O Brasil está maduro para o socialismo

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O Brasil está maduro para o socialismo
Edmilson Costa*
Introdução
Ao contrário da Rússia no período da revolução bolchevique ou da revolução chinesa de 1949,
cujas transformações foram realizadas em nações atrasadas do ponto de vista econômico, o
Brasil possui uma economia moderna, com elevado nível de desenvolvimento das forças
produtivas, destacando-se uma industrialização integrada e dinâmica, avançado processo
capitalista no campo, portanto maduro para o socialismo, muito mais maduro do que aquelas
sociedades que fizeram suas revoluções na primeira metade do século XX. Quando os
bolcheviques tomaram o poder em 1917 encontraram um país com uma economia
basicamente agrária e uma classe operária restrita apenas a algumas franjas industriais nas
grandes cidades. Os revolucionários chineses, quando conquistaram o poder em 1949,
encontraram também um país agrário, com a absoluta maioria dos trabalhadores no campo.
Portanto, tratava-se de países com baixo nível de desenvolvimento econômico, nos quais não
estavam ainda maduras as condições materiais para a construção do socialismo desenvolvido.
Por isso, essas nações tiveram que construir o processo industrial e modernização a
agropecuária a partir de bases muito precárias. Levaram muitos anos para consolidar o
desenvolvimento econômico com forças produtivas modernas. Isso marcou profundamente a
formação sócio-econômica dessas revoluções, seus problemas, percalços e singularidades.
Como os fundadores do marxismo costumavam afirmar, a construção do socialismo é mais
factível num país de base industrial, com uma classe operária numerosa, concentrada nos
locais de trabalho, do que num país agrário, de maioria camponesa, com relações de produção
atrasadas. Ressalte-se ainda que o desenvolvimento do capitalismo, na prática, destrói as
bases da velha sociedade camponesa e, sob seus escombros, constrói a sociedade burguesa
moderna e, assim, assenta as bases materiais para a sociedade socialista, que é a produção
desenvolvida na cidade e no campo, capaz de suprir as necessidades de bens e serviços de
toda a população.
Grande parte dos problemas vividos pelos países daquilo que ficou conhecido como socialismo
real
originou-se
das
condições
objetivas
atrasadas
daquelas
sociedades.
Sem
a
industrialização madura e a agropecuária moderna e desenvolvida, a construção socialista foi
realizada apalpando pedras, com heroísmo e debilidades, mas acima de tudo sem as
condições materiais objetivas para a construção socialista. Portanto, a tarefa de construção da
nova sociedade foi muito mais difícil do que seria se a revolução tivesse sido feita, por
exemplo, na Alemanha industrializada, como os marxistas imaginavam.
As revoluções em nações economicamente atrasadas cobram um alto preço ao processo
revolucionário. A herança camponesa da população, seus valores sociais ligados à
religiosidade, ao atraso cultural, às relações de produção baseada na economia camponesa, a
ausência de uma classe operária organizada em grandes conglomerados econômicos, além do
cerco permanente do inimigo de classe, todos esses fatores contribuíram para que as tarefas
da revolução fossem retardadas. Mesmo com todo o desenvolvimento científico e tecnológico
da URSS, essa herança cobrava um alto preço à revolução.
A revolução socialista num país de base industrial, com a maioria da população vivendo nas
grandes cidades, com uma classe operária concentrada nas grandes fábricas, com relações de
produção capitalistas na cidade e no campo, reúne condições bem mais propícias para a
construção do socialismo. A construção da nova sociedade já se inicia a partir de bases
econômicas, sociais, políticas e culturais desenvolvidas, o que permite avançar mais
aceleradamente para a construção da nova sociedade. Não será necessário nenhuma NEP
1
(Nova Política Econômica) , nenhum comunismo de guerra, nenhum passo atrás. Uma vez
derrotada a velha classe dominante e consolidado o poder dos trabalhadores, a tarefa de
construção da nova sociedade já encontra as bases objetivas para o socialismo desenvolvido.
O Brasil hoje reúne todas as condições para a construção de uma sociedade socialista
desenvolvida tanto do ponto de vista material quanto cultural. Possui uma base material sólida,
avançada e diversificada. Trata-se da sexta economia mundial, com um capitalismo maduro na
cidade e no campo, monopolista e hegemônico em todas as regiões, com uma classe operária
numerosa, concentrada nas grandes empresas fabris, com um nível de integração nacional
extraordinário, o assalariamento generalizado no campo, sem disputas territoriais separatistas,
uma só língua, um povo miscigenado, uma cultura nacional diversificada e rica. Portanto, com
todas as condições objetivas para a construção da sociedade socialista.
1. Traços essenciais da formação sócio-econômica brasileira
Para compreendermos os fundamentos constitutivos da sociedade brasileira e as perspectivas
do socialismo no Brasil, é necessário estudarmos as características fundamentais da nossa
história e os traços específicos da formação sócio-econômica do País. Essa reflexão nos
permite entender o momento histórico, a economia e a dinâmica atual em que se movem as
classes sociais, seus interesses econômicos e políticos, as tradições, as marcas e os vícios do
passado, bem como as vertentes complexas do presente. Somente com este diagnóstico
baseado na análise concreta da realidade concreta, poderemos traçar as possibilidades de
transformação futura de uma sociedade dinâmica e mutante como a brasileira.
O Brasil pode ser considerado um caso singular no desenvolvimento do capitalismo mundial,
uma vez que, até o início dos anos 30 do século passado, era um País agrário-exportador, com
uma economia que se estruturava a partir da exportação de uma mercadoria especial, o café.
Iniciou sua revolução burguesa cerca de 300 anos após a revolução na Inglaterra, cerca de
dois séculos depois a revolução industrial e um século após a formação do capitalismo
monopolista nos países centrais. Em outras palavras, até a terceira década do século passado
1
Política econômica lançada por Vladimir Lênin no início da revolução bolchevique na URSS, com o
objetivo aumentar a produção do País.
o Brasil era uma nação economicamente agrária, com mais de quatro séculos de atraso
econômico, político e social.
Outra particularidade do desenvolvimento sócio-econômico brasileiro é o fato de que, após
1930 e, especialmente, nos anos 50, 60 e 70, o País realizou um processo de construção
industrial em marcha forçada e em tempo recorde, processo que transformou o Brasil numa
nação industrial, com um parque produtivo diversificado e integrado, elevado índice de
urbanização, concentração operária em grandes unidades fabris, além do fato de que o
capitalismo hegemonizou as relações no campo e subordinou as pequenas economias rurais
às relações capitalistas de produção, muito embora esse desenvolvimento tenha sido realizado
com dramática concentração da renda e desigualdade social.
O longo atraso sócio-econômico formou uma classe dominante autoritária, arrogante e viciada
na impunidade, fruto de cerca de três séculos de escravidão, o que pode ser expresso no fato
de que esses setores sempre procuraram afastar as classes populares das decisões
econômicas e políticas do País. As classes dominantes também se formaram num processo de
dependência aos circuitos do capitalismo internacional. Primeiro, ao colonialismo de Portugal,
depois ao imperialismo inglês e atualmente ao norte-americano, o que marcou de maneira
profunda a subordinação desses setores aos centros capitalistas mundiais, quer como
associados, quer operando em torno de seus interesses.
1.1 A formação econômica e política
Como todos os países da América Latina, o Brasil teve um passado colonial que deixou marcas
profundas na sociedade brasileira. Mesmo que produção estivesse integrada ao circuito
internacional do capital mercantil, a economia brasileira nos três séculos de colonização
funcionou como espaço de apropriação de recursos naturais e financeiros para a Metrópole
portuguesa e, desta, para a Inglaterra. A produção interna era vigiada e controlada pela Coroa,
os portugueses monopolizavam o comércio, o País ainda estava proibido de construir
manufatura em qualquer região e o trabalho era baseado na mão-de-obra escrava. Como
colônia de exploração, não interessava a Portugal a construção de uma economia interna, pois
isso poderia representar no futuro a contestação à dominação colonial.
2
Após a independência, em 1822, até a proclamação da República, em 1889, o País foi
governado por uma monarquia absolutista e escravocrata, que manteve o País no atraso e na
dependência. Os proprietários rurais eram a base de sustentação do regime, tanto que o Brasil
foi o último País a institucionalizar a libertação dos escravos. A emergência da República,
apesar de significar um avanço político em relação à velha monarquia, representou um novo
pacto das elites agrárias do Rio de Janeiro e de São Paulo com o capital inglês, o que deu
continuidade a uma economia agrário-exportadora, agora dependente das exportações de
2
Para melhor compreensão do período colonial, consultar as obras clássicas sobre a formação econômica
do Brasil. PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo Brasiliense, 1976; FURTADO,
Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. SODRE, Nelson
Werneck. Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.
café, fato que contribui para bloquear por mais quase meio século as possibilidades de
3
industrialização do Brasil .
Quando o movimento abolicionista já estava às portas da vitória e os escravos fugiam das
fazendas sem que os latifundiários tivessem condições de reprimi-los, a princesa Isabel, filha
do imperador, resolveu decretar a libertação dos escravos (Lei Áurea, de 1888), bloqueando
assim um movimento popular que poderia não só derrubar a ordem escravocrata mas,
principalmente, contestar a estrutura fundiária do País. A proclamação da República pelo
comandante do Exército, Marechal Deodoro da Fonseca, até anteriormente um velho
monarquista, também representou uma antecipação ao movimento popular republicano e abriu
espaço para que as classes dominantes mantivessem o País no atraso econômico e social.
A possibilidade de uma mudança estratégica nos rumos da sociedade brasileira só veio a
ocorrer com a crise de 1929 e, posteriormente, com a revolução de 1930, a partir da qual os
setores agro-exportadores foram subordinados e iniciou-se efetivamente uma política de
Estado no sentido da construção da indústria nacional. Mesmo assim, a revolução de 1930 não
realizou a fundo as tarefas clássicas da revolução burguesa, uma vez que conciliou com a
velha ordem ao deixar intocadas as terras dos latifundiários. Essa debilidade fez com que, até
hoje, a sociedade brasileira continue pagando um enorme tributo, em termos de desigualdade
social e miséria nas grandes cidades e no campo, em função da ausência da reforma agrária.
