II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR A ABORDAGEM DO “VERBO” EM UM LIVRO DIDÁTICO USADO EM ESCOLAS PÚBLICAS DE CASCAVEL CORBARI, Alcione Tereza (UNIOESTE) RESUMO: Apesar do longo percurso espaço-temporal, muitos estudos gramaticais nascido na Grécia se perpetuaram e chegaram até nós com poucas alterações desde a proposta inicial. A abordagem dos “verbos” pode exemplificar bem a ligação existente entre os estudos gregos da era clássica e a Gramática Tradicional. Esta, por sua vez, é reproduzida em grande parte dos livros didáticos destinados ao ensino da Língua Portuguesa. Sem pretender desprezar o referencial teórico tradicional – que, no ocidente, assume posição relevante nos estudos das linguagens naturais –, nos propomos a analisar criticamente a abordagem do verbo no Volume 2 do livro didático Português: Linguagens: Literatura, produção de texto, gramática (2005), de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, adotado por algumas escolas públicas de Cascavel. O estudo aqui proposto enfoca, mais especificamente, o conceito de verbo e as categorias flexionais tempo e modo verbais. Nessa análise, nos posicionamos de três lugares diferentes: a) como professora do Ensino Médio que usa, ainda que esporadicamente, o livro didático em questão; b) como professora do curso de Letras da Unioeste; c) como pesquisadora integrante do grupo de pesquisa Elaboração de uma gramática para graduandos. PALAVRAS-CHAVE: Gramática Tradicional; Livro Didático; Língua Portuguesa; Verbo. 1- Introdução Com raízes na Grécia, a Gramática Tradicional (GT) chegou a Roma, que a propagou para o Ocidente. Apesar do longo percurso espaço-temporal entre o referencial teórico gestado antes de Cristo e a gramática contemporânea, e, ainda, apesar dos avanços alcançados na área da Linguística, muitos dos conceitos nascido na Grécia se perpetuaram e chegaram até nós com poucas alterações desde a proposta inicial. Os livros didáticos atualmente utilizados para o ensino de Língua Portuguesa são prova disso. Em sua maioria, seguem quase fielmente a gramática normativa – fruto dos estudos da era clássica. É esse o referencial teórico que, em geral, orienta tanto a seleção dos conteúdos (gramaticais) quanto sua forma de organização e de apresentação. A abordagem que a maioria livros didáticos que chegam às escolas faz da classe gramatical verbo ilustra bem essa afirmação. Ao lado do nome, o verbo aparece nas primeiras tentativas de se estabelecer as classes de palavras. Hoje, o que vemos nas Gramáticas Tradicionais se aproxima muito ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR dos estudos de Platão (século IV a.C.), responsável pela primeira tentativa de sistematização das partes do discurso que se tem registrada. A perspectiva de análise posta na GT, por sua vez, é socializada na escola contemporânea, contexto em que os livros didáticos assumem papel fundamental. Neste trabalho, tomamos como objetivo analisar o capítulo O verbo (integrado na Unidade 2) do livro Português: Linguagens: Literatura, produção de texto, gramática, Volume 2 (Ensino Médio), de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, adotado por algumas escolas públicas de Cascavel. Neste momento, interessa-nos especificamente o conceito de verbo e as categorias flexionais tempo e modo. Esperamos, em outra oportunidade, focar outros conceitos e também analisar os exercícios propostos. 