O projeto ético-político do Serviço Social e seus desafios na

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O projeto ético-político do Serviço Social e seus desafios na sociedade
brasileira contemporânea
Teresa Cristina Esmeraldo Bezerra1
[email protected]
Modalidad de trabajo:
Resultados de investigaciones
Eje temático:
La dimensión ético-política de la práctica profesional y la
y la organización política del Trabajo Social
Palabras claves:
ética, sociabilidade,
contemporaneidade
ética
profissional,
serviço
social,
Introdução
Pensar o Projeto Ético-Político do Serviço Social no contexto contemporâneo exige
uma reflexão preliminar sobre a relação entre ética e sociabilidade. Algo que se justifica
em razão da ética, como possibilidade de reflexão crítica sobre a validade e legitimidade
da práxis humana 2 e da normatividade instituída, só se realizar no horizonte da história,
da sociabilidade construída coletivamente pelos indivíduos, mediante suas ações
cotidianas.
Assim, a ética se propõe a problematizar os significados, as validades e
legitimidades das ações humanas no horizonte histórico-social em que são construídas,
visando realizar a emancipação humana. Daí as perguntas pelos sentidos, fundamentos
e justificativas para as ações humanas adquirem uma centralidade na ética. Para Oliveira,
(...) a ética pretende refletir a parte da vida histórica dos homens para melhorar a práxis
que ela já encontra realizada e em cujo contexto se sabe inserida (1995:32).
Neste sentido, a abordagem aqui proposta busca ancorar a ética na relação
concreta com as sociabilidades, indagando-se sobre: i) a natureza e o caráter dos
vínculos societais; ii) a forma como são construídos os liames e as relações sociais; iii) e
o direcionamento dado às normas e aos códigos morais expressos na cotidianeidade
1
Assistente social, mestre em sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professora assistente do Curso de
Serviço Social, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de
Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en la coyuntura latinoamericana: desafíos para su formación, articulación y
acción profesional. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de octubre 2009.
2
A práxis compreendida como a forma de vida que busca conquistar a humanização plena do homem: é precisamente na
práxis que o homem, através de obras históricas em todas as dimensões do seu ser, atinge a efetivação de seu ser, que se
faz e se exprime através delas (OLIVEIRA: 1995, 62).
1
histórica.3 Distancia-se, pois, das éticas transcendentais, dos imperativos categóricos, de
feição idealista, para ancorá-la no centro do acontecer histórico (Heller, 1989), no
horizonte onde se realiza a práxis humana.
Alguns pensadores desenvolveram esta perspectiva, a exemplo de Kosik (1982),
Lukács (1989), Heller (1977; 1982; 1989) e Lefebvre (1991), ao compreenderem o
cotidiano como ponto de partida e de chegada para a reflexão ético-política. Daí
realizarem uma crítica às éticas formais, vinculadas aos processos de alienação e
estranhamento4 vivenciados no cotidiano das sociedades ocidentais modernas: tanto nos
países capitalistas, quanto nas experiências do “socialismo real”, sobretudo após a 2ª
Guerra Mundial. 5
A reflexão ético-política nesta tradição requer uma teoria crítica capaz de
compreender, interpretar e analisar as relações sociais, os nexos entre as práticas
coletivas e os sentidos atribuídos pelos indivíduos sociais, a sua dimensão teleológica,
considerando o contexto histórico em que foram criadas, tendo em vista a emancipação
histórico-social. Heller (1989), ao refletir sobre o lugar da ética no marxismo, argumenta
sobre as condições de possibilidade de elaboração de uma ética nos movimentos sociais,
a saber:
uma ética só pode se formar em movimentos que não se considerem absolutos,
isto é (...); Que se considerem um fator no conjunto dos movimentos da
sociedade, um fator da história; A elaboração de uma ética torna-se possível e
necessária quando a espontaneidade do movimento é cortada. (...) Por isso é
natural que a ética, na doutrina do movimento, só passe a primeiro plano em
épocas revolucionárias (de crise positiva) e quando no interior do próprio
movimento manifestam-se contradições (crise negativa); A constituição da ética
é possível e se torna necessária quando, no seio de uma comunidade, o juízo
individual (e, portanto, o papel da decisão individual) assume real importância;
particularmente quando um grande número de indivíduos se acha em situação
na qual se torna impossível para eles agir de acordo com o código; (...) para
que em um movimento se forme uma ética, é necessário que nele exista uma
consciência de si, uma autoconsciência, uma autocrítica. Não se trata apenas
de reconhecer com isso sua relatividade histórica; trata-se da tomada de
3
Heller e Lefebvre identificam nesta esfera não apenas a reprodução da sociedade (ações pragmáticas; pensamento
imediato dos indivíduos na sua particularidade), mas a mediação da crítica e da práxis, tornando-a centro do acontecer
histórico, em sentido empírico e prático ( HELLER, 1977; HELLER, 1982; HELLER, 1989; LEFEBVRE, 1991).
