, triunfa
constantemente sobre a tentacão: ato permanente, inseparável de sua obra mediadora.
A tentação do deserto, biblicamente vista, não é mera tentação ética, mas tentação
messiânica, que visa desviar Cristo do caminho da humilhação. “Todas as três tentações
são relacionadas com a missão messiânica que intentam alterar” (Riccioti, Vida de
Jesus). Foiapema tentação, cujo desenlace seria de vida ou de morte_paraçção
messiânica do Cristo. A vontade de Deus, entretanto, estava diante dele, o seu alimento
de cada dia. Sob esta luz vislumbramos a impecabilidade de quem não podia furtar-se
ao caminho dos sofrimentos e humilhações. Não podia furtar-se, porque não queria
fazê-lo: destarte, não podia pecar. É preciso entendermos esta palavra “poder”, como
entendemos a zombaria famosa: “Salvou a outros, a si mesmo não pode salvar-se” (Mt
27.42). O seu não-poder pessoal não é outra coisa senão a plena e inabalável disposição
de obedecer, e obedecer até a morte. Não pode desistir de seu amor, não pode deixar de
ir até o fjm, de ser até o fim o ato permanente de santidade. Quando mencionamos a
impecabilidade do Senhor, pensamos, sem dúvida, na lei Divina, nunca transgredida por
ele, mas não podemos deixar de lembrar que, biblicamente, esta santidade inalienável
está vinculada à sua obra de Mediador; a tentação de Cristo não é uma tentação vulgar,
mas, evidentemente, uma tentação vinculada com a glória final (Jo 12.27s). “A custo de
sofrimentos tão múltiplos e profundos, perseveraria ele na sua missão messiânica, no
seu empenho salvador e na sua carreira redentora?” (Bavinck, Dogm. III, 300. Cf Hb
2.18; 4.15).
A impecabilidade do Senhor só tem sua explicação geimína no permanente ato redentor
e na inabalável disposição do Cristo. Este não é outro argumento a favor da santidade
indefectível, acrescentado ao argumento tirado da unio personalis, mas é o mesmo
argumento, bem perceptível na intenção íntima da teologia ortodoxa: “Cristo, Pessoa
Divinohumana, que veio para fazer sua Obra, vence a tentação pessoalmente, num ato
indefectível de santidade; vence a tentação de desistir do sofrimento.”“Presentemente, a
minha alma está perturbada. Mas, que direi?... Pai, salva-me desta hora... Mas é
exatamente por isso que vim a esta hora” (Jo 12.27). Este angustiado “Que direi eu?”
não revela hesitação, pois que, imediatamente antes, Jesus anunciava, com meridiana
clareza, sua morte fecunda: “Se o grão de trigo não morrer. . . “, mas manifesta a
grandeza de sua luta e de sua decisão de tomar até o fim o cálice de amarguras. Quem
ainda poderia afirmar que, em virtude de sua impecabilidade, fica suspensa a realidade
da tentação e da luta? A Escritura não conhece o dilema — tão difícil para Pohle! —
entre impecabilidade e liberdade no Cristo; pelo contrário, ressalta a voluntariedade
irrestrita especialmente manifesta na sua impecabilidade. Também o texto sagrado não
trata do conceito de liberdade soberana em Jesus Cristo, cuja liberdade está em cumprir
plenamente a vontade do Pai, e não numa alternativa neutra entre duas possibilidades
contrárias. A tentação; entretanto, a tentação, atrozmente real, torna manifesta e gloriosa
a santidade de Cristo.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
116
Não podemos esquecer a fé que Jesus tinha na “necessidade” de seu triunfo. Sem,
entretanto, afirmar coisa alguma fora da revelação, o que Deus nos revela da Pessoa e
da Obra de Cristo bem pode traduzir-se, teologicamente, da seguinte maneira: em Cristo
Divindade e humanidade integram uma Pessoa Divina para salvação. A teologia que
conclui da unio personalis a impecabilidade de Cristo não erra, com a condição,
evidentemente, de não raciocinar abstratamente, pois esta conclusão está incluída
diretamente na Revelação sobre Cristo. Como seria, então, o “calcanhar de Aquiles” da
teologia?
De fato, na união hipostática, a teologia não expressa qualquer especulação teórica em
torno da integraçío de uma natureza Divina impecável e de uma natureza humana
falível, mas formula o ato concreto daquele que, tomando a forma de servo, não
guardou para si a glória de Deus, e, sim, pelo contrário, humilhou-se até morrer, e
morrer na cruz. O próprio Cristo, para indicar a necessidade deste ato concreto, disse:
“Porventura não convinha que o Cristo padecesse e, desta maneira, entrasse na sua
glória?” (Lc 24.26). Nã podia ser de outro modo, não havia outro caminho para evitar a
paixão. Mistério de santidade e de misericórdia! Cristo não podia cair na tentação, nem
de fato caiu: não por ter-lhe faltado a liberdade, mas precisamente por causa de sua
liberdade, que era uma liberdade para as coisas de Deus, para os planos Divinos de
salvação e libertação dos homens. “Ora, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de
passar deste inundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os
até o fim” (Jo 13.1). No seu caminho de amor, Jesus não pode salvar-se a si mesmo,
mas apenas aos outros; não pode furtar-se à sua missão, mas, como cordeiro, se deixa
levar à morte e, como ovelha muda perante os tosquiadores, não abre a boca (Is 53.7).
Por todos estes motivos, a Igreja inclui no seu credo a impecabilidade de Cristo,
entenda-se, a impecabilidade de fato: Cristo não pecou, e a impecabilidade de direito:
Cristo não podia pecar. Esta não é uma conclusão lógica, comportando o corolário de
que a Paixão só foi aparente. Pelo contrário, é exatamente no fato de Cristo não poder
pecar, que a Igreja vislumbra o mistério de Cristo, a unio personalis, e reconhece o
motivo da Encarnação: 2 “A Encarnação, escrituristicamente falando, só foi motivada
pelo pecado” (Kuyper, Loci III, 3). No seu amor, fiel até o fim, generoso até a morte na
cruz, encontramos a chave de todos os enigmas: Cristo venceu qualquer tentação com
soberana liberdade, através de lutas, angústias e tristezas muito reais — impecabilidade,
fonte de consolação para a Igreja e objeto de seu testemunho mais valioso. Este
evangelho pode pregar-se a todos os povos.
***
Por ocasião da prisão de Jesus, Pedro sacou da espada. A espada de Pedro pretendia
abrir um caminho de escape ao Servo Sof redor. O mesmo Pedro, já outrora
inconsciente instrumento de Satanás, quis salvar o Senhor e levá-lo por caminhos
triunfais: “Isto não há de acontecer de modo algum, Senhor!” Mas Jesus, firmemente,
ordenou-lhe que enfiasse novamente a espada na bainha. Jesus perseverava, pois, na sua
decisão clara e delineada, a despeito dos homens e das sugestões do tentador. Na
ocasião, acrescentou estas palavras reveladoras: “Crês tu que não posso rogar a meu Pai
e ele não me enviaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26.53).
Não faltou quem, a propósito deste texto, reabrisse o debate. “Cristo aqui está a falar da
possibilidade de outra solução, inclusive com a anuência e a ajuda do Pai.” O contexto,
2
O motivo da Encarnação será tema que trataremos no livro sobre a Obra de Cristo.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
117
entretanto, demonstra claramente que tal alternativa não entrou na cogitação de Jesus
Cristo. O vencedor da batalha do Getsêmane presencia como o auxílio bem
insignificante de Pedro pretende agora abrir-lhe uma porta de escape para fugir do
caminho da cruz. Contra essa nova e supreina interferência do discípulo obcecado é que
Cristo fala. Fala, porém, em linguagem que este discípulo — nesta situação —
compreenderá, lembrando-lhe o grande poder de Deus, que dispõe de todas as coisas e
perante quem o auxílio de Pedro e sua espada se dissolvem no ridículo. Nada aqui
insinua uma repetição da luta do Getsêmane; claras e convincentes são as palavras
acrescentadas imediatamente a seguir, pelo mesmo Jesus: “Como se cumpririam então
as Escrituras, segundo as quais é preciso que seja assim?” (Mt 26.54). Isaías 53
profetizou este caminho do Varão de Dores, esta vontade de Deus a respeito da vida e
da morte do Ungido. Jesus, plenamente cônscio de cumprir as profecias, voltando-se
para as turbas, declarou: “Saístes armados de espadas e cacetes para prender-me, como
um malfeitor... mas tudo isto acontece para que se cumpram as palavras dos profetas”
(Mt 26.56). No meio desta terrível angústia, das espadas e dos bastões; Jesus se guardou
fiel e, abandonado por seus discípulos, continuou sozinho seu caminho de amargura.
***
As confissões eclesiásticas são explícitas quanto à santidade de Cristo. Os primeiros
concilios não deixam de insistir na perfeita inocência do Senhor. Ouçamos o seguinte
anátema, pronunciado em Éfeso (431): “Anátema seja quem disser que Cristo se
ofereceu em sacrifício também por si mesmo e não exclusivamente por nós, porquanto
não precisava de oferenda aquele que não conheceu pecado algum.” Os Padres de
Calcedônia (451) fazem suas as palavras paulinas: “Cristo se fez semelhante a nós em
tudo, salvo no pecado.” A influência de Calcedônia foi decisiva sobre a Cristologia. O
Concílio de Florença declara que “não houve jamais ninguém, entre os filhos de homem
e mulher, que fosse salvo do domínio de Lúcifer, a não ser pelos merecimentos do
Mediador Único, Jesus Cristo, o qual foi concebido, nasceu e morreu sem pecado”.
Os símbolos protestantes de fé conservam a mesma confissão. O Catecismo de
Heidelberg, tratando das duas naturezas de Cristo, proclama que este era o justo; na
meditação do 14.° Domingo, considera-se expressamente a Santidade do Cristo,
semente de Davi, semelhante a nós em tudo, exceto o pecado. Esta mesma cláusula,
“exceto o pecado” encontra-se nos artigos 18 e 26 da Confessio Belgica. As confissões
reformadas citam abundantemente as Escrituras, raramente usam a dedução dogmática,
preferem a repetição monótona e às vezes doxológica dos textos mais claros da
Escritura Sagrada. Reina a mais profunda unanimidade em declarar Cristo puro de todo
pecado e em vincular esta pureza com a sua função reconciliadora: “É imprescindível
que o Mediador da nova aliança e o Reconciliador sej a um homem genuíno, livre de
toda mancha, quer seja de pecado original ou de qualquer outro pecado...” (Confissão
húngara). Nunca essas Confissões de fé nos propõem Cristo como um homem ideal,
exemplar, altamente perfeito e digno de admiração, mas como o Santo, puro de mancha,
desincumbindo-se de nossa redenção.
Um estudo comparativo dos símbolos protestantes nos deixa maravilhados diante da sua
concordância tanto nas expressões quanto no seu apelo às Escrituras. Mais admirável
ainda é que esta concordância reina até em todas as Confissões cristãs, reformada,
luterana, católica, anglicana. Evidentemente a Igreja rendeu-se à evidência da Escritura,
que nos retrata um Cristo imaculado, embora desconhecido e objeto de escândalo. No
entanto, o acordo nos termos e nas citações nem sempre acarreta uma concordância total
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
118
e perfeita na fé. Esta perfeita harmonia na fé só reinará quando todos confessarmos o
Cristo imaculado, segundo o sentido das Escrituras. Pois, quando nos desligamos da
Escritura,para dar crédito a antropologias e psicologias, bem poderemos repetir, até nos
saciarmos, que Cristo não sucumbiu à tentação, mas nem por isso evitaremos de
diminuir Cristo. Colocando a santidade de Cristo em termos humanos e em ambientes
humanos, rebaixamos Cristo. Lembremos ainda, como a Igreja romana professa, Maria
concebida sem pecado ao lado do Cristo sem pecado e compreenderemos que o
significado dessa cláusula “sem pecado” só será percebida à luz de todo o testemunho
bíblico. A santidade de Cristo, assim vista à luz total da revelação, nunca poderá ser um
simples ideal ético, nem poderá ser descrita com palavras tais como consagração,
devoção ou semelhantes. A revelação nos fala do mistério daquele que foi feito pecado
para nos salvar do pecado. Somente à luz da correlação, “feito pecado para salvar do
pecado”, é que confessaremos a imaculada santidade de Cristo. Esquecida esta
correlação (onipresente na Bíblia), talvez por alguns instantes fiquemos impressionados
com o quadro da vida terrestre imaculada de Jesus, mas nada entenderemos do
testemunho evangélico a este respeito. O homem possuído de um espírito imundo (Mc
1.24) exclama, em plena sinagoga de Cafarnaum: “Que temos nós contigo, Jesus de
Nazaré? Vieste para perder-nos. Bem sei quem tu és: tu és o Santo de Deus.” Este
reconhecimento do Santo de Deus, nada tem a ver com a fé na santidade de Cristo.
Satanás não entende como Cristo foi feito pecado para, nesta condição, vencer toda
tentação e cumprir toda a justiça, em perfeita obediência ao Pai. “Riu vez do gozo, que
se lhe oferecera, Cristo suportou a cruz” (Hb 12.2).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO XI - UNIDADE DA PESSOA
Sumário
Qual o caráter da união hipostática? — Dividem-se luteranos e calvinistas —
Communicatio idiomatum — Lutero e a teoria da ubiqüidade — monofisita o
Luteranismo? — Efeitos da união hipostática — Docetismo? — A mixtio luterana —
Formula Concordiae — A Cristologia luterana em dificuldade — Postulado calvinista
— Intenção luterana — Irreconciliáveis? — A alloeosis de Zwínglio — Deus sofreu e
morreu — Simples idioinatsmo? — Tg 1.17 — Como fogo no ferro — Conclusões
sobre a Formula Concordiae — Perichooresis — Mixtio, sim; confusio, não — Calvino
espiritualista? — Tem Calvino a chave do problema? — Calvino não é doceta, mas será
nestoriano? — Resposta de Korff — Catecismo de Heidelberg: 18.° Domingo —
Advertência de Koopmans — Calvino comenta At 20.28 — A fidelidade de Calcedônia
acarreta o inconveniente de ser tida por Nestorianismo — O limitado não comporta o
ilimitado — Pode Cristo ser adorado? — Maria proclamada “mãe de Deus” —
Theolokos visto no seu contexto literário e histórico — Hans Asmussen duvida —
Distanciou-se o Protestantismo da fé antiga? — A comunicação dos atributos, atos e
dons em Jesus Cristo Abstração em Cristo não cabe — Tudo é atribuído á Pessoa viva
do Cristo — À procura de analogias — O mistério humano: alma em corpo — A
fortuna de uma analogia famosa — A unicidade da Encarnação — A concupiscência da
imaginação — As Escrituras ignoram o problema e conhecem a Pessoa.
Temos discorrido em torno das duas naturezas de Cristo. Resta-nos encarar o problema
de como ambas as naturezas se relacionam e se comportam na unidade da Pessoa. A
despeito desta tarefa parecer uma problemática puramente abstrata e teórica, na
realidade ela é uma reflexão sobre os dados da Revelação bíblica relativos à Pessoa de
Jesus Cristo ou uma continuação necessária de nossa empresa inicial: examinar a antiga
confissão que declara Jesus Cristo ser vere Deus et vere Homo e compreender o que a
Igreja entendia com esta definição. A Igreja tinha plena consciência de que, nessa
confissão, tratar-se-ia de um mistério imperscrutável, muitas vezes proclamado por
Paulo e, portanto, não totalmente refratário a alguma formulação. O sujeito desse
mistério é a Pessoa viva de Jesus Cristo: ela é o conteúdo desta confissão de fé. Isso
obrigou a Igreja a refletir constantemente, aliás, instigada por heresias multiformes,
sobre a formulação de sua fé sem prejuízo do mistério insondável. Assim, Calcedônia
expressou que a união pessoal das naturezas humana e Divina de Cristo se realizou
asynchytôs, atreptôs, adiairetôs, achoristôs, inconfundivel, imutável, indivisível e
inseparavelmente, ou seja, sem que resulte confusão, mudança, divisão e separação
entre as duas naturezas, ambas conservando seus respectivos atributos. Naturalmente,
devia surgir toda espécie de perguntas, uma vez que, admitidas duas naturezas, não se
reconheciam duas Pessoas ou sujeitos, mas uma única Pessoa (hipostasis, em grego),
um único sujeito de atribuição para todas as ações do Cristo. Em Cristo, reconheceu a
Igreja duas naturezas unidas hipostaticamente, ou seja, duas naturezas na unidade de
uma só Pessoa. Daí a controvérsia, entre luteranos e calvinistas primitivos, em torno da
índole desta união, e conhecida na teologia como problema da communicatio
idioimatum (comunicação dos atributos ou propriedades). A teologia luterana como que
“fincava o pé” na onipresença da natureza humana de Cristo, inseparável da natureza
Divina: postulado que desempenha papel principal na doutrina da Santa Ceia. Não
podemos, aqui, entrar nos pormenores desta luta. Sendo, porém, o problema de extrema
gravidade, examiná-lo-emos por alto, mas com interesse, uma vez que, desta discussão,
o conceito reformado da communicatio idioimatum saiu esclarecido.
120
Deixemos de lado a antiga pergunta sobre se Lutero formuloti sua doutrina da
“ubiqüidade”, com o fito de corroborar sua doutrina da presença real eucarística, ou se
a ubiqüidade é um conceito autônomo da teologia. Por muito que as opiniões divirjam
quanto à origem da doutrina da “ubiqüidade” ou onipresença da natureza humana de
Cristo, uma coisa é certa: Lutero foi um adepto fervoroso da mesma. O problema,
evidentemente, transcende às peculiaridades de um conflito teológico, uma vez que
afeta o caráter da união das naturezas na Pessoa de Cristo, bem como o significado dos
atributos de ambas as naturezas.
Não ignoramos que é preciso ter uma prudência extrema na narração de um conflito que
opôs o dogma luterano ao dogma calvinista. Em qualquer hipótese, pecaria por injustiça
quem afirmasse que a doutrina da communicatio idioimatum é monofisita em si,
reclamando a mistura dos atributos. Os luteranos deram provas suficientes de repudiar
explicitamente o Monofisismo. Repetidas vezes foram acusados de tendências
monofisitas; seja o que for, permaneçamos atentos aos textos, principalmente à Formula
Concordiae luterana.
De início, observemos que carece de sentido opor ambas as confissões, como se a
luterana tivesse admitido a communicatio idioimatum e a reformada a tivesse rejeitado.
Isso é tão falso como afirmar que ambas não admitiam por igual a presença real de
Cristo na Santa Ceia. Bavinck discerne, com muita perspicácia, que a discrepância só
visava os efeitos da união hipostática. Os luteranos ensinavam que “as propriedades de
ambas as naturezas se comunicam à Pessoa do Cristo e, além disso, os atributos da
natureza Divina se comunicam à natureza humana.” Corolariamente, a natureza humana
de Cristo foi elevada à onipotência, onisciência e onipresença Divina. Em virtude de tal
comunicação de atributos Divinos à natureza humana — critica Bavinck — qualquer
efusão carismática de dons perde seu sentido em Cristo: “A teologia luterana não tem o
direito de falar, como o faz, de dons e carismas em Jesus Cristo, pois ela nem deixa
lugar para Cristo ser ungido com o Espírito Santo.” Coisa ainda mais funesta, ela
introduz um elemento docetista na Cristologia: “Não há mais explicação para o
desenvolvimento humano de Cristo.” A teologia calvinista, pelo contrário — sempre a
juízo de Bavinck — foi bem mais feliz na consideração da união bipostática, coisa
evidente, em particular, na sua doutrina da genuinidade da natureza humana em Cristo.
A doutrina luterana, misturando ambas as naturezas, devia ser vencida pela doutrina
calvinista. Calvino, embora respeitando plenamente a unidade pessoal de Cristo, exigia
para a natureza humana, hipostaticamente assumida, toda a limitação humana: Finitum
non est capax infiniti — o finito nunca poderá encerrar o infinito.
Desta maneira, a teologia calvinista evitou o Nestorianismo e reclamou a autenticidade
de ambas as naturezas, sem dissociar a unidade da Pessoa.
A pergunta de maior importância, entretanto, é a seguinte: A communicatio idioimatum
luterana acarreta de fato ou não acarreta — a mistura das duas naturezas em Cristo? A
famosa Formula Concordiae fornece sobejas razões para que haja dúvida. Os luteranos,
tanto como os reformados, formavam filas em redor de Calcedônia e de seus famosos
advérbios negativos: não podiam admitir confusão entre as duas naturezas, nem
niodificação de urna pela outra. A Formula Concordiae cita os antigos doutores da
Ortodoxia usando, ainda depois de Calcedônia, a palavra mixtio, evidentemente em
sentido correto e dentro da idéia da communicatio idioimatum na hipóstase de Cristo.
Neste sentido é que Lutero professa que as duas naturezas estão amalgamadas numa só
Pessoa (in unam Personam conveniunt et commiscentur — associam-se e misturam-se
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
121
numa Pessoa). Sem compreendermos bem o que Lutero entendia com o termo mixtio
(mistura) não teremos o direito de apontar qualquer Monofisismo em sua teologia. A
Formula Concordiae, explicitamente, aplica-se a tirar toda a sua malícia ao termo em
questão: nem confusio, nem exaequatio naturarum, nem confusão nem equiparação das
naturezas, como quando, de água e mel, se faz hidromel; hidromel não mais é água nem
mel, mas bebida mista e diferente. Nada dessa confusão pode haver em Cristo, cujas
naturezas nunquam vel separantur, vel confunduntur, vel altera in alteram mutatur
(jamais se separam, se confundem ou se transformam uma em outra), sed utraque in sua
natura et substantia seu essentia in omnem aeternitatem permanet (mas cada qual, para
toda a eternidade, permanece na sua natureza e essência). Assim é que Lutero sustenta
sua posição altamente paradoxal: mixtio, sed non confusio (mistura, mas não confusão),
enigma da Cristologia luterana. É mister examinarmos se estamos diante de uma
contradição, ou de uma possível síntese, cheia de riqueza.
***
Respondamos a este ponto, baseados nos esclarecimentos da Formula Concordiae.
Observemos a motivação (o ponto de vista luterano (especificamente calvinista, diria
aqui Bavinck): a communicatio idiomatum não é apenas a transição das propriedades
umas às outras, mas a comunicação das propriedades a uma Pessoa, ao Filho. Aí está o
ponho comum das teologias luterana e calvinista. É através da união hipostática que
Lutero fala de uma mixtio no Filho, isto é, na Pessoa. Para Lutero, não é questão de uma
simples mistura das naturezas, de uma confusão monofisita que ele rejeita, aliás, como
heresia de Eutiques; mas também não é questão de um dualismo pessoal, como se, em
Cristo, Divindade e humanidade fossem coladas uma à outra “como duas tábuas”, sem
qualquer comunicação mútua; assim fazia o Nestorianismo que separava as duas
naturezas e construía dois Cristos. Lutero, como Calvino, pretendeu debelar
Nestorianismo e Eutiquianisrno por igual. Precisamente porque rejeitava tanto o
Monofisismo como o Dualismo pessoal, é que Lutero, firme em sua fé na união pessoal
do Verbo Encarnado, postulava a comunicação dos atributos Divinos à natureza humana
de Cristo. O próprio credo, portanto, situa o problema: sendo que as naturezas de Cristo,
realmente, comungam entre si, em virtude da união pessoal, a tal comunhão acarreta
também comunicação das propriedades e atributos.
