Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 254 PARA A APROPRIAÇÃO POÉTICA NA PERFORMANCE MUSICAL: ANGÚSTIA, CRÍTICA, HERMENÊUTICA Daniel Vieira* [email protected] Any Raquel Carvalho** [email protected] Resumo Esse texto procura dimensionar um espectro teórico-filosófico para a apropriação poética na performance musical. São apresentadas ideias oriundas da Teoria da Influência, do crítico literário Harold Bloom, numa aplicação transversal à prática musical – performance musical. A partir dessa reflexão é possível entender como a musicalidade é advinda da apropriação de possíveis influências do próprio trabalho musical. Ainda em decorrência disso, pode-se afirmar que não existem performances, mas sim relações entre performances apropriadas antiteticamente entre si, sendo que resposta crítica a uma performance só pode ser uma outra performance. Como resposta a um dos aspectos da teoria, debatidos no trabalho, o texto se estende à compreensão de que uma própria tradição, por parte do performer, deve ser desenvolvida ou criada, o que caracteriza um processo hermenêutico requerido e presente no ato da performance. Palavras-chave: Apropriação musical, Influência, Performance musical. Abstract This text attempts to scale a theoretical-philosophical spectrum to poetical appropriation in musical performance. Ideas presented are derived from the Theory of Influence, by the literary critic Harold Bloom, in a cross-cut application to musical practice – musical performance. From this discussion it is possible to understand how musicality comes from the appropriation of possible influences of the musical work itself. Also as a result, there are no performances – but relations between performances which are antithetically appropriated. A critical response to a performance can only be another performance. In response to one aspect of the theory discussed in this paper, the text extends to a realization that tradition itself should be developed or created by the performer, featuring a hermeneutic process required and present in the act of performance. Keywords: Musical Appropriation, Influence, Musical performance. * Realiza o doutorado em Práticas Interpretativas na UFRGS, onde é orientado pela Profa. Dra. Any Raquel Carvalho e pela Profa. Dra. Cristina Gerling. Tem realizado um estágio de doutoramento, como bolsista da CAPES, na Universidade de Aveiro (Portugal) sob supervisão da Profa. Dra. Helena Marinho. ** Any Raquel Carvalho, organista, doutora em música pela University of Georgia (USA) com bolsa CAPES, é docente e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Música e no Departamento de Música do Instituto de Arte da UFRGS. Membro fundadora da Associação dos Organistas do Rio Grande do Sul e da Associação Brasileira de Organistas, tendo atuado em ambas como presidente. Atua como organista e conferencista no Brasil e no exterior. Como pesquisadora do CNPq desenvolve trabalhos nas áreas de contraponto e fuga (dois livros publicados) e de música brasileira para órgão. É membro do Conselho Editorial da Em Pauta (PPG-MUS/UFRGS). Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 255 O título desta comunicação designa três possíveis maneiras de se compreender a apropriação poética para a práxis musical, aqui conotada como a própria prática interpretativa: angústia, crítica e hermenêutica. Admitindo preliminarmente que a pesquisa em Práticas Interpretativas, no âmbito das ciências na pós-modernidade, pode e deve estar vinculada ao trabalho de performance (práxis profissional) do próprio pesquisador, esta comunicação assumirá um contexto de crítica antitética hermenêutica, potencializando a possíveis sujeitos sociais uma subjetividade decorrente da própria cientificidade (SANTOS, 2002; BARRENECHEA, 2003; AQUINO, 2003). Argumentaremos como possíveis objetos teóricos podem corroborar nesse sentido, a fim de converter o ato do performer num escopo dessa natureza. Por apropriação, somos partidários do conceito desenvolvido pelo crítico literário Harold Bloom1, em que vem a tornar-se o próprio clinamen2, ou em outras palavras: uma leitura distorcida ou mesmo apropriada, significando um desvio. Aparece tal qual um movimento corretivo na produção individual de um artista que desvia-se de um precursor de modo a converter-se a ele seguindo-se um novo teor poético, uma nova influência, uma nova