para a apropriação poética na performance musical: angústia

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Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 .
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PARA A APROPRIAÇÃO POÉTICA NA PERFORMANCE MUSICAL:
ANGÚSTIA, CRÍTICA, HERMENÊUTICA
Daniel Vieira*
[email protected]
Any Raquel Carvalho**
[email protected]
Resumo
Esse texto procura dimensionar um espectro teórico-filosófico para a apropriação poética na
performance musical. São apresentadas ideias oriundas da Teoria da Influência, do crítico
literário Harold Bloom, numa aplicação transversal à prática musical – performance musical.
A partir dessa reflexão é possível entender como a musicalidade é advinda da apropriação
de possíveis influências do próprio trabalho musical. Ainda em decorrência disso, pode-se
afirmar que não existem performances, mas sim relações entre performances apropriadas
antiteticamente entre si, sendo que resposta crítica a uma performance só pode ser uma
outra performance. Como resposta a um dos aspectos da teoria, debatidos no trabalho, o
texto se estende à compreensão de que uma própria tradição, por parte do performer, deve
ser desenvolvida ou criada, o que caracteriza um processo hermenêutico requerido e
presente no ato da performance.
Palavras-chave: Apropriação musical, Influência, Performance musical.
Abstract
This text attempts to scale a theoretical-philosophical spectrum to poetical appropriation in
musical performance. Ideas presented are derived from the Theory of Influence, by the
literary critic Harold Bloom, in a cross-cut application to musical practice – musical
performance. From this discussion it is possible to understand how musicality comes from
the appropriation of possible influences of the musical work itself. Also as a result, there are
no performances – but relations between performances which are antithetically appropriated.
A critical response to a performance can only be another performance. In response to one
aspect of the theory discussed in this paper, the text extends to a realization that tradition
itself should be developed or created by the performer, featuring a hermeneutic process
required and present in the act of performance.
Keywords: Musical Appropriation, Influence, Musical performance.
* Realiza o doutorado em Práticas Interpretativas na UFRGS, onde é orientado pela Profa. Dra. Any Raquel
Carvalho e pela Profa. Dra. Cristina Gerling. Tem realizado um estágio de doutoramento, como bolsista da
CAPES, na Universidade de Aveiro (Portugal) sob supervisão da Profa. Dra. Helena Marinho.
** Any Raquel Carvalho, organista, doutora em música pela University of Georgia (USA) com bolsa CAPES, é
docente e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Música e no Departamento
de Música do Instituto de Arte da UFRGS. Membro fundadora da Associação dos Organistas do Rio Grande do
Sul e da Associação Brasileira de Organistas, tendo atuado em ambas como presidente. Atua como organista e
conferencista no Brasil e no exterior. Como pesquisadora do CNPq desenvolve trabalhos nas áreas de
contraponto e fuga (dois livros publicados) e de música brasileira para órgão. É membro do Conselho Editorial da
Em Pauta (PPG-MUS/UFRGS).
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O título desta comunicação designa três possíveis maneiras de se compreender a
apropriação poética para a práxis musical, aqui conotada como a própria prática
interpretativa: angústia, crítica e hermenêutica. Admitindo preliminarmente que a pesquisa
em Práticas Interpretativas, no âmbito das ciências na pós-modernidade, pode e deve estar
vinculada ao trabalho de performance (práxis profissional) do próprio pesquisador, esta
comunicação assumirá um contexto de crítica antitética hermenêutica, potencializando a
possíveis sujeitos sociais uma subjetividade decorrente da própria cientificidade (SANTOS,
2002; BARRENECHEA, 2003; AQUINO, 2003). Argumentaremos como possíveis objetos
teóricos podem corroborar nesse sentido, a fim de converter o ato do performer num escopo
dessa natureza.
Por apropriação, somos partidários do conceito desenvolvido pelo crítico literário
Harold Bloom1, em que vem a tornar-se o próprio clinamen2, ou em outras palavras: uma
leitura distorcida ou mesmo apropriada, significando um desvio. Aparece tal qual um
movimento corretivo na produção individual de um artista que desvia-se de um precursor de
modo a converter-se a ele seguindo-se um novo teor poético, uma nova influência, uma
nova arte (BLOOM, 2002, p. 64). Nesse sentido, as ideias de influência do crítico norteamericano são tomadas como um significado expressivo em sua transversalidade para com
a música e para com a prática musical.