Agora possuímos todos os dados do problema. Luteranos e calvinistas partem de
Calcedônia. Querem saber o caráter dessa comunicação de propriedades na Pessoa do
Cristo. Admite-se, em ambos os campos, que uma natureza não se transforma na outra:
Divindade e humanidade conservam seus atributos respectivos; nunca as propriedades
de urna tornar- se-ão propriedades da outra. À natureza Divina compete onipotência,
infinitude, onipresença, onisciência, que nunca pertencerão à natureza humana. À
natureza humana competem a corporeidade, a carnalidade, a transitoriedade, a
passibilidade, a mortalidade, a locomoção, a alteração... que nunca pertencerão à
natureza Divina. Havia razão para se crer que, nessas alturas, luteranos e reformados
continuariam juntos no roteiro calcedônico, empreendido juntamente. Mas, exatamente
nessas alturas, o conceito específico luterano entrou em jogo, distanciando-se do ponto
de vista reformado.
***
Qual é este conceito especificamente luterano, origem de tão veemente controvérsia
durante o século XVI?
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
122
Define-se ele bastante bem na polêmica de Lutero contra o conceito da alio eosis de
Zwínglio. Este entendia por alloeosis o seguinte: falando do Cristo, podemos atribuir
verbalmente a toda a Pessoa uma ação que, na realidade, somente é feita por uma
natureza; por exemplo, podemos expressar que Cristo nasceu ou morreu por nós,
quando, na realidade, só a natureza humana foi que nasceu e sofreu. A alloeosis é como
uma figura de literatura (uma sinédoque que usa o plural pelo singular ou o todo pela
parte: a Pessoa de Cristo morreu, quando bem sabemos que Deus não morre). Lutero
sentia o cheiro do Nestorianismo por detrás dessa sinédoque; nunca se deu bem com a
alloeosis. “Cuida-te, cuida-te, eu te suplico, dessa alloeosis; ela é a máscara do
demônio; acaba nos dando um Cristo tal que, francamente, eu não gostaria de servi-lo.
Da alio eosis deriva fatalmente a heresia das duas pessoas em Cristo: ela divide a obra
de Cristo e, necessariamente, também a sua Pessoa... Onde eu não possa dizer, em toda
verdade e sem figura, que Deus morreu por mim, mas somente que um homem morreu
por mim, aí estou perdido”. “Em si, não caberia afirmar que Deus nasceu e morreu: em
si, Deus é imortal; mas, agora que Deus e homem se uniram em Cristo numa Pessoa só,
cabe dizer, com verdade e razão, que Deus morreu, que Deus padeceu, que Deus
derramou seu sangue”. “Agora que Deus e o homem Jesus estão unidos numa Pessoa,
cumpre dizer justamente: morreu Deus, quando morreu o homem que, com Deus, é um
mesmo ser.” Longe de ser tal modo de falar uma mera praedicalio verbalis, uma figura
de estilo e não uma realidade, ela expressa a única verdade cristã. Assim, pois, se
explica que a Formula Concordiae, mencionando o texto de Tg 1.17, “em Deus não há
variação nem sombra de mudança”, comente-o da seguinte maneira: Na Encarnação, a
natureza Divina do Verbo não foi modificada, mas a unidade da Pessoa também
permaneceu. Devemos ter a coragem de proclamar esta nossa fé e não permitir que
periclite o mistério da união hipostática. Tal era precisamente a intenção da teologia de
Calvino, a qual de modo nenhum pode ser identificada com o Zwinglianismo. Surgiu,
assim mesmo, uma discrepância entre os filhos de Lutero e os de Calvino, porquanto o
conceito luterano, embora antimonofisita, tirava certas conclusões imprevistas em favor
da natureza humana do Senhor. Os luteranos declaravam falsa a opinião calvinista que
nega à humanidade de Cristo privilégios provindos de sua união pessoal com a
Divindade. Porventura a Escritura não ensina que a humanidade de Cristo, depois de
despojada de sua forma de servo e de ser exaltada à direita de Deus, receberá, além das
propriedades naturais, “prerrogativas peculiares, altíssimas, sobrenaturais, inescrutáveis,
inefáveis, bem como precedência em maj estade, magnificência, força e poder sobre
todas as coisas”? Em Cristo, não pode ser questão simplesmente de dons criados ou de
qualidades finitas, como nos santos. Na união hipostática, a humanidade de Cristo,
especialmente depois da glorificação, participa de uma glória tão grande que nenhum
cálculo pode determiná-la.
A Escritura atribui à humanidade de Cristo os privilégios da majestade: dirigir, vivificar,
exercer a onipotência no céu e ria terra. Ora, esta não é uma maneira de falar, mas tratase de uma realidade para a humanidade de Cristo. Como pode ser isso, sem confusão
entre as duas naturezas? A humanidade de Cristo, conforme Jo 5 e 6, tem um poder e
uma força que não é identificável como propriedade essencial da Divindade, mas que é
comunicada misteriosamente pela natureza Divina, e isso não por um modo físico nem
por alguma transfusão essencial. Acontece assim que, sem modificação das
propriedades humanas, a natureza do homem Jesus recebe poder e maj estade em
virtude da união hipostática, pois nela habita corporalmente toda a plenitude da
Divindade. Majestade, força e glória irradiam através da natureza humana, como o fogo
através do ferro ou a alma através do corpo. Na hora da humilhação, essa irradiação está
ofuscada e retida no âmago,mas, depois de Cristo despojar-se da forma de servo,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
123
revelar-se-á plenamente. A onipotência Divina, apanágio da Divindade está, pois, em
Cristo e, através da humanidade assumida e elevada, ela brilha e se evidencia completa
e livremente. O fogo que escalda o ferro é propriedade do ferro, mas somente porque o
fogo se uniu ao ferro; contudo, o ferro brilha e queima, sem deixar de ser ferro, isto é,
sem perder suas propriedades naturais; tampouco o fogo deixa de ser fogo nem perde
suas propriedades.
Nessa união, certamente, a humanidade não recebe a onipotência Divina, porquanto não
tem receptividade para tanto; não obstante, ela recebe a plenitude do poder e do saber. É
preciso, portanto, refutar aqui os Agnoestas elas, que pretendem que “o Filho tudo sabe,
mas sua natureza humana fica ignorante de muitas coisas”. Todos os problemas devem
ser considerados à luz da união hipostática, do Verbo em carne presente entre nós. Em
virtude dessa união, Cristo está conosco, não apenas segundo a Divindade, mas também
segundo a humanidade assumida, manifestando-se como Cristo tanto numa como noutra
natureza, com plena liberdade.
Para resumir, digamos que a Formula Concordiae condenou, formalmente:
a. a confusão das naturezas;
b. a ubiqüidade da natureza humana: a natureza humana, não sendo infinita, não
é onipresente por si mesma;
c. a consubstancialidade ou identidade essencial entre a humanidade e a
Divindade de Cristo;
d. por outra parte, qualquer limitação ao poder Divino de Cristo, no sentido de
Cristo não poder fazer-se presente corporalmente onde e quando êle quisesse;
e. a paixão exclusivamente na natureza humana.
Inegavelmente, a intenção da teologia luterana é de afirmar que, depois da união, as
duas naturezas não mais podem ser pensadas separadamente, “ambas devem ser
pensadas totalmente unidas em todos os momentos, sem que isso dê lugar à confusão”.
Existe uma autêntica e indissolúvel união entre ambas as naturezas na Pessoa Divina. A
humanidade é penetrada pela Divindade — verdadeira perichooresis — “a plenitude da
Divindade habita em Cristo corporalmente” (Cl 2.9). Tudo quanto afirmamos de uma
natureza podemos afirmar também da outra, não apenas como extensão de linguagem,
mas como realidade. Todo o atributo vale para a Pessoa inteira, de sorte que podemos
dizer que Deus morreu e que o homem Jesus é todo-poderoso.
A precaução máxima nesta doutrina claramente visa não deixar que a união das
naturezas seja relaxada. Mixtio, porém, não confusio! A natureza humana conserva seus
atributos essenciais. Para evitar mal-entendidos, costuma-se distinguir de qual das
naturezas procedem as obras atribuidas a Cristo: esta distinção é capital na doutrina
luterana, como consta na Formula Concordiae: qualquer obra ou sentimento de Cristo
não procede ao mesmo tempo de ambas as naturezas; deve distinguir-se de que natureza
procede cada obra atribuida a Cristo, como o faz iPe 3 e 4, onde lemos que Cristo
morreu segundo a carne, e na carne por nós sofreu.
Éste é outro ponto comum às Cristologias de Lutero e de Calvino. Ambas são
pronunciadamente antinestorianas e acentuam a unidade da Pessoa. Embora os luteranos
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
124
sempre acusassem os calvinistas de não valorizarem devidarnente a indissolúvel
unidade da Pessoa, a crítica nunca procedeu, pois, na Cristologia Reformada, vigorou
sempre a preocupação antinestoriana de afirmar a unidade pessoal das duas naturezas,
sendo a Pessoa de Cristo o único sujeito de atribuição das obras do Mediador. Nunca
cogitaram em atribuir qualquer obra de Cristo a uma das naturezas abstratas, quer à
Divindade quer à humanidade: nunca disseram, por exemplo, a Divindade morreu, ou a
humanidade era Deus. Não resta dúvida que Lutero, reagindo contra a eterização
espiritualista da salvação zwingliana, desconfiasse de Calvino que, a juízo seu, trilhava
os mesmos caminhos. Na mente de Lutero existia uma correlação indissolúvel entre a
tal Cristologia “nestoriana” e a presença real eucarística: Calvino, pagando seu tributo
ao espiritualismo zwingliano, negava a presença real.
Lutero, porém, se equivocava. Calvino não abandonou as veredas de Calcedônia nem se
deixou iludir pelo espiritualismo de Zwingbo na doutrina da Santa Ceia.
Ninguém melhor que Dankbaar, no seu livro A Doutrina Sacramental de Calvino,
esclarece a atitude calvinista com relação ao problema em foco: “Calvino seguiu um
caminho equidistante entre o subjetivismo espiritualista e o realismo material cio
sacramento. Nunca lesou o finitum non capax infiniti. Lutero não compreendeu a
necessidade de salvar esse princípio ou, talvez, compreendeu-o tarde demais.”
Indubitavelmente, fiel a Calcedônia, Calvino enfatizou a distinção das naturezas na
Pessoa. A questão levantada pela polêmica luterana é a seguinte: Calvino, porventura,
não deixou perder-se a unidade de Cristo? Na sua Instituta (II, 14, 4), o Reformador
francês encara o problema clara e extensivamente. Frases como “a Pessoa em que Cristo
foi revelado como Deus e homem” abundam nesta obra capital, provando de sobejo que
Calvino nunca visou as (luas naturezas em si, mas a inseparável Pessoa do Cristo.
Cristo, tal qual é, a saber Deus e homem, é Senhor nosso e Filho verdadeiro de Deus.
Calvino dá grande lugar à refutação de Nestório o qual, em vez de distinguir as duas
naturezas, separou-as, erro evidente contra as Sagradas Letras, “onde àquele que nasceu
da Virgem foi dado o Nome de Filho de Deus”: cumpre-nos, porém, não imaginar, na
união hipostática, qualquer confusão de naturezas (Id. II, 4, 7). Unidade e distinção
constituem, por igual, a preocupação de Calvino, na confissão do único Cristo,
exatamente como também dos luteranos. Mas então, onde está a divergência? Acaso
Calvino ignora urna comunicação de propriedades (Id. XIV, 1, 1)? Tal comunicação é
corolário necessário da união. “Para um entendimento ortodoxo do problema, é preciso
lembrar o princípio-chave:Tudo quanto diz respeito à função de Mediador atribuir-se-á
tanto à natureza Divina quanto à natureza humana” (Id. II, 14, 3). Calvino postula, pois,
não separar ambas as naturezas, mas sublinha, certamente com maior vigor que os
luteranos, a necessidade de evitar a confusão entre as naturezas. Em Cristo, há um só
sujeito de ação: mas, precisamente, é nesse sujeito único que se coloca o mistério da
distinção dos atributos de cada natureza.
Já por várias vezes mencionamos o famoso lema: Finitum non capax infiniti — o
limitado não é capaz do ilimitado. É costume considerá-lo como especificamente
calvinista, embora ele não se encontre nos escritos de Calvino: o Reformador não sentia
necessidade de refletir sobre finito e infinito para diagnosticar a união das naturezas em
Cristo. Seu mérito foi de velar contra o olvido ou a transgressão do caráter limitado do
humano, inclusive do humano em Cristo. Sem valer-se, para esse intuito, de reflexões
filosóficas ou cosmológicas (nas quais era comum extraviar-se a Cristologia), percebeu,
no próprio texto evangélico, que o mistério da superabundância de Cristo se baseia no
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
125
fato de Cristo nos ter salvado, precisamente, como “um dos nossos”. Esta visão básica
tornou Calvino atento contra toda doutrina que diminuísse a indole verdadeiramente
humana de Cristo, inclusive depois da glorificação.
O Filho de Deus assumiu nossa natureza numa iniciativa de amor e de reconciliação:
sua natureza humana é genuínamente igual à nossa natureza humana, em todas as
coisas, e continua sendo igual através de todas as circunstâncias dessa vida hipostática,
pelo que Calvino não consente que se lhe atribua o que não é dela, como, por exemplo,
a onipresença. A Formula Concordiae contém hesitações desconhecidas de Calvino:
este simplesmente nega à humanidade de Cristo as propriedades Divinas, pretensamente
comunicadas, as quais, mesmo que comunicadas, nunca seriam propriedades
essencialmente Divinas, como o são na natureza Divina do Verbo. Esta atitude foi o
resultado não de uma crítica racionalista, mas do reconhecimento do mistério. Calvino é
antidoceta irrestrito: não admite que a humanidade, mesmo assumida pelo Filho, deixe
de ser humanidade: a natureza humana de Cristo é pura criatura.
Aconteceu, porém, que, por esta causa, Calvino foi acusado de Nestorianismo, não
apenas nos tempos de Lutero, mas também depois por homens como Bauke e Korff e
outros nossos contemporâneos. Notemos, de relance, como o litígio nestoriano volta
sempre à atualidade. Korff, de início, observa como Calvino comenta os Evangelhos em
função de sua Cristologia; obrigado a separar, na Pessoa de Cristo, o que, na realidade, é
uma coisa só, o Reformador francês não evita o Dualismo nestoriano. Este Dualismo,
para todos os críticos luteranos, apareceu sempre como elemento inegável do
Calvinismo. O Calvinismo não pôde evitar, conforme eles, que Divindade e humanidade
em Cristo atuem independentemente uma da outra. Essa objeção ainda está em pé hoje
em dia, inclusive em campos hostis também ao conceito luterano. Assim, Bauke (R. G.
G. Christologie, 1628) denuncia o princípio “o finito não é capaz do infinito”, bem
como o Extra-calvinisticum, como raízes do Nestorianismo calvinista; quem não
considerar o Logos como incluído na finita natureza humana, não evita de emaranhar-se
no dualismo de Nestório. Esta crítica a Calvino encontrou seu campeão em Korff. Sem
desconhecer que Calvino acentua a unidade da Pessoa e ajunta as duas naturezas uma ao
lado da outra, Korff conclui que não consta “que se possa absolver Calvino das
acusações de Nestorianismo”, pois o modo calvinista de usar a doutrina das (luas
naturezas denota uma clara tendência dualista e uma infidelidade evidente às exigências
de Calcedônia. Calvino divide e separa o que Calcedônia declara indivisivel e
inseparável.
Essa acusação já foi refutada, pelo menos em sua substância e quod rem por Bavinck e
por Emrnen. Outros calvinistas, magnanimamenle, concedem que há, em Calvino, como
que duas linhas paralelas, ou duas maneiras antagônicas de se expressar. Assim, lor
exemplo, comentando o milagre da tempestade acalmada, Calvino fala de um descanso
da Divindade de Cristo, parecendo cindir a Pessoa de Cristo e reconhecer dois modos de
naturezas impossíveis de ser unidos. Assim, M. Dominice (Pregação de Cristo em
Calvino, na revista Jesus Christus im Zeugnis der H. S. und der Kirche, 1936, pág. 243)
julga que o Calvinismo sempre se inclinou para o Nestorianismo, tal como o
Luteranismo sempre esteve a ponto de cair no Monofisismo; Calvino escapou de cindir
o Cristo em dois, mercê de sua compreensão da função mediadora de Jesus Cristo:
compreendeu que, em Cristo, há um movimento de Deus para o homem e do homem
para Deus que, afinal de contas, poslula uma Pessoa só — Jesus Cristo, o Emanuel.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
126
Dominice acertou, pelo menos na última parte de sua critica. Calvino, indubitavelmente,
distingue sempre as duas naturezas em Cristo, sem pretender construir um raciocínio
teórico, mas apenas escutando os te3temunhos escriturísticos. Assim, a respeito da
palavra “Antes que Abraão existisse, eu sou”, ousa escrever que isto nada tem a ver com
a humanidade de Cristo, pois o próprio Cristo claramente distingue ai entre o dia de seu
aparecimento e a sua essência eterna. Por outro lado, Calvino rende-se à evidência de
que “Cristo crescia em idade e em sabedoria, ignorava o dia do Senhor, não fazia sua
própria vontade, era tocado e visto pelos homens, coisas todas próprias da natureza
humana”; nem por isso deixa de falar da comunicação das propriedades, que permiic
transferir à Divindade as obras realizadas pela humanidade de Jesus, improprie, licet
non sine ratione: aplicação imprópria, mas não destituída de razão.
A comunhão das naturezas é capital para Calvino. Ele insiste na justiça da condenação
de Nestório em Éfeso e fala da impiedade de Nestório. Mas não faltou quem procurasse
expressões mais ou menos equivocas nas obras (lo grande Reformadores sem descontar
eqüitativamente o quanto nossas fórmulas humanas são fracas quando se referem ao
mistério cristológico. Assim se procedeu também contra a famosa frase: “Segundo sua
natureza humana, Cristo não mais está na terra, mas segundo sua Divindade, majestade,
graça e Espírito, nunca mais deixará de estar perto de nós” (Cat. Heidelb. Dom. 18.°).
Esta frase foi acusada de operar uma separação nestoriana entre as duas naturezas do
Senhor. Na verdade, aqui não se faz esta separação, mas simplesmente valorizam-se as
palavras da Escritura relativas à Ascensão de Cristo. Descreve-se o modo como não
mais está Cristo conosco, conciliando-o com a promessa do mesmo Cristo: “Estarei
convosco até a consumação dos séculos.” Tanto o Catecismo de Heidelberg como a
teologia de Calvino tratam do mistério inefável: o Filho assumiu a natureza humana.
Deste mistério, até as nossas expressões participam fatalmente. Calvino o distinguiu,
levado por sua análise dos textos. É bem revelador que quem fala de acordo com as
Escrituras não escapa das mesmas conclusões e da mesma deficiência. Os próprios
luteranos não escapam do perigo quando, embora preocupados, com os pontos decisivos
da unidade pessoal do Cristo, vinculam esse ou aquele ato do Senhor preferivelmente a
urna das duas naturezas, como consta na própria Formula Concordiae. O Dr.
Koopmans, certo dia, afirmou ser ilícito dizer: “Este fato deve ser atribuído à
Divindade, e este outro à humanidade”, palavra citada por Korff em sua crítica ao
Calvinismo. O que impressiona é que o mesmo Koopmans, depois de postular a
impossibilidade de separar Divindade e humanidade para fins de atribuição das obras de
Cristo, escreve a seguir: “Sem dúvida, nas Escrituras há sinais tanto da Divindade
quanto da humanidade de Cristo.” Exatamente isso é que Calvino reivindica, sem pôr
obstáculo à unidade pessoal do Senhor. Logo, comentando a Paixão de Cristo,
Koopmans não vacila em falar na linguagem de Calvino: “Cristo sofreu segundo a
humanidade e também a Divindade tomou sobre si esta paixão — obra Divina que
Cristo cumpre como homem.” Calvino pensa do mesmo modo, nunca deixando a
humanidade funcionar como se fosse um sujeito substantivado, uma segunda pessoa em
Cristo. Seu intento é valorizar a unidade não menos do que a distinção, sem, contudo,
desvendar o mistério inefável. 1
1
Citemos uma reflexão de Calvino sobre a comunhão das naturezas. Comentando At 20.28, Calvino se
desvia expressamente da alloeosis de Zwinglio: “Esta maneira de falar chama-se communicatio
idiomatum: as propriedades duma natureza atribuem-se à outra.” Os luteranos opuseram-se a essa maneira
de falar, vendo nela um Dualismo. Entretanto, quem estudar a Crístologia calvinista percebe quanto nela
se combate o tal Dualismo, pois sob a capa de reivindicar a natureza humana autêntica, isto é, limitada e
finita de Cristo, Calvino se batia, de fato, pela unidade da Pessoa tantas vezes postulada por esta maneira
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
127
Urna advertência impressionante, para não acusarmos precipitadamente Calvino de
Nestorianismo, está no fato desta acusação ter sido usada já contra a própria definição
de Calcedônia e contra o seu inspirador direto, o Papa Leão Magno. Em 419, Leão
escreveu a Flaviano uma carta que se tornou famosa, sobre a doutrina das duas
naturezas. Por distinguir lipicarnente as duas naturezas, Leão foi acusado de
Nestorianismo. O próprio Harnack estima que Leão pouco se interessava pela unidade
da Pessoa. Sabemos, entretanto, que Leão foi inimigo veemente do Eutiquianisrno, o
perigo máximo daquela época, porquanto o Nestorianismo, mal não menor, já tinha sido
condenado em Éfeso (431). Urna insistência decidida na distinção das naturezas,
especialmente quando for compreendida como uma antítese ao Monofisismo, não podia
deixar de parecer uma homenagem a Nestório. Estas perguntas interessam grandemente
à história dos dogmas. A definição de Calcedônia não se viu livre de críticas repetidas.
Assim, Dorner julga o Monofisismo credor de Calcedônia: só a cristologia luterana
começou a pagar a divida. Já, na sua hora, o Adocianismo constituiu séria advertência
contra urna explicitação exagerada e unilateral da unidade hipostática proclamada em
Calcedônia. Certamente que a posição calcedônica, vista através deste prisma, revela
mais a distinção do que a unidade das naturezas. Entretanto, não deixa de impressionar
o fato de que Calcedônia, com admirável acerto, definiu tanto a inseparabilidade e
indivisibilidade como a imutabilidade e inconfundibilidade das duas naturezas de
Cristo.
A fidelidade à Calcedônia, aos olhos superficiais, acarretou sempre, inclusive hoje em
dia, certo Nestorianismo presumido. Assim é que Korff pode criticar com tanta aspereza
a Cristologia de ambos os reformadores, pois ele rejeita também a Cristologia luterana,
“a qual pode servir como sinal de alarme contra a pretensão de ultrapassar as posições
de Calcedônia. Korff acusa Lutero de ter atentado contra a imutabilidade e
inconfundibilidade das duas naturezas com sua “ubiqüidade” humana de Cristo,
enquanto o Idealismo alemão, tirando as últimas conclusões do finitum non capax
infiniti, cinde Cristo em dois. Diante destas veementes críticas de Korff resulta ainda
mais difícil discernir por que ele acusa Calvino de Nestorianismo: porventura não sabia
que Calvino, precisamente nos textos recriminados, só pretendia manter a distinção
entre ambas as naturezas, distinção evidente também para a teologia luterana? Quais são
os limites intransponíveis à nossa expressão, quando é questão do mistério da Pessoa de
Cristo? Calvino nunca aplica a communicatio idiomatum às naturezas abstratas,
Humanidade ou Divindade, de Cristo, (como o faz Lutero, no caso da presença real
eucarística), mas somente à Pessoa do único Filho de Deus, o qual está presente em
todas as obras da função mediadora.