4
Dimensão econômica das relações sociais de produção capitalistas ( cisão entre o criador – homem – e a criatura –
mercadoria – no mundo do trabalho e a exploração de classe; e forma de racionalidade típica que se encontra na base
destas relações: a racionalidade instrumental e pragmática, que reduz toda a diferença à lógica da troca de equivalentes. A
expansão desta lógica se dá quando a forma mercadoria invade a esfera da vida cotidiana, obliterando os sujeitos e
impedindo sua auto-expressão.
5
A emergência de uma preocupação com o cotidiano vincula-se ao contexto histórico pós-2a Guerra Mundial: época em que
o mundo e a vida cotidiana se tornaram problemáticos, ante a potencialização das condições para a racionalização,
tecnificação e manipulação da vida social, conduzindo à fragmentação das individualidades e impossibilitando sua autoexpressão. Tendências que se estendem aos países do “socialismo real” ( HELLER, 1977).
2
consciência das contradições internas do movimento por parte dos indivíduos,
contradições que aparecem aos referidos indivíduos como contradições morais.
(os grifos são nossos) (1989, p.113).6
Considerando tais pressupostos, poder-se-ia indagar: Qual a relação destas
reflexões com a discussão sobre o projeto ético-político do serviço social? O que significa
partir destas premissas para se pensar um projeto profissional, construído por uma
determinada categoria de trabalhadores na particularidade brasileira e no horizonte
antropológico da contemporaneidade? Quais os sentidos das escolhas coletivas
abraçadas pelo projeto ético-político do serviço social? Como pensá-los nos marcos das
transformações
histórico-econômicas
e
sócio-culturais
contemporâneas,
na
particularidade em que são vivenciadas no Brasil e na cultura profissional? Que formas de
sociabilidades e individualidades têm sido construídas cotidianamente, considerando-se
àquelas transformações? Até que ponto as mutações vivenciadas nas sociabilidades
contemporâneas põem questões ao projeto ético-político da profissão?
As respostas a tais indagações nos direcionam para uma interpretação sobre os
significados das transformações societárias ora em curso, sobre o horizonte ético e
político em voga na contemporaneidade, problematizando seus impactos na construção
do projeto ético-político do serviço social. Entretanto, antes disto é imprescindível uma
compreensão sobre o horizonte de sentido em que se situa o projeto ético-político do
serviço social, sua emergência histórica, pretensões e compromissos na particularidade
da sociedade brasileira e no âmbito da cultura profissional7.
