NO QUE SE SUSTENTA A FALÁCIA DE QUE “NA PRÁTICA A TEORIA É OUTRA?” “Há que se rasgar o véu para alcançar o conhecimento critico” (Karl Marx) Yolanda Guerra♣ RESUMO A presente comunicação visa refletir sobre um dos principais dilemas da formação e do exercício profissional: a suposição de que na prática a teoria é outra. A hipótese é de que o perfil de profissional que se pretende, capaz de responder a estes novos tempos, e consoante ao projeto profissional que visa romper com as práticas sociais e profissionais conservadoras que buscam a reprodução do existente, não pode mais se deixar condicionar por esta falácia. Se isto é verdade, então temos que arrancar a questão do universo do senso comum a fim de problematizá-la e traze-la para o campo da análise rigorosa e fecundamente critica, respondendo as seguintes questões: A que necessidades sociais esta falácia atende? De que pressupostos ideo-políticos ela se sustenta e quais ela alimenta? A nosso ver, só este procedimento de desvelar os fundamentos permitirá ao Serviço Social não apenas realizar a revisão crítica dos fundamentos conservadores que lhe servem de explicação e orientação teórico-prática, mas, sobretudo, identificar a necessidade de fundar ontologicamente as suas formulações práticoprofissionais e teórico-metodológicas Se isso é verdade faz-se necessário um método que nos permita ir além da faticidade, da aparência do real, da forma pela qual os processos sociais se apresentam, do dado, do empiricamente constatável. O método dialético, aliado a uma teoria critica radical, a um conjunto de valores, de princípios éticos e políticos sociocentricos e coletivos, de estratégias e táticas e de determinadas posturas que visam a transformar criticamente o cotidiano e a sociedade, são elementos que compõem um projeto profissional fecunda e radicalmente anti-capitalista. Com isso enfatiza-se a importância de o Serviço Social resgatar “o sentido original da obra de Marx”, de investir tanto na compreender das bases histórico-ontológicas da sociedade ♣ Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ, Doutora em Serviço Social, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Serviço Social na Contemporaneidade –NEFSSC, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fone (21) 2295-3184. Email [email protected] 1 burguesa e da dinâmica que funda a profissão quanto na afirmação de um projeto profissional que intencione a superação desta ordem social. PALAVRAS CHAVES: Falácia, Dicotomia, Teoria/Prática INTRODUÇÃO A formação profissional do assistente social está marcada transversalmente pelos dilemas da contemporaneidade. Neste âmbito, os assistentes sociais devem se transformar em profissionais competentes para compreender a crise, os movimentos da economia, da cultura e da política, os movimentos sociais, as instituições jurídico-políticas e as organizações sociais, a dinâmica dos grupos e dos indivíduos. É necessário que se tenha uma visão dos processos sociais como totalidades que se compõem de vários aspectos e âmbitos e que possuem níveis diferentes de complexidade. Uma leitura do real com essa amplitude necessita de teorias macroscópicas sobre a sociedade, as quais permitam que se apreenda tanto os elementos estruturais quanto conjunturais e as relações entre os vários elementos que compõe a realidade na qual estamos inseridos. Mais ainda, faz-se necessária uma teoria que permita perceber como os principais dilemas contemporâneos se traduzem nas particularidades do Serviço Social e se expressam nas requisições e competências sócio- profissionais e na cultura profissional. Aqui subjaz a premissa de que a complexidade da realidade exige profissionais que não apenas respondam as suas demandas, mas que as compreendam nos seus significados sociais e que pela sua intervenção lhes atribua novos e mais críticos significados. Assim, a nosso ver, o desafio consiste em formar profissionais capazes de atuar sobre a realidade, mas também de identificar suas demandas, apropriar-se criticamente das mesmas, reconfigurá-las e enfrenta-las de maneira eficaz e eficiente. Entendemos que só assim estarão dadas as possibilidades de os assistentes sociais construírem as estratégias sócio-políticas e profissionais que lhes permitam responder às demandas e requisições profissionais de maneira competente e compromissada com um projeto de sociedade a favor da democratização da riqueza socialmente produzida. 