***
Mencionamos isso já que o famoso axioma finitum non capax infiniti foi considerado
como especificamente reformado. Foi ele desconhecido por Calvino e seus
contemporâneos na letra, embora não na significação, e teve até um papel relevante na
defesa calvinista contra os ataques luteranos. Werner Elert esforçou-se por demonstrar
que esta idéia já se encontra, de fato, na teologia nestoriana.
Radicalmente, estaria ela na teologia antioquena, em particular na de Teodoro de
Mopsuéstia, o qual descreve a relação de Deus e do homem em Cristo com os conceitos
de falar. A expressão paulina “Deus comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28) postula, segundo
Calvino, a unidade da Pessoa. Neste lugar Paulo atribui a Deus o sangue, porque “o homem Jesus Cristo
era Deus”. Neste caso a polêmica de Calvino, visivelmente. atinge tanto Eutiques quanto Nestório.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
128
de infinito e finito. Mas teria sido Nestório que fizera desta sentença o ponto de partida
da Cristologia. Todavia, observe-se que o axioma está baseado num apriorismo
ontológico, aplicado à Crislologia. Na opinião de Elert, este argumento usado por
Nestório é exatamente o que, no século XVI, usara Calvino contra os luteranos. “Onde o
finitum non capax infiniti for invocado teologicamente, ele constituiria um sintoma
seguro de Cristologia nestoriana ou nestorianizante”; semelhante correlação reduz o
problema a categorias quantitativas. Mediante esta crítica, Elert elimina a teologia
calvinista e dá a palma à teologia luterana. Mas triunfa só aparentemente, porquanto a
Cristologia de Calvino dista muito de ser a Cristologia de Nestório. Entre a crítica
calvinista ao Luteranismo e a crítica luterana ao Calvinismo, não há qualquer afinidade,
porquanto a teologia calvinista não pretendeu construir nenhum apriorismo ontológico,
mas simplesmente definir a realidade da natureza humana de Cristo. A luta contra a
ubiqüidade luterana, logo ampliada contra sua Cristologia inteira, não foi, nem de longe,
uma apologia do Nestorianismo, mas, simplesmente, uma guerra ao Monofisismo e à
sombra deste, ou seja, o Docetismo. O axiomático finitum non capax infiniti
aparentemente pode sugerir que, para aproximar-nos do mistério de Cristo, usamos uma
suposição racional-filosófica, quando, de fato, na Encarnação, não se liga um infinitum
abstrato a um finitum humano, mas o Verbo, divinamente, se encarna em corpo humano.
Entretanto, e felizmente, Calvino não construiu sua Cristologia a partir do axioma
incriminado nem de qualquer ontologia. Se, posteriormente, teólogos reformados deitam
mão do axioma, nunca pretendem esquematizar filosoficamente sua Cristologia. A única
coisa que importava era confessar o que Calcedônia tinha confessado. Aliás, com
enlevo, reconhecemos que também a teologia Luterana teve igual prudência: falando da
comunhão das duas naturezas entre si, ela só considerava uma comunicação de atributos
Divinos à natureza humana, na medida em que esta era suscetível para tanto. Problema
essencialmente idêntico para ambas as teologias: explorar os limites da natureza
humana de Cristo. Por este motivo é que não escaparemos da pergunta capital, numa
luta que se prolonga até hoje entre os dois ramos da Reforma: é Calcedônia, de fato, a
expressão da fé da Igreja?
***
Finalmente, fixaremos nossa atenção sobre um ponto especial que, nesta luta
apaixonada, recebeu importância extraordinária: a adoração de Cristo.
Entre nós, foi questão de saber se era lícito adorar a Cristo como Mediador. Também
neste ponto, a luta antiluterana foi a mola-mestra das pesquisas. O problema
aparentemente não existia para os 1uteranos a comunicação das propriedades Divinas à
natureza humana, básica para sua Cristologia, resolvia o problema. Os calvinistas
tiveram que considerar profundamente a questão, porquanto não queriam, em aspecto
nenhum, misturar as duas naturezas. A ligação direta com Calcedônia, e não alguma
simpatia latente por Nestório, originou o problema. Por não ser certa a hipótese luterana
de comunicação dos atributos Divinos à natureza humana de Cristo, cabia, acaso, uma
adoração da natureza humana de Cristo, sem idolatria? Por este motivo, especificou-se
que só Deus pode ser adorado. Scholten, que considerava a teologia calvinista pelo
prisma nestoriano, desloca a questão, observando que a liturgia calvinista se abstém de
orar a Jesus, o Mediador glorificado. A questão não foi discutida nesta perspectiva: pois
nunca se discutiu a possibilidade de adorar a Cristo, mas qual era o fundamento desta
adoração. Os calvinistas queriam evitar qualquer Divinização da natureza humana de
Cristo: o fundamento da adoração de Cristo só podia ser a natureza Divina e, de modo
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
129
nenhum, aquilo que é criado em Cristo. A adoração da “natureza Divina” era coisa
pacífica. Mas, de fato, a adoração da Igreja dirige-se a uma só Pessoa, a Jesus Cristo.
Nesta atitude, rejeita-se qualquer tipo dç Nestorianismo e exclui-se toda a Divinização
da criatura. Na fé, somos libertados da tentação de considerar só a natureza humana,
bem como de isolar a natureza Divina da substância carnal de Cristo. Na fé, nos
dirigimos àquele que, Pessoa única em duas naturezas, é nosso Mediador e a quem
Tomé, libertao da dúvida, adora, exclamando: “Meu Senhor e meu Deus!” 2
***
Outra questão deve aqui ser tratada, de relance: a questão da theotokos, da Mãe de Deus,
o problema de Maria, Mãe do Senhor. A palavra theotokos, como lodos sabem, foi
usada durante o conflito nestoriano, quando Nestório queria dar a Maria simplesmente o
nome de Christotokos, mãe de Cristo. O Concílio de Éfeso (431) anatensatizou a quem
negasse a Maria o nome de Mãe de Deus. Os Concilios de Calcedônia (451) e de
Constantinopla (553) ratificaram a sentença de Éfeso.
Parece-nos de muita importância comparar este uso da antiga Igreja com o uso
posterior, tal como o vemos especialmente no Protestantismo. Os teólogos católicos
romanos julgam que nada melhor indica o distanciamento protestante do espírito antigo
como o pouco uso, ou mesmo o desuso, deste termo “Mãe de Deus”. Conforme Bruce,
Nestório via um perigo pagão na designação de Maria como Mãe de Deus. A atitude de
muitos protestantes pode ser comparada com a de Nestório; por esta razão, cumpre
tomar muito a sério a acusação católica romana e considerá-la com gravidade. Inclinome a pensar que nossa aversão pelo qualificativo “Mãe de Deus” está intimamente
ligada ao desenvolvimento mariológico da teologia católica. Theotokos e aeiparthenos
(sempre virgem) são termos que receberam entre os católicos um desenvolvimento
considerável: não diremos, de modo nenhum, que este caráter muito pronunciado da
reflexão marial lenha levado Roma, conscientemente, a uma Divinização de Maria, mas,
sim, que Maria recebesse, na doutrina de Roma, bem como na sua prática litúrgica, um
lugar proeminente, no qual, cada vez mais, esvaneceram-se os limites da criatura. Foi,
sobretudo, por reação contra este desenvolvimento mariológico romano, o qual alcançou
cumes extraordinários nos séculos XIX e XX com as definições dogmáticas de 1854 —
Imaculada Concepção — e de 1950 — Assunção — que a resistência protestante ao
theotokos nasceu e progrediu.
Isto, porém, não significa, de maneira alguma, que o Protestantismo não aceite o que os
concilios de Éfeso e seguintes desejavam sustentar e manter contra os heresiarcas. As
Igrejas reformadas nunca sentiram a necessidade de se distanciarem destes concílios,
uma vez que concordavam plenamente com a condenação de Nestório. As dificuldades
de Nestório com o termo theotokos e suas preferências pelo christotokos originaram-se
em sua propensão de separar as duas naturezas de Cristo, falando da natureza humana
2
Kuyper resumia toda a questão como segue:
1º. Adora-se a segunda Pessoa, abstracta humana natura, abstraindo da natureza humana: adorase simplesmente o Criador, sem admitir a criatura Jesus. Isso é Nestorianismo.
2º. Adora-se a Cristo como possuindo unidas em si as duas naturezas, de tal modo que, desta
união, suna um tertium quid, nma terceira substância. Isto é Eutiquianismo.
A Igreja condena urna e outra coisa. Na união hipostática acha a solução correta: adora-se a Pessoa no seu
mistério revelado, adora-se Deus na carne.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
130
em si, autônoma e independente da natureza Divina, sendo Maria a mãe dessa natureza
independente. A Igreja rejeitou tal Dualismo, indicando, com o termo theotokos, que
Maria é a Mãe daquele que é o eterno Filho de Deus e, implicitamente, que o Verbo
assumiu a natureza humana. Resta perguntar se theotokos era o termo mais adequado
para expressar esta doutrina. Divergem as opiniões; diversas situações históricas podem
provocar mal-entendidos. 3 Mais tarde, a auréola da theotokos começou a irradiar
sempre mais, até que o termo “Mãe de Deus” fundamentasse uma espécie de adoração
inariológica. A terminologia não carece de responsabilidade para a vida da comunidade
cristã: por esta razão não podemos considerar como legitima a autonomia deste termo
theotokos, usado pelos concilios com uma evidente intenção antinestoriana e
antidualista. Não faltaram tentativas para vencer a nossa aversão protestante, e dar por
encerrado o litígio em torno do uso do theotokos, mas julgamos que o emprego da
palavra merece reparos quando se lhe acrescentam conotações que a Igreja universal
ignorou. 4 Ainda mais: este termo pode levar a mal-entendidos e provocar uma superestimativa de Maria, originalmente ausente das intenções conciliares. De todos os
modos, é com veemência que rejeitamos a insinuação de que o Protestantismo se
distanciara, latentemente, da fé eclesiástica professada nos concílios ecumênicos. O
Protestantismo rejeitou e sempre rejeitará o Nestorianismo e o Adocianismo: o Filho de
Maria, concebido por obra do Espírito Santo, é e sempre será o Verbo Eterno, Luz da
Luz para nossa fé. O Protestantismo, distinguindo a maternidade secundum
humanitatem de Maria, segue, até na letra, as definições da Calcedônia e de
Constantinopla.
***
No capítulo dedicado à intercomunhão das duas naturezas do Cristo, Bavinck respeita a
antiqüissima distinção teológica entre propriedades, atos e dons (Dogm-Reform. III,
293). Até que ponto serve esta distinção para explicar, acertadamente, os dados
revelados em relação à matéria em foco? Porventura, comunhão de propriedades e de
atos são diversas realidades? As propriedades por acaso revelam-se alhures do que nos,
atos de Cristo? Parece-nos, pois, melhor reunir atos e propriedades, e falar apenas da
comunhão das naturezas na realidade concreta da vida de Jesus Cristo. Nunca é lícito,
aliás, isolar um ato determinado, ou uma iniciativa determinada, quer da natureza
Divina quer da humana. A unidade da Pessoa nunca deixa de estar em jogo.
É falso que determinados atos de Cristo sejam feitos pela natureza humana e outros pela
natureza Divina. Esporadicamente, tal doutrina foi professada por certos doutores,
preocupados de se não imiscuir Deus no sofrimento e morte de Cristo. Entretanto, quem
3
Hoje Hans Asmussen reconsidera o problema: “No caso de Maria não ser a. Mãe de Deus, a Igreja’
universal errou; e se ela não errou, nós, que recusamos a Maria, este nome, temo-nos separado da Igreja
universal” (Die Mutter Gottes, 1951, pág. 5). Dado o relevo da qualidade de theotokos, nada estranho que
Asmussen simpatize também com a idéia da mediação de Maria, embora não ao lado, mas em Jesus
Cristo. Mas estas distinções, bem conhecidas da teologia romana, não nos tranqüilizam. Esta visão com a
qual simpatiza Asmussen, deve-se a uma interpretação autônoma da palavra theotokos, e à pretensão de
incluir tal interpretação no depósito da fé Só assim pode Asmussen acusar a Reforma de rompimento
básico com a Igreja universal.
4
Van Niftrik (Kleine Dogmatiek, 1944, pág. 108): “Não há, para um protestante, qualquer dificuldade em
chamar Maria ‘Mãe de Deus’ aquele que nasceu de Maria não é outro senão o Filho de Deus.” A história
do qualificativo “Mãe de Deus” é das mais interessantes. Ver, por exemplo, Lutero, em seu famoso
Magnificat. E, para a prática calvinista, ver Heppe (Dogmatik, 319), citando os nossos clássicos.
Wollebius, por exemplo, especifica que “não basta chamar Maria de Christotokos, como queriam os
Nestorianos, mas devemos chamá-la de Theotokos. Ver, igualmente, a Synopsis (Disp. XXV): “Lucas,
portanto, chama Maria a ‘Mãe do Senhor’, o que foi traduzido pelos antigos: Theotokos e Deipara”.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
131
quiser salvar a unidade pessoal de Cristo, em nenhum caso poderá afirmar que a
natureza humana abstrata, ou seja, a humanidade de Cristo, tivesse sofrido pela simples
razão de não existir isolada e separada da natureza Divina. Embora não desconhecendo
que a Igreja zelasse contra toda espécie de teopassianismo, uma autêntica compreensão
da união hipostática não comporta esta temida paixão de Deus. O que importa é
sustentar que todos e quaisquer atos de Cristo são atos da única Pessoa do Verbo
encarnado: mesmo na sangrenta paixão e na morte é ilicito separar a natureza humana
da Divina. Isso é significado pela famosa doutrina da communicatio idiomatum;
comunhão das naturezas não é alguma coisa estática e abstrata, mas uma realidade
permanentemente dinâmica e viva do Verbo encarnado e de todas as suas iniciativas.
Essa doutrina é bem expressa nas confissões de fé calvinistas, como, por exemplo, nos
cânones de Dordrecht: “A morte do Filho de Deus é a oferenda única e perfeita para a
satisfação de nossas culpas; tem ela uma força e uma dignidade infinitas, sua virtude
para reconciliar os pecados do mundo inteiro é superabundante, porquanto não foi
apenas um homem verdadeiro e santo, mas o Unigênito de Deus, consubstancial e
coeterno com o Pai e o Espírito, que sofreu para nossa Redenção.” Evidentemente, em
frases como esta, nada revela qualquer preocupação de atribuir a morte de Cristo à
natureza humana separada e abstraída da natureza Divina. Pelo contrário, relaciona-se o
valor superabundante do sacrifício de Cristo com a índole específica de ser ele o Verbo
encarnado; quem sofreu é Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem numa só
Pessoa. Schilder resume perfeitamente a tradição calvinista: “Nem no passado nem
agora, obra alguma do Mediador é feita em’ ou segundo’ uma só natureza” (Cat.
Heidelb. II, 211). De fato, pretender que Cristo fez sua obra medianeira segundo sua
natureza humana exclusivamente, equivale a destruir a função medianeira. A Igreja não
incorre em teopassiorzismo, vinculando excessivamente as dores ao Deus Vivo. Tratase aqui do mistério supremo do Único Cristo na unicidade de sua hipóstase. Êle é o
sujeito de todas as suas ações e paixões. O papel de sujeito não compete à natureza
humana em si.
***
Mencionamos ainda a comunicação de dons, certamente com não pouca admiração do
leitor. Como mencionar a comunicação de dons ao lado da comunicação de naturezas e
obras? Naturezas e obras integram o milagre da união hipostática; os dons, entretanto,
constituem o dote concedido por Deus ao Filho encarnado. Dote não negligenciável:
através dele a teologia calvinista argumenta contra qualquer forma de Divinização da
natureza humana de Cristo. A doutrina dos dons permite dar seu lugar ao
desenvolvimento humano de Cristo que o Evangelho inegavelmente afirma: a criança
Jesus cresceu em idade e sabedoria e se tornou adulta. A Escritura fala, ainda, da unção
de Jesus e da vinda do Espirito sobre ele. Essas coisas em si mesmas são diferentes
daquilo que os luteranos entendem com - sua “comunicação das propriedades Divinas à
natureza humana”. A comunicação dos dons capacitou o homem Jesus Cristo para a
desincumbência de seu ministério funcional, sem necessidade de nenhuma comunicação
sobrenatural vinda da natureza Divina. A fé na comunicação dos dons decorre
espontaneamente da confissão de Calcedônia. Cristo, verdadeiro homem, assumiu a
forma da carne pecaminosa, a natureza humana decaída. E esta natureza bem humana
não foi consumida pela sua união com a Divindade, mas realmente reunida com ela para
a obra redentora.
***
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
132
Depois de ver que, na união hipostática, os atributos de ambas as naturezas convêm à
única Pessoa, ao único suj eito de atribuição, Jesus Cristo, porventura poderemos
acrescentar algo mais sobre o caráter intimo desta união miraculosa? Contentar-nosemos em proclamar o mistério imperscrutável, ou procuraremos, mediante alegorias,
esclarecer um tanto mais o seu caráter? Ninguém ignora as tentativas renovadamente
feitas para iluminar o mistério com o auxílio de alguma analogia intercósmica. O que se
intentou em torno do mistério da Trindade tentou-se também aqui. Empregou-se
preferencialmente a analogia da interrelação alma-corpo, analogia digna de reflexão,
mesmo quando ela não se fundamente em textos sagrados.
Apesar do silêncio da Escritura, desde mui cedo os teólogos lançaram mão desta
analogia antropológica, considerada também como misteriosa: sua intenção não era
tornar a união hipostática compreensível e transparente, mas insinuar, através do
mistério alma-corpo, o mistério também incompreensível da unidade das naturezas em
Cristo.
A analogia foi usada já no Símbolo de Atanásio: “Embora Deus e homem, Cristo não é
dois, mas um único Cristo; único, não em virtude de alguma confusão substancial entre
ambas as naturezas, mas em virtude da unidade de Pessoa; pois assim como a alma
racional e a carne são um só homem, assim Deus e o homem são um só Cristo.” A
brevidade da menção não permite penetrar na idéia do autor, mas insinua bem o seu
valor ilustrativo para explicar a unidade da Pessoa na dualidade das naturezas. Consta
que, desde remotíssimos tempos, a unidade do homem na dualidade carne-espirito
serviu para ilustrar o mistério hipostático. Mas, que é que se pretendia dizer com isso?
Desejava-se, simplesmente, aduzir um tertium comparationis, certa maneira de
paradoxo para indicar que aquilo que, sob certo aspecto, é um, também é, sob outro
aspecto, dois? Ou pretendia-se oferecer realmente uma referência quanto à índole da
união hipostática?
Não poucas vezes, a analogia corpo-alma é mencionada de passagem, como para
enfatizar a genuína unidade de Cristo, sem muita preocupação pelo problema
antropológico da união entre alma e corpo e, inclusive, pela índole um tanto frouxa da
comparação. Para ressaltar a íntima relação entre ambas as naturezas de Cristo, Lutero
declara que toda a alma está em todo o corpo, de tal maneira que tocar um dedo do
corpo é atingir a alma toda. A reflexão sobre a analogia alma-corpo leva Lutero a tirar
conclusões em favor da ubiqüidade: a alma humana manifesta-se em todo o corpo. Este
exemplo revela bem o perigo desta analogia intercósmica. Isto, entretanto, não quer
dizer que a analogia só prosperasse na teologia luterana. Calvino também não a
desprezou, referindo-se de preferência à incompreensibilidade da união antropológica:
unidade do homem na dualidade de substâncias. Que bela ilustração para explicar a
unidade pessoal do Mediador na dualidade de suas naturezas! (Inst. II, 14, 1). Calvino
julga a comparação bem apropriada, porquanto o homem consta de duas substâncias,
“nenhuma das quais confunde-se com a outra, ambas conservando a propriedade de sua
natureza”. Certas coisas são atribuidas à alma,as quais não podem ser atribuídas ao
corpo, e vice-versa. Calvino adianta-se ainda mais na exploração da analogia,
descobrindo nela certa semelhança com a inter-comunhão das duas naturezas de Cristo:
“Entre nós, costumamos transferir à alma propriedades do corpo, e ao corpo
propriedades da alma. Não obstante ter alma e corpo, o homem não é dois, mas um só.
Nossa maneira de falar, contudo, indica que a única pessoa consta de duas partes
vinculadas entre si, que nela encontramos a presença de duas naturezas unidas para
formar esta única pessoa. Assim, também, falam de Cristo as Escrituras” (Inst. II, 14, 1).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
133
Evidentemente Calvino não tenciona acrescentar nada novo aos ensinamentos da
Escritura. Acontece que, usando esta analogia, ele se maravilha com a extraordinária
relação das duas substâncias na unidade humana. É digno de nota que, antes mesmo de
usar esta analogia, Calvino declara que, de quantas coisas humanas possam figurar tão
grande mistério, nenhuma é mais apropriada. Sentiu, porém, que, com esta analogia ou
sem ela, nada essencial foi dito sobre a unidade hipostática de Cristo.
De fato, a analogia corpo e alma não acarreta qualquer significação dogmática na
teologia calvinista, como tampouco no Símbolo de Atanásio. 5 Só haveria qualquer
implicação se, atrás da analogia, se escondesse alguma teoria cienlificoantropológica,
invocada para esclarecer a união hipostálica de Cristo. Isso não ocorre em Calvino, o
qual não possui qualquer antropologia eclesiástica e, seni precisão científica, fala do
corpo e da alma, cujo conjunto forma a unidade humana. Unidade na distinção de
substâncias: que boa oportunidade para ilustrar, embora frouxamente, a unidade pessoal
na distinção das naturezas, em Cristo! Salta à vista, pois, que não nos deparamos com
unia analogia verdadeira, capaz de iluminar a índole do mistério: na unidade e distinção
humana, participam componentes humanos e relações criadas, enquanto que na unidade
da Pessoa de Cristo intermedeia o fato inaudito da Encarnação do Verbo. A absoluta
unicidade da Encarnação exclui, de fato, a possibilidade de alguma analogia ontológica
válida. A Encarnarão permanece como segredo de Deus. Na verdade, invoca—se
também o mistério a propósito da união cntr alma e corpo. Entretanto, quando Pauto
proclama o mistério da Encarnação do Verbo, proclama algo bem diferente : mistério
significa, então, bem mais do que “incompreensível para a nossa inteligência”. Convém
não aviltar o termo, aplicando-o a tudo o que escapa à nossa compreensão. Este sentido,
pelo menos, nada tem a ver com o mistério biblico. O segredo da união humana não é o
mysterion da Encarnação do Verbo. Deus revelado na carne: eis o mistério com o qual
nos deparamos, na companhia da Igreja universal.