2- Em foco, o conceito de verbo Embora não desconsiderem a importância dos estudos iniciados antes de Cristo, que sustentam a abordagem tradicional das classes de palavras, autores contemporâneos têm pontuado algumas críticas em relação à descrição das partes do discurso proposta pela GT – que são extensivas à abordagem feita pela maioria dos livros didáticos. Uma das críticas recorrentes refere-se à falta de critérios homogêneos e claros na descrição das classes gramaticais. Em geral, são apresentados, de forma bastante confusa, critérios semânticos, sintáticos e morfológicos. Para exemplificar os diferentes critérios, tomamos a descrição de verbo apresentada por Cunha e Cintra (1985, p. 367): a) morfológico (“verbo é uma palavra de forma variável”); b) semântico (“que exprime o que se passa, isto é, um acontecimento no tempo”); e c) sintático (e tem “função obrigatória de predicado, a única que desempenha na estrutura oracional” – grifo dos autores). Outros autores enfocam um ou dois dos critérios, em detrimento do(s) outro(s). A variedade de critérios usados pelos gramáticos não pode ser considerada, em si, um ponto negativo do referencial teórico tradicional. Ao contrário, os critérios formal1 e semântico são complementares na descrição linguística. No entanto, conforme alerta Perini (2007), tais critérios não podem ser misturados, sob o risco de se proceder a uma descrição obscura, incompleta e até contraditória. Para evitar que isso ocorra, o 1 A descrição formal corresponde à fonologia, à morfologia e à sintaxe (PERINI, 2007, p. 40). ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR autor sugere que o aspecto formal e o semântico sejam separados na descrição e, depois, correlacionado. Isso evitaria o pressuposto que acompanha a dupla definição (formal e semântica), conforme alerta Perini (1991): qualquer palavra que corresponda à primeira parte da definição também corresponderá à segunda, o que levaria à conclusão, errônea, de que a relação entre as propriedades semânticas e formais do verbo é simples e direta, podendo ser expressa por uma mera justaposição de definições, conforme argumenta o autor. No livro sob análise, no momento de definição da classe gramatical em tela, os autores recorrem apenas ao critério semântico: “Verbos são palavras que exprimem ação, estado, mudança de estado e fenômenos metereológicos, sempre em relação a determinado tempo” (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, p. 143, grifo dos autores). Trata-se de um conceito presente em grande parte das Gramáticas Tradicionais, que entendemos como incompleto e confuso. Podemos, por exemplo, tomar o vocábulo chuva, usado por Perini para questionar a definição tradicional. Tomemos o vocábulo de um enunciado real2: (1) Chuva de ontem provocou 68 pontos de alagamento em SP3. No caso, a palavra em destaque exprime um fenômeno metereológico e está representado no tempo (ontem). Respondendo à possível objeção de que o tempo não está morfologicamente marcado no vocábulo, o autor diz que nem sempre essa marca se verifica nos verbos – o que invalida a ideia de que o verbo se apresente “sempre em relação a determinado tempo” (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, p. 143, grifo nosso) –, como se observa, por exemplo, no enunciado abaixo: (2) O gato come rato por ser animal de rapina (caçador)4 Perini (1991) diz que a palavra come, em contextos como o dado acima, exprime um fato (uma ação) e é considerada um verbo. No entanto, ela não está “representada no tempo”, pelo menos não no sentido usual de tempo, ressalva o autor. Para Perini (1991), enunciados como (2) exprime uma afirmação geral, intemporal, sobre gatos (e ratos). O 2 Com o intento de observar enunciados reais, recorremos à internet para a coleta das sentenças apresentadas neste trabalho (os sites-fonte são indicados em nota de rodapé). 3 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ cotidiano/ ult95u41962.shtml>. 4 <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid =2007 0316044141AAYSsbC>. