REGIONALIDADE, LITERATURA E PENSAMENTO SOCIAL

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SANT OS, Rafael José dos. Regionalidade, literatura e pensamento social. Cenários, Porto Alegre, v. 1, n. 3, 1° semestre 2011.
REGIONALIDADE, LITERATURA E PENSAMENTO SOCIAL
REGIONALITY, LITERATURE AND SOCIAL THOUGHT
Rafael José dos Santos
1
Resumo
A tentativa de equacionar a relação entre o nacional e o regional é u m t raço da história do campo literário,
inclusive como antecessor das Ciências Sociais no Brasil. O folcloris mo, tributário da busca romântica
pela alma popular, bem como a introdução dos princípios dos determinis mos raciais e geográficos
tiveram nesse campo um lugar priv ileg iado e estiveram, co m diferentes intensid ades, vinculados à
problemát ica da regionalidade. A introdução do culturalismo no Brasil, por sua vez, relaciona-se
diretamente à questão regional pelas mãos de Gilberto Freyre que, embora não se situasse diretamente no
campo da Literatura, exerceria co m essa um importante diálogo, principalmente a partir do I Congresso
Regionalista do Recife em 1926.
Palavras-Chave
Reg ionalidade; Literatura; Pensamento Social Brasileiro
Abstract
The attempt to equate the relations between the national and the regiona l is a feature of the history of the
literary field, even as a predecessor of the Social Sciences in Brazil. The fo lklore, tributary of the
romantic quest for the popular spirit as well as the introduction of the principles of racial and geographic
determinis m had a privileged place in this field and have been, with different intensities, linked to the
issue of regionality The introduction of culturalis m in Brazil, in turn relates directly to the regional issue
in the thought of Gilberto Freyre that although not located directly in the field of Literature, had
maintained with it important dialogue, especially fro m the I Congresso Regionalista do Recife in 1926.
Key words
Regionality; Literature; Brazilian Social Thought
INTRODUÇÃO
No pensamento social brasileiro do período de 1870 à segunda década do século
XX, a questão do regional no Brasil encontra-se vinculada dialeticamente com a
problemática do nacional. Mesmo considerando que os termos constituem cada qual
“uma forma de particularidade” (POZENATO, 2009, p.22), quando colocados em cena
pela Literatura e pela Crítica Literária do período constituem-se mutuamente em uma
relação contraditória: se pensarmos que há um projeto de construção nacional em
1
Antropólogo, doutor em Ciências Sociais e docente do Programa de Pó s-Graduação em Letras, Cu ltura e
Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: rafaprof@g mail.co m
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andamento, o regional constitui, simultaneamente, algo a ser enunciado para ser, de
imediato, superado, ao ser concebido como parte de uma totalidade a ser construída,
como se pode depreender, por exemplo, de obras como O Gaúcho e O Sertanejo de José
de Alencar. Simultaneamente, para alguns pensadores, a afirmação do regional assume
um caráter programático em contraposição a um projeto centralizador de construção da
nação, como no programa regionalista de Gilberto Freyre. A compreensão desse
processo exige uma distinção de natureza metodológica: se do ponto de vista literário
stricto sensu o regional está subsumido ao particular e relaciona-se à busca da
universalidade de modo metonímico (POZENATO, 2009, p.23) como condição mesma
desta última, há uma dimensão ideológica vinculada às condições históricas, polít icas,
econômicas, sociais e propriamente culturais que constituem o solo no qual a dialética
região/nação se constrói em termos de oposição entre parte e todo. Trata-se, por óbvio,
de uma divisão para fins de análise e interpretação que nos permite inventariar as
diferentes influências intelectuais que fazem do campo literário do período uma porta de
entrada – não a única, mas sem dúvida a de maior repercussão - de tendências e escolas
de pensamento que constituiriam esse campo como uma espécie de antecessor das
ciências humanas e sociais no país: o folclorismo de inspiração romântica, o
pensamento raciológico, o determinismo geográfico e, ao final do período, o
culturalismo, este aclimatado aos trópicos.
Com diferentes ênfases, dependendo das particularidades dos autores, essas
influências intelectuais estariam diretamente relacionadas à busca do entendimento de
um elemento essencial na construção da nação: o povo, fosse ele tomado romântica e
folcloricamente em seus costumes e tradições, ou como elemento problemático dada a
miscigenação relacionada às condições de atraso do país, ou ainda como elemento cujo
caráter, isto é, seu modo de ser, estaria dado pelas condições geográficas. Esse povo, ou
melhor, esse popular, é buscado e representado em sua territorialidade física: o pampa,
o sertão, o litoral, a zona-da- mata. Trata-se, contudo, de regionalidades pensadas, não
de regionalidade vividas, embora alguns aspectos da segunda servissem de matéria
prima significante ao pensamento social do período. Em outras palavras, o que está em
jogo são representações simbólicas de regionalidade que não se confundem com
aquelas que emergem como sentidos das relações sociais concretas, isto é, de relações
de regionalidade (POZENATO, 2003, p. 151) que implicam na região como produto de
uma modalidade específica de práticas de espaço: as práticas de regionalidade.