1.1. A construção do projeto ético-político do serviço social: horizonte históricocultural e escolha de “novos” sentidos para a profissão
O projeto ético-político do serviço social, cuja criação histórica vem se dando
desde as décadas de 1960 e 1970 no Brasil, articula-se uma determinada escolha de
6
Heller explicita suas críticas ao autoritarismo e à burocratização: expressões da forma de racionalidade instrumental e
pragmática, que conduz à alienação e à manipulação da vida social. Daí configurarem-se como obstáculos à realização de
uma ética na vida cotidiana. Destaca a importância do juízo individual na tomada de decisões e efetivação de um projeto
ético, sinalizando para uma posição contestatória quer em relação ao economicismo, quer ao politicismo do marxismo
vulgar e oficial dos partidos de orientação marxista-leninista, stalinista ou oficiais (HELLER, 1985).
7
Cultura profissional compreendida como horizonte de sentido em que se dá a construção das práticas, comportamentos,
representações, valores e imagens sobre a profissão (instituição inscrita no âmbito da divisão social e técnica do trabalho,
na sociedade capitalista madura): uma “estrutura de significado socialmente estabelecida” pelos agentes históricos que a
demandam (instituições empregadoras e usuários) e pelos profissionais, nas suas relações cotidianas. Para GEERTZ
(1989) a cultura é como uma teia de significados, sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, contexto por meio do qual
os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições e os processos podem ser interpretados, em sentido
hermenêutico.
3
sentido para a profissão8. Uma escolha ancorada na reflexão crítica sobre a validade,
finalidade e legitimidade do exercício, da formação e da organização política dos
assistentes sociais, desde a sua emergência como uma profissão inscrita na divisão
social e técnica do trabalho, na sociedade capitalista, na particularidade do Brasil.
A emergência deste Projeto, segundo Neto (1999), vincula-se às possibilidades
abertas para a cultura profissional, no contexto das lutas pela redemocratização do país.
É nesse contexto que ocorrerá o questionamento dos significados sócio-histórico e ídeopolítico do serviço social e do lugar historicamente ocupado pela profissão na divisão
social e técnica do trabalho.9 Os questionamentos ao serviço social (legitimidade e
dimensão teleológica) emergiram em meio ao diálogo crítico com a chamada “tradição
conservadora” na cultura profissional10. Com a problematização do legado conservador
iniciou-se o reconhecimento das dimensões ideológicas e políticas das ações
profissionais, culminando na construção de uma “consciência crítica”, que reconheceu sua
contribuição histórica na manutenção da ordem hegemônica do capital, na particularidade
em que foi tecida na experiência brasileira.11
O reconhecimento das implicações éticas e políticas do exercício profissional teve
desdobramentos na cultura profissional. De um lado, a crítica à tendência de vinculação
8
A construção deste projeto não pode ser compreendida sem a referência às críticas ao serviço social tradicional e à busca
de novos sentidos para a profissão, cujas expressões se materializaram nas tendências do Movimento de Reconceituação
do Serviço Social (1965-1975): fenômeno latino-americano, marcado pela contestação ao tradicionalismo profissional,
traduzida num questionamento global da profissão, quanto aos seus fundamentos ídeo-teóricos, suas raízes sócio-políticas,
a direção de sua prática profissional e de seu modus operandi (Iamamoto, 2003, p.p 205, 206). No contexto brasileiro, teve
seus limites definidos pelo cerceamento político durante a Ditadura Militar, que impossibilitou e adiou a chamada “intenção
ruptura com o conservadorismo”. A intenção de ruptura só adquirirá visibilidade profissional durante o processo da
redemocratização do país, no final dos anos 1970 ( NETO, apud IAMAMOTO: 2003, 215 – 216).
9
Estas reflexões sinalizam para a mediação do assalariamento: o contrato de compra e venda da força de trabalho dos
assistentes sociais que, na maioria dos casos, não se dá de forma direta (relação capital e trabalho), sendo o Estado seu
principal empregador, em razão das funções profissionais no âmbito da reprodução social. Ressalta-se o caráter
contraditório desta inserção, com base na leitura das necessidades sociais, políticas e ideológicas presentes na questão
social, que determinam a necessidade social da profissão: é convocada para atender interesses antagônicos de grupos e
classes sociais em disputa na sociedade, que se materializam na relação contraditória entre capital e trabalho, mediada
pela intervenção estatal via políticas sociais públicas ( IAMAMOTO & CARVALHO, 1982; IAMAMOTO, 1994; IAMAMOTO,
2003; NETTO,1991; NETTO, 1992; NETTO, 1996: 87-132).