arte (BLOOM, 2002, p. 64). Nesse sentido, as ideias de influência do crítico norteamericano são tomadas como um significado expressivo em sua transversalidade para com a música e para com a prática musical. A crítica sistemática proposta por Bloom, desenvolvida como teoria da influência3, atrai para a literatura os seus aspectos mais subjetivos, de modo que a diversidade da produção e da recepção literária, o trabalho criativo do autor e do leitor e a hermenêutica do texto são, em suma, suas preocupações. Bloom sempre recusou a ideia da obra de arte autossuficiente, aliás, redireciona as ideias do New Criticism sobre a autonomia de um texto poético para a psicologia da imaginação (LENTRICCHIA, 1983, p. 332). Assim, o significado de um texto, para Bloom, não é imanente, mas percebido na relação entre textos que colaboraram para a composição daquele texto tomado em análise. A tese de Harold Bloom resume-se a uma polêmica perspectiva que prevê que um poeta ou escritor age sempre em função de um modelo literário que lhe é anterior, um grande “precursor”, que ele tem que “enfrentar”, para resolver a angústia dessa influência, a qual, em termos radicalmente freudianos, exige igualmente a substituição do próprio modelo inspirador ou “pai”. Desta forma, também não existem interpretações desubjetivadas, mas 1 Harold Bloom (1930), crítico literário. Formou-se em Cornell (1951), Ph.D. em Yale (1955). É professor dessa universidade desde então. Autor de ensaios que renovaram os estudos poético-literários, o mais conhecido é A angústia da influência (1973). Disponível em: <www.revista.agulha.nom.br/hbloom.html>. Acesso em: 3 mar. 2011. 2 A primeira das razões revisionárias desenvolvidas por Harold Bloom em A angústia da influência (2002). 3 A teoria da influência é demarcada na tetralogia da influência de Bloom, que é composta pelos seguintes títulos: A angústia da influência (2002/1973); Um mapa da desleitura (2003); Cabala e Crítica (1991) e Poesia e repressão (1994). Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 256 interpretações construídas/forçadas ou desleituras de leituras anteriores. Com isso, Paul de Man (1981) descreve que, no pensamento de Bloom, tal articulação de ideias segue igualmente a desconstrução4 e essa como uma hermenêutica negativa, isto é, um projeto que não visa restaurar o sentido de um texto „perdido‟ na história, mas antes recorrer a conceitos modernos para abalar ou questionar criticamente tal sentido – a própria desleitura, a própria desconstrução. A linguagem para a desconstrução é a dos tropos retóricos. Com isso, é uma ilusão crer que haja uma linguagem realmente literal, visto que todo signo é a representação de um dado da realidade, configurando assim uma representação. Nessa articulação, em que a desconstrução se apresenta contraditória, o que se diz e o que se quer dizer é, e sempre será, característica da tentativa de qualquer forma de comunicação. Tudo não passa de retórica. De acordo com Tadié, Harold Bloom [...] reprova [uma] adoração do deus Linguagem, que não vale mais que o deus Imaginação. Esse crítico vê a história da crítica e da poesia como a de uma luta perpétua, um “âgon”, como se cada escritor estivesse numa relação edipiana com os seus predecessores, como Platão com Homero (TADIÉ, 1992, p. 312-313). Paul de Man afirma que A angústia da influência, de Bloom (1973, 2002), não é uma teoria da poesia, mas uma teoria da imaginação literária (MAN, 1983). Renza (1995, p. 199), por sua vez, argumenta que aquela teoria busca claramente recuperar nada menos que o pathos humano. O que é necessário ressaltar, em relação à teoria da influência de Bloom, é que, como afirma Nestrovski (1992, p. 203), não se trata de uma teoria da alusão ou de busca de fontes: o que interessa é o que o poeta consegue deixar de fora e não aquilo que incorporou do precursor. 