Além disso, outro fator que viria marcar a formação econômica brasileira é o fato de que a
construção industrial foi realizada quando o capitalismo mundial já estava na fase monopolista,
o que dificultou a formação de uma burguesia com interesse em um projeto nacional, quer em
função da conjuntura internacional, quer pelo fato de que o processo de acumulação interno
estava muito aquém das possibilidades financeiras de construção de monopólios nacionais
para rivalizar com os grandes conglomerados das economias centrais.
Quando foi realizada a industrialização efetiva, com o Plano de Metas, na segunda metade da
década de 50, os monopólios dos países centrais já iniciavam o processo de internacional da
produção e ds finanças. Sendo assim, dado o papel de liderança das transnacionais na
industrialização brasileira, grande parte da burguesia nacional já emergiu subordinada aos
centros internacionais do capital e passou a orbitar em torno da lógica do grande capital
internacional.
4
Entretanto, os três primeiros anos da década de 60, marcados por grande politização dos
setores populares e intensificação da luta política e social nas cidades e no campo, abriram
possibilidades para a construção de um projeto econômico e social onde os setores populares
pudessem influir de maneira efetiva. Nesse período, estavam em disputa dois projetos que
buscavam reorientar os rumos da economia e da sociedade brasileira – as Reformas de Base e
3
Um dos aspectos desse pacto de elites era a chamada política do café com leite, pela qual São Paulo
tinha direito de eleger um presidente da República por um mandato, sendo que o mandato seguinte
deveria ser exercido por um presidente oriundo de Minas Gerais.
4
Um exemplo típico desse processo foi a criação das empresas brasileiras de autopeças (na época, a
grande maioria de capital nacional), que nasceram umbilicalmente ligadas ao processo de fornecimento
de peças e componentes para as multinacionais da indústria automobilística, o setor mais dinâmico da
economia no período, portanto inteiramente subordinadas à lógica do capital multinacional.
5
o projeto dos setores ligados ao capital internacional. O projeto das reformas de base visava
um desenvolvimento econômico com elevado grau de autonomia e reformas sociais, enquanto
o outro projeto estava ligado aos circuitos do capital internacional e a disciplina dos
movimentos sociais.
Como as Reformas de Base eram apoiadas pelos setores populares, partidos políticos ligados
à pequena burguesia, ao trabalhismo e a alguns setores da burguesia nacional, além do fato
de que o governo João Goulart apoiava essas reformas, muitos setores políticos,
especialmente o Partido Comunista Brasileiro (PCB), principal organização política de
esquerda na época, acreditavam que era possível uma frente única (proletariado, setores
médios, camponeses e burguesia nacional), onde a burguesia nacional teria um papel
protagonista, em função de suas contradições com o imperialismo, como se afirmava na época.
Só numa etapa posterior, quando estivessem removidas as causas que mantinham o País no
atraso, é que se abririam os caminhos para a revolução socialista, como assinalava a
Declaração de Março de 1958, do PCB:
6
“A sociedade brasileira está submetida, na etapa atual de sua história, a duas contradições
fundamentais. A primeira é a contradição entre nação e o imperialismo norte-americano e seus
agentes internos. A segunda é a contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e
as relações de produção semi-feudais na agricultura. A sociedade brasileira encerra também
uma contradição entre proletariado e a burguesia ... mas esta contradição não exige uma
solução radical na etapa atual. Nas condições presentes de nosso País, o desenvolvimento
capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. A revolução no Brasil,
por conseguinte, não é ainda socialista, mas antiimperialista, anti-feudal, nacional e
7
democrática” .
Esta etapa da revolução prepararia o terreno para as mudanças mais profundas, quando então
o proletariado, mais fortalecido e organizado, passaria a hegemonizar o processo
revolucionário e iniciaria a de transição para o socialismo: “A solução completa dos problemas
que ela apresenta (a revolução, EC) deve levar à inteira libertação econômica e política da
dependência para com o imperialismo norte-americano; à transformação radical da estrutura
agrária, com a liquidação do monopólio da terra e das relações pré-capitalistas de trabalho; ao
desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e à democratização
radical da vida política. Estas transformações removerão as causas profundas do atraso de
nosso povo e criarão, com o poder das forças antiimperialistas e anti-feudais, sob a direção do
proletariado, as condições para a transição ao socialismo, objetivo não imediato, mas final, da
8
classe operária brasileira” .
5
Para maior informação sobre as lutas sociais e políticas desse período, consultar: MONIZ BANDEIRA.
O Governo João Goulart – As lutas Sociais no Brasil, 1961-1964. Sobre os dois projetos, consultar:
COSTA, Edmilson. A Política Salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 1997.
6
Declaração sobre a Política do PCB, março de 1958, pg. 5. Essa Declaração rompia com o Manifesto
de Agosto de 1950, considerado pela então direção do PCB como sectário e esquerdista, pois propunha o
sindicalismo paralelo e a resistência armada quando necessário, dependendo da região do País.
7
Idem, pg. 5
8
Idem, pg. 5
O desfecho desse processo foi o golpe militar de 1964, que veio sepultar as últimas ilusões
sobre o papel progressista da burguesia nacional, uma vez que a maioria absoluta dessa
classe apoiou o golpe. Ao longo dos 21 anos de ditadura (1964-1985), o governo militar
construiu um modelo econômico antinacional e antipopular, com a ampliação do domínio do
capital estrangeiro nos setores dinâmicos da economia; implantou um arrocho salarial
permanente que transformou o País numa economia de baixos salários. Em contrapartida,
consolidou um setor estatal que cumpriu o papel de linha auxiliar do processo de acumulação
dos grandes grupos econômicos. Ao final da ditadura, em função das dificuldades econômicas
e políticas, o governo militar ainda deixou como herança os acordos com o Fundo Monetário
Internacional, processo que levou à desorganização da economia brasileira e ao ciclo de duas
décadas perdidas.
O fim do governo militar e o processo de transição democrática não foram capazes de
desmontar a estrutura construída pela ditadura. Pelo contrário, com a vitória de Fernando
Collor, em 1989, o Brasil ingressaria nos anos 90 inteiramente alinhado ao projeto neoliberal.
No período de dois anos que durou seu breve mandato, realizou-se severos cortes nos gastos
públicos, demissão de funcionários públicos, redução dos salários, privatizações de várias
empresas estatais, desregulamentação, abertura da economia para o exterior e ofensiva contra
direitos e garantias dos trabalhadores.
No entanto, a corrupção generalizada levou ao impeachement de Collor e, em seguida, à
implantação do Plano Real e, posteriormente, eleição de Fernando Henrique Cardoso à
presidência da Republica, em 1994. Esse governo aprofundou de maneira radical a política
neoliberal no Brasil: privatizou a absoluta maioria dos setores sob controle do Estado, como
energia elétrica, a siderurgia, as telecomunicações, o setor ferroviário, a mineração, os bancos
estaduais, entre outros. Reformou a Constituição para favorecer o capital internacional, realizou
a reforma da previdência, ampliou o arrocho salarial e a ofensiva contra os direitos dos
trabalhadores.
9
O governo FHC significou não apenas a privatização generalizada da economia brasileira, por
grandes grupos nacionais e internacionais, como também uma mudança de qualidade no
processo de acumulação no País, marcada pelo estreitamento das relações entre o capital
financeiro internacional e a burguesia associada brasileira. O governo FHC articulou um projeto
que colocou os interesses do capital financeiro como norteador de sua política econômica,
unificou a burguesia associada, disciplinou eventuais setores industriais prejudicados com a
nova ordem, sucateou a infraestrutura e os equipamentos sociais e fragilizou o poder regulador
do Estado. “Para os formuladores dessa nova política não era mais necessário o velho Estado
9
O processo de privatizações do governo FHC foi eivado pela corrupção generalizada, desde a
subavaliação de preços das empresas, negociatas entre dirigentes governamentais e compradores das
empresas públicas, além do fato de que o governo, através do BNDEs, financiou grande parte das
aquisições dessas empresas pelo capital privado. Ressalte-se ainda que parte do pagamento dessas
empresas foi realizado com as chamadas moedas podres (títulos depreciados no mercado, mas recebidos
pelo valor de face no pagamento ao governo). Para conhecimento do processo de privatrizações,
consultar: Boindi, Aluysio. O Brasil Privatizado, Vol. I e II. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
E A privataria tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
Nacional para organizar seus interesses: isso seria feito a partir do mercado e da economia
10
globalizada” .
Essa política econômica viria sepultar as possibilidades de um papel protagonista da chamada
burguesia nacional em qualquer processo de transformação social e política no Brasil, tanto
porque a grande maioria do setor estatal da economia foi entregue ao grande capital
internacional e à burguesia associada, quanto porque o neoliberalismo reduziu severamente a
participação do capital nacional na economia. Em função da abertura econômica e da
valorização por longo período do Real, vários setores do capital nacional desapareceram ou
ficaram muito fragilizados, como o setor de autopeças, brinquedos, eletroeletrônico, têxtil, entre
outros, ou ainda se transformaram em rentistas ou comerciantes de produtos internacionais,
quando venderam suas empresas ao capital estrangeiro.
1.2 A formação social
Do ponto de vista social, é importante também analisarmos os aspectos históricos que
marcaram nossa formação para compreendermos a atual sociedade brasileira, as marcas
permanentes que vinculam as classes dominantes à impunidade, ao racismo, ao desrespeito
aos trabalhadores, à falta de democracia nas relações capital-trabalho e aos baixos salários
que se pagam no Brasil, bem como às causas das debilidades organizativas e ideológicas dos
trabalhadores. Temos no Brasil uma classe dominante obtusa, autoritária, viciada na baixa
remuneração do trabalho e ao desrespeito aos direitos e garantias dos trabalhadores. Ao
mesmo tempo deve-se registrar um baixo nível de sindicalização e organização dos
trabalhadores e uma massa enorme de subempregados que ao longo de nossa história têm a
sobrevivência como único horizonte de suas preocupações.
Durante todo o período colonial, tanto no ciclo da economia açucareira quanto no ciclo do ouro,
todo o trabalho foi realizado com mão-de-obra escrava, capturada na África e trazida ao Brasil
nos porões infectos dos navios negreiros, sendo que boa parte morria nesse percurso e tinham
11
seus corpos lançados no Atlântico . Os sobreviventes, ao chegarem ao Brasil, eram vendidos
como animais de carga aos donos dos engenhos, das minas e das fazendas. Vivendo nas
senzalas, trabalhando de sol a sol no plantio, colheita e moagem da na cana-de-açúcar, nas
minas de ouro ou nas fazendas de café, tratados brutalmente, surrados e seviciados pelas
conveniências dos senhores escravagistas, seu tempo médio de vida útil era de cerca de 10
anos. Os senhores dispunham não apenas da força de trabalho, mas da própria vida dos
escravos e não eram raras as mortes e assassinatos daqueles que se rebelavam nas
fazendas.
