5 Descrição dos Experimentos Neste capítulo serão apresentados os experimentos concebidos no âmbito desta tese, os quais visam a investigar as questões aqui levantadas e a testar hipóteses específicas acerca dos fatores que atuam na identificação de número como traço formal no PB e à distinção mass/count nesta língua. Em particular, busca-se prover uma caracterização inicial das capacidades de reconhecimento da informação relativa a número, bem como o processamento da concordância de número no DP, tomados como fundamentais na dinâmica do processo de aquisição do sistema de número gramatical em PB. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 5.1. Experimento 1 - Reconhecimento de Informação Relativa a Número Gramatical e Processamento da Concordância no DP O experimento que se segue explora a capacidade de a criança reconhecer variação morfo-fonológica no âmbito do DP, tomando esta variação como indicativa da manifestação do número no PB, e relacioná-la ao nome por meio da concordância. Este experimento igualmente busca evidenciar em que medida o processamento da concordância de número no âmbito do DP pode ser atribuído a crianças de cerca de dois anos de idade – fase em que não necessariamente a morfologia de número se encontra estabelecida na fala, conforme mostram estudos longitudinais baseados em dados de produção infantil (Simões, 2004; Simioni, 2003; Ferrari-Neto, 2003). Em estudos anteriores sobre a aquisição do gênero em PB (Name, 2002; Corrêa & Name, 2003) demonstrou-se que crianças de cerca de dois anos (22 meses) são sensíveis à incongruência de gênero no âmbito do DP, o que sugere que o processamento da concordância de gênero está em operação. Os dados obtidos nesses estudos sugerem ainda que é a informação de gênero expressa no Determinante e o processamento da concordância de gênero no DP que possibilitam à criança identificar o gênero de palavras novas (nomes com traço semântico inanimados, nos quais o gênero é intrínseco, sem motivação 92 semântica, de um ponto de vista sincrônico). No tocante a número, estudos realizados com metodologia semelhante à usada por Name e Corrêa (2002, 2003) em seus experimentos sobre aquisição do gênero (identificação de imagens a partir de fala sintetizada de um fantoche) sugeriram, entretanto, que crianças de mesma faixa etária têm dificuldade com o número, o que foi atribuído à maior complexidade semântica dessa categoria gramatical (FerrariNeto, 2003; Corrêa, Name & Ferrari-Neto, 2004). Nesses estudos, solicitavase à criança que escolhesse os gatos entre figuras que apresentam um gato e vários gatos, o que poderia não ser suficientemente excludente, visto que o sintagma os gatos pode expressar referência genérica, o que tornaria a identificação da figura com um único elemento uma possível opção. Além disso, o uso de palavras do conhecimento da criança naqueles estudos pode ter facilitado uma estratégia baseada na compreensão da raiz dos nomes, gerando PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA respostas aleatórias para as figuras singular e plural. O uso de estratégias desse tipo poderia estar obscurecendo o conhecimento da criança relativo a número gramatical, o qual já se manifesta na produção espontânea, ainda que de forma não estável. Com vistas a eliminar esses problemas e avaliar em que medida a criança é capaz de interpretar semanticamente informação relativa a número no DP, foi elaborado o experimento que se segue. O presente experimento parte da hipótese de que o processamento da concordância é instrumental para a identificação de propriedades específicas dos traços formais da língua em aquisição. A interpretação semântica do número no DP pode, em princípio, ser feita exclusivamente com base no afixo flexional do nome ou com base no processamento da concordância. Considerando-se que a criança utiliza o processamento da concordância como meio de aquisição do que há de específico na gramática da língua, não haveria necessidade de lidar com uma estratégia de base lexical numa língua como o português, em que informação relativa a número está necessariamente presente no Determinante. Além disso, esse tipo de estratégia não se aplicaria à variante não padrão do PB. Assim sendo, o presente experimento lida com duas variantes do português como realizações gramaticais – a Padrão, em que D e N 93 são flexionados em número e a Não-Padrão, em que apenas D apresenta essa flexão. A expressão morfológica de número é altamente variável entre as línguas, podendo também contemplar marcação exclusiva no nome, como no caso do inglês (em que apenas alguns membros da categoria D apresentam a distinção de número, como this/these, that/those). A marcação de número pode variar quanto à realização morfológica, havendo a possibilidade de morfemas presos -- sufixos (como em inglês), prefixos (como em Suáili, língua Bantu) e mesmo infixos (como em Sudanês)1 -- ou morfemas livres (como em Tagalog) (Robins, 1970; Corbett, 2000). Assim sendo, no presente experimento explorase essa variedade, incluindo-se dois tipos de expressão morfológica de número PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA possíveis nas línguas humanas embora não gramaticais no PB – o sufixo exclusivo no nome, como no inglês e o infixo, ambas as possibilidades dando origens a possíveis palavras singulares do português, como lápis e mosca. Uma variável independente é inicialmente considerada: Expressão morfológica do número, com dois níveis – gramatical (forma Padrão e Não Padrão do DP Plural em PB) e não gramatical (marcação de número como sufixo e como infixo). Em seguida, Tipo de DP será considerado como variável independente, contrastando cada uma das formas acima identificadas. A forma gramatical do singular no PB foi usada como controle. Apresenta-se abaixo um exemplo de cada condição, com um dos pseudo-nomes utilizados. • Gramatical Padrão – G PAD - Determinante plural e Nome plural Exemplo: Ache o-s dabo-s pro Dedé • Gramatical Não Padrão – G NPAD - Determinante plural e Nome singular Exemplo: Mostre o-s dabo pro Dedé 1 A forma plural quaisquer em português, de um ponto de vista sincrônico, pode ser considerada como contendo um infixo. 94 • Não Gramatical Sufixo – NG SUF - Determinante singular e Nome plural Exemplo: Ache o dabo-s pro Dedé • Não Gramatical Infixo – NG INF – Marca de Plural inserida no meio do Nome Exemplo: Ache o da-s-bo pro Dedé • Controle – CONT – Determinante e Nome no singular Exemplo: Ache o dabo pro Dedé A variável dependente foi o número de respostas “plural”, ou seja, repostas correspondentes à figura em que várias instâncias (tokens) de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA mesmo tipo de objeto/criatura eram apresentadas. Método Participantes Participaram do experimento 18 crianças, com idades entre 18 e 30 meses (10 meninas e 8 meninos), com idade média de 25;4 meses. Material Foram criados 12 estímulos-teste com pseudo-nomes, 3 por condição, definida em função do tipo de expressão morfológica do número; 6 estímulos-controle, com pseudo-nomes no singular e 6 estímulos-distratores, com nomes do vocabulário da criança, no singular. Esses estímulos compuseram 4 listas experimentais, nas quais a ordem de apresentação foi aleatorizada, evitando-se, contudo, a apresentação consecutiva de estímulos da mesma condição. Dois estímulos adicionais, com um nome conhecido e outro inventado foram utilizados em um pré-teste. Os estímulos foram previamente gravados e contém o pedido, por parte de um fantoche chamado Dedé, para que a criança lhe mostre uma figura correspondente ao que lhe é solicitado (Ex. Mostre os dabos pro Dedé). Para cada estímulo foi criada uma prancha com 4 figuras -- uma 1 figura-alvo e 3 figuras distratoras. Nas pranchas-teste, as figuras-alvo valeram-se sempre de desenhos que representavam objetos e seres inventados em número maior do que um. As figuras distratoras correspondiam a um desenho não-inventado 95 “singular” (i.e. figura única) e a dois desenhos inventados diferentes do alvo. A posição da figura-alvo foi variada. Nas pranchas-controle, a figura-alvo correspondia a uma das figuras inventadas e nas distratoras, o alvo era sempre uma figura conhecida pela criança. O conjunto de pranchas constituiu um álbum. Procedimento: Familiarização: a experimentadora interage com a criança e apresenta a ela uma marionete, caracterizada como um boneco falante (mas que na realidade apenas gesticula durante a apresentação dos estímulos). Esta etapa tem por objetivo acostumar a criança à voz do boneco, bem como criar uma atmosfera lúdica para a execução do experimento. Pré-Teste: O experimentador mostra à criança o álbum com as pranchas. É PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA proposta então a “brincadeira” ou o “jogo”: o boneco pede e a criança aponta para uma determinada imagem. As duas primeiras pranchas constituem o préteste. Somente as crianças que superam essa etapa passam ao teste propriamente dito. Teste: O jogo ou brincadeira do Dedé prossegue, sempre com a solicitação por parte do fantoche (mediante apresentação dos estímulos pela