10
Por tradição conservadora compreende-se o horizonte de sentido em que foi construída, institucionalizada e legitimada a
profissão na divisão social e técnica do trabalho e nas relações sociais típicas da modernização capitalista no Brasil. Tratase do humanismo cristão, que atribuiu traços confessionais à profissão desde sua gênese, inserindo-a no campo das
vocações e missões de “servir ao próximo” e do “cuidado com o outro”, correspondendo: i) um perfil profissional de caráter
ídeo-político e moral, com nítido recorte de classe e gênero (uma profissão tida como feminina e majoritariamente composta
por segmentos das classes abastadas); ii) uma formação acadêmica de natureza mais doutrinária do que científica,
vinculada ao projeto de recristanização da sociedade articulado pela Igreja Católica no Brasil, assegurando uma intervenção
profissional tutelar e ajustadora das classes trabalhadoras à ordem burguesa (IAMAMOTO, 1982; IAMAMOTO, 1994).
11
Trata-se da singularidade da modernização brasileira face ao modelo clássico das revoluções burguesas de cariz
ocidental, em que o processo de modernização vai ocorrer sem significativas rupturas na estrutura de poder econômicopolítico, em razão de uma tradição político-econômica nas elites brasileiras: a junção do “arcaico” com o “novo”, em que a
progressão do sistema não requer uma completa destruição do anterior. Uma marca que se delineia tanto nas relações
econômico-sociais, quanto nos valores e representações da cultura política brasileira (OLIVEIRA, 1987; DA MATTA, 1997;
RIBEIRO, 2000; CHAUÍ, 2001).
4
do serviço social aos interesses e projetos das classes dominantes, nas suas intenções
de controlarem os conflitos advindos da questão social; de outro, a viragem nos rumos
éticos e políticos da profissão, sinalizando para a “intenção de ruptura” com sua herança
conservadora. Daí a possibilidade de uma recusa à dimensão originariamente
conservadora da profissão
e ao “arranjo teórico-doutrinário-operativo” que lhe deu
sustentáculo, cujas bases se assentavam na fusão entre os princípios éticos neotomistas,
de tradição cristã, e o moderno conservadorismo da teoria social funcionalista.
A emergência desta viragem possibilitou a criação de um projeto ético-político
guiado pela escolha de um novo direcionamento para a formação, o exercício profissional
e a organização política dos (as) assistentes sociais. A pretensão de construir um “novo”
serviço social, comprometido com as classes trabalhadoras, com projetos societários
críticos à ordem burguesa, emerge em meio a essa abertura de horizonte na cultura
profissional, desestabilizando aquele arranjo até então hegemônico.
O “caldo cultural e político” efervescente no período das lutas contra a Ditadura
Militar, pela redemocratização da sociedade brasileira constituiu o horizonte em que não
apenas o serviço social, mas expressivos setores da sociedade civil protagonizaram a
contestação política e cultural ao autoritarismo, ao cerceamento das liberdades, às
injustiças sociais, enfim. Em meio à intensificação dessas lutas deu-se a oxigenação do
debate ético-político na profissão, expresso no surgimento de uma “massa crítica”,
politicamente articulada e que pôs em xeque o seu legado conservador (Neto: 1999).
Há que se considerar na formação dessa “massa crítica”, a experiência de uma
socialização mediada por uma cultura de contestação, que as gerações pós-50
vivenciaram no país. Daí não se poder creditar apenas à dimensão política, a abertura de
horizonte que possibilitou a emergência do “novo” projeto ético-político do serviço social.