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR enunciado dado se coloca, segundo a análise do autor, na classe das afirmações universais, do tipo O homem é mortal, A água ferve a cem graus etc., das quais não se pode dizer que estejam “representadas no tempo”. Também as formas nominais dos verbos estariam excluídas do conceito apresentado, já que os verbos nas formas infinitivo, gerúndio e particípio não trazem em si a noção de tempo, como podemos observar nos exemplos abaixo: (3) Fazer exercícios físicos é bom para o corpo e para a mente5. (4) Fazendo exercícios em jejum, emagreço mais rápido?6 (5) Quando feitos regularmente, esses exercícios ajudam a prevenir a manifestação da incontinência urinária e do prolapso.7 Como se pode observar, a descrição semântica não é suficiente para caracterizar o conjunto de elementos que podem ser enquadrados nessa categoria. Logo, outros critérios são necessários para se estabelecer uma classificação que abarque todas as manifestações possíveis do verbo em nossa língua. Além de insuficiente para caracterizar os verbos, a descrição dada, em certos aspectos, pode ser estendida a outras classes gramaticais, conforme já exemplificamos com o recorte (1). Outros exemplos podem ser dados: palavras como ataque, montagem e mudança, originárias de verbos, também trazem em sua acepção semântica a “indicação de ação”: ação de atacar, ação de montar e ação de mudar, respectivamente. Mesmo substantivos que não têm origem verbal podem veicular essa noção, como se observa em paulada e pedrada, por exemplo. Quanto à definição “palavra que indica estado”, pode-se dizer que o verbo, em si, não faz essa indicação. O verbo cópula (ser, estar ou outros que tomam essa acepção) só significa estado quando juntado com o predicativo. Observemos os enunciados (6) e (7): (6) Sylvie Dias já está em casa8 (7) “TACV está muito doente”9 5 <http://riosulnet.globo. com/web/conteudo/1_263776.asp>. 6 <http://www.radioaratiba.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=618:fazendoexercicios-em-jejum-emagreco-mais-rapido&catid=37:dica-de-saude&Itemid=44>. 7 <http://brasil.babycenter.com/pregnancy/pre-natal/exercicios-pelvicos/ 8 < http://aeiou.caras.pt/sylvie-dias-ja-esta-em-casa=f22006>. 9 <http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=22796&idSeccao=520&Action= noticia>. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR Em (6), o verbo estar não foi empregado como copulativo, mas como verbo “significativo” (CUNHA; CINTRA, 1985), de forma que temos aí um predicado verbal. Já no enunciado (7), o predicado é nominal, e o verbo indica um estado. Mas, como se pode observar numa análise comparativa entre (6) e (7), não é o verbo em si que marca essa noção, mas a junção do verbo com um predicativo, indicador de estado. Além disso, há que se observar que o adjetivo desacompanhado do verbo também pode estabelecer a noção semântica de “estado”: (8) TAM impede menino doente de embarcar10 Além disso, há que se observar que os autores do livro didático em análise dizem que os verbos indicam estado e mudança de estado. Os exemplos dados são, respectivamente, “Pedro é um bom sujeito” e “Choveu tanto, que a nossa ruazinha se tornou um rio sujo e lamacento” (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, p. 143, grifos dos autores). Primeiro, há que se questionar se podemos considerar “ser um bom sujeito” como um estado, noção mais facilmente percebida em “Pedro está doente”, por exemplo. Se as características psicossociais de um indivíduo podem ser consideradas um estado, é preciso, no mínimo, que se defina o que se entende por estado. Ademais, ainda observando o predicado nominal, há que se considerar que outras nuances de estado ficam de fora da descrição dada – “estado” e “mudança de estado” –, como ocorre com a “continuidade de estado” (9) e a “aparência de estado” (10): (9) Uberaba (MG) continua muito seca11 (10) (Ramon): O site possui uma aparência amigável e parece ser confiável, mas, por favor, não esqueça de colocar as referências dos dados!12 A resposta dada ao comentário transcrito em (10) – provavelmente advinda de um leigo nos estudos linguísticos – deixa bem clara a diferença entre estado e aparência de estado, diferença essa não observada pelos autores do livro sob análise: 10 <http://forum.contatoradar.com. br/index.php?showtopic= 8380&mod e=threaded>. <http://www.climatempo.com.br/ temporeal/137686/uberaba-(mg)-continua-muito-seca>. 12 <http://www.oragoo.net/quais-sao-as-dez-maiores-empresas-de-energia-do-mundo/>. 