Em tempos passados, a Igreja defendeu este mistério contra todas as espécies de
heresias, contra todos quantos prejudicavain quer a integridade Divina quer a plenitude
humana de Jesus Cristo, ora contra a separação dualista ora contra o Monofisismo
unitário, ou contra modernas tentativas de violar a antiga doutrina das duas naturezas. A
Igreja não pretendeu pleitear termos nem consagrar terminologias: ela tem consciência
de que nenhuma expressão humana definirá jamais a realidade de Jesus Cristo. Sem
dúvida, atacou-se a terminologia da Igreja e, em particular, a expressão “duas
naturezas”: mas o ataque visava o próprio conteúdo da fé, negando ser Cristo vere Deus
et vere homo. Eis por que a Igreja presta a maior atenção, inclusive à terminologia,
recriminada ou pre conizada pelos inovadores.
Depois de refletir sobre a doutrina da Igreja e seus diversos comentários, Bavinck acaba
declarando: “Uma teologia que pretende ser escriturística e cristã nada melhor tem a
fazer, por enquanto, do que sustentar a doutrina das duas naturezas” (Dogm. Reform. III,
288). A ressalva “por enquanto” não pretende condicionar ou enfraquecer a confissão
das duas naturezas, mas deixar as portas abertas a melhores formulações humanas.
Considerando, a seguir, as tentativas do pensamento moderno, denuncia os graves
defeitos inerentes à linguagem em moda entre certos contemporâneos, especialmente no
tocante à Cristologia. Entretanto, “todas as tentativas alguma vez feitas para formular o
5
Consulte-se Kuyper (Loci III. pág. 27) : “Portanto,não se deve Confundir a união hipostática com a
união entre Criador e criatura, nem com a união mistica da alma nem com o laço matrimonial nem com a
relação alma-corpo, nem com alguma união mecânica, quer fusão ou ligação, participação ou
correspondência. Ela é sui generis, inteiramente univoca.”
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
134
dogma cristológico e aproximá-lo da nossa inteligência prejudicaram a riqueza das
Escrituras e a glória de Cristo”.
Aplique-se esta reflexão à doutrina da unidade hipostática. Ela não constitui uma
confissão nova, diferente da fé na Encarnação, mas, antes, é a expressão desta, e, como
o seu resultado, duas naturezas na unidade da Pessoa. Qualquer objeção levantada
contra esta formulação provém de que não se examinam as palavras da Igreja à luz da
Escritura. Através da história cristológica, constatamos sempre certa saudade
imaginativa, certo prurido de imaginar a unidade das duas naturezas; malsucedido, o
saudoso teólogo não tem outro remédio senão refugiar-se no mistério, entenda-se um
mistério nem sempre inofensivo para a autêntica humanidade de Cristo. Porém, se
lermos atentamente as Escrituras, constataremos, à sua luz, que a Igreja, quando
proclama a unidade da Pessoa de Cristo, não passa de anunciar diretamente a mensagem
revelada; ela não tenciona representar a unidade do Divino e do humano, mas
simplesmente proclamar o Cristo único, manifesto nas Escrituras. As Escrituras ignoram
absolutamente qualquer ameaça íntima, inerente a Cristo, cuja Divindade não obsta à
sua humanidade. As tensões bíblicas não apontam para um Cristo abstratamente
dividido ou abstratamente unido em duas naturezas, mas para um Cristo humilhado na
sua única Pessoa. Não foi outra a intenção da Igreja, senão de sublinhar os dados
revelados. Não lhe faltou a plena consciência da incapacidade exprevsiva de qualquer
palavra, mormente antitética e pronunciada na discussão teológica: nenhuma
formulação substituirá jamais a pregação total das Escrituras todas. Estas possuem uma
plenitude e profundeza de testemunho que nunca poderão ser igualadas pela exposição
teológica ou pela mensagem eclesiástica. Verdade esta que as diferentes confissões de
fé procuraram evidenciar: os credos, longe de produzir um empobrecimento do depósito
revelado, pelo contrário, zelaram contra qualquer obscurecimento da figura de Cristo,
do Verbo de Deus encarnado, que exorta os seus com estas palavras: “Tende coragem!
Eu venci o mundo.”
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO XII – NATUREZA HUMANA E NÃO PESSOA
HUMANA
Sumário
Renovado interesse — Os dados do problema — Repugnâncias de Korff — Barth
subestima a humanidade de Cristo — Althaus desconfia — Dois termos gregos:
anhypostasia e enhypostasia — Iniciativa de Deus — W. J. Aalders é partidário da
enhypostasia — Leôncio Bizantino — É a anhypostasia Monofisismo? — A teologia
calvinista é anhypostasia, porque refuta contra qualquer substancialização da
humanidade de Cristo — Discrepâncias na teologia calvinista de hoje — Vollenhoven,
Korff e Hepp — O art. 19 da Confessio Belgica — Seminestorianismo? — Que é a
personalidade? — A antropologia de Apolinário — Não há dois, mas um só Filho —
Cristo é Filho por natureza e não por adoção — Cuidado com o vocabulário! —
Adocianismo e Nestorianismo — A linguagem dos credos — O Adocianismno na
Espanha — Seeberg, apologeta do Adocianismo — Harnack e sua aversão por
Calcedônia —— A Igreja sempre vigilante — Mais unia vez, o Extra-Calvinisticum.
Ultimamente tem recrudescido o interesse em torno da natureza humana de Cristo: é ela
pessoal ou apessoal? A questão, freqüentemente considerada como típica do prurido
teorizante de uma teologia estéril, embora jactanciosa de explicar o mistério de Cristo,
devia suscitar renovada curiosidade a despeito de graves oposições. Teólogos de peso
vêem no assunto bem mais do que um teologumenon vazio, um tema realmente
interessante para a verdade cristã. Althaus e Korff procuraram interditar o tal retorno às
sutilezas escolásticas, enquanto Barth, Miskotte, Gilg e Relton reivindicaram a
apersonalidade da natureza humana do Senhor. Sobram razões, portanto, para
examinarmos o problema da anhypostasia, como reza o termo grego usado nesta
discussão.
O ponto crítico do problema reside nisso: a afirmação da apersonalidade porventura
prejudica a perfeição e autenticidade da natureza humana em Cristo? Não será, por
acaso tão absoluta a supremacia do Verbo Divino que, diante dela, a humanidade se
esvanecerá? Para apreciarmos a dificuldade, ouçamos a opinião, severa e determinada,
de Korff. Partidário do “estacionar em Calcedônia”, ele julga ilícito tirar qualquer
conclusão baseada nas definições da célebre assembléia. Entre os erros, devidos ao
esquecimento desta regra, figura a teoria da anhypostasia, que, segundo Korff, está em
oposição flagrante com a figura do Cristo evangélico. “O Jesus dos Evangelhos, longe
de dar a impressão de possuir apenas uma natureza humana personificada no Verbo
Divino, aparece sempre como que dotado de uma consciência plenamente humana.” A
natureza humana não é mero órgão impessoal do Logos: o Jesus dos textos sagrados é
um homem que luta, que ora, que crê. Como seria possível esta atitude constante e
evidente de Jesus, no caso de lhe faltar o “ego humano” com a sua autodeterminação?
“A tendência de tocar no ‘como’ da Encarnação levou os teólogos à doutrina da
apersonalidade, necessária para evidenciar como duas naturezas podem, juntas, formar
unia só Pessoa.” Seu raciocínio é este: se há duas naturezas e urna só Pessoa, é evidente
que ambas as naturezas não podem ter caráter pessoal. Ora, à natureza Divina compete
necessariamenie a tal personalidade; portanto, é à natureza humana que deve ela ser
negada. Aparentemente, temos aqui unia conclusão lógica irrefutável. Mas, para Korff,
a lógica não procede das profundezas do mistério, só gerando um excesso desmedido de
conclusões incertas. Vejamos só o caso em foco: as ilações lógicas das premissas
calcedônicas atentam à integridade da natureza humana de Cristo, pelo que entram em
136
conflito com as mesmas piemissas conciliares, (Constantinopla, 553). Korff denuncia
aqui uma confusão de caráter nionofisita: nega-se à humanidade de Cristo suas
propriedades autônomas e naturais. A natureza humana carece de hipóstase, de
personalidade própria, sendo, portanto, absorvida pela natureza Divina. Korff esclarece
ainda mais o seu ponto de vista quando rejeita os argumentos de Barth: “A ênfase com
que Barth defende a anhypostasia vincula-se em sua tendência para subestimar a
humanidade de Cristo.” Qualquer argumento em abono da apersonalidade não evita o
fato de que a natureza humana de Cristo seja despojada dum elemento essencial, qual é
a Pessoa. Em resumo, Korff defende a integridade humana de Cristo e denuncia, na
doutrina da anhypostasia, uma forma de Docetismo radicalmente condenada pelos
textos evangélicos (Christologie, 1, 194ss).
Juntamente com ele, luta o Dr. Althaus (Die Christliche Wahrheit, EI, 225), igualmente
persuadido de que a anhypostasia constitui um atentado contra a autêntica unidade de
Cristo e contra a veracidade da Encarnação. “Não é possível distinguir entre naturezas e
Pessoa. A personalidade é essencial à natureza humana. Toda a teoria “anhypostática”
mutila a verdadeira humanidade de Cristo e deixa inexplicado o seu “ego” humano, que
crê e ora, que agoniza e é tentado, coisas todas impróprias do Verbo. Chegou-se a esta
teoria porque não se podia aceitar a tensão paradoxal entre o vere Deus et vere homo, e
porque se queria idealizar tanto a Divindade quanto a humanidade de Cristo e construir
uma categoria racional do Deus-homem. O caminho da fé foi sacrificado aos postulados
da lógica.
***
Estas críticas são suficientes, por enquanto: revelam bem o âmago do problema e sua
importância. Está em questão a veracidade da natureza humana de Cristo.
Evidentemente, os defensores da anhypostasia negam qualquer intenção de desvalorizar
a humanidade do Senhor e repudiam toda a acusação que lhes é feita neste sentido. É,
pois, de suma importância pesar os argumentos dos que crêem necessária a doutrina da
apersonalidade da natureza humana. Comecemos expondo as considerações de Barth,
que, já em 1927, defendia esta tese. Ele julga necessária a afirmação de que Deus é o
único sujeito da Encarnação, a única Pessoa-agente. A iniciativa Djvina não tolera outro
sujeito de ação neste grande mistério. “A humanidade de Cristo é simples predicado de
sua Divindade” (Proleg. 1927, pág. 262), o que não afeta a realidade da natureza
humana do Cristo. Tal é o ensino da antiga Cristologia. Tanto católicos quanto luteranos
e calvinistas concordam na anhypostasia e na enhypostasia da humanidade de Cristo.
Por anhypostasia entenda-se que a natureza humana de Ciisto não pode estar um só
momento fora do Logos, enquanto a enhypostasia proclama que a realidade da natureza
huniana é, de forma concreta, a realidade do Senhor agente. A aversão (la nova teologia
por esta doutrina tradicional, na opinião de Barth, prova uma inquietante falta de
objetividade; pois é precisamente esta unia doutrina de tremenda vitalidade, que coloca
o mistério de Cristo exatamente na decisão da iniciativa Divina e da fé humana.
Ulteriormente, Barth insistiu ainda mais em defender esta doutrina que a decisão de 553
elevou, em sua opinião, à categoria de dogma: “A decisão de 553 rejeitou a teoria de
uma dupla existência em Cristo, ou Seja, (te uma existência como Logos, e de outra
existência como homem, teoria que inevitavelmente acarretava 1)ocetismo ou
Ebionismo.” Contra o Docetismo, Barth demonstra que a natureza humana, de modo
nenhum é lesada, se for privada da personalitas. Aliás, denuncia, na base do velho
conflito docelista, uma falsa compreensão do vocábulo personalidade. Personalidade
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
137
não era outra coisa senão individualidade: jamais a velha doutrina negou
individualidade à natureza humana de Cristo. Infelizmente, para certos teólogos,
personalidade significava a própria existência, o Dasein. A intenção dos defensores da
anhypostasia era de reivindicar que a humanidade de Cristo não tinha existência por si,
o que, traduzido em termos mais positivos, pode ser formulado da seguinte maneira: “A
carne de Cristo existe pelo Verbo e no Verbo, sendo este Verbo o próprio Deus a agir
como revelador e reconciliador.” Assim a anhypostasia proclama a realidade de uma
iniciativa soberana de Deus, diferente de qualquer outro evento. A realidade desta
iniciativa única existe, como tal, somente em virtude da Palavra de Deus. O homem
Jesus Cristo, enquanto homem, não tem modo próprio e singular de existir, não tem
essência, ou vida, suscetível de ser considerada em si e para si, ou de possuir sentido em
si e por si; o homem Jesus Cristo tira sua existência imediata excIuivamente da
existência do Filho Eterno de Deus. Barth, mediante esta anhypostasia, acautela-se
contra o Ebionismo, originado de uma falsa idéia da personalitas e que fez o povo
entusiasmado prorromper em louvores: “Este é Deus!” ou, em outros termos: “Jesus de
Nazaré, homem antes independente, agora é assumido por Deus como Filho.”
Barth não aceita, pois, qualquer forma de Docetisino. Sem nada retirar da perfeição e
integridade da natureza humana do Cristo, rejeita a existência abstrata, em si e paia si,
do homem Jesus de Nazaré.
***
Tal ponto de vista é defendido igualmente por W. J. Aalders, que enfatiza especialmente
a enhypostasia como apta para representar a união do Divino e do humano em Jesus
Cristo. A Pessoa Divina toma sentido na existência do Deus-homem; mas a pessoa
humana, ausente, é super-realizada na existência pessoal do Logos. “A natureza
humana, longe de ser decapitada, é supercapitada.” Esta expressão original nada afirma
de novo: a natureza humana do Cristo não existe como pessoa subsistente, que entraria
em composição com a Pessoa Divina, mas ela existe no Logos Divino. Leôncio
Bizantino, influenciado por Aristóteles, fala da natureza Divina como Forma, e da
natureza humana como Matéria informada pela natureza Divina; em aparência o
problema crislológico acha, assim, sua fórmula adequada. Posteriormente, esta fórmula
degenerou até “negar a relação mecânica e reconhecer a relação orgânica entre o Divino
e o humano em Jesus Cristo”. A carne do Cristo não é assim impessoa1, sem mais nem
menos, mas foi elevada na existência pessoal do Filho de Deus. Aalders enumera entre
os adeptos desta interpretação Damasceno, Tomás de Aquino, Calvino, Zanchius,
Bavinck e Barth. A humanidade de Cristo não foi desvalorizada por estes pensadores,
mas considerada como um órgão sem excedentes, assumida por aquele que devia servirse dela. Humanidade, portanto, nem decapitada nem interceptada, mas elevada e
exaltada pela união com o ser Divino, na Pessoa do Filho de Deus.
A título de ilustração, citenios ainda o pensamemito de Bavinck: “A união das naturezas
em Cristo só pode ser imaginada como a união da Pessoa do Filho com a natureza
despersonificada do homem. Isso por que, se a humanidade de Cristo tivesse possuido
uma existência pessoal, Cristo teria sido apenas um homem, em estreita comunhão com
Deus.” Quanto à fórmula “natureza impessoal”, Bavinck explica que ela não significa
“a humanidade universal, ou seja, a Idéia platônica da natureza humana”. Não, a
natureza humana de Cristo era, sem dúvida, individual, corno o provam suas
propriedades. Entretanto, Cristo não era um indivíduo ao lado de outros, porquanto sua
humanidade não possuía nele urna existência própria e pessoal ao lado do Verbo, mas
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
138
foi preparada inicialmente pelo Espírito Santo para a união com o Verbo e para sua
obra, de tal maneira que ela pudesse representar, no Verbo Encarnado, todo o gênero
humano e que Crísto pudesse ser mediador de Deus para todos os homens, séculos,
lugares e raças. A idéia de Bavinck é clara: nenhuma desvalorização, fosse qual fosse,
da humanidade em Cristo, mas “a natureza humana, formada em e de Maria, não existiu,
em momento algum, em si mesma ou por si mesma, mas foi unida com o Filho, Pessoa
Divina, desde o primeiro instante de sua concepção, e nela assumida”. O que de modo
nenhum acarreta que esta natureza humana seja incompleta; pois, longe de se tratar,
aqui, de uma deficiência ou falha em Cristo, a carne do Verbo é que se tornou a forma
da existência humana do Verbo. A natureza humana fica, pois, subordinada ao Verbo.
***
Resumidas assim as diversas posições teológicas, evidencia-se que o núcleo do
problema baseia-se na veracidade da natureza humana do Senhor. Colocando o assunto
numa interrogação só, perguntamos: Porventura a anhypostasia conduz ao
Monofisismo? Cabe fazer, antes de mais nada, uma distinção entre a maneira como
Leôncio Bizantino resolvia o problema e a maneira como ulteriormente a Igreja e a
Teologia encararam a anhypostasia. Logo, sem desconhecer a ameaça perene do
Monofisismo na teologia, sejamos prudentes e não julguemos levianamente a teologia.
Sobram provas de que a Igreja se acautelou sempre contra o Docetismo: não satisfeita
em condenar Apolínário e Eutiques, anatematizou também o Monotelismo (680). Não
deixa, entretanto, de surpreender que Korff rejeite tanto a unhypostusia quanto a
condenação do Monotelismo: a anhypostasia parece-lhe atentado contra a natureza
humana de Cristo, exatamente contra esta natureza humana que a Igreja, em 680,
defendia contra o Monotelismo. Cabe, portanto, examinarmos basicamente o que se
entendia então por anhypostasia. Desde já, conste que este termo foi usado e ainda é
usado sem a mínima intenção de diminuir a natureza humana do Senhor.
***
Repetidas vezes a teologia calvinista usa o teimo anhypostasia para indicar a união das
duas naturezas, não, porém, em sentido apolinarista. Com a apersonabdade ninguém
pretende amputar algo da natureza humana de Cristo nem desfigurar sua estrutura
humana. Ninguém quer decapitar a liumanidade de Jesus, mas explicar sua união com o
Verbo; união sem prejuízo do vere homo. Ninguém pretende romper com a Confissão
de Calcedônia, mas continuar na linha do importante concílio. Quem confessa o vere
Deus et vere homo, ou seja, Deus e homem com suas propriedades e atributos, obriga-se
a reconhecer o Divino e o humano reunidos em Cristo, sem que tal união lese a
majestade do Ser Divino nem a condição do Ser criado. Daí surgiu a idéia da
anhijpostasiu: união, mas não qualquer união, senão união típica do Filho de Deus,
verdadeiro Deus e Luz da Luz, com a natureza humana. Esta foi, exatamente, a vocação
da Igreja: confessar que, nesta majestade soberana do Verbo Divino, a humanidade não
foi absorvida. As duas substâncias não se confundiram misteriosamente, mas a Pessoa
do Filho assumiu urna verdadeira natureza humana. Na idéia da anhypostasia nada é
vicioso, se o motivo radica1 for puro. Sem dificuldade, o Monofisismo pode, de fato,
deturpar a doutrina “anhypostática” para absorver a humanidade na Divindade do
Cristo. Nem por isso é lícito julgar imprudente o uso desta doutrina nem condenar os
termos anhypostasia e enhypostasia, criados para expressar que a natureza humana de
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
139
Cristo não existe em si mesma, mas so tem consistència na Pessoa Divina. 1 Quando
procede de mente e coração retos, a doutrina da apersonalidade não destrói a natureza
humana do Crislo, mas expressa a radical fidelidade às normas de Calcedônia,
confessando que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Diante dos inegáveis
perigos monofisitas, é compreensível a preferência dada por alguns autores ao termo
enhypostasia, para deixar claro que não queriam afirmar ser Cristo “impessoal”, no
sentido de que um elemento humano seria negado à natureza humana de Cristo. O termo
enhypostasia manifestava bem o propósito antinestoriano dos teólogos hostis a toda
substancialização da natureza humana do Crislo e desejosos de conservar o mistério.
Aliás, convém lembrar sempre que a Igreja não faz questão de guardar certos termos
consagrados, mas de conservar a doutrina que os tais termos expõem.
Mencionemos que certos teólogos desconfiam do termo em foco, por ver nele uma
eterização da natureza humana de Cristo. Assim, Korff reagiu contra aquilo que Aalders
chamou de “supercapitação” da natureza humana: não podia aceitar que a natureza
humana de Cristo fosse reduzida a ser um mero órgão impessoal a serviço da
Divindade. Esta função de mero órgão contradiz a idéia de uma natureza humana, plena,
viva, dinâmica. Esta observação sublinha a necessidade de muita clareza no uso dos
termos, se queremos evitar ser acusados de Docetismo. Afinal, todos desejamos estar
unidos na base do credo de Calcedônia. Que nos não divida um vulgar vocabulário malentendido!
Deparamos, assim, com uma controvérsia surgida entre nós, calvinistas, e que não seria
honesto passar sob silêncio. Trata-se da discussão provocada por Vollenhoven,que
Investiu contra a anhypostasia como termo filosófico. Ele desejava manter,
simplesmente, a confissão da unio personalis, mas foi atacado por Hepp. Seguiremos,
em linhas gerais, este debate típico, confiados de assim iluminar mais plenamente o
problema cristológico.
Vollenhoven observou que o anhypóstaton (apessoal), por volta do ano 360, significava
“carente de pessoa (Divina)”. Esta observação inicial sugere-lhe a seguinte reflexão:
“No entanto, teólogos há que pretendem que a natureza humana do Cristo, embora não
carente de pessoa, é apessoal: tal expressão, sem corretivos, não passa de Monofisismo
e deve ser rejeitada.”
Evidentemente Vollenhoven entende por apessoal, não o que não tem pessoa, mas o que
não tem pessoa humana. Assim foi como se gerou uma controvérsia que mereceu a
atenção dos teólogos durante os últimos anos.
Notemos que a critica de Vollenhoven segue a orientação de Korff, e pela mesma fobia
do Monofisismo, como consta da sua visão histórica da Cristologia. Voilenhoven
analisa especialmente a tragédia de Apolinário, que decapitou a natureza humana do
Cristo, e substituiu-lhe algo próprio do Verbo Divino, “o que é um perigo mortal”.
1
Notemos como falam, a este respeito, a teologia luterana e a calvinista: anhypostasia e enhypostasia são
dois aspectos dla mesma coisa. Quenstedt, o clássico luterano, distingue da seguinte maneira:
“Anhypóstaton é aquilo que não subsiste por si e segundo sua própria personalidade; enhypóstaton é
aquilo que subsiste em outra hipóstase ou participa da personalidade de outro.” Assim: “O Filho de Deus
assumiu a natureza humana, carente de hipóstase própria, na unidade de sua hipóstase Divina”
(Catecismo de Heidelberg). “O Filho do Homem, desde o momento de sua concepcão, assumiu na
unidade de sua Pessoa, não alguma pessoa preexistente, mas a natureza humana ‘anhypostática’, carente
da própria hipóstase e subsistência, tornando-a própria de tal modo que a carne não tem subsistência fora
do Filho de Deus, mas existe nele. Subsiste, sustentada e levada por ele” (Synopsis).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
140
Ecoando os Capadócios, escreve: “Se Cristo não era homem perfeito, os homens não
foram perfeitamente redimidos pelo sacrifício da Cruz; e, calda a satisfação, ali também
a certeza da fé.” Em Apolinário, Vollenhoven denuncia a idéia da “soberania do
pneuma impossibilitando a união ao Verbo”. A partir desta soberania do pneuma
tornando impossível a união hipostática, é que se deve compreender as dificuldades de
Apolinário. Passando de frente, Vollenhoven tem o agrado de constatar que Agostinho
distingue entre Pessoa e pessoa em Cristo, indo de encontro ao problema das “duas
vontades”, situadas no mesmo plano que as “duas hipóstasei” e os “dois egos”, etc.