A cultura contestatória, manifesta não somente nas atitudes políticas, mas nas práticas
cotidianas, foi fundamental, haja vista a questão dos comportamentos, hábitos, gostos,
valores e costumes postos em questão pelos novos protagonistas sociais12, do ponto de
vista existencial, ético e estético.
12
Destaca-se aqui a reinserção da classe trabalhadora no campo das lutas democráticas, no final da década de 1970 e
início dos anos 1980, com o surgimento do “novo sindicalismo”; as comunidades eclesiais de base e a histórica atuação do
movimento estudantil, desde a década de 1960. Além da emergência de novos sujeitos na arena pública, a exemplo dos
movimentos sociais de mulheres e feministas, dos movimentos de contracultura e da arte contestatória, do movimento
negro, com sua resistência cultural e artística.
5
Outra importante condição para a problematização da dimensão tutelar e
ajustadora do serviço social foi o diálogo com as teorias críticas, com destaque para
aquelas de inspiração marxista. Em que pese às influências do “marxismo althusseriano”
e do “marxismo oficial” no serviço social (interpretações mecanicistas, dogmáticas e
positivistas da obra de Marx), foi mediante este diálogo, que se enunciaram os marcos da
viragem proposta no novo projeto ético-político do serviço social.
Foi nos marcos dessa viragem, com nítida angulação para a “esquerda ocidental”,
de inspiração socialista e da teoria crítica, que se deu a intensificação dos debates sobre
a formação profissional, a organização política e o exercício profissional, ou seja: a
ressignificação da profissão e a construção do Novo Projeto Ético-Político do Serviço
Social.
Os debates sobre o projeto de formação profissional e o questionamento da
herança conservadora conduziram à discussão e aprovação, em 1986, do Novo Código
de Ética Profissional do Serviço Social, num cenário de ampliação das lutas pelos direitos
sociais de cidadania e busca pela construção de um Estado de Direito no país. O Código
de Ética de 1986 sistematizou o debate ético-político acumulado pela categoria,
sinalizando para a escolha de “novos” sentidos para o serviço social: direção social e
política voltada para o compromisso ético-político com os interesses das classes
trabalhadoras e com projetos societários críticos à ordem burguesa.
Apesar do consenso quanto às escolhas explicitadas neste Código, havia e ainda
há nas hostes profissionais, uma preocupação em não se incidir numa inversão idealista,
marcada por uma representação voluntarista e aguerrida da profissão. A preocupação
com estas questões e a necessidade de aprofundamento dos sentidos postos no Código
de 1986, principalmente com o advento das mudanças na sociedade brasileira em razão
das lutas que conduziram à aprovação da Constituição “Cidadã” de 1988, contribuíram
para a revisão do texto de 1986.
O Código aprovado em 1993 reafirmou as escolhas coletivas da categoria quanto
à direção social e política para a formação, o exercício e a organização profissional: a
intenção de ruptura com a tradição conservadora, sintonizando o serviço social com as
lutas pela construção de uma nova ordem societária no país, sem dominação-exploração
de classe, etnia e gênero (Código de Ética dos Assistentes Sociais: 1993,11).
Fundamentou a viragem ética da profissão com base na tradição crítica, explicitando
como valores: a liberdade e a justiça social, compreendendo a democracia como único
6
padrão civilizatório capaz de possibilitar a realização daqueles valores, sem desconsiderar
os limites da democracia burguesa. Expressou a exigência do respeito às diferenças e a
necessidade da luta contra os preconceitos de classe, gênero, geração, raça, etnia e
orientação sexual. Normatizou, ainda, as relações entre profissionais, usuários e
empregadores, com apoio nos valores situados no horizonte de sentido da tradição
democrática, libertária e emancipacionista.