assistente de pesquisa) para que a criança mostre a ele o que este requer. A resposta da criança é acolhida com um comentário de incentivo à sua participação, independentemente de esta corresponder à figura-alvo. Todo o procedimento leva cerca de 10 minutos e é filmado para o registro das respostas. As crianças foram testadas em ambiente de creche ou familiar, sempre numa sala isolada com a experimentadora e o responsável pela filmagem. Resultados: Os resultados foram inicialmente analisados em função da variável Expressão morfológica do número, gramatical e não gramatical. Em seguida, foram avaliados em função de Tipo de DP: gramatical padrão, gramatical não padrão, não gramatical sufixo e não gramatical infixo. Os resultados apresentam um efeito significativo de Expressão morfológica do número, com um número maior de respostas “plural” para a condição gramatical (t(df17) = 5,65 p <.0001). No que se refere a Tipo de DP, não há diferença significativa 96 entre as condições gramatical padrão e não padrão (t(df17) = 1, 16 p=.26), assim como entre as condições sufixo e infixo (t(17) = 0,97 p=.34), sugerindo que as crianças tratam as duas condições do conjunto de estímulos gramaticais assim como as duas condições do conjunto de estímulos não gramaticais de forma indiferenciada. As respostas plural para a condição singular foram, no entanto, em menor número do que as respostas para a condição não gramatical (t(17) = 3, 02 p <.01), o que sugere uma interferência do fonema /s/ na condição não-gramatical. Gráfico 1 % de Respostas Plural em Função da Expressão Morfológica de Número 100 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 80 61,1 60 40 31,4 20 12,5 0 Gramatical 1 Não-Gramatical Singular Controle Gráfico 2 % de Respostas Plural em Função do Tipo de DP 100 80 60 57,4 40 64,8 33,3 29,6 12,5 20 0 Gramatical Padrão Não-Gramatical Infixo 1 Gramatical Não-Padrão Controle Não-Gramatical Sufixo 97 Os resultados sugerem que a criança por volta dos dois anos de idade está sensível à expressão gramatical do número no PB, visto que processa diferentemente as condições gramatical e não gramatical. A variabilidade na expressão da concordância de número, neste caso, não se constitui em uma dificuldade para a criança adquirindo o PB, uma vez que a criança é capaz de reconhecer os padrões de manifestação de concordância. Por outro lado, a não diferença entre as condições gramatical padrão e não padrão pode ser tomada como indicativa de que a informação de número é extraída do determinante, o que implica o processamento da concordância no DP, de acordo com o modelo de língua assumido. Esses resultados são, portanto, compatíveis com a hipótese de trabalho que orienta este estudo, qual seja, a de que a computação da concordância, atribuída a um sistema computacional universal e disponível quando dos primeiros contactos da criança com a língua, é instrumental para a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA identificação do que é específico da língua de sua comunidade. Assim sendo, por volta dos dois anos de idade, tanto gênero quanto número podem ser processados no âmbito do DP. Os resultados obtidos são igualmente compatíveis com um modelo de aquisição da linguagem no qual as operações de um sistema computacional lingüístico independente, como o aqui adotado, podem funcionar como um mecanismo de aquisição da linguagem (tal como LAD – language acquisition device, proposto nos modelos iniciais da teoria gerativa) tão logo seja inicializado a partir do reconhecimento de informação presente na interface fonética. Pode-se afirmar também, ainda com base nos resultados acima relatados, que as crianças de 2 anos em média são sensíveis à presença do fonema /s/ nos contextos em que ele funciona como um morfema de número, o que indica que crianças nessa faixa etária analisam o DP como uma unidade, estabelecendo relações de concordância entre os constituintes deste DP e assume que um traço formal pode ser morfologicamente expresso em qualquer elemento de uma relação de concordância. O fato de a condição singular apresentar menor número de respostas no plural sugere, contudo, que houve interferência da presença do fonema /s/ nos estímulos testados nas condições com falso sufixo ou infixo, não sendo estes reconhecidos facilmente como 98 contendo nomes singulares com sílabas final e inicial travadas por /s/. Não é claro o quanto este efeito pode ser tomado como indicativo de uma fase de desenvolvimento lingüístico na qual a criança sofre interferência desse tipo de travamento silábico no processamento de nomes singulares. Em estudo posterior (Castro & Ferrari-Neto, 2006), contudo, em que crianças portuguesas foram testadas com a mesma metodologia, semelhante interferência não foi encontrada, o que sugere que o efeito no PB pode advir da variabilidade com o que a expressão de número se manifesta no DP. 5.2. Experimento 2 - Reconhecimento e Processamento de Alomorfias PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA de Plural A aquisição do número gramatical no PB envolve a identificação da informação de número expressa no morfema (–s) presente em elementos do DP. No experimento anterior, verificou-se que crianças na faixa de dois anos de idade (idade média de 25,4 meses) identificam o número plural de DPs com base na flexão de número do Determinante, independentemente da marcação morfológica de número em N, o que foi atribuído à coexistência de dois dialetos no PB – o padrão, no qual a flexão de número se encontra presente no nome e nos elementos que entram em concordância com este no DP; e o nãopadrão, no qual número se apresenta manifesto apenas em D. Não é claro, portanto, o quanto a informação morfológica de número se faria visível quando expressa exclusivamente em N. A expressão de número em N, em Português, se faz pelo morfema (-s) adjungido a nomes terminados em vogal temática (–a), (-e) e (-o), como a maioria dos nomes da língua, assim como por dois alomorfes: -es e –is. O primeiro, em nomes terminados na consoante /-r/ (como em mar-mares), e o segundo, em nomes terminados na consoante /-l/, no PE, ou na semivogal /–w/ no PB (como em jornal-jornais), conforme o exposto no capítulo 3 . 99 Uma das tarefas da criança na aquisição da língua consiste em representar padrões identificados na interface fônica como informação morfológica e lidar com informação proveniente da interface semântica de modo a tomar variações fônicas com distribuição e interpretação semântica semelhantes como pertencentes a uma categoria morfológica mais abstrata. Dados obtidos em várias línguas sugerem que crianças desde tenra idade lidam como alofones como membros de uma única categoria fonológica (Dupoux & Peperkamp, 1999). Assim sendo, a criança que adquire o português dever ser capaz de lidar com todas as possíveis realizações fônicas de um morfema de forma indiferenciada. No caso dos alomorfes de número uma dificuldade para isso residiria no fato de palavras terminadas em /–r/ no plural poderem ser tomadas como palavras terminadas pela vogal temática –e ou em ditongo /oy/ seguidas do morfema de número -s, dificuldade essa que poderia afetar a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA aquisição de nomes novos. Haveria, ainda, a possibilidade de um nome novo ser tomado como morfologicamente semelhante a lápis ou pires, o que acarretaria uma dificuldade adicional. Segundo a concepção minimalista mostrada no capítulo 2, o que criança deve adquirir no processo de aquisição são as propriedades dos traços formais da língua em questão, as quais se devem fazer visíveis nas interfaces da língua com sistemas de desempenho. Os resultados obtidos no experimento 1 revelaram sensibilidade de crianças na faixa de dois anos à informação de número no DP, o que pode ser interpretado como indicativo do processamento da concordância no DP pela criança, levando-se em conta que o traço interpretável de número estaria em N (Chomsky, 1995) ou em NumP (cf. capítulo 2). Uma análise alternativa da visibilidade de número, em que este é interpretável em D (Magalhães, 2004; Costa & Figueiredo-Silva, 2006, ver capítulo 2) não necessariamente, contudo, levaria a esta conclusão, visto que o número em D poderia ser tomado como traço semântico e não necessariamente como um traço formal. Não é claro, pois, em que medida a identificação de informação de número em D pressuporia concordância. O experimento 2 vem, portanto, esclarecer em que medida crianças expostas ao PB, no qual a informação de número encontra-se predominantemente marcada em D, seriam 100 capazes de reconhecer o número em N em um sintagma existencial que contém apenas N plural. Este estudo teve, pois, como objetivos verificar (i) se crianças com idades entre 23 e 30 meses identificam a informação relativa ao número gramatical quando codificada morfologicamente apenas no N, como em construções existenciais, e o quanto a alomorfia de número afetaria o reconhecimento desta informação, uma vez que, conforme visto acima, a realização do traço formal de número no PB apresenta-se nas interfaces com grande variabilidade