O POPULAR E O REGIONAL
Em sua obra Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido afirma que o
nacionalismo literário, em suas diferentes versões, buscava “algo indefinível, mas que
nos exprimisse” (1997, p. 11, itálico no original). A busca de uma literatura nacional
correspondia, portanto, a um ideal de construção da própria nação, a procura da matéria
que constituiria o ser brasileiro ou, em outros termos, a identidade nacional. Nesse
ponto é que se pode afirmar que a literatura e a crítica literária se constituem como uma
modalidade de pensamento social.
Para Renato Ortiz a identidade nacional implica no estabelecimento de um
contraponto ao estrangeiro, ou seja, a identidade definir-se- ia “em relação a algo que lhe
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é exterior” (ORTIZ, 1986, p.7), mas também suporia a necessidade de “mostrar em que
nos identificamos” (idem, p.8). A identidade seria construída em um movimento
simultâneo de negatividade e de positividade, e nesse segundo ponto residiria a maior
dificuldade: “Se existe uma unidade em afirmarmos que o Brasil é „distinto‟ dos outros
países, o consenso está longe de se estabelecer quando nos aproximamos de uma
possível definição do que viria a ser o nacional” (ibdem, p.8).
O Romantismo pode ser compreendido sociologicamente como expressão desse
duplo movimento da busca pela expressão da identidade nacional. Se, por um lado, nas
palavras de José Veríssimo em 1915, ele foi “nossa emancipação literária, seguindo-se
naturalmente á nossa independência política” (1916, p.1), no tocante à afirmação do ser
nacional estávamos, com o Romantismo, ainda nos primeiros passos da procura daquilo
que, por muito tempo, acreditava-se que poderia ser a essência da brasilidade.
A ruptura com Portugal e a busca de uma origem fundante da brasilidade guiam
a análise antropológica que Renato Ortiz (1992) efetua d‟ O Guarani como mito que
envolve um ato sagrado de sacrifício: “A civilização portuguesa é objeto a ser imolado,
os aimorés atuam como um sacrificador, Peri e Ceci compõem os elementos
sacrificantes, que ao passarem para o „outro lado‟, geram a nação brasileira” (ORTIZ,
1992, p.82). Antonio Candido (1997, p. 202) já havia se antecipado na percepção do
caráter fundador da obra de Alencar, “o único escritor de nossa literatura a criar um
mito heróico, o de Peri”, acrescentando:
As Iracemas, Jacis, Ub iratãs, Ubirajaras, Aracis, Peris, que todos os anos, há
quase um século, vão semeando em batistérios e registros civis a “mentirada
gentil” do indianismo, t raduzem a vontade profunda do brasileiro de
perpetuar a convenção, que dá a um país de mestiços o álibi de u ma raça
heróica, e a uma nação de história curta, a profundidade do tempo len dário.
(CA NDIDO, 1997, p. 202)
O testemunho do próprio Alencar, no prefácio de Sonhos D’Ouro, de 1972, não
deixa dúvida a respeito do espírito que animou a fase da criação d‟ O Guarani: “É a
gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo
mundo as gloriosas tradições de seu progenitor”. (ALENCAR, 1964, p.12). Havia,
portanto, um povo a ser construído como substrato da nacionalidade e nesse ponto José
de Alencar segue, à sua maneira, o caminho do Romantismo europeu em busca do
volksgeist, da alma popular que se revela nas tradições orais: “É nas trovas populares
que sente-se mais viva a ingênua alma de uma nação” (ALENCAR, 1993, p.19), escreve
em uma das cartas a Joaquim Serra publicadas em Nosso Cancioneiro [1874], entre a
estréia de O Gaúcho em 1870 e O Sertanejo em 1875. Convergem aqui um
regionalismo entendido como “descrição típica da vida e do homem nas regiões
afastadas” (CANDIDO, 1997, p. 201), e o afã romântico de coletor de manifestações
populares. Vejamos, para fins de análise, cada ponto separadamente.
O regional é concebido em relação com a nação em construção: não se trata de
um regionalismo reivindicatório de autonomia, mas inserido “no vigoroso esforço de
afirmação nacional” que foi, para Antonio Candido (1975, p.116), o Romantismo no
Brasil. Flávio Loureiro Chaves (2001) vai além, atribuindo ao programa alencariano o
objetivo de uma síntese americanista em oposição à Europa: “Dialeticamente, o
regional e o nacional são termos que se complementam, implicando um terceiro
conceito – o americanismo, através do qual o escritor pretende assinalar, tanto no plano
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literário quanto no político, a marca distintiva em relação à cultura européia”
(CHAVES, 2001, p. 26-27).