2 Nesse contexto, o profissional que atenda às requisição do mercado de trabalho, mas que não se limite a elas, necessita de uma sólida formação teórico-metodológica em termos de conhecimentos teóricos e interventivos. Não obstante as evidências da importância de uma formação teórico-metodológica sólida para enfrentar os complexos desafios da contemporaneidade, no senso comum naturaliza-se o chavão sobre a existência de um fosso entre o conhecimento teórico e a sua capacidade de implementação. Ora, quem nunca ouviu, afirmou ou mesmo duvidou do famoso jargão de que “na prática a teoria é outra?” A presente comunicação visa refletir sobre esta questão considerada como um dos principais (falsos) dilemas da formação e do exercício profissional. A premissa na qual nos apoiamos é de que o perfil de profissional que se pretende, capaz de responder a estes novos tempos, não pode mais se deixar condicionar por este falso dilema. Se isto é verdade, então temos que arrancar a questão do universo do senso comum1, investir na sua problematização e trazê-la para o campo da análise rigorosa e fecundamente critica. Para tanto, o procedimento adotado foi o de investir na busca dos fundamentos sócio-históricos e ideo-culturais sobre os quais esta questão se assenta. Como diz Lukács: “Sem descobrir os fundamentos reais da situação histórico-social, não há análise científica possível” (Lukács, 1976:15- trad. nossa) 1. OS FUNDAMENTOS DA FRAGMENTAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA Em primeiro lugar cabe identificar do que se sustenta a concepção de que “na prática a teoria é outra?” De uma determinada concepção na qual a teoria detém a possibilidade de ser implementada na realidade social e/ou de ser capaz de dar respostas imediatas a ela. Aqui considera-se Teorias Sociais um conjunto de regras, modelos, procedimentos e referencias instrumentais precisas, capazes de serem imediatamente aplicáveis na realidade. Concebida à luz dos fundamentos filosóficos do pragmatismo e do utilitarismo, para os quais “o significado de um conceito é determinado pelas conseqüências experimentais ou práticas 1 Cabe aqui a assertiva hegeliana: “O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem conhecido, não é reconhecido. É o modo mais habitual de enganar-se e de enganar os outros: pressupor no conhecimento algo como já conhecido e deixá-lo tal como está” (Hegel, 1992: 37). 3 de sua aplicação” (Haack, 2002:641) esta noção de teoria tem o seu valor, alcance e papel condicionados à sua capacidade de dar respostas prático-empíricas à realidade. A “teoria de resultados” é um produto típico do desenvolvimento capitalista e vincula-se a dimensão instrumental da razão que na ordem burguesa passa a ser a razão hegemônica, embora não seja o único nem o último padrão de racionalidade, como defendem os que, como nós, ainda acreditam nas possibilidades emancipatórias da razão moderna e consideram que as promessas do iluminismo ainda portam a tendência de se realizarem. Conseqüências ideológicas que daí derivam: a tendência de considerar como inútil, inoperante e impotente os pressupostos teóricos que não tenham o estatuto de responder imediatamente às exigências práticas da sociedade. Nesta concepção, e este não é um fenômeno novo, o que se observa é que a teoria ao longo dos anos tem sido rechaçada, negada em suas possibilidades mais elementares. A que e a quem serve esta desqualificação da teoria? Não é demais lembrar que à separação entre teoria e prática encontra-se subjacente à racionalidade hegemônica do capitalismo. Ela repõe a alienação essencial do capitalismo separação entre os proprietários e não proprietários dos meios de produção - sob bases mais complexas, de modo que a cisão entre os que pensam e os que executam que fundamenta a alienação no trabalho é particularizada na ordem burguesa constituída como o processo de reificação2. Produto necessário do processo de reificação é uma concepção de conhecimento que não ultrapasse a aparência dos fatos; que não supere o âmbito da experiência imediata; que conceba os fenômenos na sua positividade; que descarte o seu movimento de constituição e que, por isso, não seja capaz de captar o movimento; que suprima as mediações sociais constitutivas e constituintes dos processos; que defenda a impossibilidade de conhecer a essência (a coisa em si). Sem o conhecimento dos fundamentos, a elaboração teórica nega-se a si mesma. Esta forma de produção do conhecimento vira presa fácil para servir de instrumento de manipulação. Como afirma Lukács, “se de fato a ciência não almeja conhecer de maneira mais adequada possível a realidade do ser em si, se não se esforça a descobrir com métodos cada vez mais aperfeiçoados novas verdades que necessariamente também são fundadas ontologicamente e que aprofundam e multiplicam os conhecimentos ontológicos, em última instância, a sua atividade se 2 Conforme sustenta Netto, em Marx a reificação é a expressão típica da alienação engendrada pelo capitalismo (Cf. Netto, 1981: 61 e outras). 