4 Desconstrução é o termo proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida nos anos sessenta para um processo de análise crítico-filosófica que tem como objetivo imediato a crítica da metafísica ocidental e da sua tendência para o que tal tradição havia imposto como estável. Do ponto de vista da análise textual, a desconstrução revela as incompatibilidades e ambiguidades retóricas, demonstrando que é o próprio texto que as assimila e dissimula [disfarça]. (O termo deve traduzir o original francês déconstruction, evitando a tradução por desconstrucionismo, porque não representa uma proposta de escola de pensamento, movimento ou estética literária em particular; Marca-se, assim, a diferença com o movimento a que se chama desconstrutivismo na arquitetura contemporânea). Tornou-se sinônimo de leitura cerrada de um texto (literário, filosófico, psicanalítico, linguístico ou antropológico). A desconstrução começa por ser uma crítica do estruturalismo, tornada pública numa célebre conferência de Derrida na Universidade de Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1967, com o título La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines. Se o estruturalismo pretendia construir um sistema lógico de relações que governaria todos os elementos de um texto, a desconstrução pretendia ser uma crítica do estruturalismo, que não passava apenas de um dos episódios da tradição metafísica ocidental que merecia ser revisto. Partindo do método especulativo de Nietzsche, da fenomenologia de Husserl e da ontologia de Heidegger, Derrida apresenta a tese inicialmente nas obras A escritura e a diferença (1967) e Gramatologia (1967). Tem rejeitado, desde então, qualquer definição estável ou dicionarizável para aquilo que se entende por desconstrução. A própria compreensão da desconstrução como método crítico ou modelo de análise textual nunca foi reconhecida por Derrida. A divulgação das ideias de Derrida nas Universidades de Johns Hopkins e de Yale, nos Estados Unidos, onde o filósofo francês conferenciou, contribuiu para o alargamento da discussão aos estudos literários, impondo-se internacionalmente como um método de análise textual, apesar das reservas de Derrida. A obra coletiva Deconstruction and Criticism (1979) assegurou referência que faltava para divulgação internacional das ideias da desconstrução. Inclui ensaios programáticos de Jacques Derrida, J. Hillis Miller, Harold Bloom e Geoffrey Hartman. Disponível em: <www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/D/desconstrucao.htm>. Acesso em: 12 nov. 2010. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 257 Nestrovski (1992, p. 224) afirma que, se é verdade que a desmistificação executada num processo de desleitura torna mais difícil a poesia (a leitura e a crítica de igual maneira), não é menos verdade que ela só está repetindo o afinamento, o progressivo estreitamento – angustiae – que rege as relações do poeta com a tradição, tornando sua obra eminentemente humana. Ao aproximar a teoria da influência a um estreitamento do tipo angustiae, é possível denotar que esse pathos em música torna-se a própria musicalidade como valor expressivo e aspecto de humanidade. Não angústia agonizante, mas a própria razão do sentimento humano. Nesse delinear de ideias, é possível, também, perceber a musicalidade como uma apropriação das possíveis influências denotadas no trabalho da prática musical. As “razões revisionárias”5 da teoria da influência de Bloom são desenvolvidas de maneira bastante hermética. No ensaio The Breaking of Form (1979), Bloom afirma que os seus pressupostos sobre influência não constituem uma poética, mas reflexões filosóficas sobre a formação do poeta e a sua criação poética. Paul de Man (1983) afirma que as categorias de influência, “razões revisionárias”, de Bloom, não operam apenas entre autores, mas entre vários textos de um mesmo autor, inclusive, associando-as a uma defesa psicológica e uma imagem propriamente dita, tornando-se tropos retóricos. Contudo, Nestrovski (2001) observa, a respeito da tetralogia de Bloom, que sua terminologia, ao contrário de sua teoria, envelheceu. E o que sobreviverá, de fato, são todas as implicações que a teoria de Bloom gerou para a compreensão artística. Importante salientar, nesse meio, que retórica para Bloom não é o objeto de análise, mas um modo pelo qual é possível analisar a formação intelectual e imaginativa de um poeta, afirmando-se como entusiasta da imaginação humana. Se o caráter do tipo de análise proposto por Bloom assume um teor retórico-hermenêutico, uma possibilidade de relacionamento com uma psicologia de formação reativa, direciona o alicerce epistemológico para uma investigação que tende a seguir tais parâmetros como base para possíveis discussões. Para completar, assim, um círculo hermenêutico, numa abordagem transversal, o interpretar musical factual pode ser considerado a partir da teoria da influência de Harold Bloom fora do sentido tradicional “da passagem de imagens e de ideias”. A influência, como a concebemos, “significa que não existem [performances], apenas relações entre [performances]” (BLOOM, 2002, p. 55) e essas vêm a ser apropriadas antiteticamente entre si. A resposta crítica a uma performance só pode ser uma outra performance. A crítica antitética gera-se na inversão de relacionamento de apropriação em que essas diferentes performances criarão para si mesmas a partir do seu sujeito criador. 