Alencar projeta um regionalismo mosaico, formando uma composição, um
quadro no qual os tipos humanos são moldados por suas relações com a natureza em
diferentes meios geográficos, como n‟ O Sertanejo [1875]:
A imensa camp ina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha
terra natal.
Aí campeia o destemido vaqueiro cearense, que à unha de cavalo acossa o
touro indômito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com
admirável destreza (A LENCAR, 1973, p. 13).
Ou ainda, em O Gaúcho [1870]:
Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma pampa do que o
homem, o gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor; tem
a velocidade de uma ema ou da corça, os brios do corcel e a veemência do
touro (ALENCA R, 1971, p. 10).
Existe uma geografia alencariana fundada na relação entre tipo humano e
natureza constituindo tipos regionais, que não obstante as particularidades integram
uma totalidade: “Cada região da terra tem uma alma sua, raio criador que lhe imprime o
cunho da originalidade. A natureza infiltra em todos os seres que ela gera e nutre aquela
seiva própria; e forma assim uma família na grande sociedade universal” (ALENCAR,
1971, p. 10). A universalidade aqui deve ser entendida a partir do nacionalismo e do
ideal de americanismo do autor, que nesse ponto aproxima-se do precursor do
romantismo alemão, Herder, que afirmava em 1784: “Por diversas que sejam as formas
em que a espécie humana aparece na terra, em todas é uma mesma espécie” (HERDER,
1959, p. 191, tradução minha). O universal, neste sentido, não se confunde com o
universalismo iluminista, mas relaciona-se, antes, à construção do nacionalismo alemão:
[...] Herder, em u m texto polêmico fundamental, em no me do “gênio nacional
de cada povo” (Volksgeist), tomava partido pela diversidade de culturas,
riqueza da hu manidade e contra o universalis mo uniformizante do
Ilu minis mo, que ele considerava empobrecedor. Diante do que ele via co mo
um imperialis mo intelectual da filosofia francesa do Iluminis mo, Herder
pretendia devolver a cada povo seu orgulho, começando pelo povo alemão.
Para Herder, na realidade, cada povo, através de sua cultura própria, tem u m
destino específico a realizar. Pois cada cultura exprime à sua maneira u m
aspecto da humanidade. (CUCHE, 2002, p. 27)
A menção a Herder nos leva ao segundo ponto, o do trabalho de coleta de
narrativas populares nas quais se expressaria a alma popular, o que nos termos do
romantismo de Alencar pode ser entendido como a essência da nacionalidade.
É entre o final do século XVIII e início do XIX que ocorre, na Europa, a
descoberta do povo por antiquários e românticos (BURKE, 1989; MARTÍNBARBERO, 2003; ORTIZ, 1992), descoberta que vem junto com o “tema de uma
cultura em desaparecimento, que deve ser registrada antes que seja tarde demais”
(BURKE, 1989, p. 43). A busca pelo povo encontraria eco no Brasil, na busca que
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nossos românticos empreendem por algo que representasse a nação em vias de
construção:
Especialmente a partir dos anos 70 oitocentistas, torna-se mais evidente um
relevante movimento da intelectualidade brasileira sobre as raízes da
nacionalidade. [...] Ainda preocupados com a urgência de encontrar e expor
elementos que representassem a nação em detrimento do influ xo político e
cultural português, os intelectuais do período criam uma idéia de popular,
sobretudo apoiada na do romantismo alemão, que traz u ma acepção de
“espontaneidade ingênua” e anonimato, característicos de uma coletiv idade
homogênea e uma que se poderia considerar a alma nacional (RIBEIRO,
2006, p.146).
Guardadas as distinções entre os processos históricos de construção dos Estados
nacionais europeus, em particular o alemão, e o contexto brasileiro da segunda metade
do século XIX, em ambos os casos os olhares românticos voltam-se para o popular na
busca do substrato da nacionalidade. Alencar dedicava-se a registrar produções
populares, não visando transcrições fiéis, mas, em suas palavras, agindo “de modo
idêntico à restauração dos antigos painéis” (1993, p.39). Trabalhava, assim, à moda dos
românticos europeus que interferiam nos textos coletados, buscando preencher lacunas e
acreditando dar sentido a fragmentos de histórias. Em relação a estes, Peter Burke
afirma: a “combinação entre poetas e antiquários tem uma série de desvantagem do
ponto de vista do historiador. Os poetas são criativos demais para serem editores
confiáveis” (1989, p. 44).
Nesse ponto, há um aspecto importante a ser considerado. Peter Burke lembra
que na Europa: “artesãos e camponeses tinham uma consciência mais regional do que
nacional” (1989, p. 40). Enquanto as representações de povo e popular alimentavam
ideologias de construções nacionais, a cultura popular era vivenciada cotidianamente
bem distante da idéia de nação e dos centros onde ela era gestada. Havia uma grande
diferença entre o recurso à idéia de povo como substrato da alma nacional e a efetiva
incorporação do povo à nação (ORTIZ, 1992, p. 26). Podemos dizer, portanto, que em
sua origem o popular é regional.