A crítica sistemática proposta por Bloom, desenvolvida como teoria da influência3,
atrai para a literatura os seus aspectos mais subjetivos, de modo que a diversidade da
produção e da recepção literária, o trabalho criativo do autor e do leitor e a hermenêutica do
texto são, em suma, suas preocupações. Bloom sempre recusou a ideia da obra de arte
autossuficiente, aliás, redireciona as ideias do New Criticism sobre a autonomia de um texto
poético para a psicologia da imaginação (LENTRICCHIA, 1983, p. 332). Assim, o significado
de um texto, para Bloom, não é imanente, mas percebido na relação entre textos que
colaboraram para a composição daquele texto tomado em análise.
A tese de Harold Bloom resume-se a uma polêmica perspectiva que prevê que um
poeta ou escritor age sempre em função de um modelo literário que lhe é anterior, um
grande “precursor”, que ele tem que “enfrentar”, para resolver a angústia dessa influência, a
qual, em termos radicalmente freudianos, exige igualmente a substituição do próprio modelo
inspirador ou “pai”. Desta forma, também não existem interpretações desubjetivadas, mas
1
Harold Bloom (1930), crítico literário. Formou-se em Cornell (1951), Ph.D. em Yale (1955). É professor dessa
universidade desde então. Autor de ensaios que renovaram os estudos poético-literários, o mais conhecido é A
angústia da influência (1973). Disponível em: <www.revista.agulha.nom.br/hbloom.html>. Acesso em: 3 mar. 2011.
2
A primeira das razões revisionárias desenvolvidas por Harold Bloom em A angústia da influência (2002).
3
A teoria da influência é demarcada na tetralogia da influência de Bloom, que é composta pelos seguintes títulos:
A angústia da influência (2002/1973); Um mapa da desleitura (2003); Cabala e Crítica (1991) e Poesia e
repressão (1994).
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interpretações construídas/forçadas ou desleituras de leituras anteriores. Com isso, Paul de
Man (1981) descreve que, no pensamento de Bloom, tal articulação de ideias segue
igualmente a desconstrução4 e essa como uma hermenêutica negativa, isto é, um projeto
que não visa restaurar o sentido de um texto „perdido‟ na história, mas antes recorrer a
conceitos modernos para abalar ou questionar criticamente tal sentido – a própria desleitura,
a própria desconstrução.
A linguagem para a desconstrução é a dos tropos retóricos. Com isso, é uma ilusão
crer que haja uma linguagem realmente literal, visto que todo signo é a representação de um
dado da realidade, configurando assim uma representação. Nessa articulação, em que a
desconstrução se apresenta contraditória, o que se diz e o que se quer dizer é, e sempre
será, característica da tentativa de qualquer forma de comunicação. Tudo não passa de
retórica. De acordo com Tadié,
Harold Bloom [...] reprova [uma] adoração do deus Linguagem, que não vale mais que o deus
Imaginação. Esse crítico vê a história da crítica e da poesia como a de uma luta perpétua, um “âgon”,
como se cada escritor estivesse numa relação edipiana com os seus predecessores, como Platão com
Homero (TADIÉ, 1992, p. 312-313).
Paul de Man afirma que A angústia da influência, de Bloom (1973, 2002), não é uma
teoria da poesia, mas uma teoria da imaginação literária (MAN, 1983). Renza (1995, p. 199),
por sua vez, argumenta que aquela teoria busca claramente recuperar nada menos que o
pathos humano. O que é necessário ressaltar, em relação à teoria da influência de Bloom, é
que, como afirma Nestrovski (1992, p. 203), não se trata de uma teoria da alusão ou de
busca de fontes: o que interessa é o que o poeta consegue deixar de fora e não aquilo que
incorporou do precursor.