morfológica. Não há evidências experimentais que possam atestar o quanto essa variabilidade do input afeta a segmentação do nome flexionado em radical e afixo pela criança. Saber se este fato constitui uma dificuldade para a criança é também um dos objetivos do trabalho ora PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA apresentado. O experimento aqui descrito utilizou-se do paradigma da Tarefa de Seleção de Imagem (Picture Identification Task), com pseudo-nomes e objetos inventados. A variável independente foi o tipo de plural no nome alvo (plural com alomorfia e sem alomorfia, este último representado por terminação em sílaba travada por /r/ ou /l/ (que se realiza como [w]) vs. terminação em vogal temática –e ou em ditongo com semivogal /y/). As condições experimentais foram a de plural com alomorfia (condição 1) e plural sem alomorfia (condição 2). A variável dependente foi o número de respostas correspondentes ao plural do nome alvo apresentado. Método: Participantes: 10 crianças, com idades entre 23 e 30 meses (média de idade de 26,5 meses), sendo 6 do sexo masculino e 4 do sexo feminino, residentes da cidade de Petrópolis (RJ). Material: Como estímulos visuais foram usados doze conjuntos de cinco fichas, os quais continham duas fichas com um exemplar de uma figura inventada (figura alvo) e mais uma ficha com a figura alvo múltipla, outra ficha com uma única figura 101 alvo e uma terceira com uma figura múltipla de objeto conhecido. Utilizaramse ainda quatro conjuntos de fichas, correspondentes a figuras de objetos reais, usadas como distratores. Como estímulos sonoros foram usados dezesseis frases pronunciadas pelo experimentador, sendo seis na condição 1 e seis na condição 2, as quais continham nomes que designam objetos inventados, e que foram usadas como teste, mais quatro frases que apresentavam nomes que designam objetos reais, usadas como distratores. Procurou-se nos estímulos sonoros na fase de teste usar palavras inventadas terminadas com as vogais temáticas –a, -e, -o, em número de dois para cada uma das vogais, perfazendo deste modo seis estímulos, correspondentes à condição 1; de igual forma, buscou-se usar palavras inventadas terminadas em –ar, -er, -or, -al, -el, -ol, em número de um para cada terminação, perfazendo assim seis estímulos, correspondentes à condição 2. Os estímulos distratores, em número de seis, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA usaram palavras conhecidas terminadas em vogal temática. Teve-se, portanto, um total de 18 estímulos. Foram usados como estímulos visuais dezoito, conjuntos de cinco fichas, sendo seis para cada condição, os quais continham duas fichas com um exemplar de uma figura inventada (figura alvo) e mais uma ficha com a figura alvo múltipla, outra ficha com uma única figura alvo e uma terceira com uma figura múltipla de objeto conhecido, mais seis usados como distratores. A tabela a seguir apresenta exemplos das condições utilizadas: Aqui tem um DAFAR Aqui tem outro DAFAR Mostra para mim onde tem DAFARES Aqui tem um DAFARE Aqui tem outro DAFARE Mostra para mim onde tem DAFARES Aqui tem BOLA Aqui tem outra BOLA Mostra para mim onde tem BOLAS Procedimento: O experimento consistiu de duas partes, a apresentação e a escolha. Na apresentação, duas fichas com desenho de nome alvo singular inventado são mostradas à criança (correspondendo aos estímulos sonoros “Aqui tem um dafar”; “Aqui tem outro dafar” – condição 1, ou “Aqui tem um dafare”; “Aqui tem outro dafare” – condição 2). No teste, apresentam-se à criança três fichas, uma com nome alvo plural (figura múltipla), outra com outro nome desconhecido plural (figura múltipla, para a possibilidade de a criança 102 interpretar a forma plural dafares como correspondente ao plural de dafare ou dafar quando o alvo seria dafar e dafare, respectivamente) e uma terceira com o nome alvo singular (figura única, caso a criança levasse em conta apenas a raiz). A criança é requerida a identificar a figura correspondente ao plural do nome alvo (“Mostra pra mim onde tem dafares”). Resultados Os resultados foram inicialmente analisados em função da variável resposta plural-alvo. Procedeu-se igualmente a uma análise dos tipos de erros cometidos (a qual considera as respostas-plural, correspondentes à figura plural diferente do alvo, e as respostas-singular, correspondentes à figura singular). Os resultados não apontaram uma diferença significativa entre as condições 1 e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 2 (58,3% x 51,7%, com t (df9)= 1,19 e p=0,26), no que se refere à primeira variável. Já no que tange à análise dos erros, a diferença entre o total de respostas-singular e o de respostas-plural em ambas as condições não foi significativa (respostas singular: t (df9)=0,86 e p= 0,17; respostas plural: t (df9) = 0,75 p=0,31). Os gráficos com os resultados obtidos aparecem abaixo: Gráfico 3 Distribuição (%) de Respostas-alvo em Função da Alomorfia. 100,0% 80,0% 60,0% 40,0% 20,0% 0,0% 58,3% 51,7% Condição 1plural com alomorfia Condição 2 plural sem alomorfia 1 Respostas-alvo 103 Gráfico 4 Distribuição (%) dos Erros por Condição 100,0% Condição 1 - plural com alomorfia 80,0% 60,0% 40,0% 23,3% 25,0% 20,0% 18,3% 21,7% Condição 2 - plural com alomorfia 0,0% Respostas Singular Respostas Plural Considerando-se que o nível de chance é 33%, os resultados sugerem que a criança percebe informação relativa a número quando expressa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA exclusivamente em N e trata de forma indiferenciada o plural de nomes terminados em vogal temática e o plural dos nomes terminados em consoante/semivogal, uma vez que o índice de reconhecimento da figura-alvo plural é semelhante nas duas condições. Esta análise indica que as crianças tratam morfema de número e alomorfe de número de maneira indistinta, e que a alomorfia não se constitui em um problema para o reconhecimento da informação relativa a número, o que é confirmado por uma análise dos tipos de erros cometidos: a diferença entre as respostas-singular e as respostas-plural (correspondente a figura plural distinta do alvo) em ambas as condições não foi significativa, o que sugere que a alomorfia não induziu dificuldades a este respeito. Mesmo no que se refere à segmentação, os resultados aqui aferidos não provêm evidências de que a alomorfia imponha dificuldades, já que a criança segmenta o nome em radical e morfema/alomorfe na identificação da informação de número. Quanto à possibilidade de um nome inventado como dafares ser tomado como morfologicamente semelhante a lápis ou pires, conforme o exposto na introdução, o número de respostas singular foi relativamente pequeno, e somando-se o percentual de respostas plural alvo com o percentual de respostas-plural, verifica-se que a informação de número foi reconhecida prioritariamente. Conclui-se, então, que as crianças em torno de dois anos possuem capacidade de lidar com alomorfias – representação abstrata de número – e que a criança é capaz de lidar com número plural em nomes nus 104 de sintagmas existenciais. Assim sendo, mesmo que se considere que a informação de número no PB é interpretável em D, a conclusão do estudo anterior pode ser mantida, visto que número pode ser interpretado nos elementos que estaria em concordância com aquele. Ou seja, a criança, por volta dos dois anos de idade, percebe informação de número das interfaces fônica e semântica e pode representá-la no léxico em termos de um traço formal. Cotejando-se os resultados auferidos no experimento 2 com os resultados a que chegou Soderström (2002) com crianças falantes de inglês, tem-se que em ambos ficou evidenciada uma percepção precoce da criança à presença do morfema de número no nome (no caso dos testes experimentais de Soderström, constatou-se ainda um sensibilidade à presença do morfema de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA número também no verbo). No entanto, nos experimentos de Soderström não se obtiveram evidências acerca do reconhecimento da informação semântica contida no morfema de número, nem acerca de uma possível capacidade de a criança perceber o morfema de número mesmo quando este se apresenta variável fônica e morfologicamente, tratando estas variações como expressões de um mesmo morfema abstrato. O experimento 3 relatado a seguir objetivou justamente prover evidências a respeito desta capacidade em crianças adquirindo o PB. 5.3. Experimento 3 - Reconhecimento e Processamento de Morfemas e Alomorfias de Plural em Grupos Sociais Distintos Uma questão importante para uma teoria de aquisição da linguagem baseada na percepção de informações no material lingüístico é a maneira como a criança lida com a variabilidade lingüística no processo de aquisição de língua materna, aqui, em especial, na aquisição do número gramatical. Para o reconhecimento do sistema de número gramatical, é notadamente importante a manifestação morfológica da informação relativa a número, em especial aquela que se manifesta nos elementos formadores do DP. Uma vez que tal 105 informação apresenta dois tipos de variação: uma, de