5 Clinamen, Tessera, Kenosis, Daemonização, Askesis, Apophrades (BLOOM, 2002, p. 64-65). Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 258 Em decorrência disso, a influência poética dependente desse ato crítico, dessa desleitura (desconstrução) ou apropriação/desapropriação, que tal ato como ato artístico vem a exercer sobre o outro. Desse outro vem a tradição: não há influência, nem escrita, nem ensino, nem pensamento e nem leitura sem o senso de uma tradição. Cria-se para si, nisso, uma tradição: compreender tal conceito de influência apropriada é considerá-lo como um tropo substituto de tradição. Essa substituição provoca uma sensação de perda, uma vez que “influência”, ao contrário de “tradição”, não é um termo “daemonizado”: Ninguém fica contente ao ser influenciado: os poetas não o suportam, os críticos ficam nervosos com isso, e todos nós, enquanto estudiosos, sentimos forçosamente que estamos sendo ou que já fomos influenciados em excesso. Ser influenciado é ser ensinado (BLOOM, 1991, p. 112-113). Ao substituir a tradição, a influência a desidealiza, não por parecer como uma distorção, mas por mostrar que não é possível distinguir a tradição do ato de cometer erros sobre a anterioridade: a influência demonstra que não é possível perceber o que é original e o que é tradição. A influência torna-se um tropo problemático com o qual realizamos contínuas substituições. O raciocínio apresentado possibilita uma expansão para a performance musical ao considerá-la como uma atividade de produção artística: intuitividade, tradição, emoção, sensibilidade, história, contemporaneidade e cultura do executante, como parâmetros delineados na literatura6 sendo elucidativos do processo de performance. Ora, isso não sinaliza para uma atividade de apropriação/desapropriação direta, tornando a performance tão ou mais poética, da qual a própria música, como ato criativo, vem ser dependente? Tal questionamento é pertinente à desconstrução, da qual a teoria da influência é herdeira. Os demais comentários, nesse texto, vêm nessa ordem, inclusive. Ao estender esse pensamento, vale prezar por uma meditação sobre os princípios de prioridade e de autoridade que apontam para uma das características mais presentes da teoria da influência: da “automorte”7 da arte em seu estado latente. Essa automorte acontece devido à sua própria força artística (BLOOM, 2002, p. 60). Desse modo, se a música for entendida como arte temporal, quer numa performance ao vivo ou mesmo numa gravação, já acontece tendo desfalecido. Cada nota tocada, cada nova frase articulada já suplanta a anterior aniquilando a sua existência ou a da última performance realizada. Sua vitalidade já é “autoassassinada” em seu próprio momento de concepção, suplantando qualquer traço de origem, tradição ou influência. Para isso, um suplemento é denotado a partir de uma aparente intuição como gerador do ato artístico, então, criado. Contudo, a isso está atrelada uma angústia, ora, o pathos humano, no qual o passado sempre está presente no presente, e sua memória se tornaria a origem da angústia, do desafio de cada nova 6 7 Ver Lima (2006, p. 13-15, 21), Juslin et al. (2006), Palmer (1997), por exemplo. Busca por uma nova origem. Ver: CONTINENTINO, 2008, p. 59-87. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 259 performance. Tornar-se-ia o próprio valor da prática musical em si, o seu próprio contexto, o seu próprio meio, a sua própria origem e a justificativa para a criação da sua própria tradição. De tal forma que: Prioridade + Autoridade = Propriedade. Aquela aparente intuição é sugerida, mesmo a partir da teoria da influência, como invocação de significado, uma encarnação de caráter poético: “Não sabemos de tempo algum em que não fomos como agora” (BLOOM, p. 69), ou seja: tudo o que se faz se faz de si para si mesmo e agora. A automorte é consciente, passando a ser o próprio momento de criação: a busca pela sua própria origem no momento crucial em que influência alguma é denotada, muito menos percebida, pois esse 'agora' é a própria realização: 'Não há de ser se não for!'