4
Desconstrução é o termo proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida nos anos sessenta para um processo
de análise crítico-filosófica que tem como objetivo imediato a crítica da metafísica ocidental e da sua tendência
para o que tal tradição havia imposto como estável. Do ponto de vista da análise textual, a desconstrução revela
as incompatibilidades e ambiguidades retóricas, demonstrando que é o próprio texto que as assimila e dissimula
[disfarça]. (O termo deve traduzir o original francês déconstruction, evitando a tradução por desconstrucionismo,
porque não representa uma proposta de escola de pensamento, movimento ou estética literária em particular;
Marca-se, assim, a diferença com o movimento a que se chama desconstrutivismo na arquitetura
contemporânea). Tornou-se sinônimo de leitura cerrada de um texto (literário, filosófico, psicanalítico, linguístico
ou antropológico). A desconstrução começa por ser uma crítica do estruturalismo, tornada pública numa célebre
conferência de Derrida na Universidade de Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1967, com o título La
structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines. Se o estruturalismo pretendia construir um
sistema lógico de relações que governaria todos os elementos de um texto, a desconstrução pretendia ser uma
crítica do estruturalismo, que não passava apenas de um dos episódios da tradição metafísica ocidental que
merecia ser revisto. Partindo do método especulativo de Nietzsche, da fenomenologia de Husserl e da ontologia
de Heidegger, Derrida apresenta a tese inicialmente nas obras A escritura e a diferença (1967) e Gramatologia
(1967). Tem rejeitado, desde então, qualquer definição estável ou dicionarizável para aquilo que se entende por
desconstrução. A própria compreensão da desconstrução como método crítico ou modelo de análise textual
nunca foi reconhecida por Derrida. A divulgação das ideias de Derrida nas Universidades de Johns Hopkins e de
Yale, nos Estados Unidos, onde o filósofo francês conferenciou, contribuiu para o alargamento da discussão aos
estudos literários, impondo-se internacionalmente como um método de análise textual, apesar das reservas de
Derrida. A obra coletiva Deconstruction and Criticism (1979) assegurou referência que faltava para divulgação
internacional das ideias da desconstrução. Inclui ensaios programáticos de Jacques Derrida, J. Hillis Miller,
Harold Bloom e Geoffrey Hartman. Disponível em: <www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/D/desconstrucao.htm>.
Acesso em: 12 nov. 2010.
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Nestrovski (1992, p. 224) afirma que, se é verdade que a desmistificação executada
num processo de desleitura torna mais difícil a poesia (a leitura e a crítica de igual maneira),
não é menos verdade que ela só está repetindo o afinamento, o progressivo estreitamento –
angustiae – que rege as relações do poeta com a tradição, tornando sua obra
eminentemente humana. Ao aproximar a teoria da influência a um estreitamento do tipo
angustiae, é possível denotar que esse pathos em música torna-se a própria musicalidade
como valor expressivo e aspecto de humanidade. Não angústia agonizante, mas a própria
razão do sentimento humano. Nesse delinear de ideias, é possível, também, perceber a
musicalidade como uma apropriação das possíveis influências denotadas no trabalho da
prática musical.
As “razões revisionárias”5 da teoria da influência de Bloom são desenvolvidas de
maneira bastante hermética. No ensaio The Breaking of Form (1979), Bloom afirma que os
seus pressupostos sobre influência não constituem uma poética, mas reflexões filosóficas
sobre a formação do poeta e a sua criação poética. Paul de Man (1983) afirma que as
categorias de influência, “razões revisionárias”, de Bloom, não operam apenas entre
autores, mas entre vários textos de um mesmo autor, inclusive, associando-as a uma defesa
psicológica e uma imagem propriamente dita, tornando-se tropos retóricos. Contudo,
Nestrovski (2001) observa, a respeito da tetralogia de Bloom, que sua terminologia, ao
contrário de sua teoria, envelheceu. E o que sobreviverá, de fato, são todas as implicações
que a teoria de Bloom gerou para a compreensão artística.
Importante salientar, nesse meio, que retórica para Bloom não é o objeto de análise,
mas um modo pelo qual é possível analisar a formação intelectual e imaginativa de um
poeta, afirmando-se como entusiasta da imaginação humana. Se o caráter do tipo de
análise proposto por Bloom assume um teor retórico-hermenêutico, uma possibilidade de
relacionamento com uma psicologia de formação reativa, direciona o alicerce epistemológico
para uma investigação que tende a seguir tais parâmetros como base para possíveis
discussões.