Mesmo com a independência e a libertação dos escravos, as classes dominantes sempre
encontraram uma maneira de disciplinar os trabalhadores e reprimir suas manifestações, tanto
10
11
Costa, Edmilson. A conjuntura e a luta política no Brasil contemporâneo. www.economes.info
Nesses três séculos de escravidão vieram ao Brasil cerca de sete milhões de africanos e cerca de um ou
dois milhões morreram na viagem em consequência das más condições de vida nos porões dos navios.
que até a década de 30 do século XX a questão social era tratada como caso de polícia.
12
No
período da economia cafeeira, os proprietários rurais ainda conseguiram prolongar por cerca
de meio século o trabalho escravo nas fazendas de café. As pequenas economias rurais, o
artesanato e a mão-de-obra livre não puderam assim se desenvolver porque tanto a Metrópole
no período colonial quanto os imperadores herdeiros da Coroa portuguesa não tinham
interesse no desenvolvimento de uma economia industrial.
No período de transição da mão de obra escrava para o trabalho assalariado, as classes
dominantes encontraram uma fórmula para obstruir a constituição de um mercado de trabalho
livre, quando influenciaram o governo a subvencionar a imigração de europeus ao Brasil numa
quantidade muito maior do que a necessário para as lavouras do café.
13
Com isso, formou-se
um expressivo exército de reserva, o que possibilitou às classes dominantes da época pagar
baixos salários aos trabalhadores livres. Não raro esses trabalhadores entravam em conflito
com os barões do café que os queria tratar com a truculência do período escravagista.
A revolução de 1930, apesar das conquistas sociais como o salário mínimo, as férias e
descanso semanal remunerado, além de outros direitos, criou um sindicalismo vinculado ao
Estado, no qual os sindicatos só poderiam funcionar se fossem aprovados pelo Ministério do
Trabalho. Essa medida contribuiu para a formação dos sindicatos amarelos (no Brasil chamado
de pelegos), atrelado ao governo e aos patrões e pouco dispostos à luta de classes. Esse tipo
de sindicalismo criou raízes tão profundas que até hoje a maior parte do sindicalismo brasileiro
pode ser considerado pelego.
A ditadura militar decretou um conjunto de medidas não apenas restritivas ao sindicalismo e
aos direitos dos trabalhadores, mas principalmente o confisco permanente dos salários. Ainda
nos anos de chumbo, o governo militar prendeu, torturou, perseguiu e assassinou dirigentes
sindicais, realizou intervenções nos sindicatos e, na prática, proibiu o direito de greve, uma vez
que a legislação era tão restritiva que inviabilizava qualquer movimento grevista. Isso sem levar
em conta o fato de que organizar os trabalhadores, tanto nas empresas quanto nos sindicatos,
significava um enorme risco de morte para os sindicalistas. Foi nesse ambiente que prosperou
o sindicalismo amarelo, assistencialista, desligado das bases, o que contribuiu de maneira
definitiva para que a ditadura militar instituísse reajustes salariais abaixo da inflação, cujo
resultado foi a consolidação de uma economia de baixos salários e a brutal concentração de
renda no País.
14
Outro aspecto peculiar das classes dominantes brasileiras, que marca seu profundo
autoritarismo, é o fato de que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi obrigado a atuar na
12
Tornou-se famosa a frase do ex-presidente Washington Luis (1926-1930), que resumia bem seu
entendimento sobre os conflitos sociais no Brasil. Referindo-se aos movimentos rebeldes na segunda
metade da década de 20, ele afirmaria: “A questão social é um caso de polícia”.
13
Os trabalhadores eram recrutados numa Europa com promessas de que aqui no Brasil teriam emprego
garantido e a possibilidade de se transformar em proprietários rurais.
14
Rui Mauro Marini levanta uma hipótese teórica que pode ser aplicada como uma luva a esse período da
ditadura militar. Ele afirma que a dependência faz com as classes dominantes da periferia seja obrigada a
transferir parte de seus lucros para o capital estrangeiro, mediante uma série de canais de dependência do
País com o exterior, como remessas de lucro, royalties, etc. Para compensar esse processo, a burguesia
paga salários internamente abaixo do valor da força de trabalho.
ilegalidade por cerca de 62 anos, tanto nos período de ditadura quanto nos governos civis.
Fundado em 1922, logo depois passaria a atuar na clandestinidade e somente nos anos de
1946 e parte de 1947 pode atuar legalmente. Em 1947 foi colocado novamente na ilegalidade,
seus parlamentares perderam o mandato em todo o País, e só veio a conquistar existência
legal novamente em 1986, com a redemocratização. Como os comunistas são os principais
interessados na organização e educação dos trabalhadores, a existência ilegal do PCB
dificultou a formação da consciência de classe dos trabalhadores no Brasil, contribuindo assim
para o atraso ideológico e organizativo ainda hoje existentes.
Essa conjuntura se tornou mais complexa com a implementação do neoliberalismo e da
reestruturação produtiva nos anos 90 no Brasil. Como ocorreu no mundo inteiro, o
neoliberalismo, do ponto de vista social, significou uma vingança de classe da burguesia contra
os trabalhadores. Sem a âncora soviética, o capital se sentiu à vontade para avançar sobre
direitos e garantias dos trabalhadores, reduzir salários e pensões e praticar uma ofensiva
contra as liberdades sindicais.
Os empresários passaram a reduzir os salários, desestimular abertamente a organização dos
trabalhadores nos sindicatos e praticar generalizadamente a cooptação de dirigentes sindicais.
Os meios de comunicação completaram esse processo semeando a confusão ideológica,
incentivando abertamente o individualismo e a possibilidade quimérica
dos trabalhadores
terem no capitalismo a oportunidade de montar o seu próprio negócio e, para disfarçar o
assalariamento e as contradições de classes, os trabalhadores passaram a ser tratados como
”colaboradores” e não mais empregados, tudo isso como o objetivo de camuflar o
assalariamento, a exploração e as contradições de classe.
Outra característica das classes dominantes brasileiras é seu apego ao patrimonialismo.
Mesmo com o desenvolvimento do capitalismo e a constituição de monopólios em praticamente
todos os setores da economia, parcela expressiva dos grupos econômicos brasileiros ainda
possui controle familiar. O Votorantim, por exemplo, maior grupo privado brasileiro, pertence
apenas a uma família, os Ermírios de Moraes. Mas isso não é exceção. Se observarmos os
principais grupos privados, poderemos constatar o quanto os grupos familiares ainda controlam
15
o grande capital no País .
Em outras palavras, esse conjunto de fatores econômicos e sociais, que se acumulam desde o
período colonial, deixou marcas profundas nas classes dominantes brasileiras. Trata-se de um
bloco social que se formou viciado na impunidade e na prática de afastar o povo das decisões
econômicas e políticas. Essas classes também ganharam enorme experiência em realizar
acordos por cima (pacto das elites) como forma de se antecipar às rupturas sociais e
econômicas. Foi assim na época da independência, quando o imperador que aqui ficara em
substituição ao monarca-pai que voltara a Portugal, proclamou a independência, antecipandose ao movimento nativista. Assim também ocorreu com a libertação dos escravos, a
15
Dos 100 principais grupos econômicos do País, parcela expressiva é formada por grupos de controle
familiar.
proclamação da República, revolução de 1930 e com o processo de redemocratização na
segunda metade da década de 80 do século passado.
Em função dessas características, as classes dominantes brasileiras, que já orbitavam sob a
lógica do grande capital internacional, quer associadas, quer ligadas aos fluxos de comércio e
das finanças internacionais, perderam completamente a possibilidade realizar sequer as
reformas que já foram realizadas por seus congêneres em outras partes do mundo. Copiam
como papagaios os valores dos países centrais e parcela significativa se envergonha até de
sua condição de brasileiro; preferiam ter nascido nos Estados Unidos ou Europa. Apavoradas
com qualquer possibilidade de mudanças no Brasil, guardam parcela expressiva de seus
recursos financeiros nos paraísos fiscais espalhados pelo mundo a fora. Portanto, não têm
condições de cumprir nenhum papel nem contra o imperialismo e muito menos nas futuras
transformações econômicas e políticas que o País necessita.
2. As décadas de 80 e 90 e as mudanças estruturais
Ao longo dos anos 30 até o início de 1980 o Brasil teve um longo ciclo de crescimento
econômico, com taxas superiores ao desempenho da maioria dos países capitalistas. Para se
ter uma idéia do dinamismo da economia brasileira, nesse período de meio século as taxas de
crescimento anuais médias do PIB registraram índice de cerca de 6%.
16
Se levarmos em conta
que em 1929 registrava-se o início do processo da grande depressão mundial e, no Brasil, em
1930 iniciava-se a revolução burguesa tenentista e, posteriormente, a Segunda Guerra
Mundial, portanto um período de grande turbulência econômica, a economia brasileira foi
marcada por um longo período de crescimento econômico continuado. Essa dinâmica pode ser
melhor observada a partir de meados dos anos 40. Por exemplo, entre 1947, quando foram
efetivamente iniciadas as aferições estatísticas no País, pela Fundação Getúlio Vargas, e 1980,
quando se encerrou o longo ciclo sócio-econômico iniciado em 1930, poderemos constatar que
a economia brasileira teve um crescimento médio acima de 7% ao ano.
Tratou-se, portanto, de um Kondratiev inteiro de crescimento econômico, mas essa
performance seria truncada bruscamente nos anos 80 e 90, quando a economia marcou uma
trajetória completamente diferente, com a regressão de todos os indicadores econômicos e
sociais. Observou-se nos anos 80 e 90 uma queda impressionante no Produto Interno Bruto
(que registrou um crescimento anual médio nestas duas décadas de apenas 2,5%), aumento
do desemprego, redução nos rendimentos dos trabalhadores e flexibilização de seus direitos,
elevada concentração de renda e uma queda visível no padrão de vida da população, além da
privatização de maior parte do patrimônio público. O processo de estagnação econômica
destas duas décadas perdidas foi um período atípico na economia brasileira moderna e só
pode ter ocorrido em função de circunstâncias muito especiais, grande parte delas ligadas às
relações de subordinação da economia brasileira às economias centrais, além dos percalços
da própria dinâmica do modelo econômico brasileiro.