Essa é a razão pela qual o nacionalismo romântico tem que dar conta da
apreensão do popular e, simultaneamente, deslocá- lo de sua regionalidade vivida para
transformá- lo em parte de uma totalidade ou, em outros termos, em regionalidade
pensada. Isso não significou, obviamente, o fim das regiões, mas desencadeou um
processo dialético que, na verdade, instaurou-as como regionalidades. Do ponto de vista
histórico, creio que não é demais afirmar que, se em um primeiro momento, a cultura
popular é regional, com os processos de unificação nacional – em diferentes ritmos e
formas em cada país – o regional começará a se pensar em sua regionalidade, no
sentido atribuído ao termo por Pozenato (2003), o que só é possível relacional e
dialeticamente: a nação inventa a regionalidade e suscita os regionalismos. No Brasil
isso se torna mais significativo na medida em que o Estado, tanto no II Reinado como
na República Velha, assume caráter centralizador enfrentando o desafio político e
ideológico de unificação de um território marcado pela diversidade. Nas palavras de
Antonio Candido:
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A unidade política, preservada às vezes por circunstâncias quase miracu losas,
pode fazer esquecer a diversidade que presidiu a formação e desenvolvimento
de nossa cultura. A colonização se processou em núcleos separados,
praticamente isolados entre si: o desenvolvimento econômico e a evolução
social foram, assim, bastante heterogêneos, consideradas as diferentes
regiões. (CANDIDO, 1997, p. 267)
Aproximadamente por volta de 1870 já está praticamente consolidada a
mudança do centro econômico do país para o centro-sul e o conseqüente “declínio do
nordeste” (FAUSTO, 1997, p. 238). É dessa região, até então hegemônica do ponto de
vista econômico, caracterizada também por uma “impressionante autonomia e nitidez”
dos pontos de visa geográfico, histórico e cultural (CANDIDO, 1997, p. 267) que
emerge o regionalismo de Franklin Távora. Este já não traz o viés romântico do
regionalismo de Alencar, enunciado a partir da Corte, mas caracteriza-se por “uma
vivência regional, uma interpenetração da sensibilidade com a paisagem geográfica e
social do Nordeste, em cuja célula formadora, Perna mbuco, bem cedo se integrou”
(CANDIDO, 1997, p. 268). A obra de Távora antecipa muito do que viria nas décadas
seguintes do regionalismo nordestino, principalmente no pensamento de Gilberto
Freyre. No prefácio a O Cabeleira [1876], ele afirma:
As letras têm, como a polít ica, um certo caráter geográfico; mais no Norte,
porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma
literatura p ropriamente brasileira, filha da terra.
A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o sul de d ia
em dia pelo estrangeiro.
A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as
índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar
que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão
(TÁ VORA, s/d, P.12).
Reaparece o tema da construção de uma literatura nacional, fundamentada em
uma “feição primitiva” caracterizada pela “pureza” e pela autenticidade genuína, mas
que deve agora ser buscada no nordeste, onde décadas mais tarde Gilberto Freyre iria
identificar (e reivindicar) as bases formadoras da cultura brasileira. Por tal razão
Antonio Candido caracteriza o regionalismo de Távora como programático (1997, p.
270) e Alfredo Bosi falará em “ares de manifesto, programa e áspera reivindicação”
regionalista (1994, p. 146). O romance O Cabeleira, de 1876, constitui, junto com O
Matuto [1878] e Lourenço [1881] uma espécie de trilogia, já anunciada no prefácio do
primeiro livro como um projeto de “criação da literatura setentrional, cujos moldes não
podem ser, segundo me parece, os mesmos em que vai sendo vazada a literatura austral
que possuímos” (TÁVORA, s/d, p.13). A regionalidade do nordeste aparece aqui,
simultaneamente, em oposição e disputa com aquela enunciada a partir do sul
(entendido ainda como abrangendo São Paulo e Rio de Janeiro).
Outro aspecto de Távora, na verdade indissociável do primeiro, diz respeito ao
método de criação, o que nos termos de seu programa regionalista significa a busca dos
elementos que compõem a regionalidade do Norte. Esse ponto foi objeto de críticas a
Alencar por este “não conhecer o cenário geográfico dos seus livros, ou conhecê- lo
mal” (CANDIDO, 1997, p.269). A vivência e o conhecimento da região sobre a qual
escrevia confere as qualidades que Silvio Romero iria atribuir a Távora:
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Os méritos de Franklin Távora consistem na acertada intuição que teve de
fazer das classes populares no passado e no presente, máxime no passado, a
base de seus romances; no peculiar carinho co m que despertou a atenção para
aquelas populações que melhor conhecia, as do Norte [...] (ROM ERO, 1953,
p. 1604).