11 ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR (11) (Oráculo): Ramon, o Oragoo.net não “parece” confiável. Ele é confiável. E a fonte está citada na primeira linha do texto. Obrigado pela mensagem. Há, ainda, que se observar que a descrição semântica dada pelos autores torna difícil a identificação de certos verbos, como se observa nos enunciados abaixo. Antes, retomemos a definição dada no livro didático: “Verbos são palavras que exprimem ação, estado, mudança de estado e fenômenos metereológicos, sempre em relação a determinado tempo” (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, p. 143, grifo dos autores). Vejamos, agora, alguns exemplos: (12) Eu amo o vento que toca a minha pele13 (13) A burguesia fede muito14 Quanto aos enunciados em destaque, não parece adequado relacioná-los à ideia de “indicação de estado” – pelo menos não na acepção da Gramática Tradicional, que veicula a noção de estado ao predicado nominal. Também não tratam de “fenômenos metereológicos”. Resta, então, a indicação de “ação”. Há que se considerar, no entanto, que, como adverte Perini (1991), se considerarmos ação tudo aquilo que se exprime por meio de um verbo, teremos esvaziada a definição de verbo como palavra que exprime ação, pois a reduz a uma tautologia (PERINI, 1991). Além disso, não sendo “agentes” os sujeitos das orações– são, antes, “experienciador” (amar) e “fonte” (feder) –, entendemos que os verbos em questão não descrevem, efetivamente, uma “ação”. As análises postas até o momento, bastante parciais e ainda iniciais, mostram que a definição semântica proposta pelos autores do livro didático não dá conta da totalidade dos fenômenos linguísticos observáveis em nossa língua. Essa é uma análise que pode ser estendida à grande maioria dos livros didáticos e ao aporte teórico que os embasa: a Gramática Tradicional. Como sugestão para a abordagem dessa categoria gramatical, Perini (1991), embora não desconsidere a importância da descrição semântica, defende que é mais seguro caracterizar o verbo a partir de suas características formais: “Verbo é a palavra 13 14 <http://www.bethynha.com.br/amo.htm>. <http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=15289&id_noticia=226>. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR que pertence a um paradigma cujos membros se opõem quanto a número, pessoa e tempo” (PERINI, 1991, p. 26). O autor destaca que, nessa definição, os termos “número”, “pessoa” e “tempo” se referem a morfemas flexionais específicos, e não a categorias de significado. Consideramos que, junto a essa descrição, seria preciso fazer uma ressalva a respeito das formas nominais dos verbos, se quisermos continuar entendendo que, apesar de também desempenharem a função de nome, o infinitivo, gerúndio e particípio são formas verbais. A definição formal, segundo o linguista, evitaria os problemas apresentados pela descrição semântica, que é menos completa e satisfatória que as descrições formais. Com isso, se reconheceria facilmente que os termos destacados nos enunciados retomados abaixo não é verbo em (1) – Chuva de ontem provocou 68 pontos de alagamento em SP –, mas é em (2) – O gato come rato por ser animal de rapina (caçador). Conforme as análises de Perini (1991), essa identificação precisa é possibilitada pelo critério formal porque facilmente reconhecemos que come se liga a um paradigma que inclui comeu, comem, comeram etc. (formas que se opõem quanto à pessoa, ao tempo e ao número), enquanto chuva é reconhecida como um não-verbo por pertencer a outro paradigma, que inclui, por exemplo, chuvas e chuvinhas, que se opõem quanto ao número (mas um tipo de “número” morfologicamente diferente do número verbal) e quanto ao grau. É preciso observar, ainda, que a apresentação do critério formal evitaria a possível confusão que o aluno enfrentaria ao perceber que, no livro sob análise, após a descrição dada (semântica), se passa à apresentação da flexão dos verbos, análise pautada na descrição formal (morfológica). De qualquer maneira, conforme já abordamos, as descrições formal e semântica devem ser complementares, mas precisam ser feitas, a princípio, separadamente, para depois serem relacionadas (PERINI, 2007). 