16
A taxa anual média de crescimento, entre 1930 e 1980, foi de 6% (www.ipeadata.gov.br). Acesso em
30 de setembro de 2012.
2.1 Os anos 80, recessão e desorganização da economia
O final dos 70 e início dos anos 80 foi marcado por grave crise econômica, em função da dívida
externa. Com o aumento brusco da taxa de juros nos Estados Unidos e a redução dos
refinanciamentos por parte dos credores internacionais, a economia brasileira entrou em
colapso, tendo em vista a incapacidade do País de pagar ao serviço da dívida nas novas
condições da conjuntura internacional.
17
A situação se tornou tão grave que foi necessário um
empréstimo ponte do governo dos Estados Unidos para o Brasil não quebrar. Diante dessa
situação, ainda sob o jugo da ditadura militar, o governo realizou um programa de ajustes
predatórios, sob orientação do Fundo Monetário Internacional, que desorganizou a estrutura
econômica do País, iniciando assim a mais grave crise continuada da história contemporânea
do País.
Entre
as
principais
medidas
implantadas
pela
ortodoxia
monetarista
constavam
a
desvalorização da moeda e fortes estímulos à exportação, o corte nos gastos e investimentos
públicos, o aumento das taxas de juros e a contração do crédito e um violento arrocho salarial.
Essas medidsas visavam redirecionar a economia para o mercado externo, de forma a gerar
superávits comerciais, com os quais o País deveria pagar os serviços da dívida externa. O
resultado dessa política foi a maior recessão da história econômica brasileira, a retração do
mercado interno e a regressão de todos os indicadores econômicos e sociais.
A violenta recessão pode ser visualizada no crescimento médio anual negativo do PIB de –
2,1% entre 1981 e 1983 (-4,3, em 1981; 0,8% em 1982; e -2,9%, em 1983) um aumento
acentuado do desemprego, queda nos rendimentos dos salários e ampliação da barbárie
social. Nos outros anos da década de 80 os resultados não foram melhores. Mesmo levando
em conta que na segunda metade dos anos 80 (1986 e 1987) foi implantado um plano de
estabilização (Cruzado) que retomou por dois anos as taxas de crescimento históricas do País,
o crescimento médio anual do PIB da década foi de apenas 1,7%, cerca de quatro vezes
menor que a média do pós-guerra, um desempenho medíocre que inverteu uma longa trajetória
histórica de crescimento desde a década de 30. (tabela 1).
PIB a preços de mercado e PIB per capita
(1981 – 1990)
A
preços
A
PIB per capita
preços
de 2011
Variação Deflator
correntes
(R$
real
implícito
(US$
População de 2011
real
correntes
Ano milhões)
(%)
(%)
milhões)
(milhões) (R$)
(%)
(US$)
1981 1.802.452
-4,3
100,5
258.553
121.213
-6,3
2.133
17
A preços Variação A
14.870
preços
Na primeira metada da década de 70 os empréstimos brasileiros foram contratados a taxas de juros
muito baixas e em alguns anos negativas. Mas como as clásulas previam o pagamento dos serviços da
dívida a taxa de juros flutuantes, vinculados à prime norte-americana, o aumento brusco dos juros nos
Estados Unidos significou a inviabilidade do pagamento do serviço da dívida brasileira. (Costa.
Edmilson. Um projeto para o Brasil. São Paulo: Tecnocientífica, 2008).
1982 1.817.412
0,8
101,0
271.252
123.885
14.670
-1,3
2.190
1983 1.764.162
-2,9
131,5
189.459
126.573
13.938
-5,0
1.497
1984 1.859.427
5,4
201,7
189.744
129.273
14.384
3,2
1.468
1985 2.005.373
7,8
248,5
211.092
131.978
15.195
5,6
1.599
1986 2.155.576
7,5
149,2
257.812
134.653
16.008
5,4
1.915
1987 2.231.668
3,5
206,2
282.357
137.268
16.258
1,6
2.057
1988 2.230.329
-0,1
628,0
305.707
139.819
15.952
-1,9
2.186
1989 2.300.807
3,2
1.304,4
415.916
142.307
16.168
1,4
2.923
1990 2.200.722
-4,3
2.737,0
469.318
146.593
15.013
-7,1
3.202
Fonte: Banco Central, Relatório Anual, 2011.
Enquanto a economia permanecia estagnada, as exportações cresciam de maneira
extraordinária, chegando a fechar a década com superávits comerciais superiores a US$ 10
bilhões na média anual entre 1983 e 1990 (Tabela 2). Esse fenômeno se explica pelo fato de
que os cortes nos gastos e investimentos públicos, o aumento das taxas de juros e a redução
do poder de compra dos salários reduziram o mercado interno, o que forçou as empresas a
compensarem a queda no consumo nacional mediante as vendas externas, fato que foi
estimulado pelas políticas governamentais de incentivo às exportações, como a desvalorização
da moeda e os créditos-prêmio aos exportadores. Com os superávits comerciais, o governo
passou a ter condições de pagar os compromissos da dívida externa. Ou seja, o ajuste
predatório da economia brasileira na década de 80 foi feito única e exclusivamente para
satisfazer os interesses dos banqueiros internacionais, credores do Brasil.
(Tabela 2)
Exportações brasileiras (1980 – 1990)
Ano
Exportações (FOB)
Importações (FOB)
Saldo Comercial
1980
20.132,4
22.955,2
-2.822,8
1981
23.293,0
22.090,6
1.202,4
1982
20.175,1
19.395,0
780,1
1983
21.899,3
15.428,9
6.470,4
1984
27.005,3
13.915,8
13.089,5
1985
25.639,0
13.153,5
12.485,5
1986
22.348,6
14.044,3
8.304,3
1987
26.223,9
15.051,9
11.172,0
1988
33.789,4
14.605,3
19.184,1
1989
34.383,0
18.263,0
16.120,0
1990
31.413,8
20.661,0
10.752,8
Fonte: IBGE
2.2 Os anos 90 e o neoliberalismo
Se a crise dos anos 80 foi grave, os anos 90 vêm marcar não só a continuidade da estagnação
econômica, mas especialmente uma mudança de qualidade no processo de acumulação do
Brasil. Nos anos 90 construiu-se uma nova forma de relacionamento entre o grande capital
internacional, a grande burguesia associada, especialmente as frações ligadas à órbita
financeira e vinculadas ao bloco no governo, e o próprio Estado brasileiro. Influenciados pelo
Consenso de Washington e buscando recuperar o tempo perdido em função da impossibilidade
de implantar plenamente os ajustes neoliberais na década de 80,
18
os dois governos da
década de 90 (Collor e FHC) realizaram a fórceps, em tempo recorde e de maneira radical, a
agenda neoliberal no Brasil.
As modificações profundas ocorridas na economia brasileira nos anos 90 estavam em sintonia
com as mudanças que também aconteciam no plano internacional, uma vez que, a partir dos
governos Reagan e Tatcher, consolidou-se nos países centrais o poder dos setores do grande
capital mais ligadas ao capital especulativo. De forma semelhante, também houve no Brasil
uma recomposição entre as classes dominantes, cujas frações ligadas ao capital financeiro e
articuladas com a nova política do Estado, não apenas amealharam as principais empresas
públicas, como subordinaram os outros blocos de capitais à política neoliberal.
As medidas neoliberais começaram a ser implementadas a partir de 1990, com o governo
Collor, que iniciou a abertura da economia brasileira ao exterior, fez a reforma administrativa,
extinguiu vários órgãoes públicos e demitiu funcionários, privatizou várias empresas estatais e
avançou contra direitos e garantias dos trabalhadores.
19
No entanto, a corrupção generalizada
daquele governo fez com que a opinião pública se mobilizasse e, numa campanha de massas
histórica, conseguisse o impeachment do presidente, um fato sem precedentes na história do
País. Collor foi substituído por Itamar Franco, que deu continuidade de maneira meio
envergonhada, em função de seu passado nacionalista, à política neoliberal.
Mas os ajustes neoliberais propriamente ditos foram realizados de maneira plena a partir da
implantação do Plano Real e da eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) em 1994. O
Plano Real conseguiu deter a inflação, estabilizar a economia e fortalecer a moeda nacional
numa paridade igual ao dólar, o que possibilitou ao governo enorme popularidade. Com o
respaldo popular e apoio maciço da mídia nacional e internacional, o governo FHC reuniu as
condições suficientes para realizar as reformas neoliberais e articular um projeto que unificou a
18
Os ajustes monetaristas-neoliberais que estavam sendo implantados nos países capitalistas desde o final
da década de 70, com Reagan e Tatcher, não puderam ser implantados no Brssil em função de
circunstâncias muito especiais. Na primeira metade dos anos 80 a ditadura estava nos estertores e não
tinha condições políticas de implantar a política neoliberal. A segunda metade da déca foi marcada pela
redomocratização e pela eleição da Assembléia Nacional Constituinte, período no qual era impossível
também prosperar os postulados neoliberais.
19
Fernando Collor de Melo foi eleito presidente da República em 1989, ao derrotar Luis Inácio Lula da
Silva, o candidato do Partido dos trabalhadores. Apesar de ser um político desconhecido, a burguesia
brasileira, sem opções viáveis contra Lula, cerrou fileiras em torno de Collor para evitar o mal maior, a
eleição de Lula, na época um combativo líder metalúrgico que disputava a presidência com um amplo
programa de reformas.
burguesia associada, disciplinou eventuais setores prejudicados com a nova ordem e derrotou
a resistência dos trabalhadores
20
e de vários setores da sociedade contrários a essa agenda.
Os dois mandatos de FHC representaram uma mudança radical na economia do País: o
governo reformou a Constituição para ajustá-la à nova ordem neoliberal e favorecer ao capital
estrangeiro; aprofundou a abertura da economia ao exterior; impôs a Lei de responsabilidade
Fiscal, pela qual os governos só poderiam gastar até 60% do orçamento com pagamento de
pessoal; o regime de metas de inflação e superavit primário, câmbio flutuante, aumento das
taxas de juros e independência do Banco Central, com o objetivo de privilegiar o capital
financeiro; retirou os entraves à mobilidade de capitais oriundos do exterior; realizou a reforma
administrativa, que cortou direitos e garantias dos trabalhadores; a reforma da previdência, que
ampliou o tempo de trabalho para a aposentadoria e reduziu os benefícios; flexibilizou as leis
trabalhistas e realizou uma cruzada contra os salários dos trabalhadores.