Considerando-se a validade destas reflexões para uma abordagem sobre o Projeto
Ético-Político do Serviço Social e a dinamicidade que envolve sua construção no cenário
brasileiro contemporâneo poder-se-ia indagar, então: Como se analisa o estatuto
profissional após a viragem ético-política desencadeada pela “intenção de ruptura” no
cenário brasileiro atual? Considerando-se as transformações que atravessam o serviço
social no cenário da chamada “civilização do consumo”, na particularidade da experiência
brasileira, que novas questões podem ser elencadas quanto à construção do Projeto
Ético-Político do Serviço Social?
1.2. O Projeto Ético-Político do Serviço Social no cenário contemporâneo: novas e
velhas questões
Já é do conhecimento de boa parte da categoria profissional o desenho das
grandes linhas de análise sobre os efeitos das transformações societárias no mundo da
produção, do Estado e das políticas sociais públicas para as chamadas classes-quevivem-do-trabalho (Antunes: 1995). A discussão sobre as mutações contemporâneas no
mundo do trabalho, no âmbito do Estado e das políticas sociais, com repercussões na
questão social, que se complexifica e se agrava, tem sido recorrente nos encontros e
congressos da categoria nas últimas décadas.
Os analistas da profissão têm discutido estas transformações, considerando a crise
mundial no regime de acumulação e modelo de regulação social fordista-keynesiano e a
emergência da acumulação flexível, nos anos 1970, como eixo a partir de onde se pode
pensar as mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais vivenciadas no capitalismo
contemporâneo.
Já se tem conhecimento dos efeitos provocados por tais mutações, sobretudo nas
condições objetivas de precarização, perda de direitos, insegurança no trabalho e
desemprego estrutural, que tem contribuído para o agravamento da “questão social” no
cenário brasileiro contemporâneo. A relação entre estas mudanças, o mercado de
7
trabalho e as “novas” demandas colocadas para a profissão também não é tema
desconhecido do conjunto da categoria.
Há registros do duplo impacto destas mudanças no cotidiano profissional dos
assistentes sociais: tanto nas suas condições objetivas de trabalho (precarização,
desformalização, terceirização, perda de direitos sociais e trabalhistas, desemprego),
quanto por lidarem cotidianamente com segmentos populacionais ainda mais vulneráveis
a estas mudanças, por vivenciarem historicamente uma condição de desigualdade
econômica, social, política e cultural. Os assistentes sociais se deparam, a exemplo dos
demais trabalhadores, com o desamparo diante da insegurança no atual mundo do
trabalho, acompanhado dos dilemas que lhes são peculiares, em razão de serem um dos
profissionais de ponta na operacionalização dos direitos sociais, por meio das políticas
públicas, num contexto marcado pela recusa do Estado em garanti-las na sua efetividade.
Presencia-se no cotidiano profissional uma crescente demanda dos usuários pela
garantia de direitos ameaçados de violação e, ao mesmo tempo, a necessidade de sua
ampliação, ante o agravamento da miséria e desigualdades sociais. Os assistentes
sociais são convocados por seus empregadores para operarem com a nova lógica das
políticas públicas (maximização da relação custo/benefício), que lhes impõe o discurso da
eficiência, com base nos imperativos do mercado, num contexto de escassez de recursos
materiais e humanos para efetivação destas mesmas políticas. Tal reflexão tem
conduzido a uma análise dos dilemas impostos à profissão, diante dos compromissos
históricos assumidos no seu projeto ético-político, com destaque para a defesa dos
interesses dos usuários e sua intrínseca vinculação com a luta pela democracia,
liberdade, justiça e equidade social no país.
Como reafirmar e garantir estes compromissos diante das novas exigências
colocadas aos profissionais como operadores das políticas públicas nas diversas
instituições empregadoras? Deseja-se suscitar aqui mais algumas indagações, cujas
respostas poderão ajudar na compreensão desta indagação mais ampla, mas que
parecem ser pouco abordadas nos últimos debates da categoria.