caráter morfofonológico, cuja expressão se dá por meio de alofones e alomorfes; e outra, de cunho sintático, cuja realização se observa nos diversos padrões de concordância de número, os quais caracterizam variantes sociodialetais distintas, é necessário verificar em que medida tal variação afeta a análise do material lingüístico pela criança. Os resultados do experimento 1 demonstram que, ainda que expostas predominantemente ao dialeto padrão, no qual todos os elementos do DP tendem a ser marcados em número, as crianças não tomaram como relevante a distinção entre as formas padrão e não padrão. A informação de número em D – que se mantém constante em todas as variantes – é tomada como a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA informação confiável pelas crianças (Note-se que mesmo em PE, esta é a informação confiável, dada a existência de nomes singulares terminados em s). Não é claro, contudo, em que medida a criança extrairia informação de número de N, quando esta é a única fonte de informação de número no DP. Nesse sentido, DPs existenciais com nomes nus constituem um meio de se investigar o quanto de informação de número a criança extrai da flexão do nome, e se haveria diferença no modo como crianças expostas predominantemente aos dialetos padrão e não padrão lidam com essa informação. Visto que alomorfia de número manifesta-se nos nomes flexionados, considerou-se que verificar o modo como crianças processam alomorfes nesse contexto seria informativo do quanto crianças estão atentas à flexão do nome, na ausência de um D flexionado. Além disso, sabe-se que o –s final tende a ser suprimido na interface fonética. Nesse caso, alomorfes poderiam tornar a informação de número particularmente visível. Foi, portanto, com vistas a verificar de que modo crianças que adquirem o PB e são predominantemente expostas a diferentes dialetos lidam com informação de número no nome – com e sem alomorfia – que o presente experimento foi concebido. A questão da variabilidade do estímulo também pode ser considerada do ponto de vista da questão de saber se crianças expostas a dialetos sociais 106 distintos procederiam da mesma forma na identificação do número. Foi o que Miller (2005) fez com crianças falantes de espanhol chileno, a qual constatou que crianças de classe social mais baixa (submetidas ao dialeto não-padrão, portanto) tinham maior dificuldade em uma tarefa de identificação da informação de número. Por essa razão testou-se o comportamento de crianças oriundas de grupos sociais distintos, portanto expostas predominantemente a dialetos padrão e não-padrão, diante da tarefa de identificar a presença da informação relativa a número expressa por morfemas e alomorfes. Assim, o experimento 3, relatado a seguir, busca prover evidências sobre o modo como crianças com idade em torno dos 2 anos, oriundas de classes sociais diversas (as quais recebem, como input, respectivamente, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA variante padrão e a variante não-padrão) se comportam com relação a identificação das informações concernentes a número no processo de aquisição do PB, valendo-se para isso do paradigma da Tarefa de Seleção de Imagens. Busca-se verificar como a criança analisa preferencialmente uma forma plural terminada em –res, -les ou -ois: como plural sem alomorfe de uma forma singular terminada na sílaba –re, -le ou -oi ou como plural com alomorfe de uma forma singular terminada em sílaba travada por –r, -l ou -ol. Para isso, apresenta-se à criança uma forma passível de ser lida como plural regular ou alomórfico de um nome novo e verifica-se em condições que favorecem uma ou outra leitura. Tomou-se como variável dependente o número de respostas com leitura alomórfica, de modo a verificar se há diferença entre condições que favorecem ou não esta leitura, avaliando, desse modo, em que medida a alomorfia se mostra acessível a crianças dos dois grupos sociais. Neste experimento tomaram-se como variáveis independentes a alomorfia, determinando assim duas condições experimentais, nome com alomorfe (condição 1) e nome sem alomorfe (condição 2); e grupo social, determinando assim o grupo padrão (formado por crianças expostas predominantemente à variante padrão do PB) e o grupo não-padrão (formado por crianças expostas que predominantemente à variante não-padrão do PB). 107 Foi utilizada a técnica de identificação de objetos/criaturas inventados nomeados por pseudo-nomes e, tal como no experimento 1. Método Participantes 20 crianças, com idade entre 24 e 36 meses (média de idade 30 meses), residentes na cidade de Petrópolis (RJ). As crianças foram divididas em dois grupos de 10 crianças, o primeiro (grupo padrão) formado por crianças filhas de pais escolarizados (com nível superior completo) e matriculadas em colégio particular de sua cidade, sendo, portanto, expostas predominantemente à variante padrão do PB. O segundo grupo (grupo não-padrão) foi formado por crianças filhas de pais semi-escolarizados (com até o primeiro segmento do Ensino Fundamental completo) e matriculadas em creches públicas de sua PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA comunidade, sendo, portanto, expostas predominantemente à variante nãopadrão do PB. Material O material lingüístico consistiu de 12 conjuntos de 3 sentenças de apresentação de dois objetos/criaturas idênticos e um diferente, todos inventados (Aqui tem um dafar; aqui tem outro dafar e aqui tem um dafare) seguidas de um comando com um DP existencial com nome nu flexionado (Mostre pra mim onde tem dafares), como plural de dafar ou de dafare, como complemento. Foram usados seis conjuntos para cada condição experimental, e mais seis conjuntos semelhantes com nomes de objetos e seres reais, as quais funcionaram como distratores, totalizando assim dezoito conjuntos. Foram usados como estímulos visuais dezoito conjuntos de seis fichas, sendo seis conjuntos para cada condição, mais seis para os distratores. Os conjuntos usados como teste continham três fichas para a parte de apresentação: duas contendo uma figura inventada singular (figura alvo), mais uma ficha com uma figura singular diferente da figura alvo. Na parte de escolha, os conjuntos continham outras três fichas: uma ficha com a figura alvo múltipla, uma ficha com a figura alvo no singular, mais outra ficha com figura múltipla diferente do alvo (correspondente ao plural da figura diferente do alvo mostrada anteriormente). A tabela a seguir apresenta exemplos das condições utilizadas: 108 Condição 1 - DAFAR Aqui tem um dafar - Aqui tem outro dafar - Aqui tem um dafare Mostre pra mim onde tem DAFARES Condição 2 - DAFAR Aqui tem um dafare - Aqui tem outro dafare - Aqui tem um dafar Mostre pra mim onde tem DAFARES Distrator - GATO Aqui tem um gato Aqui tem outro gato Mostre pra mim onde tem GATOS Procedimento Para a fase de treinamento e para os distratores são usadas frases produzidas pelo experimentador, as quais contêm nomes que designam objetos reais, distribuídas em duas partes: - Parte 1 (apresentação): apresentação de três fichas com desenho de nome alvo singular conhecido (“Aqui tem um carro”; “Aqui tem outro carro”; “Aqui tem uma casa”). - Parte 2 (escolha): apresentação de três fichas: uma com uma figura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA correspondente ao nome alvo (figura múltipla), outra com uma figura correspondente a outro nome plural diferente do alvo (figura múltipla) e uma terceira com o correspondente ao nome alvo singular (figura única). Tarefa: A criança é requerida a identificar a figura correspondente ao plural do nome alvo (“Mostra pra mim onde tem CARROS”). Espera-se que a criança identifique o nome alvo plural. Para a fase de teste são usadas frases produzidas pelo experimentador, as quais contêm nomes que designam objetos inventados, distribuídas em duas partes: - Parte 1 (apresentação): apresentação de três fichas: duas com figura do nome alvo singular inventado (“Aqui tem um dafar”; “Aqui tem outro dafar”) e uma com uma figura singular diferente do alvo (“Aqui tem dafare”) – condição 1, ou (“Aqui tem um dafare”; “Aqui tem outro dafare”; “Aqui tem dafar” – condição 2). Contrabalançou-se a ordem de apresentação, de forma a alternar os estímulos com dafar (um dafar, outro dafar, um dafare), com dafare (um dafare, outro dafare, um dafar) e com os distratores. - Parte 2 (escolha): apresentação de três fichas: uma com a figura alvo múltipla, correspondente à interpretação plural do nome presente no estímulo; outra com uma figura múltipla diferente do alvo, correspondente à interpretação da forma 109 testada como plural embora não relacionada à forma singular anteriormente apresentada; e uma com a figura alvo no singular. Tarefa: A criança é requerida a identificar a figura correspondente ao plural do nome alvo (“Mostra pra mim onde tem DAFARES”). Previsões: 1. Se o dialeto ao qual a criança está exposta afeta a maneira como a criança identifica informação de número no nome, espera-se uma diferença significativa entre os grupos padrão e não-padrão no número de respostas plural 2. Se o tipo de plural (com morfema ou com alomorfe) afeta a maneira PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA como as crianças reconhecem informação de número em nome flexionado, espera-se um efeito de tipo de plural – caso a criança dê preferência a formas regulares, maior número de respostas alvo na condição sem alomorfia; caso a alomorfia aumente a visibilidade da informação de número, um maior número de respostas alvo é esperado na condição com alomorfia. 