. Tratase de um heroísmo que fica na fronteira do solipsismo e, nesse isolamento, “seu difícil equilíbrio […] é manter uma posição bem ali, onde com sua própria presença diz: O que eu vejo e ouço vem apenas de mim mesmo. […] Nada tenho além do eu sou” (BLOOM, 2002, p. 72). O solipsismo remete a uma sentença: “não estou em processo porque eu sou”. Essa reflexão, tomada como ponto de partida, permite que se atinjam os mais baixos de todos os níveis poéticos e se criem os seus próprios meios, sua apropriação: a consciência vem a ser impactante e causará impacto em toda a criação. Se isso for classificado como retórica, fica o questionamento: por que não? Aquele momento de “entrega”, pertinente à performance, não constitui um ato de retórica? Se o ato de criação performática em música é um ato de renovação suplementar em que “não [saber] de tempo algum em que não [se é] como agora” e “o passado estar sempre presente no presente” tornam-se oriundos de um espasmo de autodestruição caracterizando a própria performance musical como um ato abrangente e profundamente imaginativo. O que há de hermenêutico nessa construção? Ora, remete-se a um presente que tenha sido presentificado em atos anteriores a ele mesmo. Em outras palavras, um passado camuflado por uma metafísica de preparação e mesmo de construção. Em música pode existir uma fronteira entre o preparo individual do performer, os limites do texto do compositor e a novidade criativa de cada momento como paradoxos a serem suplantados em si mesmos. Por exemplo, se um texto é estudado previamente não deverá haver surpresas no seu decorrer declamatório. Porém, natural a toda performance, uma aparente espontaneidade é requerida. “Não sei de tempo algum em que eu não fosse como agora” passa a cumprir a função de trazer o conhecimento do passado imediatamente para o presente, o passado necessitando do presente, revivido paradoxalmente num momento de valor único. Tal pragmatismo, partidário da dialética bloomiana, permite um enlace perspicaz, carregado de um certo humanismo. Humanismo que perdeu sua inocência em termos de desconstrução, tornou-se condição de comunicabilidade. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 260 Centrado sobre o estudo da força, do poder, da vontade, do romance familiar, da agressão, da culpa e da angústia, este é um humanismo em seus últimos limites, aguilhoado pela promessa de desmistificação, pela tentativa de não cerrar os olhos ao princípio da realidade (NESTROVSKI, 1996, p. 114). Ao mesmo tempo que ninguém fala ou falou uma linguagem lavrada por seus precursores – força da tradição – a grande ansiedade artística precisa ver dentro de si, encontrando situações em que não há objetos fora de si. Isso é um paradoxo à condição da tradição: “quando se fala uma língua, sabe-se muita coisa que jamais se aprendeu” (BLOOM, 2002, p. 75). Contudo, para Bloom, a linguagem não deve ser exaltada como prioridade, mas concebida como um meio “sempre envelhecido pelas sombras da anterioridade” (NESTROVSKI, 1996, p. 113). Assim, a própria leitura do texto musical, a leitura da partitura não seria condição de fidelidade, ou manutenção de uma tradição para a performance, visto que tal preocupação caracteriza um aspecto de linguagem em música, mas a busca pela comunicabilidade de um sentido em particular seria a força denotativa mais coerente e consistente num criar apropriado artístico. O ato reflexivo, portanto, ensina a linguagem natural dos artistas, aquela que não foi aprendida por eles: voltar a si, à sua própria produção, seu próprio momento, sua prática, suas performances. Procura, inclusive, mostrar o processo em que aquela linguagem não aprendida se maturou – maturação angustiante, não percebida pela audiência. Todo discurso musical é delineado por meio de gestos musicais; e boa parte da musicalidade percebida em determinadas interpretações é conseguida por meio de uma condução gestual que basicamente não é aprendida, apenas percebida ou idealizada (MUÑOZ, 2007), pois vem a tornar-se, como exposto, natural do gênero humano. Logo, muito