Considerando-se
que
um
dos
dilemas
dos
assistentes
sociais
como
trabalhadores é a sua própria insegurança no trabalho, acompanhada dos desafios de
defesa e ampliação dos direitos sociais dos usuários, num quadro de retração estatal e
“política da escassez”,
pode-se indagar, então: Como os profissionais estariam a
enfrentar este dilema no cotidiano das instituições empregadoras nas relações com seus
8
empregadores, pares e usuários? Até que ponto estas transformações não estariam
afetando, também, os próprios sentidos de seu trabalho e a forma como constroem suas
relações sociais por meio da inserção nesta esfera?
A reflexão sobre estas indagações convida a se pensar para além da identificação
dos impactos objetivos das mudanças na produção e na esfera política do Estado nas
condições materiais de vida dos assistentes sociais e dos usuários de seus serviços. Ou
seja, uma abordagem sobre a mudança antropológica que se presencia na construção da
própria sociabilidade contemporânea, voltando o olhar, escuta e escrita para as relações
entre aquelas transformações e as “novas” formas de individualidade aí emergentes.
A respeito desta abordagem, alguns analistas contemporâneos indicam pistas
férteis (Sennet, 1999; Barcellona, 1995), quando sinalizam para uma mutação sem
precedentes nas sensibilidades, nos valores e no próprio caráter dos indivíduos sociais,
com o avançar da flexibilização produtiva e da cultura do consumo. Outros alertam para
fenômenos como o neo-individualismo de massa e o narcisismo como expressões da
lógica hedonista típica desta cultura (Amaral: 1997; Severiano: 2001). A prevalência desta
lógica tem contribuído para a dessomatização das relações sociais, ameaçando a
construção de vínculos afetivos e sociais e pondo em risco o próprio sentido da
convivência social e comunitária, atingindo, portanto, a matéria prima sob a qual se criam
os compromissos éticos e políticos.
O capitalismo contemporâneo, graças à centralidade das novas tecnologias da
comunicação e o poder dos mass media, tende a transformar as experiências individuais
mediante a estetização da vida (Vattimo: 1989; Griffero e Givone, 1998)13. Daí a
superficialização e dessomatização das relações e o aparecimento de indivíduos cada
vez
mais
voltados
para
si
mesmos,
indiferentes
ao
outro,
desapegados,
13
A estetização – desrealização expressa, na acepção de Vattimo (1989), a nova forma da experiência estética
contemporânea decorrente da implosão dos seus limites convencionais antes circunscritos ao campo autônomo da arte.
Para ele, o advento das novas tecnologias informacionais e os mass media promoveram uma generalização dos valores
estéticos na sociedade, uma vez que tais meios são considerados como produtores de cultura, informação e
entretenimento, mas sempre segundo critérios formais de beleza, no sentido da atração de seus produtos. Ao realizarem tal
generalização, os media acabaram por dissolver o sentido de realidade como algo objetivo, bem como os limites entre
realidade e fantasia, fatos e ficção, transformando o real em fábula. Algo que o pensador considera como positivo, pois o
desenraizamento-desrealização teria ocasionado a explosão dos pontos de vista centrais, contribuindo para a libertação das
diferenças e dos dialetos locais. Já Griffero (1998) e Givone (1998) identificam na estetização, na perda dos limites entre o
real e o virtual, uma neutralização da realidade, bem como uma perda e um esvaziamento dos seus sentidos práticos e
sociais. Para eles, a vida vista como fato estético e toda a experiência prática, quando reduzida a fato estético conduz,
também, a um esvaziamento da própria experiência estética, uma vez que esta fica reduzida ao puro prazer, ao hedonismo.
Na acepção destes autores, o excesso das imagens, do aparecer, do tudo mostrar provoca a anestese, o amortecimento e
a anestesia dos sentidos e da sensibilidade, pois além de afetá-los, a estetização também atinge a própria capacidade de
simbolização dos indivíduos, considerada como intrinsecamente ligada ao invisível, ao que não se mostra de modo imediato
no aparecer.