4 reduz a sustentar a práxis no sentido imediato. Se a ciência não pode ou, talvez, conscientemente não quer ir além deste nível, a sua atividade se transforma em uma manipulação dos fatos que interessam aos homens na prática” (1988:103). Percebe-se, nesta forma caricatural de compreender o real, que o processo de produção do conhecimento tem a prática como a referência da teoria. Faz parte de uma tendência de conceber a realidade tomar a prática como critério de verdade. Entretanto, cabe aqui indagar qual a concepção de prática que está sendo utilizada. Aqui, a prática é sinônimo de atividade, experiência de indivíduos, procedimentos, modos de operar dos mesmos. Esta concepção de prática acaba por superestimar a experiência sustentando-se na assertiva de que “só se aprende a fazer fazendo”. Tomada no seu sentido utilitário, esta prática nega a teoria3 e a reduz ao senso comum, pois a considera suficiente para fornecer aportes à experiência. A perfeita sintonia entre senso comum e atividade, considerando o nível de consciência (e o conhecimento) exigido para atuar em situações imediatas, sanciona a utilidade do saber do senso comum para responder às demandas da atividade imediata. A veracidade do conhecimento passa a ser variável da sua utilidade, da sua aplicação prática e de sua capacidade de produzir resultados4. Outra maneira que vem caracterizando o Serviço Social é conceber que a aquisição do conhecimento depende da relação direta e imediata entre sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido, aqui prática social é identificada com a experiência pessoal de sujeitos singulares e a subsume. Descartam-se os sistemas de mediações que se interpõem e que são inerentes e inelimináveis ao processo do conhecimento (o método, como uma mediação importante à compreensão da realidade, o potencial da teoria escolhida que pode permitir maior ou menor apropriação da realidade). 3 A noção de teoria com qual estamos trabalhando é a que a considera como uma forma de organização do conhecimento (mas não a única) na qual este se dispõe como um conjunto de pressuposições sistemáticas, explicações, tendências, sobre um determinado domínio da totalidade social. Na tradição que vem de Marx, a teoria é o conjunto das representações no nível do pensamento que expressa o modo de ser do objeto no seu movimento de constituição, ou seja, o objeto é apreendido como processo, e como tal , nas suas determinações e categorias constitutivas, legalidade imanente, conexões, articulações que constituem sua particularidade. Aqui, o processo de elaboração teórica é o de “elevar a conceito o movimento concreto” (Cf. Lukács, in Guerra, 1995:182 ) 4 Cabe destacar a máxima do pragmatismo: o verdadeiro é o útil, de modo que a veracidade do conhecimento está na sua utilidade. 5 Nesta forma de conceber a relação teoria-prática o conhecimento surge como mero produto da experiência prática concreta dos sujeitos, de modo que a construção da teoria dependeria da utilização de procedimentos metódicos e adequados na apreensão da experiência que deve ser acompanhada via observação e descrição. É a repetibilidade da experiência que autoriza a formulação de conhecimentos teóricos os quais seriam válidos para todas as situações análogas, donde sua conversão em modelos e/ou paradigmas de explicação do real. Aqui o empirismo se evidencia: de um lado, as ações de indivíduos singulares baseadas na experiência sobre uma realidade são consideradas prática social e transformadas em modelo, de outro, subjaz uma concepção de que os dados falam por si mesmos e, neste caso, a consciência do sujeito passa a ter um papel secundário frente ao objeto que deve simplesmente ser captado tal como é. Aqui aparecem as requisições sócio-profissionais de caráter instrumental como finalidade em si. Embora existindo no interior da categoria outras maneira de se conceber a teoria, para efeito de considerar o Serviço Social esta maneira é a que, a nosso ver, tem sido hegemônica na profissão5. Posta a problemática na maneira predominante de considerar teoria e prática na profissão cabe a reflexão: qual é o papel da teoria para uma profissão interventiva como o Serviço Social? De que teoria se trata? Como diferenciar a concepção de atividade da de práxis social? Quais as conseqüências deste falso dilema? 