Entretanto, Vollenhoven rejeita energicamente a união moral nestoriana entre duas
pessoas, igualmente soberanas, e fala da “relação totalmente única entre Deus e o
homem na Pessoa do Mediador”. A meu modo de ver, o fundamento das críticas de
Vollenhoven contra o tradicional anhypóstatos encontra-se nas seguintes considerações:
se anhypóstatos significa carente de pessoa humana, não há humanidade plena e
estamos a braços com o Monofisismo. Portanto, lesa-se o mistério da perfeita união.
Evidentemente, baseando-nos nestas considerações, nunca acusaremos Volienhoven de
diminuir a plenitude da união das naturezas na Pessoa do Mediador. Mas vemos aqui,
tipicamente, a que leva a má compreensão dos termos tradicionalmente usados.
Aconteceu, no entanto, que esta questão adquiriu importância para a Igreja, porque
Hepp, baseado na crítica de Vollenhoven, concluiu na necessidade de verificar uma
falha dogmática na confissão cristológica. Folga entrar em todos os aspectos dogmáticohistóricos, mas torna-se-nos imprescindivel examinar se, vistos os argumentos do
conflito, a rejeição da apersonalidade humana de Cristo, ou seja, da anhypostasia
tradicional, contraria, de fato, o dogma cristológico calvinista. Vejamos, pois, as razões
de Hepp.
***
Hepp admite a contradição entre Vollenhoven e as confissões calvinistas. Citemos
apenas o art. 19 da Confissão Holandesa: “Cremos que, em virtude de sua concepção
carnal, a Pessoa do Filho foi unida e ajuntada indissoluvelmente à natureza humana, de
tal modo que não resultem dois Filhos de Deus, nem duas pessoas, mas duas naturezas
unidas numa só Pessoa, embora cada natureza conserve suas propriedades específicas.
Hepp compreendeu a cláusula “nem duas pessoas”, da seguinte maneira: “Será possível
entender isto em outro sentido senão que esta Pessoa única é a Pessoa do Filho?”
Embora o termo anhypostaticum não figure no texto, este o pressupõe e o traduz
evidenteniente. Portanto, Voilenhoven afasta-se muito da fé calvinista. Em muitos
outros contextos, nossas confissões pressupõem igualmente a doutrina da
apersonalidade da natureza humana.
Vollenhoven, a juízo de Hepp, logicamente devia denunciar as confissões calvinistas
como monofisitas e seminestorianas. As nossas fórmulas de fé, com clareza meridiana,
ensinam a apersonalidade da natureza humana de Cristo, embora proclamando a
perfeição e genuinidade da mesma. O ponto de vista de Vollenhoven rompe não apenas
urna formulação eclesiástica, mas a unidade pessoal de Cristo, pois quem nega que a
natureza humana carece de personalidade em Cristo, admite necessariamente dois
“egos” em Cristo, um ego humano e um ego Divino, ou sejam, duas pessoas.
O problema não está solucionado ainda: falta saber o que Volienhoven entende poi
“pessoa”. Hepp denuncia, precisamente, um mal-entendido latente em toda a dialética
de Voilenhoven, devido a um conceito errado do que é pessoa. “Quem carece de pessoa
não pode ser homem perfeito”: este princípio, invocado enfaticamente contra a teologia
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
141
tradicional, faz desviar o assunto para o terreno científico. Hepp reivindica justamente e
defende os velhos conceitos. “Ser pessoa diretamente em nada tem a ver com ser
homem, mas com o modo humano de existir; portanto, carência de personalidade
humana em Cristo não acarreta urna diminuição qualquer de sua verdadeira
humanidade... Conseqüência da personalidade é a unilateralidade... mais uma razão para
negar a personalidade humana de Cristo... Se houvesse em Cristo uma pessoa humana,
como homem Cristo seria forçosamente unilateral e necessitado de complementação, ou
seja, exatamente daquilo que a Escritura não lhe reconhece.. . porquanto seria rebaixar o
Cristo. Atribuir personalidade humana ao Senhor equivale carregá-lo com a
unilateralidade humana” (A União das Duas Naturezas em Cristo, 1937, pág. 32).
Percebe-se, nesta discussão, urna compreensão divergente do conceito de
“personalidade”. Para Hepp, personalidade acarreta sempre unilateralidade. Para quem
procura uni conceito científico, a terminologia eclesiástica suscita reparos. Mas as
confissões ristãs não se preocuparam com o conceito científico que divide Volienhoven
e Hepp; contentaram-se em declarar que não há dois filhos em Cristo nem duas pessoas,
protestando, porém, in limine, contra qual quer interpretação nestoriana. Expressaram,
pois, que não se trata — no mistério cristológico — da união do Filho com um homem
que subsistisse por si mesmo e pudesse ser considerado em si mesmo. Não, mas a
Pessoa do Filho está indissolúvel e imperscrutavelmente unida à natureza humana, não
deixando lugar à dualidade de pessoas ou de filhos. A nossa Confessio Belgica não se
afasta dos credos redigidos no século V, não determina o que pertence ou não pertence à
natureza humana, nem pretende fornecer qualquer informação relativa à Antropologia
dos redatores, mas expressar simplesmente a fé da comunidade que a Igreja deverá
defender contra quem intentasse corrompê-la. A Igreja opor-se-á sempre contra quem
separa as duas naturezas de Cristo, mas também contra quem atenta ao mistério de sua
única Pessoa. Não procura explicar, mas manter, contra qualquer substancialização da
natureza humana, o mistério da união das duas naturezas. Isto não significa que
possamos concluir com determinada estrutura da natureza humana, pois, a este respeito,
os credos nunca pretenderam confirmar ou afirmar qualquer teoria antropológica. Os
credos ignoram, portanto, que “personalidade acarreta unilateralidade”. Grandemente
nos servem os credos, porque nunca aceitaram tornar-se joguete de discussões
científicas e antropológicas. Mencionaram a Pessoa do Filho, o qual, de fato, assumiu a
natureza nossa, da carne e do sangue da Virgem Maria. Exclui-se uma união mecânica
de duas substâncias, e proclama-se o ato do Verbo, a iniciativa de Deus, assumindo em
si a nossa carne. Seria errado, portanto, pretender extrair do mencionado art. 19 que a
apersonalidade do homem Jesus seja um dogma eclesiástico, mas é correto deduzir que
o Logos não se uniu com um homem Jesus independente. A diferença salta à vista. No
primeiro caso seria preciso partir de uma definição do conceito da personalidade. Hepp
promete fazê-lo, consciente das exigências lógicas de toda controvérsia. No segundo
caso, abstrai-se de toda conceituação científica, sem permitir que qualquer
substancialização da natureza humana desvirtue o mistério da união das duas naturezas
em Cristo. Este mistério situa-se, precisamente, no fato de que Cristo foi um verdadeiro
homem completo, unido ao Verbo de Deus, e não um homem adotado.
O fato de Voilenhoven negar sua intenção de enfatizar a personalidade humana de
Cristo demonstra que tocamos aqui no problema básico. Se ele rejeita a apersonalidade
humana, não o faz para substancializar esta natureza e dar-lhe existência própria e
independente. Mas impressiona-o o fato de nestorianos e adocianistas considerarem
como pessoa “a natureza humana do Mediador, a despeito desta nunca ter subsistido em
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
142
si mesma, mas existencialmente unida ao Verbo”. Vollenhoven considera este erro
gravissimo e protesta professar de coração a misteriosa unidade de Cristo.
***
É interessante constatar que, afinal de contas, Voilenhoven, com sua distinção entre
Pessoa e pessoa em Cristo, enquadra-se bem dentro da doutrina clássica da
enhypostasia. Sutilmente, ele distingue entre anhypostasia e enhypostasia, lavando a
enhypostasia de toda mácula monofisita; mas não assim a anhypostasia, acusada de
reduzir a humanidade de Cristo. Entretanto, consta que ambos os termos são usados nas
teologias calvinista e luterana, sem especial cuidado de delinear urna distinção entre
eles. Anhypostasia expressa a existência condicionada e dependente da natureza humana
em Cristo, enquanto enhypostasia expressa que esta natureza humana de Cristo só existe
no Verbo. Não se vê Monofisismo nenhum no pensamento dos reforinadores; acontece,
sim, que se não lhes compreende a terminologia.
Se nos colocarmos no ponto de vista histórico, caro ao nosso autor, descobriremos o
porquê de sua fobia da anhypostasia, cheia de perigos para a verdadeira natureza
humana de Cristo. Essas ameaças, porém, não justificam a rejeição de termos
suficientemente conhecidos e aclarados pelo uso geral e, no pior dos casos, explicados
pelo contexto inalterado de toda uma Cristologia bem coerente. Apersonalidade humana
em Cristo nunca significou para os Reformadores uma natureza humana truncada, mas
traduziu muito bem seu total repúdio de qualquer forma de Adocianismo e de
Nestorianismo.
***
E a Igreja? Porventura acolheu em algum de seus credos o termo anhypóstatos? Não o
fez nas confissões calvinistas, embora admitindo claramente a doutrina contida no
têrmo. Tampouco o fez nos primeiros concilios de Constantinopla (553) ou de Toledo
(794), onde esta doutrina fora especialmente considerada e resolvida no sentido da
apersonalidade humana de Cristo. Em Toledo, tratava-se de condenar o Adocianismo,
porquanto este ensinava que a natureza humana do Salvador comportava substância
pessoal e subsistência autônoma, de tal modo que professavam em Cristo duas filiações
distintas: a do Verbo, filho natural de Deus, e a do homem Jesus, filho de Maria adotado
por Deus. O Concílio de Toledo opôs a este erro a doutrina das duas naturezas
pessoalmente unidas. Em ambiente tão naturalmente propício, não conseguiu entrar o
termo anhypóstatos, como tampouco se infiltrou qualquer preocupação por alguma
antropologia científica.
Num capítulo intitulado “O Verbo Não Assumiu a Personaidade Humana” (Encarnação
do Verbo, Cap. VIII), A. Kuyper aclara ainda mais a questão da apersonalidade humana
do Cristo. Considera de capital importância a resolução deste ponto cristológico e
decisivamente condena os adeptos de Fichte, que reivindicam a personalidade humana
de Cristo, da qual as Escrituras não fazem menção alguma, mas que certa dogmática
pondera desmedidarnente. Com vigor, Kuyper polemiza contra aqueles que dão para
falar da “encarnação” de Deus no sentido de “revelação da essência Divina num
homem”. Refuta também aqueles que colocam em primeiro plano a personalidade
humana de Jesus, na qual Deus se revela: “estes, praticamente, eliminam o Mediador
Jesus Cristo.” Opõe-lhes a confissão inalterada da Igreja: Cristo reúne em si,
pessoalmente, a natureza Divina e a natureza humana. Com a proposição “O Verbo não
assumiu a personalidade humana”, Kuyper pretende debelar urna forma moderna de
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
143
heresia, qual seja, a afirmação de que Deus se revela na pessoa subsistente do homem
Jesus Cristo.
De tudo que precede infere-se a importância de nossa terminologia acerca da natureza
humana assumida pelo Verbo. Além de muitos outros perigos, a Igreja viu sempre com
horror o Adocianismo, um atentado contra a verdade da Encarnação. Mas como evitar o
Adocianismo sem cair no Monofisismo? A pergunta surgiu mais concretamente no surto
adocianista espanhol já mencionado. Felício de Urgel ensinava que Cristo, segunda
Pessoa da Trindade e Filho natural do Pai, era distinto do Filho do Homem Jesus,
adotado pelo Verbo. Jesus homem foi predestinado a unir-se com o Filho de Deus. A
Igreja discerniu, nesta doutrina, urna dualidade de pessoas em Cristo e, repetidas vezes,
condenou Felício e seus sequazes (Ratisbona, 792; Frankfurt, 794; Aquisgrano, 799). A
condenação explicitarnente aludia à impiedade nestoriana, que dividia Cristo em duas
pessoas, em dois filhos, em Filho natural e em Filho adotivo de Deus. Seeberg (Dogm.
III, 57) julga que esta condenação do Adocianismo foi fatal ao desenvolvimento
cristológico, porquanto definiu unilateralmente a fé na Divindade de Cristo, fechando o
caminho às pesquisas sobre a humanidade do Senhor. Harnack chega à mesma
conclusão: procura reabilitar a Elipando, o qual, fiel adepto da Cristologia agostinocalcedonense, falava a linguagem comum a todos os teólogos, falava em assumptio
hominis e não em assumptio humanae naturae. Harnack e Seeberg não compreendem a
razão do repúdio ao Adocianismo. Este podia ofender o conceito grego que, fazendo a
natureza humana participar do Logos e sua glória, não consentia qualquer dualidade.
Mas, no Ocidente, não reinava esta mistica grega da total e inseparável união do Divino
e do humano em Cristo. Elipando e Felício de Urgel queriam destacar o que houve em
Cristo de perfeitamente humano. A condenação de sua doutrina acarretou a eliminação
da Cristologia ocidentalagostiniana, varrendo os derradeiros e tão significativos residuos
de uma compreensão histórica do Cristo. Todavia, essas críticas não significam que
Harnack aceita a Cristologia agostiniana; pelo contrário, Harnack mostra como esta
naufragou definitivamente na Espanha, em virtude de sua própria incoerência, uma vez
que situava, atrás do homem Jesus, eleito por Deus, o Deus-Verbo. Não obstante esta
incoerência, havia ainda um derradeiro residuo, urna lembrança da figura humana e viva
de Jesus, o Nazareno. A condenação do Adocianismo mutilou irrevogavelmente essa
figura. As advertências apaixonadas de Elipando contra a lesão da genuína humanidade
de Cristo e, portanto, contra o Docetismo, não salvaram o Ocidente. Este, embriagado
pela mistica oriental da unidade, fechou os ouvidos e abandonou, nesta crise, o que
ainda se podia qualificar de valioso na tradição agostiniana. Começou-se a ensinar que o
Deus-Verbo a ;sunliu em si a natureza apessoal do homem, fundindo-a na plena unidade
de seu Ser. Metodicamente, Alcuíno pôs-se a liquidar o testemunho dos Evangelhos,
como seus mestres, monofisitas e criptomonofisitas, para os quais Cristo não era pessoa
humana: pois eles eliminaram a Encarnação, a benefício da Divinização (Harnack,
Dogm. III, 256ss).
Esta crítica revela bem a aversão de Harnack pelo símbolo calcedonense. De fato,
Harnack descobre o Adocianismo na ideologia de Calcedônia e julga poder sustenlar
sua opinião porquanto o conceito de adoptio estava então muito generalizado.
Indubitavelmente encontramo-lo já na Cristologia de Agostinho. Mas — Harnack o
reconhece — este termo era raro na literatura antiga. A sistematização de Harnack,
afetada pela sua aversão ao dogma cristológico da Igreja, não considera esta parcimônia
que permitia a Alcuíno falar de uma novidade, a propósito da palavra adoptio. Harnack
admite que a palavra adoptio tem um sentido agostiniano, perfeitamente correto; mas,
não percebe que esta mesma palavra é suscetível de designar coisas muito diversas na
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
144
boca de um nestoriano. Entretanto, reconhece que Felício de Urgel foi bem mais longe
do que Agostinho — não satisfeito com falar em adoção e ligar esta idéia à unidade
pessoal de Cristo, Felício distinguiu claramente as duas naturezas e tentou construir uma
explicação clara de como a adoção do Homem Jesus se teria consumado na Encarnação
do Verbo. Chegou a idealizar um homem ligado à Divindade, declarando que Jesus
Cristo tinha dois pais: um natural (Davi) e um adotivo (Deus), cumprindo, portanto,
falar de um duplo nascimento. Nada disto ignora Harnack, mas, assim niesmo, ele
sustenta que o Ocidente renegou Agostinho e Calcedônia, em favor da mística do
mistério. Harnack conclui que, evidentemente, pouco caso se faz dos verdadeiros
motivos da luta cristológica. O Adocianismo foi condenado pela Igreja, não por
defender a veracidade da natureza humana do Cristo, mas por lesar o mistério da
unidade pessoal e introduzir duas pessoas no Verbo encarnado. A rejeição conciliar
demonstra que não é possivel honrar Cristo, segundo as Escrituras, mediante uma
simples manipulação do conceito de adoção.
***
No litígio em torno ao Adocianismo, encontramos, fornecido pela História, o motivo
mais evidente que inclinou a teologia a formular sua doutrina da apersonalidade
humana do Cristo. Se, na realidade, as coisas tivessem acontecido tal como Harnack
imagina, a Igreja teria caído no Monofisismo docetista, já na Idade Média e
especialmente na era da Reforma, lesando a genuinidade da natureza humana do
Senhor. Mas as coisas se passaram de outra maneira.
A Igreja, opondo-se ao Adocianismo, não prestava a menor atenção às reivindicações
monofisitas, mas escutava a Revelação das Escrituras, igualmente escrupulosa de evitar
ambas as heresias — a adocianista que exaltava a Pessoa humana de Cristo, e a
inonofisita que exaltava o mistério de uma natureza Divino-humana. A história dos
dogmas multiplica as advertências contra ambos os excessos. A palavra adoptio pode
ser deturpada; pode ser usada, com a mais legítima intenção de acentuar o elemento
humano em Cristo e, entretanto, expressará uma ideologia adocianista, mais ou menos
consciente. Mas igualmente pode ser deturpado o conceito da anhypostasia até o
extremo de resolver no Divino todo o elemento humano do Senhor. O caminho de
Calcedônia passa entre ambos os extremos. Eis por que, na definição cristológica, o
termo anhypostasia não será usado oficialmente: seu uso e interpretação diferem
demasiadamente. Qualquer decisão a seu respeito obrigaria a Igreja a determinar seu
pensamento acerca do conceito de “personalidade”. Os termos através dos quais a
teologia expressou suas idéias, após árduas lutas, foram determinados por forças
históricas e, não poucas vezes, antiteticamente. Controversistas usaram a palavra
anhypostasia simplesmente para amedrontarem contra o Docetismo. Outros,
evidentemente, usaram-no com a intenção, bem ortodoxa e calcedonense, de salvar as
propriedades específicas de ambas as naturezas.
A Igreja, pois, não quis acrescentar um novo elemento à Calcedônia. Sua preocupação
foi de afirmar que, na união das duas naturezas, manifesta-se a iniciativa do Filho de
Deus assumindo a nossa natureza. Nem Monofisismo nem Docetismo. Também não
sentiu a necessidade de fixar, dogmática ou confessionalmente, o conteúdo dos termos
enhypostasia e anhypostasia que, em si mesmos, são perigosos demais e pouco aptos
para servir à confissão do Vere Deus et Vere homo. Era suficiente manter as declarações
mil vezes feitas: Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem e tanto Deus como o
homem conservam suas propriedades específicas na união hipostática.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
145
Esta união é absolutamente única, incomparável e sem analogia, porquanto é iniciativa
eph’apax do Filho de Deus assumindo a natureza humana. A Encarnação é a obra do
Logos, o ato do Filho, fora do qual a natreza humana de Jesus Cristo não pode existir
nem uni só momento, nem sequer pode ser pensada. Eis por que o Adocianismo ameaça
uma Igreja, já alertada por tantos outros perigos, especialmente pelo Monofisismo e
pelo Docetismo. Foi certamente em virtude da assistência Divina que nunca a Igreja
desvalorizou a natureza humana de Cristo em beneficio da Divindade. Assistida pelo
Espírito, ela compreendeu que a Encarnação não é um paradoxo misteriosamente
irracional, uma síntese antagônica de duas substâncias, mas uma iniciativa salvadora do
Filho de Deus. Quando a Cristologia luterana devolveu atualidade ao prollema, a Igreja
Reformada Calvinista considerou, com extrema gravidade, não uma qualquer
supremacia irracional do Divino, mas a genuína Divindade de Jesus Cristo vista à luz
das Escrituras. Este esforço da teologia calvinista de entrar precisamente no âmago mais
misterioso do dogma devia ficar conhecido sob a rubrica um tanto terrível de extracalvinisticum. Na realidade, o Calvinismo defendia não uma verdade abstrata de maior
ou menor interesse teológico, mas a verdade básica da pregação eclesiástica: Cristo é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Nunta a Igreja tentou tornar evidente este
mistério, mas sempre pregou-o nas suas relações salvificas de que testemunha a
Escritura. A unidade da figura de Cristo, tal conto os Evangelhos no-la manifestam, só é
compreensivel à fé. A fé não investiga o grande mistério, mas vive em contunhão com
ele, ou seja, vive em Cristo que, sendo o Filho, fez-se um de nós. Não existe outra
maneira de respeitar o mistério, senão crer naquele que é a Vida Eterna.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
CAPÍTULO XIII – MISTÉRIO CRÍSTOLÓGICO
Sumário
Mistério e Revelação — Mistério, palavra bíblica — Mistério de Cristo — Mistério do
Anticristo — Conceito formal e uso popular — Mistério e irracional — Irracionalidade
em R. Otto — Imperscrutabilidade — Jesus Cristo e seu significado revelador — Uma
teoria do paradoxo: revelar ocultando — Os discípulos de Kierkegaard: Barth e Brunner
— Incógnita e kerygma — Incógnita não consente manifestação gloriosa — Barth e os
instrumentos da Revelação — Barth e Calvino — Kuyper e Böhl divididos — Böhl e
Calvino — A visão paradoxal da teologia dialética — Revelação-Ocultamento —
Crucificado o Senhor da glória — Corolários da teoria da Incógnita — O erro
fundamental da teoria da Incógnita — Nascimento virginal e Transfiguração — A
Encarnação e a Cruz encerram um paradoxo ontológico ou um simples paradoxo
lógico? — Resposta de Vogel: Deus contra Deum — A occultatio calvinista —
Occultatio e Kenosis — É a occultatio uma quase-kenosis? — Os argumentos de Korff
e sua via-média — Até onde cabe especular? — Oculto aos sábios, revelado aos
humildes — Quem exaurirá a Revelação de Cristo? — A propósito do final de João —
A fé vence os sofismas — A Igreja, fiel às Escrituras, vence a especulação — O Cristo
é o mesmo ontem, hoje e para sempre.
Temo-nos interessado até agora pelos diversos aspectos da fé ortodoxa relativamente a
Cristo, fé que pode ser resumida no lapidar vere Deus et vere homo. Não conseguimos
vencer a insondabilidade da Encarnação do Verbo nem climinar o “mistério inefável”
que fazia Calvino pasmar-se. Sempre muito consciente da imperscrutabilidade da
Encarnação, a Igreja nunca deixou de lutar contra toda tentativa de desvendar o segredo
da união hipostática. A História dos dogmas revela que tais tentativas resultaram sempre
em graves erros, quer fossem contra a dualidade de naturezas ou contra a unidade
pessoal de Cristo. Por outra parte, nunca bastou declarar que nos encontramos ante o
“mistério”, para não incidir em perigosos erros cristológicos. Quando a Igreja proclama
a santidade do mistério, ela declara a impossibilidade de elucidar o problema mediante o
raciocínio e, ainda mais, ela confessa que, mesmo nos pronunciamentos positivos dos
concílios e dos credos, nunca pretendeu superar o mistério nem dar-lhe uma
interpretação racional. Todavia, refugiar-se por detrás do mistério não pode satisfazer;
fechar a porta ao racionalismo não significa silenciar o que o próprio Deus revelou, nem
subestimar os dados escriturísticos relativos a Cristo, embora sejam de caráter supraracional.