Para completar, assim, um círculo hermenêutico, numa abordagem transversal, o
interpretar musical factual pode ser considerado a partir da teoria da influência de Harold
Bloom fora do sentido tradicional “da passagem de imagens e de ideias”. A influência, como
a concebemos, “significa que não existem [performances], apenas relações entre
[performances]” (BLOOM, 2002, p. 55) e essas vêm a ser apropriadas antiteticamente entre
si. A resposta crítica a uma performance só pode ser uma outra performance. A crítica
antitética gera-se na inversão de relacionamento de apropriação em que essas diferentes
performances criarão para si mesmas a partir do seu sujeito criador.
5
Clinamen, Tessera, Kenosis, Daemonização, Askesis, Apophrades (BLOOM, 2002, p. 64-65).
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Em decorrência disso, a influência poética dependente desse ato crítico, dessa
desleitura (desconstrução) ou apropriação/desapropriação, que tal ato como ato artístico
vem a exercer sobre o outro. Desse outro vem a tradição: não há influência, nem escrita,
nem ensino, nem pensamento e nem leitura sem o senso de uma tradição. Cria-se para si,
nisso, uma tradição: compreender tal conceito de influência apropriada é considerá-lo como
um tropo substituto de tradição. Essa substituição provoca uma sensação de perda, uma
vez que “influência”, ao contrário de “tradição”, não é um termo “daemonizado”:
Ninguém fica contente ao ser influenciado: os poetas não o suportam, os críticos ficam nervosos com
isso, e todos nós, enquanto estudiosos, sentimos forçosamente que estamos sendo ou que já fomos
influenciados em excesso. Ser influenciado é ser ensinado (BLOOM, 1991, p. 112-113).
Ao substituir a tradição, a influência a desidealiza, não por parecer como uma
distorção, mas por mostrar que não é possível distinguir a tradição do ato de cometer erros
sobre a anterioridade: a influência demonstra que não é possível perceber o que é original e
o que é tradição. A influência torna-se um tropo problemático com o qual realizamos
contínuas substituições.
O raciocínio apresentado possibilita uma expansão para a performance musical ao
considerá-la como uma atividade de produção artística: intuitividade, tradição, emoção,
sensibilidade, história, contemporaneidade e cultura do executante, como parâmetros
delineados na literatura6 sendo elucidativos do processo de performance. Ora, isso não
sinaliza para uma atividade de apropriação/desapropriação direta, tornando a performance
tão ou mais poética, da qual a própria música, como ato criativo, vem ser dependente? Tal
questionamento é pertinente à desconstrução, da qual a teoria da influência é herdeira. Os
demais comentários, nesse texto, vêm nessa ordem, inclusive.
Ao estender esse pensamento, vale prezar por uma meditação sobre os princípios de
prioridade e de autoridade que apontam para uma das características mais presentes da
teoria da influência: da “automorte”7 da arte em seu estado latente. Essa automorte
acontece devido à sua própria força artística (BLOOM, 2002, p. 60). Desse modo, se a
música for entendida como arte temporal, quer numa performance ao vivo ou mesmo numa
gravação, já acontece tendo desfalecido. Cada nota tocada, cada nova frase articulada já
suplanta a anterior aniquilando a sua existência ou a da última performance realizada. Sua
vitalidade já é “autoassassinada” em seu próprio momento de concepção, suplantando
qualquer traço de origem, tradição ou influência. Para isso, um suplemento é denotado a
partir de uma aparente intuição como gerador do ato artístico, então, criado. Contudo, a isso
está atrelada uma angústia, ora, o pathos humano, no qual o passado sempre está presente
no presente, e sua memória se tornaria a origem da angústia, do desafio de cada nova
6
7
Ver Lima (2006, p. 13-15, 21), Juslin et al. (2006), Palmer (1997), por exemplo.
Busca por uma nova origem. Ver: CONTINENTINO, 2008, p. 59-87.
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performance. Tornar-se-ia o próprio valor da prática musical em si, o seu próprio contexto, o
seu próprio meio, a sua própria origem e a justificativa para a criação da sua própria
tradição.
De tal forma que: Prioridade + Autoridade = Propriedade.