9
descompromissados, presos numa lógica do presente, preocupados em viver o “aqui e
agora”, numa lógica hedonista.
As promessas de felicidade, mediante o acesso a bens materiais (mercadorias)
constantemente anunciados na mídia global e os ideais de consumo alimentam a ilusão
de preenchimento da falta provocada pela crise de sentido nos vínculos afetivos e sociais,
em razão dos processos de estetização e da lógica hedonista e narcisista. O desamparo
provocado por esta lógica põe em questão os liames sociais, o sentido de pertença e a
dimensão projetiva de futuro. Algo que contribui tendencialmente para a emergência de
uma “sociedade sem sociabilidade” (Barcelona: 1995), dada a escassez de vínculos
mediados pelos afetos, pela convivência social e comunitária, e por relações face-a-face
em longo prazo.
Se estas transformações puderem ser interpretadas como fenômenos não apenas
abstratos, que passam ao largo do cotidiano profissional, mas experiências que
atravessam a vida de todos no dia-a-dia, poder-se-ia compreender talvez os porquês das
recusas em se assumir compromissos em longo prazo; das descrenças em relação à
política e à necessidade de se estabelecer vínculos, fazer articulações e alianças no
cotidiano profissional. Poder-se-ia entender, quem sabe, as dificuldades de se construir
projetos de futuro, a indiferença em relação às queixas e demandas dos usuários, a
anestesia emocional frente à banalização da violência na mídia e nas relações cotidianas,
as dificuldades de indignação diante das pequenas e das grandes injustiças, enfim...
A reflexão aqui proposta não comunga com visões pessimistas e fatalistas quanto
aos sentidos das ações profissionais dos assistentes sociais diante do quadro das
transformações ora em curso. No entanto, não se trata de concordar, também, com as
avaliações eufóricas sobre as possibilidades futuras da profissão diante dos discursos
otimistas quanto à defesa de seus compromissos éticos e políticos. Apenas acredita-se
que desconsiderar as mudanças operadas nas individualidades e nas sociabilidades
diante das exigências da cultura do consumo e da estetização no capitalismo
contemporâneo, pode incorrer na incompreensão das mediações culturais que
atravessam as práticas profissionais. Corre-se o risco, ainda, de uma defesa apenas
formal do projeto ético-político, sem maiores repercussões no cotidiano dos sujeitos
profissionais, compreendidos em sentido ético e político.
Defender os compromissos ético-políticos do serviço social exige hoje que se
voltem os corações e as mentes para o cotidiano, para as novas formas em que os
10
processos de estranhamento e alienação se manifestam nas relações profissionais com
os pares e usuários e demais categorias. Algo que remete a novas questões: O que se
está a fazer? Como se faz? Quais os sentidos atribuídos ao trabalho realizado
cotidianamente nas instituições? Até que ponto as relações profissionais cotidianas estão
imunes aos processos de estetização e à lógica pragmática e hedonista atual?
Com estas inquietações tenciona-se comungar com o mesmo espírito do poeta
Rilke (2001) ao dialogar com Kappus, um jovem amigo iniciante na poesia, que dividia
com ele suas angústias e perguntas diante da vida, ao que sabiamente Rilke (2001:42)
lhe respondia:
Se se agarrar à natureza, ao que ela tem de simples, à miudeza que
quase ninguém vê e quão inesperadamente se pode tornar grande e
incomensurável; se possuir este amor ao insignificante; se procurar
singelamente ganhar como um servidor a confiança daquilo que parece
pobre – então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso, e, por assim
dizer, reconciliador –, não talvez no intelecto, que ficará atrás espantado,
mas sim na sua íntima consciência, que vigia e sabe(...).
11
Referências Bibliográficas
AMARAL, Mônica Guimarães Teixeira. O Espectro de Narciso na Modernidade: De Freud
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