Um destaque especial deve ser dedicado à política de privatizações: o governo FHC privatizou
todo o setor siderúrgico, o setor petroquímco, as telecomunicações, o setor elétrico, setor de
fertilizantes, a marinha mercante, o setor ferroviário, os bancos estaduais, quebrou o monopólio
estatal do petróleo, envolvenbdo as principais empresas públicas brasileiras, dentre elas as
empresas-símbolos do processo de industrialização brasileiro.
21
O processo de privatização foi
uma espécie de operação selvagem: realizado em meio a comprovadas denúncias de
corrupção entre compradores e vendedores, os preços das empresas foram subavaliados por
consultorias internacionais, o BNDEs (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social, um banco estatal) financiou parcela expressiva das privatizações e os compradores
ainda puderam pagar parte da dívida com moedas podres (títulos depreciados no mercado,
mas que entravam no pagamento com valor de face).
O resultado dos oito anos de governo neoliberal foi a continuidade da estagnação econômica
do País, com o Produto Interno Bruto registrando um crescimento médio anual de apenas 2,5%
(Tabela 3), um aumento do desemprego a patamares próximos a 20% da população nas
regiões metropolitanas, concentração da renda e profunda queda no padrão de vida da
população. Como herança ainda do Plano real, em função da abertura econômica, vários
setores industriais desapareceram ou ficaram bastante fragilizados, como autopeças,
brinquedos, calçados, têxtil, eletro-eletrônico, entre outros. A endividamento público do Estado
aumentou de R$ 62,5 bilhões em 1994 para R$ 881 bilhões em 2002, ultimo do governo FHC.
20
Um marco na derrota dos trabalhadores foi a greve dos petroleiros de 1995. A exemplo de Tatcher e a
repressão contra os mineiros ingleses e Reagan e o endurecimento contra os controladores de vôo nos
EUA, Fernando Henrique Cardoso colocou todo o aparato repressivo contra os paetroleiros, uma das
categorias mais organizadas do País e que atuava num setor estratégico da economia, o petróleo. Apesar
de todas as ameaças e pressões, a greve continuava forte. Então FCH convocou o Exército e invadiu as
refinarias, prendeu os dirigentes grevista e realizou intervenção nos sindicatos, de forma a quebrar a
resistência dos trabalhadores e servir como exempo para outras categorias. Com a derrota da greve no
setor mais organizados dos trabalhadores, foi aberto caminho para a disciplina do movimento sindical.
21
Em função das características históricas do Brasil, onde o Estado foi o comendante-em-chefe do
processo de industrialização, as empresas públicas representavam cerca de 40% da formação do Produto
Interno Bruto do País.
Tabela 3
PIB a preços de mercado e PIB per capita
(1991 – 2002)
A
preços
A
PIB per capita
preços
de 2011
Variação Deflator
correntes
A preços Variação A
preços
(R$
real
implícito
(US$
População de 2011
real
correntes
Ano milhões)
(%)
(%)
milhões)
(milhões) (R$)
(%)
(US$)
1991 2.223.389
1,0
416,7
405.679
149.094
14.913
-0,7
2.721
1992 2.211.303
-0,5
969,0
387.295
151.547
14.592
-2,2
2.556
1993 2.320.205
4,9
1.996,1
429.685
153.986
15.068
3,3
2.790
1994 2.456.003
5,9
2.240,2
543.087
156.431
15.700
4,2
3.472
1995 2.559.740
4,2
93,9
770.350
158.875
16.112
2,6
4.849
1996 2.614.787
2,2
17,1
840.268
161.323
16.208
0,6
5.209
1997 2.703.044
3,4
7,6
871.274
163.780
16.504
1,8
5.320
1998 2.703.999
0,0
4,2
843.985
166.252
16.264
-1,5
5.077
1999 2.710.870
0,3
8,5
586.777
168.754
16.064
-1,2
3.477
2000 2.827.605
4,3
6,2
644.984
171.280
16.509
2,8
3.766
2001 2.864.735
1,3
9,0
553.771
173.808
16.482
-0,2
3.186
2002 2.940.882
2,7
10,6
504.359
176.304
16.681
1,2
2.861
Fonte: Banco Central. Relatório anual, 2011
Em resumo, as duas décadas de estagnação representaram enorme regressão econômica e
social e bloqueram uma trajetória história de crescimento econômico que vinha se realizando
desde os anos 30, isso no momento em que a economia mundial implantava novos ramos
industriais que viriam a comandar a dinâmica da indústria internacional, como a
microeletrônica, a engenharia genética e biotecnologia, as tecnologias da informação, a
robótica, a utilização de novos materiais, a nanotecnologia. Foram severas perdas estratégicas
para uma nação que iniciara tardiamente seu processo de industrialização. Estudo que
realizamos sobre o período demonstra que, caso o Brasil tivesse continuado a crescer a taxas
médias anuais de 7% ao ano, como ocorreu do pós-guerra até 1980, o Produto Interno Bruto
do País e a renda per capita teriam reagistrado crescimento de cerca de três vezes mais que o
PIB de 2002 (Tabela 4).
2.3 Lula e a consolidação dos grandes grupos econômicos
O início do século XXI colocaria novamente para a sociedade brasileira uma disjuntiva sócioeconômica: continuar a ortodoxia das duas últimas décadas ou buscar alternativas para o
modelo econômico. Estas duas opções se expressaram nas candidaturas de Luis Inácio Lula
da Silva, pelo Partido dos Trabalhadores e José Serra, pelo PSDB (Partido da SocialDemocracia Brasileira). Majoritariamente, a sociedade brasileira optou por um novo rumo no
modelo econômico, com a eleição de Lula. Pela primeira vez na história brasileira um operário
iria assumir a presidência da República.
No entanto, quem esperava as mudanças há muito reivindicadas pela sociedade e pelos
trabalhadores deve ter ficado bastante frustrado, pois o antigo operário, nos dois mandatos em
que exerceu a presidência, manteve na essência o modelo neoliberal na economia e fortaleceu
e consolidou os grandes grupos econômicos, mediante um processo de fusões e aquisições
articuladas e financiadas pelo Estado. Como contraponto residual à governança para o grande
capital, Lula desenvolveu políticas de retomada do crescimento econômico, o que incorporou
ao emprego formal expressivo contingente de trabalhores, aumentou o salário mínimo e
realizou um conjunto de políticas compensatórias, focadas na pobreza extrema.
A mudança estratégica no programa do Partido dos Trabalhadores (PT) fora se gestando
lentamente à medida que o PT ia galgando postos na institucionalidade e se consolidou às
vésperas das eleições de 2002, quando Lula divulgou a Carta ao Povo Brasileiro, na qual se
comprometia a respeitar os contratos e manter a estabilidade econômica, “hoje um
patrimômonio de todos os brasileiros”; as contas públicas sob controle; e “preservar o superávit
22
primário o quanto for necessário”.
Ao mesmo tempo em que procurava acalmar o mercado (o
grande capital), o texto já prenunciava a nova política que deveria ser implementada no
governo, muito diferente das bandeiras históricas do Partido dos Trabalhadores.
Ao longo do primeiro mandato, Lula não só manteve a política neoliberal, como as metas de
inflação, câmbio flutuante, elevadas taxas de juros, autonomia operacional do Banco Central,
como ampliou ainda mais o superávit primário de 3,83% do PIB para 4,84%,
23
para surpresa
até mesmo do mercado financeiro, como renovou por mais dois anos os acordos com o Fundo
Monetário Internacional.
24
Realizou ainda a reforma da previdência, que aumentou ou o tempo
de trabalho para que os trabalhadores pudessem se aposentar, instituiu o fator previdenciário,
25
reduziu os benefícios dos aposentados e aprovou a Lei das Falências, que inverte as
prioridade de pagamentos das massas falidas – agora a prioridade é o pagamento das dívidas
ao sistema bancário, em detrimento do pagamento aos trabalhadores, ao contrário do que
ocorria antes.
Mesmo mantendo o núcleo duro das medidas neoliberais, Lula iniciou também um movimento
visando reorientar a economia no sentido do crescimento econômico, de forma a incorporar as
frações a burguesia industrial que foram alijadas das decisões econômicas e políticas no
governo anterior. Mesmo que ainda tenha existido alguns resquícios secundários de
22
www2.fpa.org.br. Carta ao Povo Brasileiro, junho de 2002. Acesso em 23 de outubro de 2012.
O superávit primário é percentual do orçamento (em relação ao PIB) que o governo se compromete a
economizar para pagar os juros do endividamento interno. Quanto maior o superávir primário, maiores
garantias terão os os detentores dos títulos de que receberão seus pagamentos.
24
Souza, Nilson Araújo. Economia Brasileira Contemporâneo. Pgs. 299 e 300, São Paulo: Atlas, 2008
25
A reforma previdenciária de Lula completa a primeira Reforma da Previdência realizada por FHC.
Entre outros pontos, estabeleceu um teto máximo para as aposentadorias (na época R$ 2.400,00),
eliminou a integralidade dos benefícios aos funcionmários públicos, introduziu a taxação aos inativos e
criou o fator previdenciário, instrumento que define uma idade mínima para o trabalhador se aposentar.
Mesmo que a pessoa já tenha completado os 35 anos de tempo de trabalho, se não tiver completado 65
anos terá seus rendimentos reduzidos mediante complexo cálculo baseado esperança de vida do País.
23
privatições, como um banco estadual que sobrara do governo FHC, concessões de rodovias,
além das parcerias público-privadas, as privatizações selvagens do governo anterior foram
contidas. Além disso, o governo desenvolveu uma política externa mais autônoma que
possibilitou a prospecção de novos espaços para atuação de grandes grupos econômicos
brasileiros no exterior, especialmente nas franjas da periferia, como América Latina, Oriente
Médio e África, muito embora tenha enviado tropas ao Haiti na vã esperança de ganhar a
simpatia dos EUA e uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Além disso, contribuiu para o processo de integração da América Latina, com a formação da
Unasul (União das Nações Sulamericnas), fortalecimento do Mercosul, com a entrada da
Venezuela, além da consolidação do G-20, como contraposição ao antigo G-7.