da linguagem viva, renovada e natural da música não se aprend: apenas se percebe e se realiza. Com toda a reflexão elaborada acerca do ato de performance, influência apropriada da tradição envolvida e construída sobre e para si mesmo, apresenta-se a questão desdobrada: Como se encarna o caráter poético nesse ato? Como se torna verdadeiramente artista? Essas perguntas, apesar de possuírem uma gama retórica natural, estão contextualizadas. E assim, o contexto parece ser a chave para esse entendimento, quer de tradição, influência, como de performance e até mesmo de reflexão. A busca de contextualização histórica faz da obra de arte um documento, um exemplo num processo e, se a história da arte pode, de um lado, detectar influências, não pode, de outro, ouvir a angústia que as determina (MOLINA, 2003, p. 26). Para atingir concretamente o artístico em uma exposição artístico-musical – isto é, numa performance musical – é possível considerar uma relação com a tradição constituída em termos de natureza – mesmo com a habilidade e o domínio técnico; existência em si – implicações circunstanciais, algo a mais do que uma lembrança do ato realizado, algo como uma Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 261 meditação cotidiana; a própria apropriação – já que a tradição é concebível, então o conhecimento efetivo à obra é fundamental. A escuta de outros, que geraram a sua tradição, a sua própria escuta e o registro dessa, voltam-se para si, como possibilidade de exame das riquezas ali depositadas a serem relidas de tempos em tempos para reatualizar o que continham. Dessa forma, a influência poética, a encarnação poética é em si mesma um oxímoro. Assim, toda a inovação de cada performance musical transforma-se paradoxalmente numa virtude imaginativa: a tradição que frutifica inovação, ou seja: uma absoluta consciência do eu num constante dualismo, consolidando uma autoridade prioritária. Isso não se depara com uma hermenêutica? O conhecimento e consciência de possíveis influências, entender que se está em meio a uma tradição de performances musicais pode dotar qualquer sujeito de uma verdade que ele (a princípio) desconhecia e que de certa forma, não residia nele. Trata-se de fazer essa verdade aprendida, progressivamente aplicada, um quase-anterior-posterior que governa a própria natureza comum artística. A prática musical, vista nesses termos, transcende o próprio praticar musical a fim de tornar-se um praticar artístico. Se a influência poética faz parte de um suposto revisionismo intelectual, este constrangendo o processo criativo numa obsessão comparativa, os ganhos e as perdas numa performance musical podem ser percebidos e contextualizados em seus próprios processos de preparo e concepção. A influência, nesse sentido, é a passagem de um estado de absorção para outro, processualmente vital e particularizado em conjunção com cada momento em que houve a autoridade prioritária requerida. É essa que os mantém unidos apenas pelo desejo de dominar e controlar aquela linguagem expressivamente visionária natural de cada momento. Nesse processo de influência apropriada, paradoxalmente, não há como ter crises criativas, pois a própria concepção surge de um processo de absorção já absorvido em si, assim, a consciência de tal busca só gerará cada vez maior criatividade natural e original. A identidade do passado presente é a mesma coisa que a identidade essencial de todos os objetivos. Com essa reflexão, a crítica a essa atitude só pode ser de entusiasmo para uma negação à tautologia, tornando a própria performance possuidora de valor e peso artístico. A inversão de significados ou de entendimentos aparentemente distorcidos dará vigor e gerará o fluxo espontâneo na realização do ato pré-concebido. Uma inundação de conhecimento próprio deve ser em si criticamente ponderada e refletida no próprio eu no momento do seu devir. Em termos de pesquisa, tal interesse carrega em si outra gama de significado para o próprio autoconhecimento, tornando a pesquisa, com os devidos métodos, parte da práxis profissional. Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 262 REFERÊNCIAS AQUINO, Felipe A. Práticas Interpretativas e a Pesquisa em Música: dilemas e propostas. Opus 9 – Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música / ANPPOM. 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