2. AS CONSEQÜÊNCIAS DESTE FALSO DILEMA PARA O SERVIÇO SOCIAL Se não há uma correspondência da teoria na prática ou se “na prática a teoria é outra” (o que, no limite, significa a mesma coisa), numa profissão interventiva como o Serviço Social, podese pensar que na formação profissional há teoria demais6. Ora, já foi denunciado por inúmeras vezes a aproximação equivocada, manualesca, via fontes secundárias e utilitária que os assistentes 5 No estudo que empreendemos na nossa dissertação de mestrado, do qual resultou uma reflexão sobre a instrumentalidade do Serviço Social, concluímos que: mesmo os profissionais que concebem a teoria como processos de reconstrução da realidade pela via do pensamento e que tem clareza de que a escolha de uma teoria não é arbitrária, mas ao contrário, vincula-se a projetos de sociedade, visões de mundo e métodos, reclamam da teoria respostas para a prática profissional (Cf. Guerra, 1995). 6 Considero que essa afirmação carece de comprovação factual, pois, a nosso ver, se fosse verdadeira teríamos uma preocupação com o rigor teórico, com a apreensão das teorias diretamente das fontes, cuidado e fidelidade na interpretação dos autores clássico e não a caricatura resultante da interpretação que fazemos dos mesmos. 6 sociais fazem às diversas teorias sociais7 que recobrem os fundamentos da profissão, apropriação essa que envolve matrizes do conhecimento bastante diferenciadas e até antagônicas. Entretanto, em algumas teorias essa “inapropriação” tem efeitos mais ou menos visíveis em decorrência da funcionalidade das mesmas à reprodução do sistema capitalista. 2.1. Relação ambígua do Serviço Social com a teoria No Serviço Social temos observado uma relação conflituosa e ambígua no trato da teoria, comparecendo muitas vezes, tendências equivocadas, dentre elas a: 1) Identificação entre teoria social e ciência (cujo modelo é a física e ou a matemática), do que decorre uma ênfase cientificista no tratamento teórico dos processos sociais; 2) Idéia de que o estatuto da profissão dependeria da adoção de uma teoria (ou ciência) própria, decorrência do equívoco histórico de considerar o estatuto profissional como uma variável do seu (suposto) estatuto científico; 3) Compreensão de que a profissão é um ramo do saber, uma forma de conhecimento do social, o que reafirma a necessidade de atribuir a ela, cada vez mais, um caráter de cientifico; 4) Concepção de que pelo saber teórico iremos superar o conservadorismo, resultando em um concepção idealista da realidade social; 5) Visão de que a teoria irá nos fornecer as referencias prático-concretas de intervenção profissional, pautada numa razão instrumental que separa meios e fins não se importando com a correção dos fins nem com a legitimidade dos meios. Quanto ao processo de apropriação teórica, no Serviço Social, temos cometido os seguintes equívocos, dentre outros: 1) A apropriação e utilização de um elenco de disciplinas e/ou conhecimentos sobre a realidade empírica que são equivocadamente concebidos como teorias, as quais lhe fornecem um quadro referencial eclético, segregado em informações parciais, fragmentadas, abstratas. Exemplo disso é a nossa aproximação às chamadas teorias de médio alcance com viés psicologistas, sociologistas, culturalistas, politicistas, 7 Quer se trate de teorias que contribuem na reprodução da ordem social e/ou que a justificam quer se trate daquelas de extração progressista. 7 economicista utilizadas para promover e justificar determinados procedimentos práticoprofissionais, donde o ecletismo característico da profissão resultante da utilização de teorias pelos profissionais segundo o “gosto e a ocasião”. 2) Aproximação de teorias sociais macroscópicas, tanto as teorias sociais como de teorias da ação social, das quais se exige respostas profissionais, convertendo-as em modelos (ou métodos) de ação profissional. Aqui, a riqueza de elementos que cobre a prática e a complexidade das teorias sociais são subsumidas pela aplicação de modelos. Neste caso, pensam seus defensores, se a realidade não se enquadra na teoria, pior para ela. 3) A apropriação do arcabouço teórico-metodológico marxiano, de um ponto de vista epistemológico, o que o tem tornado estéril frente às complexas contradições ontológicas da sociedade burguesa na contemporaneidade. Não é demais lembrar que o caráter modernizante da profissão sempre esteve vinculado a um recorrente apelo aos referentes teórico-metodológicos apropriados inadequadamente por fontes secundárias, via manuais e convertidos em modelos de intervenção profissional, como se das abordagens macroscópicas dos clássicos do pensamento social (Marx, Durkheim e Weber, etc) pudessem derivar modos de operar para o Serviço Social. 