Ainda no primeiro mandato começou-se a verificar uma silenciosa mais importante mudança na
correlação de forças no interior do bloco hegemônico, o que se consolidou no segundo
mandato: o setor produtivo da economia passou a exercer maior influência na construção da
política industrial do País. Essa mudança foi marcada por uma nova política de Estado no
sentido de estabelecer uma parceria conflitiva entre os várias frações das classes dominantes,
com um aumento expressivo da participação dos grandes grupos do setor produtivo industrial e
do agro-negócio nas decisões econômicas do governo, muito embora o setor financeiro tivesse
continuado a obter ainda lucros extraordinários e com largas parcelas de poder na formulação
das políticas econômicas, especialmente no Banco Central.
Mediante uma política de financiamentos e aporte de capitais através do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDEs), da ulização dos fundos de pensão paraestatais
e das empresas públicas, o governo desenvolveu uma agressiva ação no sentido de
coordenar, financiar, articular e reunir condições para o fortalecimento dos grupos privados e
estatais nacionais, de forma a constituir grandes players globais com capacidade de inserção
na economia globalizada. Essa política envolveu um processo de concentração e centralização
de capitais, mediante fusões e aquisições entre as empresas de capital majoritariamente
nacional, visando criar as chamadas “campeãs nacionais” (Tbela 5), o que foi conseguido em
vários segmentos da economia, bem como a decisão das empresas estatais de comprar
preferencialmente componentes e equipamentos de empresas nacionais.
Tabela 4
PIB real, PIB potencial, renda per capita e população 1980-2002
Ano
PIB a Preços Variação
Crescimento Crescimento PIB
de 2002
acumulado
acumulado
1980=100
com 7% ao
preços de
ano
2002
real
Potencial PIB
com 7% anual
capita
per Variação
a real
População
PIB per
em
capita
milhões
potencial
1980=100
1980
845 387
-
100
100
845387
7 130
7
118,6
7128
1981
809 458
-4,3
95,7
107
904564
6 678
-6,3
121,2
7463
1982
816 176
0,8
96,47
114,49
967884
6 588
-1,3
123,9
7812
1983
792 262
-2,9
93,67
122,5
1035635
6 259
-5
126,6
8180
1984
835 045
5,4
98,73
131,08
1108130
6 460
3,2
129,3
8570
1985
900 587
7,8
106,43
140,26
1185699
6 824
5,6
132
8983
1986
968 041
7,5
114,41
150,07
1268698
7 189
5,4
134,7
9419
1987
1 002 213
3,5
118,41
160,58
1357507
7 301
1,6
137,3
9887
1988
1 001 612
-0,1
118,29
171,82
1452532
7 164
-1,9
139,8
10390
1989
1 033 263
3,2
122,08
183,85
1554210
7 261
1,4
142,3
10922
1990
988 316
-4,3
116,83
196,72
1663004
6 696
-7,8
147,6
11267
1991
998 495
1
118
210,49
1779414
6 660
-0,5
149,9
11871
1992
993 068
-0,5
117,41
225,22
1903973
6 524
-2
152,2
12510
1993
1 041 974
4,9
123,16
240,98
2037252
6 744
3,4
154,5
13186
1994
1 102 960
5,9
130,43
257,85
2179859
7 035
4,3
156,8
13902
1995
1 149 546
4,2
135,91
275,9
2332449
7 229
2,8
159
14669
1996
1 180 108
2,7
139,58
295,22
2495721
7 319
1,2
161,2
15482
1997
1 218 714
3,3
144,18
315,88
2670421
7 455
1,9
163,5
16333
1998
1 220 322
0,1
144,33
337,99
2857351
7 365
-1,2
165,7
17244
1999
1 229 907
0,8
145,48
361,65
3057365
7 325
-0,5
167,9
18209
2000
1 283 539
4,4
151,88
386,97
3271381
7 544
3
170,1
19232
2001
1 301 705
1,4
154,01
414,06
3500378
7 551
0,1
172,4
20304
2002
1 321 490
1,5
156,32
443,04
3745404
7 567
0,2
174,6
21451
Fonte: Banco Central. Projeções do autor
Tabela 5
Fusões e Aquisições no governo Lula (2002-2010)
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
395
337
415
389
573
721
645
643
787
Fonte: PWC, Relarório Fusões e Aquisições. Dez. 2010
Também no segundo mandato o governo estimulou de maneira acentuada o processo de
internacionalização de grandes grupos econômicos privados e estatais, com o objetivo de
ocupar espaços nas áreas da periferia em que o Brasil mantém influência econômica e política.
Esse cojunto de ações viria a se completar com uma política externa com certo grau de
autonomia relativa nas relações internacionais, na qual o Itamaraty não só se distanciava dos
aspectos mais duros da política norte-americana, mas principalmente buscava abrir espaço
para negócios dos grupos brasileiros na América Latina, Oriente Médio e África. A política de
concentração e centralização de capitais também se estendeu para o campo, onde o
agronegócio ligado ao processamento industrial das matérias-primas e à produção de
commodities passou a hegemonizar as relações econômicas no campo.
Essa política foi praticada em função da pressão dos grupos brasileiros diante da necessidade
de sobrevivência num mundo globalizado e altamente competitivo. No entanto, produziu uma
reestruturação quantitativa e qualitativa no capitalismo brasileiro em praticamente todos os
ramos da economia, cujo resultado foi a formação de grandes conglomerados empresariais
com atuação monopolista não epanas no mercado interno, mas também com presença forte
em algumas áreas internacionais, formando assim as chamadas multinacionais verde26
amarelas.
Ressalte-se ainda a elevada concentração e centralização de capitais no País:
para se ter uma idéia do grau de concentração da economia brasileira basta dizer que o
volume bruto de vendas dos 100 maiores grupos em 2010 foi de 56% do PIB, um percentual
semelhante ao verificado nos países centrais.
Em outras palavras, o governo Lula, conscientemente, contribuiu para a mudança de qualidade
do capitalismo brasileiro, com o fortalecimento dos grandes grupos economicos industriais,
financeiros e do agronegócio (o que vem sendo seguido pelo governo Dilma); procurou
26
De cordo com levntamemnto de publicações especializadas (as Multinacionais Braileiras (Valor
Econômico) e Ranking das transnacionais brasileiras 2010: repensando as estratégias globais (Fundação
Dom Cabral) as multinacionais brasileiras atuam em todos os continentes e as cinco maiores delas têm a
seguinte posição: Vale está presente em 33 países; Petrobrás, em 25; WEG, em 22; Camargo Corrêa, em
17; e Ordebrecht, 16.
estabelecer um novo posicionamento do Brasil no cenário internacional para atuar nas novas
áreas de influência e de representação internacional que possibilitasse ao Brasil ter voz nos
principais centros de decisões dos organismos internacionais, como o G-20, Unasul, Mercosul.
Para realizar esses objetivos, o governo desenvolveu uma estratégia forte no sentido de
capacitar instituições, empresas e bancos do Estado para tornar realidade um novo papel do
Brasil no cenário internacional.
3. O capitalismo monopolista atual
Em outros termos, as modificações profundas que ocorreram na sociedade brasileira nas
últimas sete décadas mudaram profundamente o perfil sócio-econômico do País. O Brasil
transitou em tempo recorde de uma nação agrário-exportadora para o capitalismo monopolista,
onde os grandes conglomerados empresariais dominam praticamente todos os ramos da
economia. Ocorreu nesse período uma migração extraordinária do campo para a cidade: em
1940 a maioria da população brasileira vivia no campo, enquanto atualmente 80% da
população residem nas cidades. A classe operária e o proletariado em geral, que eram pouco
expressivos nesse período, cresceram também de maneira extraordinária, concentrando-se
nas grandes empresas da região Sudeste.
O Brasil possui hoje um parque industrial desenvolvido, e uma agricultura com elevado grau de
inserção tecnológica. Possui ainda um setor de serviços moderno, tanto na área do comércio
quanto das finanças; tem ainda uma vasta rede logística que corresponde às necessidades do
processo do acumulação e uma estrutura de comunicação social (TV, rádio, internet, jornais,
etc.) que cobre todo o território nacional. Mesmo manipulados diariamente pelas classes
dominantes e a serviço de seus interesses, podem ser importantes ferramentas para a difusão
da informação e do conhecimento voltado para os interesses populares, bem como para a
propaganda revolucionária quando o País estiver sob o controle dos trabalhadores.
Com essas condições, a transição do sistema capitalista para o socialismo encontrará um País
em plenas condições para construir a sociedade socialista desenvolvida a partir de bases que
nenhuma outra nação que fez a revolução anteriormente possuía. Além de possuir meios de
produção em condições de abastecer a sociedade de bens e serviços, o Brasil tem terra em
abundância ainda inexplorada; sol o ano inteiro, que permite a produção de duas ou três safras
anuais; água também em abundância; todas as matérias-primas necessária ao processo de
produção, inclusive os metais raros utilizados nas tecnologias da informação e outros ramos
produtivos sofisticados, e uma mão-de-obra jovem e disposta ao trabalho. É bem verdade que
em todos os processos revolucionários há um período de transição entre a desagregação da
velha ordem e construção da nova sociedade, onde ocorre certa desorganização da produção,
reduzindo-se as possibiliodades de utilização de todo o potencial do País. Mas tão logo os
trabalhadores consolidem o poder, já encontram as bases materiais para a construção da nova
sociedade socialista.
3.1 A base material ou as condições objetivas
Em termos práticos, é importante detalharmos mais precisamente as condições objetivas do
capitalismo brasileiro para compreendermos o grau de desenvolvimento sócio-econômico que
possibilitará a construção do socialismo desenvolvido. O Brasil alcançou um Produto Interno
Bruto (PIB) de cerca de US$ 2,4 trilhão em 2010, desempenho que transformou o País na
sexta maior economia do mundo. Há elevada integração entre a indústria de máquinas e
equipamentos, a indústria intermediária e a indústria de bens de consumo. As relações
capitalistas modernas consolidaram-se no campo, modernizando as grandes propriedades, que
se especializaram na produção de commodities principalmente para o mercado externo. Hoje o
Brasil produz 130 milhões de toneladas de grãos, tornando-se um dos maiores exportadores na
área da agropecuária e possui ainda o maior rebanho bovino do mundo. Mesmo tendo sido
realizada em marcha forçada, com a expulsão de milhares de camponeses de suas terras e
destruição de grande parte da pequena propriedade isolada, hoje a agricultura brasileira está
plenamente incorporada ao processo de desenvolvimento capitalista.