Aquela aparente intuição é sugerida, mesmo a partir da teoria da influência, como
invocação de significado, uma encarnação de caráter poético: “Não sabemos de tempo
algum em que não fomos como agora” (BLOOM, p. 69), ou seja: tudo o que se faz se faz de
si para si mesmo e agora.
A automorte é consciente, passando a ser o próprio momento de criação: a busca
pela sua própria origem no momento crucial em que influência alguma é denotada, muito
menos percebida, pois esse 'agora' é a própria realização: 'Não há de ser se não for!'. Tratase de um heroísmo que fica na fronteira do solipsismo e, nesse isolamento, “seu difícil
equilíbrio […] é manter uma posição bem ali, onde com sua própria presença diz: O que eu
vejo e ouço vem apenas de mim mesmo. […] Nada tenho além do eu sou” (BLOOM, 2002,
p. 72). O solipsismo remete a uma sentença: “não estou em processo porque eu sou”. Essa
reflexão, tomada como ponto de partida, permite que se atinjam os mais baixos de todos os
níveis poéticos e se criem os seus próprios meios, sua apropriação: a consciência vem a ser
impactante e causará impacto em toda a criação. Se isso for classificado como retórica, fica
o questionamento: por que não? Aquele momento de “entrega”, pertinente à performance,
não constitui um ato de retórica?
Se o ato de criação performática em música é um ato de renovação suplementar em
que “não [saber] de tempo algum em que não [se é] como agora” e “o passado estar sempre
presente no presente” tornam-se oriundos de um espasmo de autodestruição caracterizando
a própria performance musical como um ato abrangente e profundamente imaginativo. O
que há de hermenêutico nessa construção? Ora, remete-se a um presente que tenha sido
presentificado em atos anteriores a ele mesmo. Em outras palavras, um passado camuflado
por uma metafísica de preparação e mesmo de construção.
Em música pode existir uma fronteira entre o preparo individual do performer, os
limites do texto do compositor e a novidade criativa de cada momento como paradoxos a
serem suplantados em si mesmos. Por exemplo, se um texto é estudado previamente não
deverá haver surpresas no seu decorrer declamatório. Porém, natural a toda performance,
uma aparente espontaneidade é requerida. “Não sei de tempo algum em que eu não fosse
como agora” passa a cumprir a função de trazer o conhecimento do passado imediatamente
para o presente, o passado necessitando do presente, revivido paradoxalmente num
momento de valor único. Tal pragmatismo, partidário da dialética bloomiana, permite um
enlace perspicaz, carregado de um certo humanismo. Humanismo que perdeu sua inocência
em termos de desconstrução, tornou-se condição de comunicabilidade.
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Centrado sobre o estudo da força, do poder, da vontade, do romance familiar, da agressão, da culpa e
da angústia, este é um humanismo em seus últimos limites, aguilhoado pela promessa de
desmistificação, pela tentativa de não cerrar os olhos ao princípio da realidade (NESTROVSKI, 1996, p.
114).
Ao mesmo tempo que ninguém fala ou falou uma linguagem lavrada por seus
precursores – força da tradição – a grande ansiedade artística precisa ver dentro de si,
encontrando situações em que não há objetos fora de si. Isso é um paradoxo à condição da
tradição: “quando se fala uma língua, sabe-se muita coisa que jamais se aprendeu”
(BLOOM, 2002, p. 75). Contudo, para Bloom, a linguagem não deve ser exaltada como
prioridade, mas concebida como um meio “sempre envelhecido pelas sombras da
anterioridade” (NESTROVSKI, 1996, p. 113). Assim, a própria leitura do texto musical, a
leitura da partitura não seria condição de fidelidade, ou manutenção de uma tradição para a
performance, visto que tal preocupação caracteriza um aspecto de linguagem em música,
mas a busca pela comunicabilidade de um sentido em particular seria a força denotativa
mais coerente e consistente num criar apropriado artístico.