3. A DIALÉTICA DO CONHECIMENTO: OS VÍNCULOS NECESSÁRIOS ENTRE TEORIA E PRÁTICA Problematizar o já consagrado jargão, envolve questionar o que nos parece óbvio. Seguindo a trilha aberta por Labica na sua análise sobre a relação teoria-prática na obra de Marx optamos pela seguinte citação, que embora longa, traduz claramente esta questão: “Da prática à teoria, o vaivém é constante, e ele não poderia excluir os desvios, ou as mediações que são próprias ao processo do conhecimento. As famosas páginas da Introdução dos Grundrisse consagradas ao “método da economia política” são perfeitamente explícitas neste ponto, quer se trate da apropriação do concreto e de sua reprodução “sob a forma de concreto pensado”, ou do “caminho do pensamento abstrato, que evolui do simples ao complexo” e “reflete assim o processo histórico real”. A concepção tradicional da teoria e da prática se acham profundamente remexida neste sentido. A segunda não está mais reduzida ao fazer elementar do empírico, do 8 cotidiano, do contingente em que se rebaixaria a primeira, ela é produção material pelos homens de sua existência, portanto igualmente de seu pensamento; ela é história real” (Labica, 1990: 142-3). Com base nesta afirmação vemos que na concepção marxiana8 a relação teoria e prática não se dá de imediato tanto no sentido temporal, posto que ela é sempre post festum9 quanto no que se refere às mediações fundamentais que se interpõem entre elas. Deste modo, a condição de determinada teoria revelar os enigmas da realidade social é de natureza histórico-social: é necessário que os processos históricos se desenvolvam e se universalizem em termos histórico– universal a ponto de serem captados e reconhecidos pela consciência, a ponto de se revelarem (por meio de múltiplas mediações) à consciência que por sua vez se debruça sobre eles para arranca-los da positividade própria da aparência de que se revestem. Daí a teoria penetra no objeto, dissolve sua aparência, busca suas relações, sua lógica constitutiva, suas mediações (particularidade histórica). Porém, a completa resolução do dilema não requer soluções teóricas, mas prático-social. Neste campo (das soluções prático-sociais) a teoria é mesmo inepta. Aqui se põem os limites da reflexão teórica10. Quando se passa da universalidade teórica para as particularidades concretas e históricas, surge um conjunto de mediações que a analise teórica não pode responder completamente. A realidade é sempre mais rica, ampla e plena de mediações que a capacidade do sujeito de capta-las e reproduzí-las pelo pensamento. O processo do conhecimento se inicia pelos órgãos de sentido, pela intuição e pela representação e vai passando por outros condutos da razão até chegar ao nível mais alto do conhecimento que é o da razão dialética. Mas o processo de conhecimento pode se limitar a níveis inferiores e não alcançar o nível da razão dialética. Ai, no nível da intuição e da representação, a realidade pode aparecer mistificada. Só não será quando a realidade é captada e reproduzida pela razão dialética, racionalista, ontológica e crítica. 8 Pelo termo marxiana entendemos o que é próprio de Karl Marx e marxista o que é da tradição fundada por Marx, o que inclui discípulos e seguidores deste. 9 Ou a posteriori. Isso se expressa na afirmação marxiana de que “a reflexão sobre as formas de vida humana, e, portanto, também a sua análise científica segue sobretudo um caminho oposto ao desenvolvimento real. Começa-se post festum, e, por isso, com os resultados definitivos do processo de desenvolvimento” (Marx, 1985: 73). 10 Pensemos, por exemplo, na descoberta por Marx do fetiche da mercadoria. Esta foi uma descoberta teórica. Não obstante, a transformação das relações sociais fetichizadas compete as forças sociais práticas. Neste caso a teoria revela, traz à luz, descobre as relações nas quais os sujeitos estão inseridos, mas não transforma estas relações (ou, como se costuma dizer, a prática social). 