3- A flexão verbal: em análise, as categorias tempo e modo Seguindo a orientação da GT, o livro sob análise cita-se que os verbos “flexionam-se em número, pessoa, modo, tempo e voz” (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, p. 143). Faremos, aqui, a análise de alguns aspectos relacionados às categorias ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR tempo e modo. A descrição dos modos verbais (indicativo, subjuntivo e imperativo) é apresentada a partir da perspectiva semântica, como o faz as GTs: Indicativo: É o modo da certeza, o que expressa algo que seguramente acontece, aconteceu ou acontecerá: Eu leio todos os dias. Subjuntivo: É o modo da dúvida, o que expressa a incerteza, a possibilidade de algo vir a acontecer: Meus pais querem que eu leia todos os dias. Imperativo: É o modo mais empregado quando se tem a finalidade de exortar o interlocutor a cumprir a ação indicada pelo verbo. É o modo da persuasão, da ordem, do pedido, do conselho, do convite: Leia todos os dias, nem que seja um pequeno texto! (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, 144, grifos dos autores). Segundo essa definição, teríamos de tomar como certo o fato descrito em (14): (14) 22/09 – Dia Mundial Sem Carro. Eu vou! (se alguém me der carona, claro…)15 Tomada isoladamente, a oração Eu vou indicaria certeza; mas, se considerarmos todo o enunciado, essa interpretação fica comprometida, apesar de o modo indicativo ter sido usado nessa oração. Enunciados como o dado acima, comuns em nossa língua, mostram que o modo subjuntivo tem sido substituído, em várias situações linguísticas, pelo modo indicativo, sem, contudo, mudar o sentido de fato incerto para fato certo. Há que se observar, ainda, que a dúvida não está demarcada apenas no modo verbal, como se observa em (15): (15) "Acho que minha carreira começou também pela beleza", acredita o ator-galã Rodrigo Hilbert16 Como se vê, apesar de os verbos estarem no modo indicativo, a noção de dúvida é demarcada nesse enunciado pela interpretação semântica do primeiro verbo. Além disso, temos no indicativo pelo menos dois tempos que também podem demarcar a ideia de possibilidade, incerteza: futuro do presente (16) e futuro do pretérito (17): (16) Onde estará o corpo de Michael Jackson?17 (17) Polícia chega a casa onde estaria corpo de Eliza em MG18 15 <http://reinaldo.pro.br/blog/2007/08/09/2209-dia-mundial -sem -carro-eu-vou-se-alguem-me-dercarona-claro/>. 16 <http://televisao.uol.com.br/ultimas-noticias /2009/07/05/ult4244u3726.jhtm>. 17 <http://www.vooz.com.br/noticias/onde-estara-o-corpo-de-michael-jackson-9464.html>. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR Nesses enunciados, a noção de irrealis (PALMER, 2001) é interpretada a partir de uma leitura que extrapola o limite do verbo. É preciso considera o co-texto e, quiçá, o contexto de produção, que mostra um produtor que se envolve fracamente com o conteúdo proposicional. Nesse caso, é mais coerente falar em modalidade (nível discursivo) do que modo (nível morfológico). Há, ainda, que se observar que não raro o modo subjuntivo é exigido pela condição sintática de subordinação, que nada tem a ver com a expressão necessária de “dúvida”, “incerteza” ou de “possibilidade de algo vir a acontecer”, como se observa no enunciado abaixo: (18) 'Meu psiquiatra quer mudar meus medicamentos embora eu esteja me sentindo bem com os remédios que tomo'19 Nesse caso, a subordinação encadeada pela conjunção concessiva embora é que exige o uso do subjuntivo. Não há qualquer indicação de incerteza, dúvida ou indicação de algo que poderá acontecer. Ao contrário, retrata uma certeza do enunciador, que tem condições para asseverar sobre seu próprio estado (físico e/ou psíquico) atual. Análise semelhante se faz do recorte (19): (19) Já é difícil a ocorrência de esperança