Observemos ainda que o uso da palavra “mistério” não se limita exclusivamente à
Encarnação e à Cruz de Cristo. As Escrituras empregam este termo de diversos modos,
embora com referência a Cristo, o qual é, na expressão de Paulo, “o mistério de Deus”
(Cl 2.2). Paulo prega o “mistério de Cristo crucificado”, a palavra da Cruz (1Co 2.1; Cl
1.27), e menciona o mistério “de Deus revelado na carne” (2Tm 3.10). Não obstante, as
Escrituras conhecem um uso mais amplo e universal do termo; “nem sempre mysterion
recebe no NT seu conteúdo através da revelação de Cristo” (Kittel, Theol. Wörterb. IV,
pág. 829), pois também é usado em referência direta ao Anticristo que, desde já, influi
no “mistério da iniqüidade” (2Ts 2.7); a mulher do Apocalipse, montada na besta, leva
na fronte o rótulo “mistério” (Ap 17.5). Há, portanto, no reino do pecado e do opositor,
um quê de mistério, um modo escondido de trabalhar, contra o qual a comunidade deve
ser acautelada e advertida com gravidade escatológica.
147
Fora esta antítese evidente do mistério de Cristo e do modo de agir revelado por Deus
em Cristo, o perigo de subestimar o alcance da palavra mistério não é apenas
imaginário. Ocorre que, à salvação de Deus, aplicamos um conceito universal qualquer
de “mistério”, com a conotação implícita de algo que ultrapassa nossa inteligência,
sentido geralmente difundido entre o povo; este se satisfaz com a inação diante de
determinado assunto incompreensível e impenetrável. Daí o perigo de abordar o dogma
cristológico através de um conceito errado, formal e abstrato do mistério, e não mais
através do conteúdo concreto do “mistério de Deus”. Este perigo podia ser evitado,
restringindo-nos ao modo de falar escriturístico, quer em se tratando do mistério de
Deus, Jesus Cristo, quer em se tratando do mistério satânico, antítese direta do mistério
de Deus e do modo Divino de operar nossa salvação. Infelizmente, estas prudências não
se observaram, resultando que, posteriormente, só se entendera, por mistério, o dogma
que, como tal, nunca é abordável para a inteligência e que toda a discussão ou negação
chega a profanar. A grave conseqüência acarretada por semelhante conceito do dogma é
que o mistério agora é separado do kerygma, enquanto para Paulo ele era a própria
matéria do kerygma (Kittel, opus cit., ibid.). Assim é como o mistério foi esvaziado e se
tornou um fenômeno paralelo ao mistério das religiões atraentes de iniciação mística.
Este desvio se observará particularmente na Igreja oriental, onde a falsa noção de
mistério, segredo irracional, permitirá a eclosão das múltiplas conseqüências
monofisitas e docetistas.
Qualquer reflexão sobre o mistério nos defrontará, pois, com a pergunta: o que se
entende por mistério? É compatível a idéia do mistério com a tentativa de racionalizar fé
e dogma eclesiástico? Na irracionalidade pratica-se aparentemente a humildade cristã,
mas, na realidade, o apelo ao mistério esvazia o credo da Igreja. Não é nossa intenção
negar a ninguém o direito de qualificar de “misteriosas” as coisas incompreensíveis da
vida. Todavia, é preciso refletir bem: quando usamos a palavra mistério para as coisas
de nossa fé cristã, podemos, porventura, dispensar-nos de um constante confronto com o
NT para saber se o mistério de que falamos é, de fato, “o mistério de Deus, Jesus
Cristo”, ou o fruto de nossas especulações abstratas? Não julgamos que o elemento
supra-racional esteja ausente da mensagem bíblica, pois a Escritura lança contínuas
advertências contra o orgulho da razão humana empenhada em devassar logicamente os
atos de Deus. Tanto o Antigo como o Novo Testamento erguem uma muralha contra
quem desejar apoderar-se de Deus racionalmente (Is 40.28), mediante os próprios
pensamentos. Paulo, mencionando os caminhos de Deus para a conduta de Israel e do
mundo, exclama, maravilhado: “Quão insondáveis são os seus juízos e quão
inescrutáveis os seus caminhos!” (Rm 11.33; 1Co 2.10).
Entretanto, não é lícito abordar e qualificar a salvação de Deus a paitir de um postulado
de incompreensibilidade vulgar. O mistério da salvação nada tem a ver com os mistérios
diários de nossa vida que desafiam a razão. A maneira especial da Divina ação
salvadora, o modo peculiar de Deus operar nossa salvação é-nos conhecido pela
Revelação. Nunca teremos, pois, o direito de objetar contra quem, mediante o exame
das Escrituras, se eleva até a realidade do mistério de Deus. Embora incompreensível, o
modo de operar Divino é declarado pela Revelação.
Nesta perspectiva, pode ser proveitosamente meditada a opinião de Calvino. Depois de
advertir contra a vaidade especulativa nas coisas da fé e lembrar a limitação de nosso
entendimento, o Reformador estigmatiza a preguiça de quem negligencia aquilo que foi
revelado: se bem que não nos pertença perscrutar o oculto, temos obrigação de
investigar o revelado Divino, porquanto, não o fazendo, acusaríamos o Espírito Santo,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
148
“o qual permitiria que fossem silenciadas entre nós as verdades que ele mesmo revelou”
(Inst. III, XXI, 1-3).
***
Essa questão torna-se especialmente importante em se tratando da fé cristológica. Todos
os problemas até agora ventilados surgem do depósito revelado. Foi grande, nos últimos
tempos, a tentação de abordar o problema hipostático a partir do ponto proibitivo do
mistério, esquecendo que a correlação das duas naturezas de Cristo, tal como aparece
nos textos sagrados, possui um significativo revelador. Longe de nós a pretensão de
tornar inteligível e transparente esta interrelação das duas naturezas. Entramos em
contato com a Revelação na obscuridade de nossa carne. Subsistirá, portanto, a
incógnita cristológica. Dela queremos tratar neste último capítulo.
***
Toda a problemática cristológica até aqui exposta converge, aliás, para esta pergunta
final: A humanidade de Jesus Cristo, como tal, revela ou, pelo contrário, esconde a
Deus? Esta formulação provisional coloca-nos novamente diante da questão das duas
naturezas, agora, porém, apontando para o seu significado revelador. Para nos orientar,
seguiremos a Emil Brunner, o teólogo da idéia da Incógnita crislológica. Brunner parte
do postulado de que a Encarnação de Cristo opõe-se frontalmente a toda religião ou
mitologia pagã, pois estas postulam sempre a possibilidade concreta de conhecer Deus
(E. Brunner, O Mediador, 1927). O Deus transcendente das mitologias aparece
repentinamente entre os homens, mediante teofanias milagrosas, e torna-se reconhecível
diretamente nessa revelação. O Deus da Revelação bíblica, inteiramente diferente,
chega a nós ocultainente. Sua Revelação é acompanhada, sempre e simultaneamente, de
uma ocultação; o ato de se revelar implica num ato paradoxal de se ocultar. O tema
constante da Bíblia não é o oráculo de Deus, mas “a condescendência de Deus
penetrando inteiramente na realidade nossa, humana e terrestre”. O grande mistério do
Cristianismo é a Encarnação do Verbo: Cristo encarnado reveste a humildade mais
desconcertante, mais distanciada da glória Divina. Paulo não vacila em usar a expressão
fortíssima de que Cristo assumiu nossa carne pecaminosa. “Impossível acentuar mais
vigorosamente a ocultação de Deus no não-Deus, naquilo que lhe é não apenas
diferente, mas contrário.” Cristo encarnado revela-nos o quê? Nele achamos uma face
sem glória, tropeçamos com a radical impossibilidade de conhecê-lo. Deus se revela em
Jesus Cristo, mas como? Encobrindo-se sob o véu da carne. Eis por que nunca podemos
contemplá-lo diretamente, mas exclusivamente pela fé; a fé supera o escândalo,
porquanto discerne a revelação escondida. Brunner cita enfaticamente Kierkegaard, 1 o
eloqüente pregador “da incógnita mais secreta e da mais absoluta impossibilidade de
conhecer Deus”. A revelação não suprime o mistério, mas acentua para nós este
mistério. Eis por que nos coloca na premência de decidir entre a fé e o escândalo. Nunca
Deus se revela diretamente, mas apenas num homem. Toda a vida de Cristo entra na
categoria do incógnito: ela revela ocultando.
Nesta perspectiva paradoxal é que Brunner evoca a figura de Cristo nos Evangelhos,
especialmente no de João. A figura joanina de Cristo não é, nem de longe, uma figura
sensível. Se o fosse, seria o perfeito exemplo da revelação direta, da cognoscibilidade
1
Brunner depende grandemente de Kierkegaard, ao qual cita copiosamente e do qual toma os famosos
conceitos dialéticos de revelação-escândalo, verdade-paradoxo, servo-revelador, simultânea revelação e
incógnita.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
149
objetiva e dissipadora das incógnitas; Divindade e humanidade de Cristo estariam
compenetradas e misturadas. A teologia, rnediane sua “fatal doutrina da communicatio
idiomatum,” se deixou iludir e creu ver a glória do Filho de Deus reluzindo já à vista de
todos e sem nada encoberto. Brunner se congratula com a critica histórica, que sustou a
fossilização dogmática e abriu os olhos para a humanidade genuína do Cristo carnal.
Cristo na carne é, de fato, Cristo incógnito que obriga à decisão da fé. Também nessas
perspectivas é que encontramos o motivo decisivo da aversão veemente de Brunner pela
fé no nascimento virginal de Cristo. Na opinião dele, o nascimento virginal levantaria o
véu, esclareceria a Divindade de Cristo, tornando-a mnetafisicamente inteligível; o
milagre de semelhante encarnação dissiparia radicalmente a incógnita cristológica.
Tal modo de pensar revela um conceito peculiar a respeito do que significa a natureza
humana de Cristo. A visão própria de Brunner origina-se da dialética revelar-esconder
(Cristo revela escondendo), básica para a decisão da fé. Brunner alimenta o temor de
que a teologia, de urna ou de outra maneira, ignore esta dialética paradoxal e proclame
ver claramente Deus na carne de Jesus Cristo, restando sua gravidade à decisão da fé.
Esta dever-se-ia ao encontro imediato na teofania direta, na Revelação sem incógnitas.
“A Revelação encobre, a Revelação não dissipa” a incógnita. Estas expressões
significam para Brunner que “Cristo pode ser confundido com qualquer outro homem.
Só assim ele é o único objeto de nossa fé... a fé terá tanto interesse pela humanidade
autêntica de Cristo quanto pela sua Divindade... ora, humanidade verdadeira acarreta
ocultar-se na carne, sem qualquer possibilidade direta de ser reconhecido como Deus e
de gozar da glória de Deus. A Igreja muito negligenciou este aspecto, lendo os
Evangelhos mais como relatórios descritivos, que como documentos daquilo que a fé
descobriu nesses relatos. Tal negligência é causa de que a humanidade de Cristo seja
dada como uma revelação direta de sima Divindade, de que a luz pareça jorrar de todos
os lados e a glória, só vista pela fé, seja dada como vestimenta real, abertamente visivel
a todos. O resultado é que se perde o Evangelho. Cristo não mais pode ser confundido
com um simples mortal, nem há mais decisão entre fé e escândalo.
Se a glória, “kerygmaticamente” demonstrada, tivesse sido apanágio também da vida
terrestre de Jesus refulgindo livremente, como poderíamos ainda sustentar o vere homo
em Cristo? O Deus escondido teria sido o Deus diretamente acessível, visto e
reconhecido por todos; não mais teria subsistido a Incógnita.
***
Não obstante as muitas diferenças entre Barth e Brunner, um mesmo clima cristológico
reina em ambos. A coisa é bem visível quando Barth analisa os instrumentos da
Revelação. A Revelação não revela o seu rosto ao mundo, mas sempre acontece na
incógnita da carne. Ela não é visível, mas torna-se pública com sua roupagem de
loucura e fraqueza. Sempre encoberta, nunca nos surpreende com evidências flagrantes
e miraculosas; coloca-nos, porém, diante de uma decisão inevitável. A Revelação
acontece sempre em tal forma que, sem a fé, não é perceptível nem susceptível de ser
discernida daquilo que não é Revelação. Não pertence à Revelação impressionar, mas,
ao contrário, assumir formas humanas e entrar assim no mundo da carne. Até existe
tensão entre o Deus revelador e o material em que Deus se revela, pois este material está
desprovido das qualidades que o tornariam instrumento próprio a serviço da Revelação.
Este esboço da ideologia barthiana encontra-se não apenas na sua doutrina da Revelação
universal e na sua valorização das Escrituras (“o caráter dialético da Revelação nas
Escrituras”), mas também na sua Cristologia. Barth pretende tirar todas as
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
150
conseqüências da Encarnação do Verbo e, freqüentemente, cita a famosa frase de
Lutero: “Quanto mais profundamente conseguirmos introduzir Cristo na carne, tanto
melhor.”
Poderíamos pensar que Barth queria apenas acentuar o fato da Encarnação contra
qualquer forma de Docetismo. De fato, ilustrando o seu pensamento, ele cita numerosas
afirmações dos Reformadores sublinhando a realidade da Encarnação. Calvino não
deixou de enfatizar a maneira de Deus vir a nós, dizendo, por exemplo, que “Cristo,
sendo Deus, podia ter mostrado imediatamente sua glória ao mundo. Porém desistiu de
seu direito ao aceitar a forma de servo e, contente com esta humildade, quis que sua
Divindade ficasse oculta sob o manto da carne” (Inst. II, XIII, 3). Em sua
condescendência imensurável, Cristo se ligou aos que não eram estimados nem
possuíam nobreza. Calvino, igualmente, rejeitaria o que Barth chama de “os
embelezamentos da Encarnação”.
Entretanto, erraríamos identificando estas opiniões de Calvino com o pensamento de
Barth. Pergunta o teólogo de Basiléia se, de fato, percebemos e aceitamos as
conseqüências da Encarnação. Antes de mais nada, pois, é preciso perceber bem que a
humanidade assumida por Cristo é perfeitamente idêntica à nossa humanidade corrupta,
tal como a deixou a queda. A Encarnação só tem sentido porque, diante de Deus, nós
estamos nesta situação decaída. Precisamente nesse particular, Barth opina que o
próprio Calvino não percebeu todas as conseqüências da Encarnação do Verbo, pois,
muito menos do que a natureza corrupta, Calvino refere-se ao homem mortal. Barth
intenta compreender por que a Escritura, de modo tão depreciativo, fala da ‘4carne”, da
condição vil e abjeta a que Cristo se rebaixou. Sem dúvida, a Igreja separou
perfeitamente Cristo e o pecado, mas ela não expressou em toda sua amplitude a
completa solidariedade de Cristo com todos nós nesta nossa carne terrestre. Criticando o
texto da Synopsis: “Não convinha que a natureza humana fosse unida ao Filho sujeito ao
pecado”, Barth exclama: “Por que é que não convinha? Acaso Cristo não era
exatamente homem como nós na decisiva finalidade de nossa existência? Acaso não
veio em verdade para nós e para nossa substituição?” (Ver a Dogm., 1, 2, pág. l61ss da
ed. alemã).
Karl Barth, como Emil Brunner, opina que a vinda de Cristo na carne é uma Revelação
paradoxal que, revelando, encobre e esconde; razão pela qual estamos frente a uma
decisão entre fé e escândalo; não possuimos qualquer Revelação direta, mas apenas
indireta, neste mundo nosso que, antes de tudo, não parece ter coisa alguma com a
Revelação.
***
Depois deste apanhado do conceito barthiano e hrunneriano de incógnita, poderíamos
pensar que nos deparamos com uma problemática totalmente nova, surgida da básica
motivação dialética de uma Revelação que descobre e esconde ao mesmo tempo.
Entretanto, por muito que esta ideologia se tenha concretizado sob a influência de
Kierkegaard, não podemos afirmar que ela seja desligada de certa tradição. Se, por uma
parte, Kierkegaard é o pai da idéia de um Cristo refugiado num misterioso incógnito,
Kohlbrugge e seus discípulos influenciaram, por sua parte, poderosamente, na teologia
dialética. Quem analisa as hodiernas teorias cuistológicas, não deixa de ver quão
subitamente voltaram à atualidade as velhas polêmicas entre Kuyper e Böhl. Kuyper
estimava que Böhl (Von der Inkarnation des göttlichen Wortes, 1884) não respeitava as
ressalvas de Heb 7.26, declarando Cristo “santo, inocente, sem mancha, separado dos
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
151
pecadores”. Por enfatizar o fato, exato em si, de Cristo ter assumido uma humanidade
não alienada, mas plenamente nossa, Böhl não eximia o Salvador da culpa original. Em.
frase do próprio Böhl, “Cristo, em virtude de seu nascimento terrestre, possui uma
natureza plenamente humana, como todos nós, participando, portanto, como todos nós,
na atribuição do pecado adâmico”. A este modo de ver, Kuyper opõe textos
escriturísticos que dizem respeito à perfeita santidade de Cristo. Para Böhl, a concepção
carnal de Cristo acarreta a imputação da culpa original. Cristo deixou que, com seu
nascimento, sobrecarregassem-no “com aquilo que todos nós temos”, entenda-se per
imputationem, por atribuição, e não por inerência, pois nada pecaminoso esteve ligado a
de. Só assim Cristo pôde ser sujeito ao juízo de Deus; “acaso uma substância purificada
pelo Espírito Santo constituiria o objeto do juízo de Deus?” E Böhl conclui que “a
Encarnação não foi cercada de urna auréola de santidade!” Embora pessoalmnte livre de
culpa, Cristo carregou o peso da ira Divina per atributionem. Na imputação pecaminosa
residia uma gravidade horrível, podendo Cristo, portanto, tornar-se o objeto substitutivo
da ira Divina e sofrer angústias não fictícias. Conforme Böhl, a Cristo foi imputada a
culpa de Adão em sentido muito especial: o pecado de outrem é que pesou sobre ele.
Idéia que, bem compreendida, não merece as diatribes de Kuyper.
Embora Cristo fosse livre de pecado, Böhl acha inexplicável que tantos doutores se
preocupem pensando num Salvador tentado. Considera Lutero como “o primeiro e,
infelizmente, o único campeão da Reforma, interessado totalmente pelo mistério da
Encarnação e bem compenetrado do que representava para o Verbo esta descida na
carne”. Evidencia-se, assim, que Böhl se impressionou com o caráter oculto de Cristo na
carne. Mais tarde, aliás, o seu antagonista Kuyper, escreverá esta frase digna de Böhl:
“Cristo carregou a culpa, não própria, mas alheia, porém não era possível que ele
carregasse culpa alheia, a não ser que esta lhe fosse imputada.” Irá até reconhecer que
esta imputação começou muito antes do Getsêmane e do Gólgota e que Cristo carregou
a nossa culpa desde o primeiro instante de sua Encarnação. A divergência entre ambos
os teólogos está em que Böhl opina que esta imputação procedia em Cristo “como em
qualquer um de nós”, enquanto Kuyper a quer diferente do que em nós, pois nós
endossamos o que Cristo nunca endossou. Böhl está preocupado com a imputação da
culpa adâmica, parte precisamente da natureza humana que todos recebemos e que
Cristo revestiu. Assim é que atribui a Kuyper o desconhecimento da perfeita natureza
humana de Jesus Cristo: “Que coisa mais absurda que o Pai, na grande operação
salvífica, deixasse para trás o fator capital, isto é, a imputação da culpa adâmica, e
permitisse ao Salvador entrar ao mundo pela porta escusa!” Böhl sofria porque não se
dava o pleno valor à natureza humana de Cristo, nem à sua solidariedade conosco na
imputação do pecado. À semelhança de Lutero, ele queria um Cristo inteiramente
fundido na carne, numa carne marcada pela queda e pelo pecado. Impossível, pois,
supor que uma discussão tão movimentada se baseasse num mal-entendido. Aliás, ao
opinar a este respeito, van Niftrik enfatiza, por sua vez, que Cristo não veio ao mundo
como um homem ideal, mas como o Cristo na carne. Niftrik, não ignorava que podia ser
acusado de lesar assim o estado inocente de Cristo, pois acrescentava que “o Evangelho
declara que Cristo se fez não homem ideal, mas carne, palavra que biblicamente designa
o homem tal como o deixou o pecado”. Terminava com esta singular conclusão: “Tal
perspectiva é que movimenta a reflexão cristológica.” Queria dizer que deste modo
surgiriam tentativas novas para sublinhar a perfeita solidariedade de Cristo conosco. A
Escritura nos propõe Cristo como Cordeiro de Deus, que leva os pecados do mundo, não
como homem ideal e privilegiado. Ela, porém, nada traz para esclarecer as possíveis
decorrências de que está prenhe a palavra “carne”, e que nos autorize a opinar que
Calvino, por exemplo, não compreendera a realidade da Encarnação em sua gravidade
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
152
total. A luta entre Böhl e Kuyper reeditou o velho litígio em torno da imputação do
pecado original, elemento menos presente nas discussões das últimas décadas. Dc fato,
a teologia dialética deslocou o problema do pecado original, embora emprestando ao
pensamento de Böhl e demais neokohlbruggianos sua forma aguda de dialética entre
revelação e ocultamento de Cristo encarnado.
Seja o que for, a teologia preocupa-se com as conseqüências da Encarnação. Dá-se nova
ênfase ao fato de Cristo ter nascido na carne humana tal como ela foi deixada pela
queda adâmica. Dá-se a impressão que se está procurando algo “a mais”, algo que
precisamente está oculto na Revelação de Deus na carne. Böhl gosta de contemplar as
noites solitárias de Cristo e seu horror ao carregar efetivamente a culpa alheia. Essa
contemplação é cara entre nós até hoje. Mas, ao lado desta idéia, mais e mais, a
preocupação pela estrutura da Revelação ocupa lugar de destaque. Cada vez mais
gostamos de pensar correlativamente em Encarnação e incógnita de Cristo. Daí surgiu
uma pergunta decisiva, qual seja, a própria possibilidade desta correlação. Acaso esta
nova orientação da curiosidade teológica, nascida sob a influência kierkegaardiana,
justifica-se na Sagrada Escritura? Ou porventura é um simples reflexo aparente, mais ou
menos baseado nos ensinamentos bíblicos sobre Cristo revelado na carne?
***
A pergunta, longe de ser ociosa, é provavelmente a mais importante da Cristologia,
porquanto ela enfoca o significado da humanidade de Cristo, isto é, a revelação de Deus
em Cristo. O núcleo do problema situa-se exatamente na relação entre revelar e
esconder. É óbvio que a consideração dialética é inseparável da idéia de que Deus se
oculta em sua Revelação. Este ocultamento de Deus é inerente ao modo que ele usa para
revelar-se. O fato, aliás, tem sua perfeita ilustração nas obras de Barth e de Brunner. O
mais interessante é que se chega a esta relação paradoxal entre Revelação e ocultainento
por meio de um ser necessária e radicalmenle portador deste paradoxo, sempre que se
conserve fiel o conceito bíblico da Revelação.