9 Uma distinção que neste processo é fundamental é a de que há diferentes modalidades de apreensão do real, as quais, embora possuam uma autonomia, não podem ser autonomizadas ou atomizadas. Diz Marx que a apropriação teórica se dá de um “modo que difere da apropriação desse mundo na arte, na religião e no espírito prático” (1983). Cada modalidade do conhecimento nos permite uma forma de apropriação do mundo. A mais elementar é a apropriação através do espírito prático, manipulador, realizado no e pelo cotidiano. A apreensão do real pela teoria é diferente de sua apreensão pela arte, religião, espírito pratico. Vê-se que o conhecimento teórico é apenas um tipo de conhecimento entre outros e, sobretudo, tende a ser o mais universal e mais completo, uma vez que ele busca captar e reproduzir o real por meio do pensamento. Assim, a teoria é uma forma de apropriação do mundo. O conhecimento dado pelo espírito prático, ou o que se convencionou denominar como senso comum, é conhecimento que vem da experiência e que permite a manipulação do mundo. São modos de a consciência se apropriar do mundo. Mas, são conhecimentos de natureza, de significados e de estatuto diferentes. Para que uma teoria explique uma dada realidade há que se ter um método enquanto uma das mediações mais importantes que se interpõe entre sujeito e objeto no processo do conhecimento. Este não é uma mediação meramente instrumental, mas uma relação constituinte, que embora necessária, não é dada a priori, mas construída no processo do conhecimento. Daí é possível se compreender o método dialético não como o instrumento do sujeito, mas como uma determinada relação na qual os elementos se auto-implicam, daí o vinculo orgânico entre teoria social e método. Aqui repousa a compreensão de que há sempre uma reflexão filosófica que subjaz às questões do método. A ausência desta distinção leva a identificação entre método para o conhecimento da natureza e da sociedade. Resultado do Projeto da Modernidade, a determinação marxiana está aportada na concepção humanista que diferencia as determinações da sociedade daquelas postas na natureza. Como premissa do método para o conhecimento da sociedade burguesa, diz Marx: “Em conseqüência, também no método teórico é necessário que o sujeito – a sociedade – esteja sempre presente na representação como premissa”. 10 Ora, é o método que nos permite a pesquisa da realidade, sem a qual o conhecimento se torna um fim em si mesmo. É a teoria que ao se confrontar com o real, ao acompanhar o movimento do objeto no intuito de conhece-lo põe a luz o método. O movimento do real pelo pensamento é captado pelo método. Portanto, método é a teoria em Movimento (Cf. Netto, 1986: 78 e 82). A contribuição do método dialético materialista está em que ele atribui prioridade ao dado ontológico: é o objeto que deve estabelecer o caminho para a apreensão da sua essência. Nesse processo de apreensão do real é importante ressaltar que “O sujeito real mantém, antes como depois11 a autonomia fora da mente, pelo menos durante o tempo em que o cérebro se comporte de maneira especulativa, teórica” (Marx, 1983). Na concepção marxiana a teoria reproduz pela via do pensamento o movimento do real como concreto pensado. Aqui, a apropriação teórica reconstrói pelo pensamento o movimento do objeto, mas não o próprio objeto que continua tendo sua existência independente do sujeito. Com isso, faz-se necessário que se rompa com concepções cientificistas, do racionalismo formal-abstrato da corrente positivista e suas derivações. Estas encontram-se presentes, inclusive na concepção de método, identificado, de um lado, como um conjunto procedimentos adotados pelo sujeito e/ou como um conjunto de pautas sobre o agir profissional. Nas vertentes conservadoras há uma indistinção entre metodologia, procedimentos metodológicos e sistemática de trabalho (técnicas e instrumentos de ação x referencial estratégico, estabelecimento de estratégias e táticas). Teoria e prática, na abordagem marxista, como pólos opostos se confrontam a todo momento: questionam-se negam-se e superam-se, a ponto encontrarem uma unidade que é sempre histórica, relativa e provisória. Não obstante, teoria e prática mantém sua especificidade e autonomia. A teoria, nesta concepção, tem que ser vista como a critica e a busca dos fundamentos. Ela tem validade enquanto reflete as relações sociais reais, e por isso o conhecimento produzido é sempre, processual, provisório, aproximativo e relativo (sem, contudo cair no relativismo e subjetivismo de correntes historicistas para as quais o real é mera atribuição do sujeito). A prática social pode validar uma teoria em determinadas condições sócio-históricas, de modo que a teoria tem que ser reconhecida na prática, mas não nas práticas profissionais. Aqui há que se trabalhar as mediações efetivas e teóricas. A teoria não se gesta, não brota da prática, mas da 11 Aqui Marx refere-se ao processo do conhecimento, da reprodução do concreto pelo pensamento. 