A crítica de Távora a Alencar, bem como seus méritos ressaltados por Romero,
revelam o regionalismo naquela perspectiva que Werneck Sodré caracterizou como de
“fascinação pelo meio geográfico” e dominado por “um geografismo por vezes
delirante, um apego profundo ao pitoresco” (SODRÉ, 1995, p. 406). Em que pese o
juízo de Sodré que aponta tais características como uma das limitações literárias do
regionalismo nascente, a observação é importante na medida em que ressalta o modo
como entra, no Brasil, uma modalidade de pensamento geográfico que irá associar-se às
tentativas de expressão e interpretação do país.
Há um terceiro aspecto revelador no prefácio d‟ O Cabeleira, quando Távora
escreve sobre o Pará e o Amazonas, seus rios e igarapés, a força bruta da natureza:
– Que não seria deste mundo – pensei eu, descendo das eminências da
contemplação às planícies do positivismo, - se nestas margens se sentassem
cidades; se a agricultura liberalizasse nestas planícies os seus tesouros; se as
fábricas enchessem os ares com seu fumo, e neles repercutisse o ruído das
suas máquinas? Desta beleza, ora a modo de estática, ora violenta, que fontes
de rendas não haviam de rebentar? (TÁ VORA, s/d, p.12).
O prefácio é de 1876, o trecho certamente deve ser entendido em seu contexto
histórico e como expressão do ideal de uma nação que deveria emergir da floresta,
civilizando-a. A menção ao positivismo, associado ao progresso e contraponto da
contemplação, retrata o espírito de um período no qual o pensamento social volta-se
cada vez mais para as idéias científicas:
No in ício da década 70, voltam-se os intelectuais brasileiros para as idéias
positivistas inauguradas por Auguste Comte e Herbert Spencer – idéias que
levantam a possibilidade de se pensar todos os domínios do conhecimento
pelo viés da ciência. Se aliados a este princípio, difundiam-se os da teoria
transformista de Charles Darwin, do naturalismo de Taine, da etnologia de
Scherer, Gobineau e Müller, dentre outros, há de se considerar as
transformações emergentes sobre a maneira de se pensar o popular brasileiro :
não mais a idealização ro mântica e sim as concepções naturalistas de raça,
meio e evolução. (RIBEIRO, 2003, p. 20).
Este é o contexto intelectual no qual se constrói o pensamento de Silvio Romero
e de outros intelectuais da Escola do Recife, termo cunhado pelo próprio Romero para
designar o movimento criado no início dos anos 60, na Faculdade de Direito onde o
pensador ingressou em 1868. A importância de Romero reside, sobretudo, em seus
recursos às teorias e aos métodos científicos para pensar o Brasil a partir da crítica
literária, do folclore e de elaborações que antecipavam a sociologia e a antropologia
brasileiras, algumas décadas antes que estas ciências alcançassem sua
institucionalização acadêmica no país. Para o escritor sergipano as correntes científicas,
ao penetrarem nos círculos intelectuais a partir de 1870, formaram os quadros “que no
Brasil promoveram a reação seguida e forte contra o velho romantismo transcendental e
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metafísico” (1953, p. 60). Um aspecto dessa reação é o surgimento do folclorismo com
tendências à cientificidade.
Desde final do século XIX o folclore já se estabelecia na Europa com pretensões
de se tornar ciência, contrapondo-se às práticas de coleta dos românticos e na esteira do
pensamento positivista de Comte. Nas palavras de Ortiz:
A crença na possibilidade de se fundar uma ciência positiva em todos os
domín ios do conhecimento, anima o clima intelectual da épo ca. Os
folclo ristas acreditam ser apenas um desses grupos, que aplicadamente levam
o esclarecimento científico ao do mín io popular ( ORTIZ, 1992 p.29-30).
No Brasil, a primeira edição de Contos Populares do Brazil, de Romero, é
publicada em 1883 e a “segunda edição melhorada” é de 1897 (ROMERO, 1954), o que
constitui fato relevante se consideramos que o I Congresso Internacional do Folclore
ocorreu em Paris em 1889, e o segundo em Londres em 1891. Antes dele, Couto de
Magalhães havia publicado Viagem ao Araguaia [1863] e O Selvagem [1876].
Em sua História da Literatura Brasileira, Sílvio aponta Couto de Magalhães
como “o escritor que primeiro entre nós chamou a atenção para o fato da justaposição
de versos tupis e portugueses em nosso folclore poético” (ROMERO, 1953, p. 177),
mas acrescenta na página seguinte:
[...] não foram as línguas dos selvagens americanos as únicas que entraram
nessa obra de mestiçamento. [...]. O elemento africano, a favor do qual, seja
dito de passagem, se deveriam criar também largos serviços de proteção
como se está fazendo para o índio, o elemento africano entrou também na
faina e viu mu itas de suas danças, lendas, tradições e costumes entrarem no
trabalho de confluência com os fatos congêneres de proveniência européia.