O ato reflexivo, portanto, ensina a linguagem natural dos artistas, aquela que não foi
aprendida por eles: voltar a si, à sua própria produção, seu próprio momento, sua prática,
suas performances. Procura, inclusive, mostrar o processo em que aquela linguagem não
aprendida se maturou – maturação angustiante, não percebida pela audiência. Todo
discurso musical é delineado por meio de gestos musicais; e boa parte da musicalidade
percebida em determinadas interpretações é conseguida por meio de uma condução gestual
que basicamente não é aprendida, apenas percebida ou idealizada (MUÑOZ, 2007), pois
vem a tornar-se, como exposto, natural do gênero humano. Logo, muito da linguagem viva,
renovada e natural da música não se aprend: apenas se percebe e se realiza.
Com toda a reflexão elaborada acerca do ato de performance, influência apropriada
da tradição envolvida e construída sobre e para si mesmo, apresenta-se a questão
desdobrada: Como se encarna o caráter poético nesse ato? Como se torna
verdadeiramente artista? Essas perguntas, apesar de possuírem uma gama retórica natural,
estão contextualizadas. E assim, o contexto parece ser a chave para esse entendimento,
quer de tradição, influência, como de performance e até mesmo de reflexão.
A busca de contextualização histórica faz da obra de arte um documento, um
exemplo num processo e, se a história da arte pode, de um lado, detectar influências, não
pode, de outro, ouvir a angústia que as determina (MOLINA, 2003, p. 26). Para atingir
concretamente o artístico em uma exposição artístico-musical – isto é, numa performance
musical – é possível considerar uma relação com a tradição constituída em termos de
natureza – mesmo com a habilidade e o domínio técnico; existência em si – implicações
circunstanciais, algo a mais do que uma lembrança do ato realizado, algo como uma
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meditação cotidiana; a própria apropriação – já que a tradição é concebível, então o
conhecimento efetivo à obra é fundamental. A escuta de outros, que geraram a sua tradição,
a sua própria escuta e o registro dessa, voltam-se para si, como possibilidade de exame das
riquezas ali depositadas a serem relidas de tempos em tempos para reatualizar o que
continham. Dessa forma, a influência poética, a encarnação poética é em si mesma um
oxímoro.
Assim,
toda
a
inovação
de
cada
performance
musical
transforma-se
paradoxalmente numa virtude imaginativa: a tradição que frutifica inovação, ou seja: uma
absoluta consciência do eu num constante dualismo, consolidando uma autoridade
prioritária.
Isso não se depara com uma hermenêutica? O conhecimento e consciência de
possíveis influências, entender que se está em meio a uma tradição de performances
musicais pode dotar qualquer sujeito de uma verdade que ele (a princípio) desconhecia e
que de certa forma, não residia nele. Trata-se de fazer essa verdade aprendida,
progressivamente aplicada, um quase-anterior-posterior que governa a própria natureza
comum artística. A prática musical, vista nesses termos, transcende o próprio praticar
musical a fim de tornar-se um praticar artístico.
Se a influência poética faz parte de um suposto revisionismo intelectual, este
constrangendo o processo criativo numa obsessão comparativa, os ganhos e as perdas
numa performance musical podem ser percebidos e contextualizados em seus próprios
processos de preparo e concepção. A influência, nesse sentido, é a passagem de um estado
de absorção para outro, processualmente vital e particularizado em conjunção com cada
momento em que houve a autoridade prioritária requerida. É essa que os mantém unidos
apenas pelo desejo de dominar e controlar aquela linguagem expressivamente visionária
natural de cada momento. Nesse processo de influência apropriada, paradoxalmente, não
há como ter crises criativas, pois a própria concepção surge de um processo de absorção já
absorvido em si, assim, a consciência de tal busca só gerará cada vez maior criatividade
natural e original. A identidade do passado presente é a mesma coisa que a identidade
essencial de todos os objetivos.
Com essa reflexão, a crítica a essa atitude só pode ser de entusiasmo para uma
negação à tautologia, tornando a própria performance possuidora de valor e peso artístico. A
inversão de significados ou de entendimentos aparentemente distorcidos dará vigor e gerará
o fluxo espontâneo na realização do ato pré-concebido. Uma inundação de conhecimento
próprio deve ser em si criticamente ponderada e refletida no próprio eu no momento do seu
devir. Em termos de pesquisa, tal interesse carrega em si outra gama de significado para o
próprio autoconhecimento, tornando a pesquisa, com os devidos métodos, parte da práxis
profissional.
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