Não se pretende edificar um conceito racional da Revelação independente dos
testemunhos biblicos, para logo aplicá-lo à revelação em Cristo. Os teólogos aqui
citados afirmam, ao contrário, derivar seu conceito sobre Revelação da própria
Revelação. Na verdade eles coincidem em declarar que a Revelação não tinha outro
modo de proceder, senão este d ocultar revelando, porquanto esta era a única maneira de
deixar lugar ao escândalo. Idéia bem expressada na teoria da revelação indireta. Frente
à Revelação subsiste a liberdade de contradizer e de se escandalizar. As Escrituras
atestam que não é possível ao coração natural, não esclarecido pela graça, descobrir em
Jesus Crjsto a Revelação de Deus. Quando Pedro, ultrapassando as conjecturas
humanas, confessa que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, o próprio Salvador
atribui esta Revelação ao Pai; ela não surge da carne nem do sangue nem da intuição ou
do coração nem daquilo que se viu ou do que se ouviu. O autêntico conhecimento de
Cristo só se dá no esclarecimento sobrenalural do coração. Podemos, todavia endurecer
o coração e, lendo as Escrituras, passar de largo sem reconhecer nem adorar.
Assim aconteceu que, enquanto alguns viram nele um prof eta, outros o abordavam
como um taumaturgo, uns tratavam-no de louco, outros o tinham por bastardo (Lc 5.26;
J0 8.41; 10.20). Corria o boato de que seus milagres eram arte satânica (Le 11.15). Não
somente os Evangelhos esclarecem que conhecer Cristo ultrapassa a faculdade humana
e a experiência comum, mas Paulo, expiicitarnente, nega ser possível “dizer que Cristo é
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
153
o Senhor, a não ser pelo Espírito” (1Co 12.3). O coração natural não percebe o sentido
secreto da Cruz, escândalo para judeus e loucura para os gregos.
Observemos, entretanto e esta observação é capital — que a resposta dada cegamente
pelo judeu que se escandaliza e pelo grego que zomba jamais guarda correlação com
qualquer elemento encoberto incluído, necessariamente nas estruturas da Revelação.
Na Revelação de Cristo nunca assoma qualquer segredo determinável pela categoria
barthiana da Welthaftigkeit, ou pela inadequação dos instrumentos da Revelação. Cristo
reage de modo muito significativo e bem diferente do visto por Barth contra a
incredulidade e a resistência. Jesus nunca atribui esta resistência à estrutura da
Revelação. Quando a incredulidade leva suas vítimas a atribuirem milagres e sinais
messiânicos a malefícios diabólicos, Jesus “conhece os pensamentos hostis” (Lc 11 .17)
e refuta sua interpretação errada e absurda: “Todo reino dividido ficará deserto... Se
Satanás estiver dividido contra si mesmo, conío subsistirá o seu reino?” (Lc 11.18). O
reino tinha chegado; Cristo expulsava os demônios pelo dedo de Deus (Lc 11.20). A
possibilidade de confundir Jesus Cristo com qualquer taumaturgo, atribuida por Barth e
Brunner à Welthaftigkeit ou à forma da revelação, é estigmatizada severamente por
Cristo e chamada simplesmente de “incredulidade”. Quando Brunner escreve que “é
possível confundir Cristo com outra pessoa por causa da incógnita”, comete um erro.
Escreve “possível” sem ter em conta a supremacia da Revelação Divina e raciocinando
teoricamente a partir (preciso é confessá-lo) de certa estrutura da Revelação. Em lugar
nenhum a Escritura insinua uma possível alternativa, devido à forma da Revelação ou à
sua Welthaftigkeit, mas sempre condena a rejeição do conteúdo revelado. Essa rejeição é
severamente condenada, exatamente porque em Cristo não achamos o Deus oculto na
carne e irradiando através da carne a luz Divina, mas encontramos o Filho humilhado de
Deus, rodeado pelas vozes de Deus, os profetas e apóstolos. Tanto o escândalo como a
zombaria dos homens reagindo contra a Revelação de Deus em Cristo jorram, não da
estranheza desta forma de se revelar a força e sabedoria Divinas, mas,sim,da resistência
de todo homem contra a penetração, em sua vida, da graça reconciliadora.
***
Objeta-se-nos 1Co 2.8. Paulo afirma que, no mistério de Cristo, trata-se da sabedoria
oculta de Deus, desconhecida dos que dominam o mundo, pois “se a tivessem
conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória”. Mas este texto não insinua
nada que possa favorecer a teoria do “Cristo incógnito”. Na revelação do mistério de
Cristo, não é questão de um segrêdo inteiramente obscuro nem de um ocultismo místico
completo, mas simplesmente do mistério revelado agora, após séculos de sigilo. Nunca
foi possivel considerar a vinda de Cristo como fenômeno independente. O homem Jesus
Cristo está na luz da Revelação de Deus; seu aparecimento não deve nem pode
desvencilhar-se dessa luz. Eis a razão pela qual o fato da Encarnação nunca deve basear
uma esquematização que parta do modo formal da Revelação, pois, reduzindo
formalisticamente a Revelação de Deus, chegar-se-á — querendo ou sem querer — a
enfraquecer a responsabilidade da fé e a desculpar toda a incredulidade com a alegação
da estranha e invencível incógnita de Cristo.
O prestígio da teoria paradoxal da incógnita cristológica só se explica por ter ela
assumido, em sua reflexão, as humilhações de Cristo, deixando assim a impressão de se
arraigar na Revelação. De fato ela parece falar segundo as Escrituras. No entanto, as
aparências não a podem salvar. Fruto de uma estruturação teórica, a idéia do incógnito
foi introduzida na teologia atual como um fator independente do dado revelado. Mesmo
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
154
falando muito bem da humilhação de Cristo, esta teoria opera uma redução à lógica dos
elementos revelados. Por este caminho logístico é que Kierkegaard e outros chegaram à
idéia do escândalo, que é, afinal de contas, uma simples visão do intelecto estruturando
o paradoxo do Deus e do homem em Cristo. A reduçáo à lógica, rematando na famosa
alternativa de fé e de escândalo, apenas foi possível estruturando formalmente a
Revelação. Ela não teria surgido se, desde o princípio, os teólogos tivessem falado
segundo a própria Revelação e seu conteúdo.
***
Que pretende Brunner quando ao estudar, aqui, o significado da humanidade de Cristo,
levanta o problema do kerygma? Acaso procura extrair, do Cristo feito carne, todos os
elementos da Divindade e depois reduzir os Evangelhos ao paradoxo de um Cristo total
e exclusivamente carne como nós? Quererá Brunner desqualificar a transfiguração do
Senhor no monte, como contrária à teoria da incógnita e da revelação indireta? Ou,
simplesmente, inculcar que, sendo certa a teoria do ocultamento, tal corno ele a entende,
tudo ocorreu, nos Evangelhos, “de um modo ordinário”, de sorte que Cristo podia ser
confundido com qualquer cidadão? Consentirá Brunner em Iôr de lado os milagres de
Cristo, as trevas do Gólgota, os sepulcros abertos e o véu do templo rasgado? Ou,
conservando um lugar aos milagres, poderá ainda sustentar, sem ilogismo, sua teoria da
revelação indireta?
As Escrituras usam uma linguagem bem diferente; não dão base para o problema
brunneriano da “incógnita” nem para a teoria barthiana da Welthaftigkeit. Mostra-nos o
Filho do Homem, humilhado na carne, na luz reveladora do Verbo, que explica o Filho
humilhado. Mosira-nos João Balista dissjpando toda a treva e toda a cavilação a respeito
de Jesus, “o Cordeiro de Deus que tornou sobre si Os pecados do mundo”. Relatam-nos
os ensinamentos de Jesus lendo os textos de Isaias e declarando-os agora cunipridos na
sua pss• A luz é clara. Com muita razão, Jesus lança os seus “Ai de vós, ai de vós!”
contra os fariseus, que exigem sinais e se rebelam contra sua palavra, repelindo o caráter
inegável de sua Revelação. Eles são os que senpre procuram rejeitar Jesus no
ocultarnento e no mistério. A Escritura não autoriza de modo nenhum a teoria do
incógnito, pois ignora o sigilo e a ocultação que são, precisamente, os elementos
capitais da “incógnita”.
Por sua vez, a teoria brunneriana não parece compreender o modo pedagógico usado
pelo Messias na revelação progressiva de seu Messianismo. Entre outros, Ridderbos
ressalta muito bem a evolução de Cristo, o qual, parcialmente se oculta e, passo a passo,
descobre a sua Messianidade. A teoria da incógnita postula a total encoberta do Senhor,
sem que tal ocultação seja suspensa, em qualquer ponto, durante sua vida terrestre.
A meu ver, neste ponto é que reside o erro fundamental da idéia de Brunner. Cada vez
que é cometido o pecado de incredulidade por quem está em contato com Jesus, o
incrédulo é castigado por não acreditar no Verbo. Fora do Verbo, ninguém pode ver e
conhecer Cristo. Os viajantes de Emaús caminhavam tristes porque não entendiam a
Cruz na luz do Verbo. Caminhavam conscientes de sua solidão; pensavam que sua
solidão provinha do ocultamento dos atos Divinos num mistério inacessível. Cristo,
porém, julgou diferentemente; incriminou sua incredulidade na Revelação escriturística,
porquanto as Escrituras dão acesso à luz sobre Cristo. Não cabe perscrutar as Escrituras
através do total incógnito; aquele que tal pretendesse ver-se-ia na contingência de
eliminar todo o elemento de fé da vida terrestre do Cristo. Embora não se vá até esta
conseqüência extrema, forte será a inclinação de ir até lá.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
155
Os adeptos da incógnita cristológica sentem-se, de fato, na obrigação de sistematizar a
vida de Cristo, acentuando sua humilhação e ocultação; não abordam os Evangelhos na
sua típica simplicidade, mas de modo elaborado. Achamos, no próprio Brunner, a prova
mais evidente desta necessidade, quando julga que o nascimento virginal não se
harmoniza com a incógnita cristológica. O sistema pretende dominar e até reivindica
atributos críticos para rejeitar textos que a mais ferrenha crítica histórica conserva como
inatacáveis. Constatamos, pois, que aqui não mais se dá grande atenção a este kerygrna
tão citado em abono da teoria. Ao contrário, sujeita-se ele às mais diversas normas;
Cristo é configurado não como aparece nos Evangelhos, mas de conformidade com as
exigências teóricas da incógnita — “um homem fraco, que sente fome, treme e tem
medo” (Brunner, Der Mittler, 309).
No entanto, Jesus Cristo não apareceu repentina e misteriosamente no mundo. Houve
eventos que, com absoluta autoridade e constância, se referiam a ele, de sorte que a má
fé não mais tenha desculpas. Sua vinda foi anunciada; o Cristo ressurrecto reivindicou
os anúncios proféticos do AT, agora cumpridos em sua paixão e glorificação. Os
adeptos da incógnita cristológica vêem-se na precisão de submeter os Evangelhos a uma
rigorosa seleção, eliminando os relatos que, deste ou daquele modo, falam da glória de
Deus revelada em Cristo, mesmo quando estes intencionalinente apontam para um
caráter particular do Senhor, como o batismo e a transfiguração. De fato não há,
segundo o raciocínio de Brunner, outra possibilidade senão a de interpretar tais
episódios como uma suspensão da incógnita absoluta e irrestrita. Por estes caminhos,
chega-se a subjetivizar a Revelação, vale dizer, a negá-la pura e simplesmente. A
teologia dialética toma como ponto de partida a absoluta incógnita, a total
incognoscibilidade de Cristo através das estruturas da Revelação. Este é o postulado
considerado indispensável: Cristo só pode ser conhecido pela fé e pela iluminação do
Espírito Santo. Nenhuma evidência racional nos convencerá do seu Messianismo.
Nestas condições, o conteúdo revelado é determinado de conformidade com as coisqs
que a mente não iluminada julga conceber a respeito dele: nada nos Pode libertar desta
visão natural, nem sequer o kerygma empenhado a esclarecer os momentos evangélicos
em que se manifestou a glória de Jesus (doxa). Estes momentos abundam no relato de
João, e não estão ausentes dos Sinóticos. Kittel observou que Mateus e Marcos
empregam o termo doxa, em referência à segunda vinda do Cristo “em glória”; Lucas
usa-o no relato da transfiguração, sendo em ambos os casos essencialmnente idêntico o
assunto, como todo leitor poderá comprovar. De fato, em todos os Sinóticos Cristo
aparece, nesses momentos, como a figura irradiando glória, e prenunciando, de certo
modo, a transfiguração do Ressuscitado.
Não queremos diminuir, com isso, a característica de toda a vida de Cristo, suas
humilhações: é evidente que ninguém pode descrever esta vida como revestida de glória
(doxa), pois o próprio João insiste em que Jesus “ainda não era glorificado” (7.39). Mas
rejeitamos positivamente qualquer esquematização da vida de Cristo, baseada mim
conceito apriorístico da Revelação; tal apriorismo elimina da existência terrestre do
Cristo todo elemento doxológico, glorioso. Tanto mais que não vemos como estes
momentâneos fulgores da glória rompem com a humilhação do Varão de Deres.
Precisamente, no relato da transfiguração, ouvimos Moisés e Elias conversarem com
Jesus a respeito do desenlace em Jerusalém. O Evangelho declara que Pedro não sabia o
que dizia, quando exteriorizou seu desejo de construir três tendas para abrigar esta
maravilhosa glória e continuar desfrutando dela.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
156
Todas essas reflexões ressaltam a importância de observarinos, com a máxima
escrupulosidade, a correlação entre as humilhações e a glória de Cristo. As Escrituras,
repetidamente, mencionam esta glória. Os discípulos defrontam-se com ela pela
primeira vez nas bodas de Caná. Não podemos opinar que a revelação da glória de Jesus
afete negativamente o caráter da Revelação em Cristo. Esta doxa não se identifica com
o milagre visto por todos no seu próprio alcance e significação, mas, por ocasião do
milagre de Caná, lemos que os discípulos acreditaram em Jesus. Não foi por acaso que a
transfiguração do Senhor não fora oferecida como uma demonstração ao mundo. Este
fato provisoriamente ainda pertence ao auto-ocultamento de Cristo; proibição é feita aos
discípulos de divulgá-la até que o Filho do Homem tenha ressuscitado (Mt 17.9).
Entretanto, o exemplo serve para alertar contra toda esquematização arbitrária da vida
de Cristo e da Revelação do Pai. Nesta ocasião só poucos privilegiados presenciaram a
transfiguração. Pouco depois, quando Cristo anunciou sua morte próxima e solicitou a
glorificação de seu nome, uma voz celeste proclamou para todos: “Eu já o glorifiquei e
ainda o glorificarei” (Jo 12.28). Está presente uma multidão que, não obstante
interpretar erroneamente o acontecimento, entra em contato com a Revelação do Pai a
respeito do Filho.
Em nossa opinião, quem ainda valoriza um tanto os Evangelhos não deixará de ver que
a teoria de Brunner e de Barth, afinal de contas, elimina estes aspectos da Revelação, só
porque contrariam o postulado apriorístico da Revelação-que-oculta e do Cristo-Deus
que está entre nós incógnito.
***
Ultimamente surgiu outro problema: encerram — a Encarnação e a Cruz de Cristo —
um paradoxo ontológico ou um simples paradoxo mental? Deve-se o escândalo da Cruz
a um mal-entendido por parte do sujeito, ou, melhor, encerra a Cruz, em si mesma, um
elemento altamente paradoxal? Vogel foi o principal protagonista da objetividade do
escândalo. “Que Deus se entregue, como qualquer um de nós, à maldição e ao castigo
do pecado, constitui uma contradição ontológica” (Cristologie, 1, pág. 165).
Eis como ele explica este paradoxo: “A humanidade de Cristo é realmente a nossa
humanidade, assumida e levada por Deus mesmo; a nossa humanidade, desfigurada e
irreconhecível, a raiz da maldição que lhe mereceu sua impiedade e ateísmo. Cristo é
tão homem como nós somos em nossa degradação e deformação.” O próprio Deus nos é
apresentado de forma a nos satisfazer, num clima doutrinal barthiano, todo impregnado
da doutrina da incógnita cristológica e da incógnita teológica. O próprio Deus, em
Cristo, entrega-se ao juízo e, desta maneira, vence o pecado. Tocamos nas fronteiras do
teopassionismo, tantas vezes condenado. Ao repudiar o teopassionismo, a Igreja, sem
deixar de exaltar os atos de Deus em Cristo para reconciliação do mundo nem de
reconhecer a relação que existe entre Pai e Filho, quis ressaltar a fé no Verbo
Encarnado, tão clara na Revelação. Consciente de nunca poder expressar com palavras
adequadas o mistério do amor Divino, não vacilou, contudo, em usar as mais
expressivas fórmulas antropomórficas, à imitação da própria Escritura. Na meditação do
texto sagrado, a Igreja compreendeu a expressão “Deus em Jesus Cristo” num sentido
bem diferente de Vogel e seu inspirador, Karl Barth, dos quais todos conhecemos os
enfáticos “Deus mesmo em Jesus Cristo... O próprio Deus em Jesus Cristo. . . etc.”
Cabe dizer, aqui, que, escondida sob a paradoxal incógnita de Deus, trava-se uma luta
em torno da satisfação. A satisfação constituiu sempre o ponto crucial dos teólogos,
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
157
alvo das mais diversas objeções. Hoje em dia, ela reaparece entre nós como reverso da
doutrina da incógnita.
***
A teologia calvinista conhece uma doutrina da ocultação do Cristo, paralela, embora
bem diferente da teoria da incógnita. Antes de tudo, observemos que, na teologia
calvinista, a idéia de ocultação diz também respeito à humilhação do Senhor. Esta idéia,
entretanto, longe de constituir um postulado racional a priori, como no caso tia
incógnita barthiana, originou-se da própria Escritura. O próprio Calvino destacava já
com força a idéia da occultatio, principalmente a respeito da correlação entre
humanidade e Divindade do Verbo Encarnado. Calvino podia ter evitado esta
conclusão, ideando desde já a futura kenosis, conforme a qual a natureza Divina teria
deposto suas propriedades, deixando lugar apenas a um Jesus Cristo homem, esvaziado
da original Divindade própria do Verbo e reduzido a puro homem. Mas Calvino nunca
leu tal doutrina nas Escrituras; entretanto, observou como, do texto sacro, surgia o
problema da interrelação das duas naturezas nos dias da humilhação de Cristo. Fruto
destas observações, nasceu sob a pena do Reformador o conceito da occultatio. Que
significa este conceifo em sua teologia?
***
Seria infantil penar que os problemas da revelação e da ocultação só se discutem na
teologia dialética. Séculos atrás, já tinham recebido urna atenção especial. Por sua vez, a
teologia calvinista reconheceu o papel primordial, especialmente para a Cristologia, do
problema da revelação e da ocultação. 2
Calvino acentua o fato, paiticu1arinenle quando trata da Encarnação, usando então
incessaniemente a palavra occult alio com a evidente intenção de ponderar que Cristo
veio a nós, não na glória e majestade próprias de Deus, mas na figura do servo
humilhado.
Comentando Filipenses, Calvino afirma que Cristo não pôde depor sua Divindade na
Encarnação, mas ocultou-a por um tempo, não deixando a mesma aparecer sob a
fraqueza da carne. Depôs sua glória perante os hornens,”não diminuindo-a, mas
suprimindo-a”. “Paulo, com pleno aceito, ensina que, embora Filho de Deus e, de fato,
igual a Deus, absteve-se de sua glória enquanto se apresentava carnalmente na forma de
servo. Não obstante mostrar, com milagres e sinais, que era o Filho de Deus, ostentava
sua humildade carnal qual véu que escondia sua condição Divina” (Com. Fp. 2.7).
A idéia de Calvino não dá lugar a sofismas. Por ser Deus, Cristo podia revelar-se ao
mundo, imediatamente, na sua glória; não o fez, mas assumiu a humilhação, deixando
sua Divindade oculta no esconderijo da carne (Inst. II, Xlii, 2). Durante um lapso de
tempo, não refulgia sua glória Divina, só se tornando visível uma figura humana,
simples e desprezível. Igualmente, a propósito de Jo 1.14, Calvino anota que Cristo, em
verdade, não deixou de ser Deus, mas sua Divindade foi revestida com a humildade da
carne.
2
Deus se revela a Abraão mediante o sinal. Ora, qualquer revelação mediante símbolos e sinais diminui
de algum modo a glória de Deus e, portanto, “oculta a luz”. Idéias como estas abundam em Anselmo e
Tomás de Aquino.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
158
Essa é a occultatio onipresente na teologia calvinista; não passa de tentativa humana
para desvendar o mistério da humilhação do Senhor. Calvino não excogita nenhuma
teoria de incógnita intencional e paradoxal. Embora plenamente impressionado pelo fato
de Cristo esconder-se na carne, não se pasma perante o paradoxo tremendo de uma
Revelação,simultâneamente-Ocultação, mas sublinha o caráter consolador da
Encarnação do Verbo. Deus, em Cristo, vem a nós não na sua majestade, mas na nossa
humilhação, assim se fazendo mais próximo de nós. Este aspecto é que Calvino,
indefectivelmente, reconhece a ocultação do Cristo; ocultação não necessária a priori,
em virtude de qualquer estrutura da Revelação, mas candorosa expressão do caminho de
Deus. Calvino não podia elaborar qualquer dialética entre Revelação e Ocultação, mas
apenas aceitou partir da Bíblia — o Cristo humilhado foi revelado em sua ocultação;
revelou-se-nos o Verbo de Deus feito carne. Em relação a Jesus Cristo, Calvino não
elabora, mas aceita uma Revelação.
Não há aqui apenas divergências de palavras e expressão. Para Calvino as coisas não
são como elas são para Kierkegaard. Se ocultação na carne fosse vinculada
inseparavelmente ao Verbo de Deus, o escândalo seria uma alternativa inevitável de
todo homem não iluminado pelo Espírito. Mas Kierkegaard e a teologia dialética
relacionam exageradamente escândalo com o fato de que Cristo, sendo Deus, fora
também homem perfeito. Para o pensamento humano o verdadeiro escândalo estaria,
pois, na ocultação da Divindade debaixo da humanidade. Se isso for exato, a
humanidade de Cristo seria a verdadeira pedra de tropeço; todo escândalo estaria
ontologicamente ligado a esse modo da Revelação, fonte necessária de escândalo. O
escândalo, objetivamente, residiria no fato deste homem ter sido Deus ao mesmo tempo.
Tal foi a concepção que ditou a Kierkegaard sua teoria do escândalo cristológico: um
Deus foi feito homem. Nesta linha de pensamentos, não será impossível contemplar e
experimentar o escândalo sem, entretanto, aceitar a mensagem e a obra do Verbo
encarnado, O escândalo estaria ligado à própria estrutura e forma da ocultação, ao modo
de Deus esconder-se na humanidade de Cristo. A incógnita seria, pois, o conteúdo
específico deste escândalo. A simples exposição dessa teoria mostra quão insatisfatória
ela é na Cristologia. Isso porque, fora a crítica transcendente, tal teoria não resiste à
critica imanente. Escândalo e incógnita são idéias que mutuamente se excluem. Na idéia
da incógnita (caso seja possível dar algum sentido a esta palavra aplicada a Cristo)
encontramos a vontade de ficar oculto e de continuar sendo despercebido. Mas esta
vontade não se acha em Cristo. Se temporariamente Cristo se oculta, obedece
simplesmente a determinado piano de Revelação; nunca ele pretende passar
despercebido, mas, ao contrário, revelar a todos o Verbo Encarnado. Seu nascimento,
vida e morte estão plenamente orientados para o tornarem público; sua vida não se
destina a um cantinho, mas ao mundo universal; o mistério da Cruz será dirigido ao
mundo inteiro. Seu nascimento e sua cruz são escandalosos, porquanto escondem a
Divindade na carne mortal; o escândalo leva a rejeitar a mensagem Divina trazida por
este Filho do Homem, humilhado e nivelado a todos nós. No entanto, o escândalo
implica muito mais do que uma atitude de resistência por parte da razão, estimando
impossíveis a união de Deus e do homem em Jesus Cristo, bem como qualquer
revelação e mensagem reconciliadora através deste ser humilhado. Além do problema
da possibilidade deste homem enfrentar-nos com sua pretensão de ser o Filho de Deus,
surge este outro, o da decisão a favor ou contra o Verbo revelado de Deus: crer ou
rejeitar.