(ROM ERO, 1953, p. 178).
É através do levantamento das contribuições africanas às tradições orais que
Romero introduz o negro, elemento até então praticamente ausente no pensamento
social no que dizia respeito à construção da identidade nacional. Com Silvio Romero as
idéias de amálgama e “cadinho” de três raças ganham terreno:
Eis aí os três povos, antropológica e etnograficamente distintos, que nos têm
vindo forjar, a amalgamar na incude e no cadinho da história, cujo estado
interno é preciso sondar, agora por método novo, para ser possível o exato
conhecimento da alma brasileira de hoje (ROM ERO, 1953, p.227)
Essas observações fazem com que Romero, juntamente com Franklin Távora,
sejam considerados influências decisivas no pensamento de Gilberto Freyre. Entreta nto,
a visão de Romero acerca da miscigenação estava bem distante da positividade da
mestiçagem que caracterizaria a obra de Freyre. Como aponta Renato Ortiz: “O
mestiço, enquanto produto do cruzamento entre raças desiguais, encerra, pois, para os
autores da época [incluído Silvio Romero], os defeitos e taras transmitidos pela herança
biológica” (1986, P. 21).
Outra característica marcante de Romero diz respeito ao modo como o autor
entrelaça os determinantes geográficos dos dilemas do país e a constituição de nossa
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literatura:
A literatura brasileira não se furta às condições gerais de toda a literatura
antiga ou moderna, - ser a resultante de três fatores fundamentais: o meio, a
raça, as correntes estrangeiras. Da ação combinada destes três agentes,
atuando nas idéias e nos sentimentos de um dado povo, é que se originam as
criações espirituais a que se costuma dar o no me de literatura ( ROM ERO,
1953, p.297).
Povo, nação e literatura aparecem interligadas e determinadas por fatores que
seriam tratados por Romero à luz de diversas teorias em diferentes momentos de sua
obra: o darwinismo social de Herbert Spencer, o condicionamento geográfico de Buckle
a sociologia de Frédéric La Play, entre outros. É principalmente com Silvio Romero que
a crítica literária passa a se nutrir das ciências humanas para pensar um país ainda em
formação, o que o situa, ao lado de Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, como
“precursores das Ciências Sociais no Brasil” (ORTIZ, 1986, p. 14). Em Euclides da
Cunha as idéias oriundas da Geografia têm papel fundamental na caracterização da
regionalidade do sertão: a geomorfologia e o clima ocupam lugar propedêutico para o
entendimento do elemento humano e de seus traços. A isso, alia-se também em Os
Sertões, de 1901, a problemática da miscigenação: “Adstrita às influências que mutuam,
em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças no Brasil é um
problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos”
(CUNHA, 2003, p.50).
Em relação à regionalidade, a posição de Silvio Romero, ao contrário de
Franklin Távora, não é a de contraposição: “O Sul não se opõe ao Norte senão nos
conceitos da geografia”, escreveu ele em 1878 (Apud RABELLO, 1967, p. 156). Suas
preocupações nesse âmbito dirigiam-se muito mais à necessidade de todo o Brasil
expressar-se culturalmente em sua diversidade, contrapondo-se à centralização política e
cultural:
Ficava muito bem a um imperialismo ferrenho comprimir toda e qualquer
franquia provinciana que se erguesse no país; era a grande solidão geral para
sobre ela levantar-se o espectro da corte superficial e presunçosa, bradando
aos quatro ventos: - o Brasil é o Rio de Janeiro...! (ROM ERO, 1953, p. 172).
Há uma perspicácia política nessa afirmação, uma vez que muito da produção
intelectual oriunda do centro político do Império, e depois da República, iria tomar a si
o estatuto de representação da brasilidade (quando não da própria universalidade), em
um movimento análogo àquele que, nas palavras de José Clemente Pozenato, “co ntribui
para criar a estigmatização que toda política centralista tem interesse em manter para
garantir os seus propósitos de hegemonia” (POZENATO, 2003, p. 156).
É co m esse espírito de afirmação do nacional que Ro mero faz seu apelo:
Continuai, continuai, poetas e romancistas, estudai os costumes provincianos; reproduzi nos
vossos cantos a nas vossas novelas o bom sentir do povo, quer do Norte, quer do Sul; marcai
as diferenças e os laços existentes entre estas gentes irmãs, que são o braço e o cora ção do
Brasil. Não é de vossos estudos interessantes ao observador e ao psicólogo, que nos pode vir
o mal. Que seria melhor: u ma pátria uniforme, morta, gelada, ou vivace e múlt ipla em suas
man ifestações? [...] Não se chama isto de dividir a literatura nac ional em duas; é apenas
SANT OS, Rafael José dos. Regionalidade, literatura e pensamento social. Cenários, Porto Alegre, v. 1, n. 3, 1° Semestre 2011.
afirmar a unidade na mult iplicidade. (ROM ERO, 1953, p. 172).