para a decência e a dignidade onde a perversão, a contravenção e os maus costumes fez morada; lamentamos que seja esse o quadro político do Brasil onde nascemos!20 Nesse caso, também não há intenção de mostrar dúvidas, incertezas e fatos que poderão ocorrer. Ao contrário, observa-se que o verbo assume – mesmo estando no modo subjuntivo – uma natureza factual. O produtor do texto afirma que o quadro político do Brasil “já é” aquele apresentado no primeiro período do enunciado dado acima. No entanto, a oração que a GT chama de principal – “lamentamos que” – 18 <http://g1.globo.com/brasil/noticia/ 2010/07/policia-chega-casa-onde-estaria-corpo-de-eliza-em-mg. html>. 19 <http://cbn.globoradio.globo.com/colunas/no-diva-do-gikovate/2010/04/19/MEU-PSIQUIATRAQUER-MUDAR-MEUS-MEDICAMENTOS-EMBORA-EU-ESTEJA-ME-SENTINDO-BEM-COMOS-REME.htm>. 20 <http://www.supersitegood.com/ temalivre/texto.php?mat=1598>. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR apresenta uma restrição no uso do modo verbal da oração subordinada, exigindo que se use, nesse contexto, o modo subjuntivo. Quanto ao imperativo, nem sempre é possível encaixar os enunciados que trazem verbos desse modo em uma das acepções dadas pelo gramático. É o que ocorre, por exemplo, no enunciado abaixo: (20) Em uma frigideira grande, derreta a manteiga e doure a cebola, junte o frango picado e mexa bem, até ficarem dourados.21 Nesse caso, parece difícil relacionar os verbos em destaque com qualquer um dos atos ilocutórios previstos para o modo imperativo na descrição de Cereja e Magalhães (2005, p. 144): “É o modo da persuasão, da ordem, do pedido, do conselho, do convite”. Quanto ao tempo dos verbos, o livro traz as definições dadas apresentadas pela GT – modo indicativo: presente, pretérito (perfeito, imperfeito e mais-que-pefeito), futuro (do presente, do pretérito); modo subjuntivo: presente, pretérito imperfeito e futuro. E, apesar de as definições de cada tempo ter motivação semântica, mais à frente, é apresentada a formação morfológica dos tempos simples e compostos. Abaixo, transcrevemos a descrição de cada tempo, conforme definição dada no livro: Os tempos do modo indicativo são: presente: expressa uma ação que está ocorrendo no momento em que se fala ou uma ação que se repete ou perdura [...]. pretérito: divide-se em: pretérito perfeito: transmite a idéia de uma ação completamente concluída [...]; pretérito imperfeito: transmite a idéia de uma ação habitual ou contínua ou que vinha acontecendo, mas foi interrompida por outra [...]; pretérito mais-que-perfeito: expressa a idéia de uma ação ocorrida no passado, mas que é anterior a outra ação, também passada [...]. futuro: divide-se em: futuro do presente: expressa a idéia de uma ação que ocorrerá num tempo futuro em relação ao tempo atual [...]; futuro do pretérito: expressa a idéia de uma ação que ocorreria desde que certa condição tivesse sido atendida [...]. Os tempos do modo subjuntivo são: presente: indica um fato incerto no presente ou um desejo, sendo empregado normalmente depois de expressões como convém que, é necessário que, é possível que tomara que, talvez [...]. pretérito imperfeito: indica um fato incerto ou improvável ou um fato que poderia ter ocorrido mediante certa condição [...]. 21 <http://www.muitomaisreceitas.com.br/receitas/aves/strogonoff_de_frango.html>. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR futuro: expressa a idéia de um acontecimento possível no futuro [...]