Eis por que, na Cristologia calvinista, a ocultação da Divindade de Cristo nas roupagens
da carne humilhada constitui elemento de importância decisiva. Nunca o problema da
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
159
Revelação é suscetível de separar-se da humilhação, mas com ela se nivela. A vista
deste Cristo humilhado não suscita apenas um paradoxo racionalmente insolúvel, mas
uma alternativa vital e decisiva para todo homem contemplado por este modo de agir de
Deus em Jesus Cristo. Por que assumiu Cristo a carne humana? Responde o Catecismo
de 1537: “Assumiu nossa pobreza para transferir-nos suas riquezas; revestiu nossa
mortalidade para revestir-nos com sua imortalidade; desceu até nós para nos elevar até
ele.” Nem um instante pressupõe a relação Deus-homem, separada da humilhação.
Tampouco cabe aqui a norma Revelação-Humilhação como estrutura ou modo formal
da Revelação. Todas estas relações, em princípio, são eliminadas pela própria referência
a uma incógnita cristológica; a união pessoal do Deus-homem não pode ser isolada da
finalidade que a motivou nos designios Divinos. Quando Paulo faz alusão à reação de
judeus e gregos perante a Cruz, escândalo de uns e zombaria de outros (1Co 1), ele
insiste na força e sabedoria de Deus que, na Cruz, se revela a todos que crêem. Mais um
motivo por que não podemos relacionar formalmente este escândalo e esta zombaria a
qualquer vontade de incógnita; a ocultação não pode ser erigida em base estrutural da
Revelação nem ter por intenção um radical mal-entendido, pois Paulo relaciona o
“escândalo” dos judeus e a “loucura” dos gregos com a aversão pelo Verbo revelador e,
como continuação, declara que, não obstante essa loucura e essa fraqueza, a iluminação
Divina patenteia, para os que crêem, a sabedoria e o poder de Deus na suprema
humilhação da cruz. Cumpre dizer que, para Calvino, o escândalo é um simples
problema “noético”, da mente, e não um problema ontológico. “Ninguém ignora quão
impropriamente se atribui loucura e escândalo a Deus; a tal ironia paulina foi necessária
para refutar a arrogância insana da carne, que se atreve a despojar Deus de toda sua
glória... “Calvino, não obstante, enfatiza a ocultação da glória de Cristo, especialmente
na sua crucificação entre dois malfeitores (aspecto, aliás, bem consoante com a figura
do Varão de Dores de Isaías); mas, por outro lado, sempre observou, paralelamente a
esta ocultação, a iluminação de tantos olhos que, na ignominia do Cristo, percebem seu
amor no abandono à sua comunhão com Deus, na abjeção à sua piedade para com os
crentes. A causa por que não se compreende a humilhação de Cristo não é Cristo
disfarçado numa impenetrável incógnita, mas a inautenticidade da atenção humana, a
incredulidade e dureza do coração humano. Quando Cristo prometeu dar seu sangue e
sua carne para vida do mundo, no amplo círculo de discípulos, muitos se
escandalizaram (Jo 6.60). “Duro é este discurso, quem o pode agüentar?” Cristo lhes
redarguiu: “Isto vos escandaliza... há descrentes entre vós.” A descrença é a causa de
seu escândalo – “Jesus sabia desde o principio quais eram os que não criam.” Na sua
exegese desse texto, Calvino menciona o obstaculum situado na humilde condição de
vida de Jesus: “A condição vil e huniilde de Jesus, revestido de carne, em nada diferente
da gente comum, era-lhe obstáculo para sentirem a virtude de sua glória Divina.” Mas,
evidentemente, este obstáculo está nos olhos não iluminados, mais e mais descrentes,
destes mesmos aos quais Jesus anuncia a sua futura glória: “Que será se virdes o Filho
do Homem subir para o lugar onde primeiro estava?” (Jo 6.62).
Para Calvino, nem a novidade da mensagem nem o milagre profusamenle presente, nem
a doxa ocasional de Cristo podiam criar dificuldades. A sua candorosa e humilde
atenção às Escrituras todas nunca precisou idealizar qualquer estrutura logística da
Revelação nem apoiar-se numa pretensa dialética Revelação-Ocultação.
***
Última pergunta: Foi feliz a palavra “ocultação” na Cristologia calvinista? Permite ela
uma valorização adequada do mistério de Cristo, o supremo humilhado? Progrediremos
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
160
ensinando a doutrina da substituição como a mais apta para explicar as humilhações do
Varão de Dores, ou guardaremos, em qualquer hipótese, o conceito de occultatio,
enriquecido e aprofundado? Reassumiremos a teoria da Kenosis, como alguns o
procuram, fascinados pelo seu postulado implicito do Incógnito? Kenosis, de fato,
comportaria bem a idéia de que Cristo, essencialmente cheio de glória, assumirá como
modalidade de revelação a forma de servo humilhado. Mas surgem as objeções de
Korff que, como já sabemos, não concorda com a occultatio calvinista. A propósito do
célebre extra-calvinisticum, ele observa que se, realmente, a Divindade não fica fora da
humanidade assumida, mas entra em união pessoal com ela, não cabe falar de kenosis,
pois não há esvaziamento do Verbo, senão só em aparência; ou seja, enquanto a
Divindade permanece presente hipostatícamente, não é concebível falar de
esvaziamento estrito, mas apenas metafórico e impróprio.
Embora não escasseiem, em Calvino, as expressões ousadas que parecem contemplar
uma genuína kenosis (tal como, por exemplo, “urna diminuição em Deus tornado, de
certo modo, inferior ao Cristo”), tais excessos de linguagem não devem ser tomados
literalmente.
Korff insiste. Ele não admite o conceito luterano, mas considera insatisfatório o
conceito calvinista de occultatio. “Em que consiste, afinal, a kenosis? A grande palavra
não passa de uma figura indicando a ocultação da majestade Divina. A teologia
calvinista explica que, nessa ocultação, nada se perde da glória Divina, nem no Pai nem
no Filho. Onde está, então, o esvaziamento? Encarnando-se, o Verbo, na realidade, de
nada se esvazia.”
Lembrando a frase de Schneckenburger de que, aqui, “toda afirmação teológica vem
acompanhada de um quase”, Korff declara-se tentado a duvidar se, de fato, Cristo
desceu e se humilhou... “Não resta muito da idéia paulina de Cristo ter-se feito, por
amor nosso, pobre... longe de empobrecer, o logos adquiriu um novo modo de
existência, assumindo a natureza humana... onde a tal pobreza?” (Korff, Op. cit. 255ss).
Esta crítica de Korff caberia perfeitamente se o próprio Korff aceitasse a kenosis como
renúncia aos atributos Divjnos. Assim entendida, a kenosis opor-se-ia à occultatio
(quase-kenosis) calvinista. Mas Korff rejeita também a idéia da kenosis porquanto ela
não permite ver que, na Encarnação, é o próprio Deus que vem até nós. “Caso
verdadeiramente trágico”, pois é alvo de toda a Cristologia declarar que, em Cristo,
temos Deus. Ora a doutrina “kenótica” veda tal Cristologia, oferecendo-nos um Deus
espoliado, sem poder, semi-Deus: “Outrora Deus, com atributos e existência Divinos,
agora despojado de tudo isso.” O nosso Deus único é irreconhecível aqui. A doutrina
“kenótica” é perfeitamente negativa. Necessitamos é que, realmente, venha Deus a nós.
Fato singular! Baseado nos mesmos argumentos, Korff rejeita tanto a doutrina
“kenótica” do século XIX quanto a occultatio de Calvino e o célebre extracalvinisticum: todos estes esforços pecam por querer dilatar a teologia do vere Deus et
vere homo com artifícios racionais e processos lógicos. No entanto, o autor não assume
uma simples posição intermediária nem intenta um equilíbrio impossível entre Kenosis
e ocultação. Os patidários da ocultação, aceitando que a glória de Cristo ficou velada na
Encarnação do Verbo, negam terminantemente qualquer abdicação da Divindade.”O
Cristo encarnado só aparentemente perdeu sua superabundância celestial e aceitou a
pobreza”, opina por sua vez Korff. Mas ele não leva em conta o mistério de “Deus
revelado na carne”, que vem até nós através do esvaziamento e da humilhação (Fp 2):
esta ocultação sui generis nada tem com simples aparências. O Dr. Korff, acérrimo
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
161
adversário da compreensão racional do Veibo Encarnado, parece ter interpretado a
occultatio calvinista como uma tentativa de compreender a kenosis ele que fala Paulo.
Mas Korff está totalmente errado. A teoria da ocultação pretende, muito ao contrário,
conferir o devido valor à mensagem da Escritura Sagrada sobre o auto-esvaziamento e a
humilhação de Cristo, que tanto impressionaram Paulo. O mal-entendido de Korff é
tanto mais evidente que suas objeções à teologia “kenótica” do século XIX constituem
exatamente a base do célebre extra-calvinisticum, o qual postulava que os atributos
Divinos são ocultos no Verbo encarnado por causa da veste carnal, e que a aparência de
Servo humilhado não prejudica em nada a riqueza deste Rei. Esvaziando-se de sua
glória, o Cristo encarnado renuncia a glória que tinha junto ao Pai, antes que o inundo
existisse (Jo 17.5). O tal esvaziamento começa com a aceitação da forma de servo, isto
é, da natureza humana, e aperfeiçoa-se à medida que Cristo desce até a suprema
humilhação da cruz. Esvaziamento e humilhação chamam-se indissoluvelmente, tal
como o ponto de partida chama o ponto de chegada. Recalcitrar contra a idéia da
ocultação equivale a esquecer a gravidade desta, pois ela relaciona-se intimamente com
o mistério da paixão, abandono e morte de Jesus Cristo. Adotar a lógica da doutrina
“kenótica” equivale, por outro lado, a desconhecer a gravidade redentora da maldição e
do abandono de Cristo.
Com esta fé é que a Igreja atravessou os numerosos perigos de seu caminho. Evitou os
abismos, ora do teopassianismo ora da humanização do Filho, plenamente cônscia de
não poder desvendar o mistério da Encarnação com o auxílio das palavras, pois todas
elas são fracas demais, inclusive a palavra occultatio. Notemos, porém, que esta palavra
não foi pretexto para especulações, mas foi usada sóbriamente para dar o devido valor a
todo testemunho escriturístico. Eis por que a teologia calvinista não se preocupou em
“derivar” corolários desta conceituação, a qual constitui, antes, uma advertência contra
o esquecimento do vere Deus et vere homo. “Ocultação” é palavra apta para indicar a
obscuridade dos caminhos de Cristo. Ela não levou a exegese nem a dogmática
calvinistas a empanar a fé na autêntica humilhação de Cristo.
O ponto de partida da impressionante linha cristológica que finaliza na Cruz está na
iniciativa do Filho de Deus, o qual, vestido de glória e consciente de nada usurpar ao
considerar-se igual a Deus, não zelou por sua própria glória que tinha como Deus, mas
empreendeu o caminho do esvaziamento e o seguiu até o abandono e à morte. A Igreja,
fiel a si mesma durante todos os séculos, rejeitou sempre o teopassianismo, mas sem
deixar de confessar o amor de Deus decretando para seu Filho o caminho do serviço: “O
Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgaste
de muitos” (Mc 10.45; Mt 20.28).
***
Contemplando o caminho percorrido, respiramos enfim, convencidos de que a única
função da teologia dogmática é a de servir. Não lhe cumpre edificar, acima da fé
simples, uma gnosis reservada a privilegiados, com exclusão dos humildes. De humildes
é que consta a comunhão dos santos, deles é que o Senhor falou, quando dizia ao Pai:
“Graças te dou, ó Pai do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelaste aos pequenos” (Mt 11.25). Grifamos as palavras ocultar e
revelar, tão significativas: o mistério de Cristo não pode ser abrangido pela crítica
orgulhosa ou hostil. A Dogmática, investigando os problemas da Cristologia, não
conhece outra fonte de informação senão a Escritura Sagrada,que nos testemunha de
Cristo e que ultrapassa qualquer reflexão científica. Desincumbe-se de sua obrigação de
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
162
ler a Palavra inexaurível, sem qualquer ilusão de ir jamais além da pregação orientada
pelo Verbo de Deus, e aceitando as limitações da Revelação: “Há ainda muitas coisas
que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas, uma por uma, creio que no mundo inteiro
não caberiam os livros que seriam escritos” (Jo 21.25).
Não faltou quem citasse esta palavra final do Evangelista João como prova típica da
tendência hiperbólica dos judeus. João, autor de um evangelho relativamente bem
pequeno, falando de tantos livros que o mundo não os poderia receber... não é acaso um
interessante tipo do exagero semita? Mas, não será fora de propósito reconhecer, nesta
frase, a admiração extática de João e da comunidade cristã pelo advento de Cristo, que
eles reconheceram à luz da fé e do amor. Para descrever um homem e narrar sua
biografia, não faz falta relatar tudo quanto ele fez e falou. Toda vida pulula de
acontecimentos, fatos e palavras cotidianos, sem interesse para a posteridade... O
simples fato de cogitar-se na possibilidade de uma descrição total, embora praticamente
inexeqüível, comprova a significação única de Cristo, visada no final de São João.
Isto entendeu muito bem a Igreja através das peripécias de suas lutas seculares. Nem
sempre deu o devido valor à confissão do Filho do Homem, nem sempre o seu cântico
de louvores foi plenamente afinado e sonoro nas variedades e agruras da marcha através
de tempos e tentações. Mas nunca deixou de reanimar sua fé, especialmente quando
surgiam heresias; nunca perdeu consciência da significação de Jesus Cristo, de sua
Pessoa e de sua Obra. A ciência dogmática, empenhada em meditar nas Escrituras e no
depósito guardado a custo de tantas lutas, consegue esclarecer um tanto a Cristologia.
Além de conservar a lembrança das lutas valiosas entre os nossos antepassados na fé,
ela nos mostra que os debates em torno de Cristo não foram sofísticos, nem houve
especulação arbitrária, nem pretensão a desvendar o mistério, mas exatamente o
contrário: visavam rejeitar os sofismas e as fantasias.
Não há melhor defesa contra a especulação do que a fé no Senhor tal como Deus no-lo
revelou. Toda especulação é derrotada pela fé que vence o mundo, pela fé que ouviu as
promessas: “Tende bom ânimo, eu venci o mundo” (Jo 16.33). Cristo é o Senhor vivo
que domina todos os tempos. Em 1742, alguém, glosando o mencionado final de João,
escrevia: “Oxalá, pelo menos, o nosso mundo desse guarida aos livros que
descrevessem a obra do Senhor exaltado!” Certamente a exaltação de Cristo está
indissoluvelmente ligada a tudo quanto ele fez na terra e que João descreve com
admiração; mas, de fato, merece ponderação especialissima a realidade de que este
Senhor vivo é o Senhor da Igreja, o Cristo exaltado, que está a fazer uma Obra
indescritível e continuada em seu Reino, e cuja proteção nunca cessa. A viva fé da
comunidade tampouco cessará, mas sempre ecoará a antiga proclamação cristológica:
VERE DEUS ET VERE HOMO, baseada no testemunho dos profetas e apóstolos.
Perfeito resumo desta fé são as palavras lapidares de Hb 13.8: “Cristo é o mesmo,
ontem, hoje e para sempre.” Esta inalterabilidade do Ser de Cristo vence qualquer
especulação. Aquele que sabe quem ele é conhece sua Obra e repousa confiado: “Estas
coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim” (Jo 16.33).
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
PEQUENO LÉXICO TEOLÓGICO
por
A. Zimmermann
Adocianismo. Heresia cristológica professada por Teodoto (190). Ensinava que o Verbo,
confundido com o EspÍrito Santo, desceu sobre Jesus no dia de seu batismo e o elevou a
categoria de Deus, adotando-o.
Agnosticisrno. Doutrina que ensina a existência de uma ordem de realidades
incognoscíveis, a cujo respeito nada se pode afirmar.
Alegoria. Simbolismo concreto prolongado através de todo o conjunto de uma narração
ou de uma descrição, de tal maneira que os elementos do simbolizante correspondam
aos elementos significados.
Alegorese. Sistema exegético que preconiza a existência de um sentido espiritual
escondido sob a liberalidade do texto bíblico.
Anabatistas. Heréticos do século XVI que rejeitavam o batismo das crianças e
rebatizavam todos os seus adeptos.
Analogia. Propriedade de um Conceito ou termo possuindo, com relação aos termos que
abrange, uma significação parcialmente diversa e parcialmente semelhante. Opõe-se a
univoco e equivoco. Os teólogos distinguem a analogia de atribuição (a de um termo
que convém a diversas realidades, em virtude de relações com uma mesma razão
primeira, por exemplo, o termo são convém à medicina, ao sangue, ao alimento, ao
acampamento... em virtude das relações que todas estas coisas possuem com o homem o
qual é, formalmente, são) e a analogia de proporcionalidade (o mesmo termo convém a
diversas coisas em razão de uma comunidade intrínseca ou de uma semelhança de
relações, por exemplo, a visãO, sensível e intelectual).
Antropomorfismo. Diz-se de qualquer discurso ou raciocinio que, para explicar as
realidades não humanas (por exemplo, Deus, os fenômenos físicos, a conduta dos
animais. ..), aplica-lhes noções tomadas da natureza ou conduta humana.
Apatia. Perfeita indiferença a todas as coisas, impossibilidade de ser afetado pela dor e
pelas provações.
Atributo. Os atributos de Deus são os diferentes aspectos de sua natureza.
Carisma. Graça conferida com vistas à utilidade comum da Igreja.
Confessar. No estilo bíblico, louvar, celebrar, reconhecer, dar graças. Confissão de fé:
declaração ou testemunho de fé, credo.
Consubstancialidade. Termo teológico adotado pelo Concílio de Nicéia para definir a
unidade de substância e natureza entre o Verbo encarnado e o Pai.
Contingente. Que pode não ser, que não possui em si a razão de sua existência. Opõe-se
a necessário, que não pode não ser, que é forçosamente tal como é. Todo ser criado é
contingente.
164
Docetismo. De um verbo grego significando parecer. Erro dos que negavam ter sido
Jesus Cristo um homem verdadeiro, dotado, como nós de um corpo de carne: para eles,
os relatos evangélicos sobre a concepção humana do Cristo, seu nascimento, sua morte
e ressurreição não passavam de ilusão ou de aparência ilusória.
Doxologia. Fórmula de louvor em honra das três Pessoas de Deus.
Dualismo. Toda doutrina que, em determinado campo, admite dois princípios
essencialmente irredutiveis. O Dualismo Metafísico (Maniqueísmo) admite dois
princípios primeiros irredutíveis, na origeni das coisas, o Bem e o Mal.
Economia. Ordem na conduta duma casa ou empresa. Economia da salvação: desígnio
divino para a salvação do mundo.
Escatologia. Ciência dos fins derradeiros, da fase final da Salvação.
Essência. Aquilo que constitui uma coisa no seu ser, distinguindo-a de todas as demais
coisas.
Eutiquianismo. Doutrina de Eutiques, do século V, condenada em Calcedônia. Rejeitava
a dualidade de naturezas em Cristo.
Gnosis. Sistema esotérico de Conhecimento religioso “superior à fé” e que,
praticamente, sacrificava esta em benefício de uma filosofia dualista.
Homo-ousios. Consubstancial.
Idealismo. Tendência filosófica que consjste em reduzir toda existência ao pensamento.
Opõe-se ao realismo, que admite uma existência independente de pensamento.
Idioma. Na teologia: propriedade de uma natureza. Communicatio idiomatium: em
Cristologia, princípio que define a maneira como os atributos divinos e humanos devem
ou não ser aplicados a Cristo.
Inspiração das Escrituras. Ação exercida pelo Espírito Santo sobre os escritores
sagrados, deterininando-os a escrever, com seu concurso e sob seu influxo, as verdades
que desejavam manifestar aos homens.
Kenosis (alusão a Fp 2.7: ekenoosen). A kenosis paulina não é outra coisa senão a
Encarnação do Verbo. Designa, na história cristológica, um sistema doutrinário que
ensina importar a Encarnação numa limitação na Divindade do Cristo.
Kerygma (de keryx, arauto, mensageiro que proclama uma nova). O kerygma evangélico
é a primeira proclamação das boas novas feita pelo arauto enviado por Deus, Jesus
Cristo, para a conversão do mundo. Extensivamente, a pregação apostólica.
Maniqueísmo. Seita cristã fundada por Manes, século III. Postulava dois princípios
metafísicos, o do Bem e o do Mal, iguais e fundamentais.
Modernismo. Termo coletivo que designa certo progressismo religioso, que acaba
solapando fundamentos da fé. Opõe-se-lhe outro erro, conhecido com os nomes de
integrismo, fundamentalismo, etc.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
165
Monarquianismo. Heresia do século III, que, para salvaguardar a unidade divina,
negava a Trindade das Pessoas divinas e fazia do Filho e do Espírito meros modos do
Pai.
Monofisismo. Heresia de Eutiques e outros que rejeitavam a dualidade de naturezas em
Cristo.
Mito. Tradição social ou religiosa que, sob forma alegórica, relata a explicação de
algum fato natural, histórico, filosófico, ou de uma verdade religiosa.
Naturalismo. Doutrina que reivindica nada existir fora da natureza ou da causalidade
natural.
Nestorianismo. Heresia de Nestório, que dístinguia em Cristo duas hipóstases ou
Pessoas. Condenada em Éfeso (431).
Nominalismo. Doutrina que não admite a existência de idéias gerais, mas apenas de
sinais gerais.
Ontologia. Ciência do ser enquanto ser.
Ortodoxia. A doutrina conforme à verdadeira fé. Igreja ortodoxa: nome da Igreja
oriental separada da de Roma.
Parábola. Narração cujos elementos evocam, comparativamente, realidades de ordem
superior.
Parousia. Etimologicamente, presença, vinda, chegada. Volta gloriosa de Cristo no final
dos tempos.
Pelagianismo. Heresia de Pelágio que negava o pecado original e atribuía às forças
naturais da alma poderes que possui apenas em virtude da graça.
Pessoa (hipóstase). Substância individual, racional e autônoma que é o sujeito ou
“substrato” do ser racional.
Pragmatismo. Doutrina que ensina que a verdade é totalmente relativa à experiência
humana.
Teofania. Manifestação de Deus.
Teopassianismo. Doutrina que ensina que Deus, e não o Verbo Encarnado, sofreu e
morreu na Cruz.
Teorético. Objeto de especulação pura.
Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9)
www.monergismo.com
Download