3. Se a presença de alomorfia causar particular dificuldade para crianças expostas ao dialeto não padrão, espera-se uma interação entre grupo e tipo de plural. Resultados e Discussão: Uma análise de variância ANOVA com design fatorial 2(grupo social) X 2(tipo de plural), em que grupo social foi um fator grupal e tipo de plural medida repetida, foi conduzida com o número de respostas correspondentes à escolha da figura múltipla correspondente à apresentada anteriormente. A variável grupo social não apresentou resultado significativo (F(1,18) = 0,1 p=.75), o mesmo ocorrendo com a variável alomorfia (F(1,18) = 1,62 p=.22). Interação entre grupo e alomorfia igualmente não apresentou diferença significativa (F(1,18) = 1,62 p=.22). 110 O gráfico 5 com os resultados obtidos aparece a seguir: Gráfico 5 Média de respostas PLURAL por condição (max score=6) 6 5 4,1 4 3,5 3,2 3,5 3 Padrão Não Padrão 2 1 0 Com Alomorfe Sem Alomorfe Os resultados do experimento 3 indicam que as crianças de ambos os grupos sociais tratam morfema de número e alomorfe de número de maneira PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA indistinta, e que alomorfia não se constitui em um problema para o reconhecimento da informação relativa a número, sugerindo que a alomorfia não induziu dificuldades a este respeito. Um teste-t post-doc foi realizado entre as condições com e sem alomorfia do grupo padrão, revelando uma tendência que beira o nível de significância (t(df9) = 2.21 p = .05). Ou seja, os dados sugerem alomorfes podem tornar mais visível a informação de número no grupo no qual o nome tende a ser flexionado. No que se refere à segmentação, os resultados aqui aferidos não provêm evidências de que a alomorfia imponha dificuldades às crianças dos grupos padrão e não-padrão, já que as crianças em ambos os grupos segmentam o nome em radical e morfema/alomorfe na identificação da informação de número. Em suma, o experimento 2 não permite afirmar que diferenças no estímulo lingüístico primário afetam o reconhecimento de informação relativa a número, o que conduz à conclusão de que o processamento da concordância de número se dá de igual forma para as crianças dos dois grupos sociais. Mesmo quando o morfema de número não é expresso na produção, ele é percebido como tal pela criança. O fato de a marca morfológica de número ser omitida no dialeto não padrão não induz dificuldades para a criança que tem esse dialeto como estímulo lingüístico primário, uma vez que o comportamento verificado foi semelhante nas duas faixas sociais pesquisadas. Com relação a evidenciar se o tipo de plural (com morfema ou com alomorfe) afeta a maneira como as 111 crianças reconhecem informação de número em nome flexionado, o maior número respostas na condição 1 (com alomorfe) observada no grupo padrão sugere que a alomorfia aumenta a visibilidade da informação de número, em especial na classe exposta predominantemente à variante padrão do PB, na qual se observa uma maior incidência da marca de número em N. Numa comparação do experimento 3 com o estudo experimental de Miller (2005), o que se pode concluir é que os resultados por ela obtidos indicaram que estímulos variáveis, tanto no tocante à pronúncia da morfologia de plural, quanto à omissão desta mesma morfologia, caracterizando assim diferentes dialetos sociais, são percebidas diferentemente por falantes de grupos sociais distintos. Como se percebe, nos experimentos de Miller (2005) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA os resultados a que eles conduziram foram um tanto distintos dos registrados no experimento 2, uma vez que neste não registrou diferença significativa entre os sujeitos. Pode-se, contudo, atribuir esta discrepância nos resultados ao fato de os experimentos de Miller terem sido aplicados em crianças de faixa etária bem superior, em torno dos 5 anos de idade, quando a produção está mais consolidada e o processo de aquisição quase concluído. Assim, a questão da influência de diferentes inputs no processo de aquisição de linguagem permanece uma questão em aberto. A possibilidade de efeito diferenciado no grupo padrão, sugerido pelo teste-t, contudo, pode aproximar os resultados do estudo de Miller com os relatados aqui. 5.4. Experimento 4 – Percepção da Distinção entre Nomes Massivos e Contáveis em PB Este experimento investiga o papel das informações sintáticas e semânticas veiculadas no DP no processo de aquisição da distinção entre nomes massivos e contáveis em português brasileiro (PB), em especial as informações relativas à expressão do número gramatical. Com base no que se apresentou nos Capítulos 3 e 4, assume-se que, para o reconhecimento da distinção mass/count em PB, é importante a manifestação morfológica relativa 112 a número que se manifesta nos elementos do DP. Desta forma, apresenta-se a hipótese de que uma criança, uma vez que seja capaz de perceber a presença/ausência do morfema de número, pode tomar a presença do morfema de número como indicativa de um DP contável. No que se refere à referência massiva, outros deverão ser levados em conta, considerando-se as particularidades do PB. Em PB, tem-se a presença de nomes nus singulares em posições argumentais, o que torna o input ambíguo no que se refere a mass e count nouns, isto é, a presença da flexão de número plural é indicativa de leitura contável, enquanto a forma singular é ambígua no que diz respeito à distinção mass/count. Além disso, diferentemente do inglês, em que a oposição entre os quantificadores many e much; é indicativa da distinção mass/count (many > count; much > mass) tal oposição inexiste no PB, língua em que o quantificador muito pode receber leitura massiva ou contável (cf. Neves, 2002). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA Para dirimir essas ambigüidades, pode-se assumir que a criança usa não apenas informação morfológica, mas sim semântica e/ou contextual, na interpretação de DPs ambíguos. Estas ambigüidades do estímulo ficariam mais evidentes no caso de nomes novos, constituindo-se em um problema para a criança que adquire o PB. Assumindo-se que o PB é uma língua que apresenta distinção lexical entre massivos e contáveis, mas que essa distinção é visível apenas em ambientes marcados para contabilidade (cf. Paraguassu, 2005 em 3.1.3), podese imaginar que os traços semânticos da raiz dos nomes influenciam a criança na interpretação mass ou count de um DP em determinados contextos. Daí o experimento 3 ora descrito valer-se de nomes inventados e de nomes conhecidos, estes últimos variando com relação a traços semânticos da raiz como mais favoráveis a leituras massivo ou contável, nos estímulos experimentais, justamente com vistas verificar uma possível influência de traços semânticos da raiz dos nomes na interpretação do DP. Assim, os objetivos principais deste experimento foram i) verificar se a criança toma a presença do morfema de número como indicativa de leitura contável, ii) verificar se a presença do quantificador muito afeta a interpretação 113 massiva ou contável de um DP, e iii) verificar uma possível influência dos traços semânticos da raiz lexical na interpretação massiva ou contável de um DP. Design Experimental O experimento foi concebido de modo a possibilitar duas análises. Na primeira, nomes inventados e nomes reais foram utilizados e estes últimos foram contrabalançados com relação à leitura preferencial sugerida por sua raiz. Assim, os nomes carro, bola, flor, botão, bife, bala, biscoito e batata foram considerados como sugestivos de leitura contável, enquanto que os nomes água, leite, café, feijão, manteiga, pão, doce e bolo, foram tomados como sugestivos de leitura massiva. Na segunda, apenas nomes reais foram utilizados e tipo de raiz passou a ser uma variável independente. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA Para análise 1, as variáveis independentes foram: Número: (singular) / (plural) Tipo de DP: quantificado / não quantificado Tipo de nome: real / inventado (Fator grupal) Idade: 3 anos, 5 anos e adultos (Fator grupal) Obteve-se, assim, um design fatorial 2 (número) x 2 (tipo de DP) x 2 (tipo de nome) x 3 (idade) – os dois primeiros fatores são medidas repetidas (variáveis intra-sujeito) e os outros dois são fatores grupais (variáveis inter-sujeitos). Para análise 2, as variáveis independentes foram: Número: (singular) / (plural) Tipo de DP: quantificado / não quantificado Tipo de raiz: em função da leitura preferencial em PB: massivo / contável) Idade: 3 anos, 5 anos e adultos (Fator grupal) Tem-se assim um design fatorial: 2 (número) x 2 (tipo de DP) x 2 (tipo de raiz) x 3 (idade), no qual os três primeiros fatores são medidas repetidas. Apresenta-se abaixo um exemplo de cada condição experimental: Grupo Real 1. Singular quantificado 114 O Tito comeu muito pão/biscoito.. 