. (CEREJA; MAGALHÃES, 2005, 144, grifos dos autores). A natureza deste trabalho não permite fazer uma avaliação completa dessas explicações. São, então, analisadas algumas das descrições propostas para o tempo verbal. Uma análise geral mostra que a visão tradicional que embasa essa descrição relaciona os morfemas de tempo com a referência semântica de tempo. No entanto, esses dois níveis de análise (formal e semântico) nem sempre são condizentes. Vejamos o exemplo abaixo: (21) Por que a água ferve a 100'c no litoral?22 Conforme analisa Perini (1991), enunciados como o dado em (21) exprimem uma afirmação geral, intemporal. Assim, nesses casos, a classificação “presente” não condiz com a noção temporal semanticamente apresentada. Além disso, há que se observarem outros usos que fazemos dos morfemas de tempo que, ao serem atualizados, acabam não correspondendo, semanticamente, ao tempo gramatical. Vejamos o enunciado (22): (22) Lula embarca hoje à noite para Paris e Itália23 Como se pode observar, o enunciado projeta uma ação futura, mas o tempo morfológico é o presente. Já em (23), o presente formal denota um passado referencial (presente histórico): (23) 1392: Nasce em Lisboa o Infante D. Pedro, quarto filho de el-Rei D. João I e D. Filipa de Lencastre24 Essa diferença (e, não raro, divergência) entre o tempo gramatical, formal – que opõe a forma embarca às formas embarcou, embarcará etc. – e a referência temporal que resulta da interpretação semântica precisa ser claramente descrita. Conforme alerta Perini (1991), o tempo gramatical não é simplesmente uma representação formal do 22 <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid= 20080303061407AA18h9d>. <http://contextopolitico.blogspot.com/2009/07/politica-lula-embarca-hoje-noite-para.html>. 24 <http://www.vidaslusofonas.pt/infante_d_ pedro.htm>. 23 ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR tempo cronológico. E, embora demos a ambos a mesma designação (tempo), não devemos nos enganar quanto a suas naturezas profundamente diferentes, alerta o autor. Considerando as diferentes acepções de tempo, Travaglia (1981) diz ser necessário fazer distinção entre três tipos básicos de tempo: a) tempo como categoria verbal (correspondente às épocas: passado, presente e futuro), b) flexão temporal (referente ao agrupamento de flexões de conjugação verbal: presente do indicativo, pretérito imperfeito do indicativo, futuro do presente, etc.) e c) a ideia geral e abstrata de tempo em consideração de sua indicação pelo verbo ou qualquer outro elemento da frase. 4- Ainda algumas considerações As análises aqui apresentadas tomam como objeto de estudo apenas parte dos conceitos apresentados no capítulo sobre verbos do livro sob análise. Além disso, o estudo aqui proposto não se pretende completo e conclusivo. Por ora, ficamos satisfeitos se pudermos instigar o leitor a analisar criticamente o referencial teórico tradicional. Não se trata de desprezar a Gramática Tradicional como um aporte teórico válido para o ensino da língua materna. Mas é preciso que o professor a entenda como um referencial teórico que apresenta limitações e inadequações, e, por isso, não pode ser o único a amparar as aulas de Língua Portuguesa. Há que se considerar que, por questões que fogem de nosso controle – como, por exemplo, as políticas que guiam o mercado editorial –, a adaptação da teoria gramatical que embasa a produção de livros didáticos a teorias mais recentes, como o Funcionalismo e a Linguística Textual, por exemplo, ocorre de forma muito lenta. Não estamos dizendo, com isso, que é preciso desprezar o livro didático como material a ser trabalhado em sala, às vezes o único à disposição do professor. Nesse contexto, o que se põe como uma necessidade urgente é a garantia de formação do professor como um agente intelectual, capaz de usar criticamente as teorias que estão à sua disposição, considerando suas limitações e inadequações, por um lado, e a relevância dessas teorias para a formação dos estudantes, por outro. Referências bibliográficas ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. PALMER, F. R. The definition of modality. In:______. Mood and modality. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 14-22. PERINI, M. A. Gramática descritiva do português. 4. ed. São Paulo: Ática, 2007. _____. Para uma nova gramática do Português. 6. ed. São Paulo: Ática, 1991. TRAVAGLIA, L. C. O aspecto verbal no português: a categoria e sua expressão. Universidade Federal de Uberlândia: Gráfica da UFU, 1981. ISSN 2178-8200