Nesse trecho se revela muito do espírito que iria animar os regionalistas do
Recife nos anos 1920, em oposição, nas palavras de Gilberto Freyre, aos “brasileiros em
que a consciência regional e o sentido tradicional do Brasil vêm desaparecendo sob uma
onda de mau cosmopolitismo e de falso modernismo (FREYRE, 1996, p. 75). Os
principais destinatários da mensagem eram os modernistas paulistas de 1922, entre eles
Mário de Andrade, um pesquisador da cultura popular cujo interesse no folclore
vinculava-se a um modernismo que misturava a experimentação à busca de uma
expressão do nacional. Ao tomar conhecimento do programa do I Congresso
Regionalista do Nordeste que viria ocorrer em 1926, ele escreve em carta a Camara
Cascudo, datada de 06/09/1925:
O tal Congresso Regionalista me deixou besta de entusiasmo. Em tese sou
contrário ao regionalis mo. Acho desintegrante de idéia de nação e sobre este
ponto muito prejudicial pro Bras il. Além disso fatalmente o regionalismo
insiste sobre as diferenciações e as curiosidades salientando não
propriamente o caráter individual psicológico du ma raça porém os seus dados
exóticos. Pode-se dizer que exóticos até dentro do próprio país, não acha?
(ANDRA DE, 2000, p. 38).
O I Congresso Regionalista foi precedido em 1925 pelo lançamento do Livro do
Nordeste uma edição comemorativa do 1º Centenário do Diário de Pernambuco
organizada por Freyre e que reuniu contribuições de diferentes artistas e intelectuais
como Annibal Fernandes, Joaquim Cardozo, Manoel Bandeira, o desenhista, e o poeta
Manuel Bandeira, que publica sua Evocação do Recife (FREYRE, 1996). Em 1926
realiza-se o Congresso regionalista, mas o texto do Manifesto Regionalista seria
publicado apenas em 1952. Nele, Gilberto Freyre afirma que pretendia “inspirar uma
nova organização do Brasil” baseado na idéia de “articulação inter-regional”: “Pois de
regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões
naturais a que se sobrepuseram regiões sociais”. (FREYRE, 1996, p. 50).
A primeira divisão geográfica do Brasil em regiões havia sido realizada em 1913
por Delgado de Carvalho, que introduz no Brasil a idéia de “região natural”
(MAGNAGO, 1995, p. 66) 2 . Esse fato leva a interpretar a assertiva de Freyre como uma
distinção entre meio físico e cultura, na busca de uma perspectiva propriamente social
sobreposta à geográfica, mas não definida por esta. Acrescente-se a isso também a
posição política do escritor em relação à política simultaneamente estadualizante e
centralizadora da República, tendência que Romero já havia criticado em relação ao
Império. Nas palavras de José Lins do Rêgo, no prefácio de 1941 ao livro Região e
Tradição, o regionalismo de Freyre constituía-se em três planos:
2
O país foi div idido em 5 regiões:Brasil Setentrional ou Amazônico – Acre, Amazonas e Pará; Brasil
Norte-Oriental – Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas; Brasil
Oriental – Serg ipe, Bah ia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e M inas Gerais; Brasil
Meridional – São Pau lo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Brasil Central – Goiás e Mato
Grosso. (IBGE, 2002, p.100).
SANT OS, Rafael José dos. Regionalidade, literatura e pensamento social. Cenários, Porto Alegre, v. 1, n. 3, 1° Semestre 2011.
No plano político é o contrário do estadualismo que a República imp lantara;
no plano artístico é u ma sondagem na alma do povo, nas fontes de folclore,
no que há de grande e vigoroso na alma popular. [...]. No plano das idéias
daria mais tarde o seu grande livro Nordeste, de uma força lírica, de u m
poder de síntese que vai da alma ao corpo, que atravessa zonas misteriosas e
escuras e os grandes dias claros. Em poesia seria a Evocação do Recife de
Manuel Bandeira. (In FREYRE, 1941, p. 19-20).
Destaca-se do comentário feito pelo autor de Fogo Morto a idéia de inspiração
artística sondada na “alma do povo”, nas “fontes do folclore” e na “alma popular”,
expressões caras aos românticos. O popular aparece associado ao regional no Manifesto
de 1926 nas imagens dos mestres e mestras do povo (FREYRE, 1996, p. 71). Tudo
acontece de tal maneira que:
[...] no Nordeste, quem se apro xima do povo desce a raízes e a fontes de vida,
de cultura e de artes regionais. Quem se chega ao povo está en tre mestres e se
torna aprendiz, por mais bacharel em artes que seja ou por mais doutor em
med icina (FREYRE, 1996, p. 71).