2. Singular não quantificado O Tito comeu pão/biscoito. 5. Plural quantificado O Tito comeu muitos pães/biscoitos 4. Plural não quantificado. O Tito comeu pães/biscoitos Grupo Inventado 1. Singular quantificado O Tito comeu muito dube. 2. Singular não quantificado O Tito comeu dube. 5. Plural quantificado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA O Tito comeu muitos dubes. 4. Plural não quantificado O Tito comeu dubes. Foram apresentados quatro estímulos por condição experimental em cada grupo. A variável dependente foi o número de respostas correspondentes à indicação da imagem com mais de um elemento crítico (correspondente ao nome do DP em questão), doravante, respostas contáveis. Método Participantes: Dois grupos de crianças, o primeiro formado por 16 crianças (10 do sexo masculino e 6 do sexo feminino), de 20 a 36 meses de idade, com idade média de 32 meses, e o segundo formado por 16 crianças (8 do sexo masculino e 8 do sexo feminino), de 42 a 60 meses de idade, com idade média de 57 meses. As crianças de ambos os grupos eram todas filhas de pais escolarizados e regularmente matriculadas na rede particular de educação infantil, residentes na cidade de Petrópolis/RJ. Testaram-se, de igual modo, dois grupos formados por 16 adultos, com idades entre 17 e 39 anos (média de idade 37 anos), ambos constituídos de alunos de graduação matriculados em cursos noturnos da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP), que se apresentaram voluntariamente para participar do experimento . Material 115 O material lingüístico (estímulos) foi constituído de 16 frases, 4 por condição experimental, como exemplificado acima. O material visual foi criado a partir de fotografias de dois personagens (o Tito e a Duda), representados por dois jovens adultos, um do sexo masculino e outro feminino, ambos alunos da graduação em Letras da UCP. Fotos semelhantes desses personagens foram combinadas com desenhos de objetos a serem tomados como referentes dos DPs das frases-teste. Para cada frase foram apresentadas duas imagens com o mesmo personagem e diferentes quantidades de um mesmo tipo de objeto – um único exemplar e vários, sendo que o único exemplar foi sempre maior do que os vários apresentados. As fotografias foram apresentadas na tela de um laptop Compaq Presario V6210BR, com processador AMD Sempron 667 Mhz, memória RAM de 1 GB e HD de 60 GB. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA Procedimento Adotou-se o paradigma metodológico da Tarefa de Seleção de Imagens (Picture Identification Task) com nomes/objetos reais e inventados. O experimento foi precedido pela apresentação das fotos dos personagens em questão e familiarização com a tarefa. O experimento consistiu da apresentação concomitante das duas imagens correspondentes à condição em questão, seguida da apresentação do estímulo-teste por parte do experimentador, eliciando a escolha de uma das imagens, como resposta, por meio da diretiva do tipo, “Mostra pra mim o que o Tito/a Duda comeu”. As imagens foram exibidas na tela de um computador portátil e as respostas anotadas, pelo experimentador, em uma ficha avaliação. O procedimento com crianças foi conduzido, individualmente, numa sala da escola/creche, com a presença da professora por perto. Este durou cerca de 15 minutos. O procedimento com adultos foi conduzido numa sala vazia da UCP e durou cerca de 10 minutos. Resultados: Análise 1: As respostas contáveis obtidas foram submetidas a uma análise da variância (ANOVA) com design fatorial 2 (tipo de DP) x 2(número) x 2 (tipo de nome) x 3(idade), onde tipo de nome e idade foram fatores grupais, e os demais medidas repetidas. Os efeitos principais dos seguintes fatores foram significativos: idade (F(2,90) = 3.12 p < .05), número (F(1,90) = 179.55 116 p<.0001), nome (F(1,90) = 5.28 p =.02), e tipo de DP (F(1,90) = 50.23 p<.0001). Os gráficos 6 a 9 apresentam as médias obtidas. Gráfico 6 Médias de Respostas Contáveis por Idade (max score = 4) 4 3.5 3 2.48 2.26 2.5 2.23 2 3anos 5 anos Adultos 1.5 1 0.5 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 0 O efeito de idade, como ilustrado pelo gráfico acima, atingiu o nível de significância (p<.05), com um aumento no número de respostas contáveis na idade de 5 anos, retornando, nos adultos, ao nível verificado na faixa de 3 anos. Cabe verificar, diante desses resultados, que fatores explicam a alteração de comportamento das crianças na faixa etária de 5 anos. Provavelmente, crianças nessa idade se valem de outro tipo de informação na atribuição de leitura mass ou count ao DP. Gráfico 7 Média de Respostas Contáveis em Função de Número (max score = 4) 4 3.5 3.2 3 2.5 Singular 2 1.5 1.43 Plural 1 0.5 0 Do gráfico acima se depreende que, conforme o esperado, a presença do morfema de número induz leitura contável, já que se observou um maior 117 número de respostas contáveis diante de um DP plural. Assim, pode-se afirmar que a criança toma a informação morfológica relativa a número como indicativa de leitura contável. Gráfico 8 Médias de Respostas Contáveis em Função do Tipo de Nome (max score = 4) 4 3.5 3 2.43 2.2 2.5 Real 2 Inventado 1.5 1 0.5 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 0 No que concerne à variável tipo de nome, constatou-se que os nomes inventados recebem maior quantidade de respostas contáveis do que os nomes reais. Uma possível explicação para tal fato é que, nos nomes inventados, não há influência dos traços semânticos da raiz, visto tratar-se de um nome desconhecido para crianças e adultos. Dessa forma, a informação morfológica se afigura como a informação mais relevante na interpretação massiva ou contável dos DPs. Isso sugere que, possivelmente, há uma influência dos traços semânticos da raiz na leitura do DP. Gráfico 9 Médias de Respostas Contáveis em Função de Tipo de DP (max score = 4) 4 3.5 3 2.69 2.5 2.02 2 Não quantificado Quantificado 1.5 1 0.5 0 O gráfico 9 mostra uma diferença entre o número de respostas contáveis nas condições quantificado e não-quantificado. Isso permite a conclusão de que 118 a presença do quantificador muito induz uma leitura contável do DP, apesar de poder receber, em alguns contextos, interpretação massiva Interações: Houve interação significativa entre as seguintes variáveis: número e idade (F(2,90) = 10.93 p=.0001), número e nome (F(1,90) = 11.83 p=.001), tipo de DP e nome (F(1.90) = 15.61 p < .001), e número e tipo de DP (F(1.90) = 7.03 p <.01). A interação entre número, tipo de DP e idade se aproximou do nível de significância (F(2.90) = 2.84 p = .06). Os gráficos 10 a 14 a seguir mostram as médias: Gráfico 10 Médias de Respostas Contáveis em Função de Núm ero e Idade (m ax score = 4) 4 3.44 3.5 3.19 2.97 3 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 2.5 2 Singular 2 1.5 Plural 1.33 0.97 1 0.5 0 3 anos 5 anos Adult os O gráfico 10 demonstra que o número de respostas contáveis na condição plural decresce aos 5 anos, tornando a subir nos adultos. Já o número de respostas contáveis na condição singular aumenta aos cinco anos e diminui nos adultos. Esses resultados evidenciam que os adultos parecem fazer uso mais consistente da informação morfológica de número, conferindo interpretação contável preferencialmente aos DPs marcados para plural, dando poucas respostas contáveis para DPs com nome no singular. Essa leitura pode ser devida à possibilidade de nomes nus singulares com interpretação plural em PB. O grupo de 3 anos apresenta um comportamento próximo ao dos adultos, sugerindo que crianças nesta faixa etária também fazem uso preferencial da informação morfológica de número. O grupo de crianças de 5 anos, por outro lado, faz menor uso da marcação de número, tendendo a interpretar nomes nus singulares como contáveis. 119 Gráfico 11 Médias de Respostas Contáveis em Função de Número e Nome (max score = 4) 4 3.31 3.5 3.08 3 2.5 Singular 1.77 2 Plural 1.5 1.09 1 0.5 0 Real Invent ado O gráfico 11 acima mostra que há um número maior de respostas contáveis na condição nome real plural, decaindo na condição nome inventado plural. No caso de nomes singulares reais, verifica-se que o número de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA respostas contáveis aumenta na condição singular inventado. Esses resultados evidenciam que o fato de os sujeitos conhecerem os nomes interfere na interpretação dada aos DPs, corroborando, assim, a influência dos traços semânticos da raiz evidenciada na análise da variável tipo de nome. Gráfico 12 Média de Respostas Contáveis em Função de Nom e e Tipo de DP (m ax score = 4) 4 3.5 2.89 3 2.5 2.33 2.08 1.97 2 Sem Qunat Com Quant 1.5 1 0.5 0 Real Inventado O efeito significativo registrado na interação entre nome e tipo de DP se explica pelo fato de a média de respostas contáveis na condição nome inventado com quantificador ser maior do que a da condição nome real com quantificador, com o inverso sendo verificado no cotejo entre o nome real nãoquantificado e no nome real quantificado, em que se nota um decréscimo. Mais uma vez, nota-se uma influencia dos traços semânticos da raiz, que parecem ser levados em conta preferencialmente à presença do quantificador. 