11 reflexão sobre a prática: Ela é outro nível do conhecimento que se testa na prática. Tampouco a teoria produz transformações prático-materiais. O que ela transforma são percepções, concepções, elementos necessários, transforma parte da realidade, mas entre a transformação da consciência e do real são necessárias outras mediações. Isto porque o conhecimento no nível teórico não incide diretamente no nível prático-empírico das profissões. Não obstante, o conhecimento nos fornece a compreensão da sociedade na qual se inserem nossos objetos de intervenção, nos fornece também uma compreensão sobre estes mesmos objetos e sobre em que, quando e como intervir. Mais do que isso, a teoria incide sobre a compreensão da direção social, do significado e das implicações éticas e políticas das práticas profissionais. Afirmamos que para a consciência comum o prático é o produtivo, do ponto de vista da sua eficácia e eficiência para o capital, para a produção e reprodução do valor, da mais valia. O fetiche que submete a produção da mercadoria contribui para o que os homens não apreendam o verdadeiro conteúdo e significado de sua atividade, ou seja, o homem comum não tem a dimensão de que seus atos se inserem na história social nem mesmo o quanto é capaz de influenciar na realização da práxis social. Ao contrário, “essa significação só pode ser apreendida, por uma consciência que capte o conteúdo da práxis em sua totalidade como práxis histórica e social, na qual se apresentem e se integrem suas formas específicas (o trabalho, a arte, a política, a medicina, a educação, etc), assim como suas manifestações particulares nas atividades dos indivíduos ou grupos humanos, e também em seus diversos produtos (Vázquez, 1977: 15). Por isso é necessário que se realize uma critica ontológica do cotidiano, a qual envolve não apenas uma critica das relações de gênero, da violência urbana, da exploração sexual, da cultura, mas critica ontológica do capitalismo contemporâneo, com todas as suas manifestações: a reestruturação do capital, a financeirização, a precarização das condições de trabalho, a racionalização do trabalho vivo, etc), fenômenos da maior complexidade e que necessitam de um grau complexo de conhecimento teórico para o seu desvelamento. Assim, faz sentido a afirmativa de Marx de que “a superação da propriedade privada é por conseguinte a emancipação completa de todas as propriedades e sentidos humanos; mas ela é esta emancipação exatamente pelo fato de estes sentidos e propriedades terem se tornado humanos, tanto subjetiva quanto objetivamente. O olho se tornou olho humano, assim como o seu objeto se 12 tornou um objeto social, humano, proveniente do homem para o homem. Por conseguinte, imediatamente em sua práxis os sentidos se tornaram teorizadores” (1984:174). Enquanto unidade do diverso, teoria e prática se complementam. A prática e o conhecimento teórico, só podem ser alcançados a partir da aceitação dessa relação sujeito/objeto, da busca da unidade entre ser e pensar. CONCLUSÕES A práxis como uma categoria central na elaboração marxiana, mostra claramente o significado da teoria tendo em vista o seu papel de guia da transformação do mundo. Assim, a categoria práxis se define em oposição ao caráter especulativo e contemplativo da filosofia idealista. É entendida, não como mera atividade da consciência, mas, ao contrário, como atividade real, objetiva, material do homem social, que só pode ser assim considerado em e pela práxis. Assim, partilhamos da compreensão marxiana de que “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis” (Marx, In: Labica, 1990). Com esta problematização, esperamos ter demonstrado que há que se investir na compreensão correta do significado da teoria para uma profissão interventiva, reconhecendo como relevantes os momentos de apropriação teórica básica para a inserção qualificada do assistente social nos espaços sócio-ocupacionais respondendo competentemente às demandas sociais. Coloca-se ai, fundamentalmente, a responsabilidade de uma formação social critica com claros compromissos com um projeto de sociedade anti-capitalista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUERRA, Yolanda. A Instrumentalidade do Serviço Social. SP, Cortez, 1995. HAACK, Susan, In: Compêndio de Filosofia. Nicholas, Bunnin e Tsui-James, E. P. (Org.) Edições Loyola, 2002 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. 4a. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. 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