Entre os que se aproximam do povo, Freyre inclui José de Alencar e Silvio
Romero, escritores distintos sob vários pontos de vista, mas que aparecem no Manifesto
como exemplo da força criadora que pode ser retirada dos ensinamentos dos mestres
populares. Em Gilberto Freyre o regional vincula-se novamente ao popular, justamente
no momento em que Mário de Andrade busca nas fontes folclóricas os fundamentos de
um modernismo nacionalista.
Entretanto, Freyre não toma o Nordeste apenas como singularidade, mas como
nascedouro da cultura brasileira, e nesse sentido aproxima-se das idéias de Franklin
Távora:
Pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura. E o Nordeste, talvez a
principal bacia em que se vêm processando essas combinações, essa fusão,
essa mistura de sangues que ainda fervem: portugueses, indígenas, espanhóis,
franceses, africanos, holandeses, judeus, ingleses, alemães, italianos
(FREYRE, 1996, p. 72).
Para o autor, parece que, se o Nordeste não é o Brasil, é sua melhor síntese. Nos
resíduos do Nordeste açucareiro Gilberto Freyre fará mais que buscar uma região. Ele a
tomará como berço de um Brasil mestiço:
Todo brasileiro, mes mo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo [...] a so mbra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do
negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais,
principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano
(FREYRE, 1980, p. 307).
As idéias de “combinação”, “fusão” e “mistura” denotam a miscigenação, tema
herdado de Romero, mas retrabalhado por Freyre a partir do culturalismo de Boas, de
quem havia sido aluno em seu período de estudos nos Estados-Unidos, e que
SANT OS, Rafael José dos. Regionalidade, literatura e pensamento social. Cenários, Porto Alegre, v. 1, n. 3, 1° Semestre 2011.
constituiria uma das linhas mestras de Casa Grande & Senzala. Para Renato Ortiz
(1986, p. 40-41), a obra de Freyre supera as ambigüidades das quais a problemática do
ser nacional encontrava-se prisioneira quando pensada em termos raciais. Entretanto, o
sucesso da empreitada não residia apenas nas idéias do sociólogo pernambucano, mas
também no contexto histórico e político em que a sociedade brasileira se encontrava nos
anos 1930, o que propiciou as condições para a disseminação do “mito das três raças” e
da idéia de mestiçagem que acaba por transformar-se no núcleo – lembrando a idéia
culturalista de caráter – de uma ideologia da identidade nacional:
O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar co mo ritual.
A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambigüidades das
teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar
senso comu m, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos
grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se
nacional. (ORTIZ, 1986, p. 41).
Um paradoxo da história do pensamento brasileiro: Freyre, que desde os anos
1920 empenhava-se em uma militância regionalista, teria suas idéias apropriadas e
reelaboradas no quadro ideológico do Estado Novo, constituindo parte de uma política
que viria a se contrapor frontalmente as reivindicações e práticas com marcas regionais
que sugerissem, ou que fossem interpretadas, como tentativas de fissura no projeto
nacionalista. É assim que emerge uma representação de povo brasileiro que iria
perdurar durante quase um século de modo praticamente hegemônico, consolidada no
contexto do Estado Novo, quando a diversidade cultural regional é transformada em
cores de uma aquarela que deve ser necessariamente monocromática, ou melhor:
mestiça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao tratar do processo de institucionalização da Geografia no Brasil, Moraes
afirma que na segunda metade do século XIX “as teses da geografia conheceram certo
destaque sem que a disciplina conhecesse urna objetivação institucional.” (MORAES,
1991, p.6). Atividade de pesquisa até então basicamente realizada por topógrafos,
muitos de formação militar, não se desenvolve no país “uma Geografia humana
explícita ao longo do século dezenove, rompendo uma tradição presente nos cronistas
coloniais. As teorias antropogeográficas vão, contudo, aflorar bastante no ensaísmo da
segunda metade do século” (MORAES, 2005, p. 16). O mesmo pode ser afirmado em
relação à Sociologia e à Antropologia, embora esta última divida-se, em sua fase préinstitucional, entre o campo crítico-literário e as ciências médicas.
No período entre 1870 e a segunda década do século XX, portanto, um
pensamento social se encontra em processo, desenvolvendo-se na medida em que tenta
dar conta de expressar, explicar e interpretar uma nacionalidade em construção. Embora
esse tema já tenha constituído uma imensa produção intelectual, estendendo-se da
História à Sociologia, da Antropologia à Teoria Literária, a abordagem da questão da
regionalidade tomada como categoria relacionada ao popular e, simultaneamente,
SANT OS, Rafael José dos. Regionalidade, literatura e pensamento social. Cenários, Porto Alegre, v. 1, n. 3, 1° Semestre 2011.
construída, não em subsunção, mas em relação dialética com a nacionalidade, ainda
permite e exige novas investigações.
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