120 Gráfico 13 Média de Respostas Contáveis em Função de Número e Tipo de DP (max score = 4) 4.00 3.39 3.50 3.01 3.00 2.50 Singular 1.83 2.00 Plural 1.50 1.03 1.00 0.50 0.00 Sem Quant Com Quant O número de respostas contáveis na condição com quantificador aumenta em relação à condição sem quantificador. Nos DPs singulares, o número de respostas contáveis na condição com quantificador sobe em relação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA ao apresentado na condição sem quantificador. A interação entre número e tipo de DP aponta que, quando há a presença do morfema de número, esta parece ser a informação preferencial. Na ausência do morfema de número, a presença do quantificador torna-se relevante, induzindo uma interpretação contável aos DPs quantificados. Esses resultados evidenciam que DPs singulares quantificados são mais facilmente interpretados como contáveis do que seu correlato não-quantificado, corroborando assim a afirmação de que, em PB, o quantificador muito recebe preferencialmente leitura contável. Gráfico 14 Média de Respostas Contáveis em Função do Número, Tipo de DP e Idade (max score = 4) 4 3 2.38 2.5 2 1.5 3.53 3.34 3.38 3.25 3.13 3.5 2.56 Sem Quant 1.63 1.63 Com Quant 1.5 1.03 1 0.44 0.5 0 Singular Plural 3 anos Singular 5 anos Plural Singular Plural Adultos 121 O gráfico acima demonstra que a leitura contável na condição plural quantificado aumenta ligeiramente de acordo com a idade, constituindo assim uma tendência relativamente estável através das faixas etárias pesquisadas. Já o número de respostas contáveis na condição singular quantificado aumenta na faixa etária de 5 anos, decaindo nos adultos. A condição plural sem quantificador, ao contrário, cai aos 5 anos, subindo novamente nos adultos, com a condição singular sem quantificador aumentando aos 5 anos e sofrendo uma queda acentuada nos adultos. Assim, a sensibilidade à presença do morfema de número é maior aos 3 anos e nos adultos do aos 5 anos, com a sensibilidade à presença do quantificador maior aos 5 anos do que aos 3 anos e nos adultos. Os resultados fornecem evidências de que a quantificação induz leitura contável, e que a presença da informação relativa a número é crucial na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA interpretação massiva ou contável do DP. Discussão: Concluindo, o que a análise 1 mostra é que a informação do morfema de número é fundamental para interpretação massiva ou contável, e que a presença do quantificador de fato é indicativa de leitura contável, ainda que possa haver contextos em que o quantificador muito sugere leitura massiva (cf. Neves, 2002). Entretanto, os resultados indicam, como antecipado, uma possível influência dos traços semânticos da raiz. A fim de verificar o quanto essa influência se faz presente, foi realizada a análise 2. Análise 2: Apenas os dados do grupo Nome conhecido foram analisados por meio de uma análise da variância (ANOVA) com design fatorial 2 (tipo de DP) x 2 (número) x 2 (tipo de raiz) x 3 (idade), onde idade é um fator grupal e os demais medidas repetidas. Os efeitos principais dos seguintes fatores foram significativos: número (F(1,45) = 105,62 p<.00001) tipo de DP (F (1,45) = 17,52 p<..0001) e tipo de raiz (F(2,45) = 4,28 p< .000001). O efeito de idade aproximou-se do nível de significância (F(2,45) = 2,82 p< .06). Os gráficos 15 a 17 apresentam as médias obtidas. 122 Gráfico 15 Média de Respostas Contáveis em Função de Número (max score = 2) 2,00 1,64 1,50 1,00 singular plural 0,54 0,50 0,00 1 Como pode ser observado no gráfico 13, como seria esperado, a presença do morfema de número induz à leitura contável, visto houve mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA respostas contáveis diante de um DP plural. Gráfico 16 Média de Respostas Contáveis em Função do Tipo de DP (max score = 2) 1,20 1,17 1,10 sem quantificador com quantificador 1,10 1,00 1 Observa-se no gráfico 16 que a presença do quantificador muito induz uma leitura contável do DP, o que torna um DP quantificado, de uma forma geral, menos ambíguo em relação a massividade/contabilidade do que um DP singular não quantificado. A possibilidade de nomes nus singulares no PB favorece, assim, a leitura de um DP do tipo comeu muito biscoito como contável. 123 Gráfico 17 Média de Respostas Contáveis em Função do Tipo de Raiz (max score = 2) 2,00 1,50 1,29 contável massivo 0,90 1,00 0,50 0,00 1 O fato de tipo de raiz apresentar resultado significativo sugere que adultos e crianças em fase de aquisição do PB são sensíveis aos traços PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA semânticos da raiz, e certamente usam essas informações semânticas na interpretação de DPs ambíguos. Aqueles nomes considerados como favorecedores de uma leitura contável realmente induziam mais respostas contáveis do que os nomes inicialmente categorizados como massivos. Gráfico 18 Média de Respostas Contáveis em Função de Idade (max score = 2) 2,00 1,50 1,05 1,20 1,00 0,50 1,03 tres cinco adultos 0,00 1 O efeito de idade, como demonstra o gráfico 18, aproximou-se do nível de significância. O número de respostas contáveis é menor no grupo de adultos, possivelmente decorrente de leitura massiva. O grupo de 3 anos produz um número um pouco maior de respostas contáveis, embora não seja claro, por esse resultado, se a estratégia de interpretação do DP é semelhante entre este 124 grupo e o de adultos. O efeito significativo da interação entre Número e idade poderá clarificar este resultado. Interações: Houve interação significativa entre as seguintes variáveis: número e idade (F(2,45) = 7,99 p< .001), tipo de DP e idade (F(2,45) = 5,05 p <.01), número e tipo de DP (F(1,45) = 5,32 p = .02), idade e tipo de raiz (F(2,45) = 4,01 p =.03) e idade, tipo de raiz e número (F(2,45) = 4,28 p =.02). A interação entre número e raiz aproximou-se do nível de significância (F(1,45) = 3.07 p=.08). Os gráficos 19 a 23 a seguir mostram as médias: Gráfico 19 Média de Respostas Contáveis em Função de Número e Idade (max score = 2) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA 2,00 1,84 1,59 1,48 1,50 1,00 0,91 0,50 0,22 0,50 Singular Plural 0,00 Tres Cinco Adultos O gráfico 19 demonstra que enquanto o número de respostas contáveis na condição plural diminui ligeiramente no grupo de 5 anos, este cresce no grupo de adultos. O número de respostas contáveis na condição singular, por outro lado, cresce aos cinco anos e decresce consideravelmente no grupo de adultos. Observa-se que no grupo de 5 anos, a diferença entre o número de respostas contáveis na condição singular e plural é menor do que esta diferença no grupo de 5 anos e bem menor do que a mesma no grupo de adultos. Esses resultados evidenciam que os adultos parecem fazer uso mais consistente da informação morfológica de número, conferindo interpretação contável preferencialmente aos DPs marcados para plural, dando poucas respostas contáveis para DPs com nome no singular. Essa leitura pode ser devida à possibilidade de nomes nus singulares com interpretação plural em PB. O grupo de 3 anos apresenta um comportamento próximo ao dos adultos, sugerindo que crianças nesta faixa etária também fazem uso preferencial da 125 informação morfológica de número. O grupo de crianças de 5 anos, por outro lado, faz menor uso da marcação de número, tendendo a interpretar nomes nus singulares como contáveis. Gráfico 20 Média de Respostas Contáveis em Função do Tipo de DP e Idade (max score = 2) 2,00 1,50 1,34 1,05 1,05 1,05 1,00 0,94 1,13 sem quantificador com quantificador 0,50 0,00 tres cinco adultos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA Os resultados acima indicam que o número de respostas contáveis para DPs sem quantificador permanece estável nas três faixas etárias pesquisadas. O número de respostas contáveis em DPs quantificados, contudo, aumenta aos cinco anos e decai consideravelmente nos adultos. Esses resultados revelam que as crianças de 3 anos não levam em conta a presença do quantificador, ao passo que as crianças de 5 anos parecem tomar a presença do quantificador como relevante para a leitura massiva/contável. Os adultos parecem conferir menor relevância a esse fator, na interpretação dos DPs. Gráfico 21 Média de Respostas Contáveis em Função de Número e Tipo de DP (max score = 2) 2,00 1,68 1,60 1,50 1,00 0,50 0,67 0,42 0,00 sem quantificador com quantificador singular plural 126 O número de respostas contáveis na condição com quantificador é próximo ao da condição sem quantificador. Já nos DPs singulares, o número de respostas contáveis na condição com quantificador é maior do que o apresentado na condição sem quantificador. A interação entre número e tipo de DP mostra que, quando há a presença do morfema de número, esta parece ser a informação preferencial. Quando não há a presença do morfema de número, a presença do quantificador torna-se relevante, induzindo uma interpretação contável aos DPs quantificados. Esses resultados evidenciam que DPs singulares quantificados são mais facilmente interpretados como contáveis do que seu correlato não-quantificado, corroborando assim a afirmação de que, em PB, o quantificador muito recebe preferencialmente leitura contável. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA Gráfico 22 Média de Respostas Contáveis em Função de Idade e Tipo de Raiz (max score = 2) 2,0 1,5 1,5 1,0 1,3 0,8 0,9 1,1 0,9 contável massivo 0,5 0,0 tres cinco adultos O número de respostas contáveis para raízes massivas permaneceu constante nas três faixas etárias pesquisadas; nas raízes contáveis, no entanto, observou-se um aumento na faixa etária de 5 anos, decaindo nos adultos. A influência da raiz contável, por conseguinte, parece ser maior aos 5 anos, o que conduz à conclusão de que as crianças nesta idade conferem maior relevância à informação semântica da raiz. Os resultados mostrados pelo gráfico 22, os quais mostraram que crianças de 5 anos fazem menor uso da marcação de número, podem ser explicados pelos resultados da interação entre idade e tipo de raiz, na medida em que se evidenciou uma preferência da criança de 5 anos pela informação semântica, em detrimento da informação morfológica. 127 Gráfico 23 Média de respostas contáveis em função de número, tipo de raiz e idade 2.50 1.81 2.00 1.38 1.50 1.00 0.50 1.94 1.75 1.63 1.34 1.34 sing cont sing mass plural cont 0.69 0.31 0.47 0.31 0.13 plural mass 0.00 tres cinco adulto No que se refere à interação entre idade, tipo de raiz e número, observa- PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA se que o comportamento do grupo de três anos e do de adultos apresenta um padrão semelhante, ainda que o número de respostas contáveis para DPs plural seja maior no grupo de adultos. O padrão de comportamento do grupo de 5 anos, contudo, é distinto, uma vez que há um número consideravelmente grande de respostas contáveis para DPs singulares de raiz contável. Crianças de 5 anos parecem, portanto, ser mais afetadas pelos traços semânticos da raiz, o que sugere ser essa informação a preferida diante da possibilidade de nomes singulares nus com leitura plural no PB. Discussão: Os resultados da análise 2 evidenciam que há uma influência dos traços semânticos da raiz na interpretação massiva ou contável do DP. Essa influência é mais nítida no caso de DPs nus singulares, que são ambíguos para mass/count. No caso de DPs marcados morfologicamente para número, é a informação expressa pelo morfema que parece ser a preferencial, sendo indicativa de leitura contável do DP. A interferência dos traços massivo/contável da raiz nominal pode ocorrer na interpretação de nomes nus ou precedidos por muito em DPs objetos, indicando mass ou count, como ilustram os exemplos João comeu bolo/muito bolo (admite leitura massiva ou contável) e João leu livro/muito livro e viu filme/muito filme (que parece só 128 admitir leitura count). A preferência pelas informações semânticas parece ser maior aos cinco anos, ao passo que crianças de 3 anos e adultos fazem uso preferencial de informação advinda da morfologia. Discussão Geral: Quanto aos objetivos estabelecidos para o experimento 3, os resultados por ele obtidos permitem afirmar que a criança toma a presença do morfema de número como indicativa de leitura contável, o que faz da informação relativa a número um fator importante na interpretação massiva ou contável de um DP. No que concerne ao quantificador muito, ainda que ele possa receber leitura massiva ou contável em PB (cf. Neves, 2002), é essa última que se faz preferencialmente, em especial para crianças em fase inicial de aquisição (até 3 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA anos). A afirmação de que a informação morfo-fonológica relativa a número é crucial na aquisição de mass/count nouns se aproximaria da visão defendida pelas linhas gramatical e contextual no estudo da aquisição da distinção mass/count, conforme mostrado e discutido no Capítulo 4. Entretanto, os resultados do experimento 3 mostram que informações de natureza gramatical não são as únicas a serem levadas em conta – uma vez que o experimento 3 registrou uma influência dos traços semânticos da raiz, pode-se concluir que a criança se utiliza de informação de natureza semântico-conceptual. Assim, pode-se conceber a aquisição da distinção mass/count de uma forma unificada, como a exposta no Capítulo 4, na qual a criança usaria, em uma fase inicial de aquisição preferencialmente informação de ordem gramatical (morfema de número), sendo, no entanto, sensível aos traços semânticos da raiz nominal. Essa sensibilidade torna-se acentuada aos 5 anos de idade, quando a criança busca outras fontes de informação diante de DPs ambíguos quanto à distinção mass/count, particularmente os DPs singulares, Esta informação adicional pode ser extraída tanto da raiz nominal quanto do quantificador muito que, nessa faixa etária, é preferencialmente interpretado como indicativo de leitura contável. Para o PB, pode-se esboçar a expressão de mass/count nouns com base no seguinte: nomes nus singulares em posição de objeto recebem interpretação 129 genérica ou massiva (como em “João comprou batata”), com os nomes precedidos pelo quantificador muito na mesma posição (“João comprou muita batata”) recebendo preferencialmente leitura contável. Uma vez que se achem flexionados em número, com a presença do morfema de plural, nomes nus, determinantes e quantificadores sempre receberão interpretação contável (“João comprou batatas/as batatas/umas batatas/muitas batatas”). Os resultados do experimento 3 permitem sustentar a hipótese de que uma criança, ao adquirir a distinção mass/count em PB seja capaz de, em primeiro lugar, perceber a presença/ausência do morfema de número nos nomes, tomando esta oposição como indicativa de expressão contável. Tem-se, assim, em um primeiro momento, um processo de aquisição de base gramatical-contextual, sendo que, em um outro momento, a criança lançaria mão de informação de natureza semântica, notadamente em casos em que o material lingüístico PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA apresenta-se de modo ambíguo. A criança que adquire o PB tem de diferenciar um DP plural verdadeiramente count (ou seja, um DP que contenha um nome que possua partes mínimas em sua denotação) de um DP plural sob o escopo de um operador de contabilidade (ou seja, um DP que contenha um nome que não possua partes mínimas em sua denotação, mas que esteja sendo usado como um nome count). Exemplificando, é como se a criança adquirindo a distinção mass/count tenha de perceber a diferença entre João comprou os carros da loja e João desviou as águas do rio. Uma outra questão é a interpretação mass ou count de DPs como João comeu bolo/muito bolo (admite leitura massiva ou contável) e João leu livro/muito livro e viu filme/muito filme (que parece só admitir leitura count). Conforme se percebe, tanto nomes singulares quanto morfologia de plural podem apresentar ruídos durante a aquisição da distinção mass/count em PB. A ambigüidade do input pode tornar o processo de aquisição não tão óbvio, exigindo que a criança lance mão de outro tipo de informação que não a morfológica. Os resultados aqui relatados sugerem que esta informação acessória pode ser semântica, proveniente dos traços semânticos da raiz nominal, à qual a criança recorreria nos casos em que o estímulo apresentasse ruídos ou ambigüidades. 130 O processo de aquisição da distinção massivo/contável é um processo que se dá seguindo dois caminhos. Um, que consiste na fixação da denotação dos nomes, e que concerne ao modo como a realidade extralingüística é conceptualizada na língua, estando, portanto, sob a alçada de uma teoria do desenvolvimento cognitivo; e outro, que consiste na percepção, por parte da criança, da maneira como a distinção mass/count se faz visível nas interfaces fônica e semântica, dizendo assim respeito ao modo como unidades linguisticamente relevantes são processadas e interpretadas; estando, por conseguinte, sob o escopo de uma teoria de aquisição de linguagem calcada em informação lingüística. Portanto, o processo de aquisição da distinção entre nomes massivos e contáveis pode ser tratado tanto do ponto de vista de uma teoria de aquisição PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310588/CA baseada em informação de ordem gramatical, quanto do ponto de vista de uma teoria de aquisição da língua mais diretamente vinculada ao desenvolvimento cognitivo (a qual se voltaria para o modo como determinadas informações são conceptualizadas). Nesse sentido, o estudo da aquisição da distinção entre nomes massivos e contáveis, na forma como aqui apresentada, ilustra a possibilidade de elaboração de uma teoria de aquisição da linguagem que articule teoria lingüística, teoria psicolingüística e teorias do desenvolvimento cognitivo, mostrando de que o modo como a criança processa informação relevante presente nas interfaces e as associa com informações advindas de outros domínios da cognição.