A maior parte da população brasileira (cerca de 80%) vive nas cidades, especialmente nas
metrópoles e grandes aglomerações com mais de 100 mil habitantes, portanto com um grau de
urbanização típico das sociedades industriais, muito embora os níveis de pobreza sejam
bastante acentuados em função da perversa distribuição de renda. Para se ter uma idéia do
grau de metropolização da sociedade brasileira basta dizer que as 20 maiores cidades
brasileiras possuem uma população de cerca de 40 milhões de habitantes, cerca de um quinto
da populção nacional.
A classe operária brasileira é numerosa e concentrada, especialmente na região Sudeste e Sul,
que reúne mais de 70% dos operários da indústria de transformação. Mas com o
desenvolvimento do capitalismo nas duas últimas décadas hoje há vastos contingentes de
operários fabris nas regiões Norte e Nordeste, em função do deslocamento de centenas de
fábricas do Sudeste para essas regiões. Para uma população economicamente ativa de 92
milhões de pessoas, os trabalhadores ligados diretamente à produção (indústria e construção)
somam 20,5 milhões. A esses trabalhadores podem ser adicionados aqueles que trabalham em
atividades auxiliares à produção (transporte, armazenagem, comunicação), que são 4,4
milhões. Portanto, um proletariado do setor produtivo de cerca de 26 milhões de trabalhadores.
(Tabela 6).
Do ponto de vista econômico, o capitalismo brasileiro atingiu elevado grau de monopolização.
Para termos uma idéia da concentração do capital no País, basta analisar o perfil dos 100
maiores grupos que atuam internamente. Em 2010 esses grandes conglomerados obtiveram
um faturamento bruto correspondente a cerca de 56% do PIB, ou seja, os 100 maiores grupos
econômicos faturaram no ano analisado mais da metade de toda a economia brasileira. Se
desagregarmos um pouco mais esta análise, veremos que os 20 maiores grupos tiveram um
faturamento correspondente a 35% do PIB, enquanto os 10 maiores apresentaram um
desempenho correspondente a cerca de um quarto do PIB, cerca de 25% no mesmo período.
27
(Tabela 7)
Trabalho Principal
Brasil
(%)
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Agrícola
15 175
17
1 390
7 200
3 469
2 591
1 064
Indústria
13 598
14,7
792
2 277
6 941
2 759
829
Indústria de transformação
12 815
13,8
733
2 096
6 561
2 654
771
6 895
7,4
555
1 671
3 083
1 010
575
4 438
4,8
293
894
2 256
687
306
Construção
Transporte
Armazenagem e
Comunicação
27
Grandes Grupos – Valor Econômico. Ano 10, No. 10. Dez. 2011.
Comércio e Reparação
16 484
17,8
1 318
4 151
7 077
2 647
1 292
Alojamento e Alimentação
3 623
3,9
289
889
1 700
472
274
Administração Pública
4 754
5,1
508
1 266
1 812
652
516
Sociais
8 681
9,4
631
2 078
4 052
1 279
642
Serviços Domésticos
7 223
7,8
495
1 755
3 332
999
643
Sociais e Pessoais
3 928
4,2
252
876
1 927
576
298
Outras Atividades
7 150
7,7
322
1 221
3 893
1 114
599
Educação, Saúde e Serviços
Outros Serviços Coletivos,
Atividades Mal Definidas
Total
202
0,2
44
89
52
16
2
92 689
100
6 889
24 367
39 592
14 802
7 040
Trabalhadores com 10 anos ou mais, por setor de atividade principal
e grandes regiões, ocupados na semana de referência - 2009
Fonte: PNAD, 2011
Em outros termos, a performance dos grandes grupos econômicos demonstra o avançado
estágio de concentração e centralização do capital a que chegou o capitalismo brasileiro,
semelhante às economias dos países centrais. Além de concentrado, o capitalismo brasileiro é
integrado nacionalmente, como a verticalização das cadeias produtivas (tanto na indústria
quanto na agropecuária), com a vantagem ainda de o país possuir em seu subsolo a grande
maioria das matérias primas necessárias ao processo de produção, especialmente aquelas
oriundas das terras raras.
Outro dado importante a ser compreendido para aferir a maturidade do capitalismo brasileiro, é
o fato de que a dinâmica da economia é puxada pelo setor industrial monopolizado. As vendas
brutas dos grupos industriais que atuam no País representaram em 2010 cerca de 50% de
faturamento bruto dos 100 maiores grupos. Mesmo que nos últimos anos a política neoliberal
de
favorecimento
ao
sistema
financeiro
tenha
sido
hegemônica
e
prejudicado
o
desenvolvimento industrial, o parque industrial brasileiro têm plenas condições de suprir as
necessidades de toda população se construirmos um outro sistema social.
Tabela 7
PIB brasileiro e faturamento dos 100 maiores grupos em 2010
PIB em R$ milhões
(Preços de 2010)
(%)
Produto Interno Bruto (1)
3.674.964
100,00
Grupos
2.056.126
55,95
Indústria
1.024.876
27,89
Finanças
483.578,90
13,16
Serviços
398.100
10,83
Comércio
149.570
4,07
Faturamento dos 100 maiores
Fonte: Grandes Grupos: Valor Econômico. Banco Central. Reltório anual, 2011. Elaboração do
autor
A agropecuária brasileira possui as distorções típicas de um capitalismo retardatário, mas hoje
está plenamente integrada aos circuitos do capitalismo internacional. O Brasil é o maior
produtor mundial de café, açúcar, suco de laranja, biodísel, além de carne bovina e de frango,
o que coloca o País entre os cinco maiores exportadores de alimentos do planeta. O
agronegócio, organizado em grandes propriedades, responde pela grande maioria dessa
produção, mas a agricultura familiar ainda é responsável pelo abastecimento de parcela
expressiva dos produtos básicos, como arroz, feijão, mandioca e leite. As relações de produção
no campo, apesar de ainda existir traços arcaicos, como meieiros, arrendatários, parceiros, e
trabalho semelhante ao de escravo em regiões isoladas, são hoje hegemonizadas pelo
assalariamento agrícola, ressaltando-se que as pequenas propriedades, a agricultura familiar,
os assentados e outras formas residuais de organização da produção estão subordinados à
lógica das relações capitalistas e não têm condições de sobrevivência fora do circuito do
mercado capitalista.
Do ponto de vista dos serviços, o País também reúne as condições de uma economia
desenvolvida. Possui um sistema financeiro monopolista, onde os 10 principais grupos
dominam os negócios financeiros, além do fato de que esse sistema possui capilaridade
nacional. Trata-se de um sistema moderno, sofisticado, com elevado nível de automação
bancária. No entanto, esse sistema, apesar de controlar as transações financeiras, não cumpre
plenamente as funções de intermediação do financiamento para o setor industrial, uma vez que
a grande maioria dos empréstimos é realizada no curto prazo, com elevadas taxas de juros, o
que termina inviabilizando o investimento industrial. Quem cumpre o papel de financiador do
investimento industrial e da infraestrutura é um banco estatal, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDEs), que realiza financiamento de longo prazo para
a indústria, a taxas bem menores que as taxas dos bancos comerciais. No entanto, esse
imenso conglomerado financeiro, ao passar para o controle dos trabalhadores, já reúne todas
as condições para desempenhar as funções de ligação entre o sistema financeiro, a indústria, o
Estado e a população.
No setor de distribuição dos bens e serviços, há também elevado processo de monopolização.
Ficou para trás o tempo em que os bens eram vendidos nas pequenas unidades distribuidoras
(mercearias, quitandas ou nas padarias). Hoje, as principais cadeias de supermercados e lojas
de departamento cobrem todo o território nacional e são responsáveis pela distribuição da
grande maioria das mercadorias vendidas para a população. Do ponto de vista da
superestrutura, o País conta com uma rede e telecomunicações moderna, que possibilitou a
construção de meios de comunicações estruturados em cadeias nacionais, com a televisão do
rádio e da internet alcançando todo o território nacional. O País possui autonomia energética
no que se refere ao petróleo e energia hidroelétrica, é o maior produtor de biodisel e um dos
maiores produtores de álcool.
No que se refere às universidades e centros de pesquisa, há no País um conjunto de
universidades de excelência internacional, que vem formando uma massa crítica de
pesquisadores com imenso potencial para o desenvolvimento científico e tecnológico do País.
Mesmo levando em conta que os recursos destinados à educação são insuficientes, pois não
chegam a 10% do PIB, o Brasil possui um imenso potencial científico. No setor de pósgraduação conta com 2,7 mil cursos, 1,5 mil dos quais são programas de mestrado e
doutorado das universidades públicas. Nos últimos dez anos, o País dobrou o número de
mestres e doutores formados nas universidades. Em 2001 formavam-se anualmente 26 mil
mestres e doutores, em 2010, esse número aumentou para 53 mil mestres e doutores, o que
significa uma massa crítica em condições de desenvolver a pesquisa científica no País.
Além disso, existem ainda
28
centros de pesquisa de qualidade internacional não só nas
universidades como em institutos de pesquisa autônomos, como a Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), responsável por grande parte do desenvolvimento da
agropecuária brasileira, e o INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial), que já detém a
tecnologia para a construção e lançamento de satélites. Esse contingente de cientistas e
pesquisadores, numa outra perspectiva de ordem social, poderá alavancar de maneira
impressionante a pesquisa no interesse dos trabalhadores.
A este conjunto de fatores, recentemente veio aliar-se as descobertas de petróleo nas bacias
do pré-sal, o que transformará o Brasil num grande exportador de petróleo, semelhante aos
países árabes, uma vez que o País já possui a autosuficiência nesse setor. A renda do petróleo
do pré sal, administrada por um governo socialista, acelerará de maneira extraordinária a
construção do socialismo desenvolvido no País.
4.1 Um país rico com um povo pobre
A construção industrial do Brasil nos últimos 70 anos, realizada em marcha forçada, com uma
classe dominante refratária à incorporação das massas ao mercado de bens e serviços e ao
exercício de seus direitos políticos, com dois longos períodos de ditadura aberta do capital,
criou no País uma sociedade profundamente desigual, com dramática concentração da renda,
uma economia de baixos salários e imensos bolsões de miséria e pobreza nas várias regiões
do País, configurando um modelo sócio-econômico bárbaro, cuja expressão são as legiões de
miseráveis que vivem das migalhas oferecidas pelo governo, como o Bolsa Família, ou dos
trabalhadores pobres, desempregados ou com trabalho precário nas grandes metrópoles.
28
Dados divilgados pela Agência Brasil, a partir de Relatório da Coodenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
O nível de concentração de renda do Brasil é semelhante ao dos países mais pobres do
mundo, apesar do País ser a sexta economia do planeta em termos de Produto Interno Bruto.
Para se ter uma idéia, os 10% mais ricos da população obtiveram, em 2009, 42,5% da renda
nacional, enquanto os 5% mais ricos da população brasileira amealharam um percentual de
renda acima de 30% e os 1% mais ricos do País possuíam 10 vezes mais renda que 50% mais
pobres (Tabela 8). São esses dados que explicam a estreiteza do mercado interno, a violência
urbana, a marginalidade social e a imensa desigualdade da sociedade brasileira.
Tabela 8
Distribuição pessoal da renda – 1999-2009
Grupo
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
1,0
1,0
1.0
1,0
1,0
1,0
1,0
1,1
1,2
1,2
3,3
3,3
3,4
3,4
3,5
3,6
3,6
3,9
4,0
4,0
14,5
14,8
14,9
15,5
16,0
16,3
16,5
17,2
17,6
17,8
45,7
46,1
46,1
45,3
44,6
44,7
44,5
43,3
42,7
42,5
33,1
33,4
33,0
32,7
31,7
32,0
31,7
30,7
30,4
30,3
13,2
12,5
13,3
12,9
12,7
13,0
12,8
12,4
12,3
12,4
10% mais
pobres
20% mais
pobres
50% mais
pobres
10% mais
ricos
5%
mais
ricos
1%
ricos
mais
Fonte:PNAD/Dieese
Para se ter uma idéia do grau de miséria de vastos contingentes da população brasileira, basta
constatar que no Brasil existem cerca de 53 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de
pobreza, 23 milhões dos quais em miséria extrema. Além da pobreza, existe um grande
contingente, especialmente nas grandes aglomerações urbanas, que moram em habitações
muito precárias. Há no País 16,5 milhões de residências em favelas e habitações precárias,
nas quais residem 52,3 milhões de pessoas, sem infraestrutura e com má qualidade de vida.
Só mesmo um modelo econômico bárbaro pode ter produzido um quadro social tão dramático.
Não é concebível um país com terra em abundância, água em abundância, sol o ano inteiro,
detentor de praticamente todas as matérias-primas para o processo de produção, sem
terremotos, tufões, maremotos ou grandes catástrofes naturais, não tenha condições de
proporcionar uma vida digna para toda a população.Um dos principais desafios da nova ordem
socialista a ser construída no Brasil é exatamente reverter em tempo rápido esse quadro social,
extinguindo a miséria, construindo uma sociedade próspera, desenvolvida e com elevado
padrão de vida para todos. As bases materiais para essa nova sociedade já existem, o que
está faltando é o controle político dos trabalhadores sobre a riqueza da nação.
4. A necessidade de criação das condições subjetivas
Antes que alguém atire a primeira pedra, é importante ressaltar que a existência das condições
objetivas, da base material avançada, não significa que estamos às vésperas da revolução
socialista. As condições materiais significam muito, porque representam o lastro sob o qual vai
se desenvolver a luta de classes no País, as bases materiais nas quais a classe operária e o
proletariado vão construir a nova sociedade, mas isso é apenas uma parte da questão, porque
sem que as condições subjetivas estejam maduras não haverá revolução.
As condições objetivas são dadas pelo desenvolvimento das forças produtivas e da sociedade,
portanto independem da vontade das pessoas, das organizações políticas e sociais, mas as
condições subjetivas fazem parte de um estatuto mais complexo, requerem um conjunto de
condições que são construídas no terreno da luta de classes, no grau de conscientização dos
trabalhadores e na ação da vanguarda revolucionária, bem como na crise do capital. Ao longo
do processo de calmaria, a luta de classes fica restrita às reivindicações específicas, os
trabalhadores vão se exercitando na luta por seus interesses objetivos, na atuação sindical, em
greves localizadas. Trata-se de um aprendizado importante, mas se ficar apenas no terreno
das conquistas parciais, há a possibilidade real de se cair no reformismo, se contentar com as
migalhas oferecidas pelo capital, uma vez que a classe operária não adquire a consciência
espontaneamente.
Como dizia Lenin, a consciência do proletarido não é produto mecânica de sua condição de
classe, pois na sociedade burguesa os trabalhadores são influenciados pela cultura dominante
que, com seus meios de comunicação e seu aparato ideológico diariamente procura manipular
as informações, o ensino e a cultura no sentido de manutenção da ordem burguesa. Nessa
conjuntura, o proletariado é influenciado pelos valores da sociedade capitalista. Lenin explica
que a supremacia da sociedade burguesa no capitalismo se consolida porque a ideologia
burguesa é muito mais antiga que a ideologia proletaria, e, principalmente, porque possui
meios de difusão incomparáveis maior e mais numeroso que a do proletariado.
Nas condições espontâneas d luta de classe, a consciência proletária não vai além da luta
pelos interesses imediatos, que se expressam na luta sindical e nas lutas específicas por
maiores salários e melhores condições de vida. Portanto, a consciência revolucionária só pode
ser adquirida de fora, mediante o trabalho ideológico do partido revolucionário no sentido de
educar e orientar o proletariado para a revolução socialista.”A consciência política de classe
não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, de fora da luta econômica, de fora
das relações entre operários e patrões. A única esfera de onde se poderá extrarir esses
conhecimentos é o das relações de todas as classes e camadas com o Estado e o governo, na
esfera das relações de todas as classes entre si ... A história de todos os países comprova que
a classe operária, valendo-se exclusivamente de suas forças, só é capaz de elaborar uma
consciência trade-unionista, ou seja uma convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos,
lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias
aos operários.”
29
Por isso, é fundamental e imprescindível a ação da vanguarda revolucionária para organizar os
trabalhadores, elevar seu grau de consciência política, educá-los no sentido classista,
organizá-los para a superação do capitalismo. A organização revolucionária possui um papel
estratégico na construção das condições subjetivas da revolução, pois o partido condensa todo
o aprendizado da luta de classes realizada ao longo de vários anos. Por sua experiência, tem
mais capacidade de transformar as lutas econômicas em lutas políticas, elaborar uma
estratégia e tática para a revolução e formar no proletariado a consciência da necessidade de
tomada do poder político, como condição imprescindível para a emancipação do conjunto dos
trabalhadores.
Em outras palavras, o papel do Partido como vanguarda estratégica do proletariado, como
operador político coletivo dos trabalhadores, como síntese dos objetivos da classe operária
continua com uma atualidade extraordinária, apesar dos modismos teóricos e fetiches
ideológicos dos escribas pós-modernistas. Isso porque as entidades sociais, por mais
combativas que sejam, têm limites políticos, sociais e de representatividade, não possuem a
densidade totalizante dos partidos políticos.
“Um sindicato, por mais combativo que seja, deve representar os interesses dos trabalhadores
que representa. Da mesma forma que uma entidade estudantil, uma organização de
moradores, de mulheres ou de homosexuais tem como objetivo defender os interesses
específicos de seus representados, atuam nos limites institucionais da ordem burguesa.
Somente o partido político revolucionário, que se propõe a derrotar a ordem capitalista e que
junta em suas fileiras todos esses segmentos sociais, possui condições para entender a
totalidade da luta política e lançar propostas globais para a transformação da sociedade.”
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As condições subjetivas amadurecem no aprendizado da luta de classes, mas podem emergir
surpreendentemente nas crises prolongadas do capital, quando vêem à tona todas as
contradições do capitalismo e quando torna-se mais claro o papel do Estado como organizador
coletivo das classes dominantes. Nesse processo, o aprendizado no teatro de operações da
luta de classes é rápido: os trabalhadores ganham consciência mais rapidamente nos períodos
de crise que em longos anos de calmaria. A consciência e a disposição para a luta
desenvolvem-se aceleradamente. Nesse período, a vanguarda revolucionária joga um papel
determinante, com sua experiência e orientação junto aos trabalhadores no sentido da tomada
do poder.
Por isso, a tarefa dos revolucionários no Brasil é construir cotidianamente as condições
subjetivas para a revolução socialista brasileira, fazer a denúncia do capitalismo, a propaganda
do socialismo junto às massas, preparar-se para assumir a direção política da sociedade. O
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Lenin, Wladimir. Que fazer. Problemas candentes do nosso movimento. Pgs. 89 e 145. São Paulo:
Expressão Popular, 2012.
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Costa, Edmilson. Os movimentos sociais e os processos revolucionários na América Latina – Uma
crítica ao pós-modernismo. Esse ensaio foi publicado em vários sites internacionais em portugês e
espanhol.
socialismo no Brasil poderá nascer a partir de bases econômicas desenvolvidas, mas
especialmente porque nosso socialismo terá uma série de particularidades e singularidades
políticas, econômicas e sociais que poucos possuem. Será um socialismo com sotaque
carioca, paulista, mineiro, nordestino, gaúcho, pantaneiro, com carnaval, samba, MPB, uma
vasta cultura popular e uma sociedade construída a partir da fusão de todas as raças.
Essa é a tarefa de todos os revolucionários brasileiros!
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Sites consultados
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www.ibge.gov.br
www.ipeadata.gov.br
*Edmilson Costa é doutor em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado na mesma
instituição. É autor, entre outros, de A globalização e o capitalismo contemporâneo
(Expressão Popular, 2009), Um projeto para o Brasil (Tecno-Científica, 2008), A política
salarial no Brasil (Boitempo, 2007) e Crise Econômica Mundial, Globalização e o Brasil
(Edições ICP). Professor universitário, é diretor de pesquisa do Instituto Caio Prado Junior
e um dos editores da revista Novos Temas. É também membro da Comissão Política do
Comitê Central do PCB.
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