Dupla Via de Saída de Ventrículo Esquerdo

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Arq Bras Cardiol
2001; 76: 511-3.
e cols
RelatoLopes
de Caso
Dupla via de saída do VE
Dupla Via de Saída de Ventrículo Esquerdo. Diagnóstico
Ecocardiográfico
Lilian Maria Lopes, Paula Iamac Nomura de Rangel, Angela Maria Broglio Soraggi,
Beatriz Helena Sanches Furlanetto, Gláucio Furlanetto
São Paulo, SP
É relatado um caso de dupla via de saída de ventrículo
esquerdo associado à atresia tricúspide e hipoplasia de
ventrículo direito, diagnosticado pela ecocardiografia com
mapeamento de fluxo em cores, em lactente de três meses
com quadro clínico de cansaço e cianose. A criança foi submetida à cirurgia paliativa de cerclagem de artéria pulmonar sem estudo invasivo, apresentando boa evolução.
A dupla via de saída de ventrículo esquerdo constitui
uma anomalia rara na qual a aorta e a artéria pulmonar emergem inteiramente ou, preferencialmente, do ventrículo
morfologicamente esquerdo, com a primeira descrição na literatura atribuída a Marchal em 1819 1. Somente em 1967, foi
documentada em detalhes por Sakakibara e cols 2. Estudos
recentes relatam que a incidência é menor que 1:200.000
nascidos vivos 3.
Relato do Caso
Lactente de três meses de idade, sexo feminino, pesando 2,8kg, foi admitido em serviço médico com quadro de cansaço aos pequenos esforços. Ao exame físico encontrava-se
em regular estado geral, cianótica, taquidispnéica, freqüência
respiratória de 45 ipm, freqüência cardíaca de 130bpm. A ausculta pulmonar caracterizava-se por estertores subcrepitantes difusos e a ausculta cardíaca por sopro sistólico
em bordo esternal esquerdo médio com 2ª bulha desdobrada fixa. O fígado encontrava-se a 2,5cm do rebordo
costal direito e os pulsos eram simétricos e palpáveis bilateralmente. A radiografia de tórax mostrou área cardíaca aumentada, infiltrado pulmonar difuso com presença de ima-
Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência de São Paulo
Correspondência: Lilian M. Lopes – Rua Batista Caetano, 79/111 – 04108-130 –
São Paulo, SP
Recebido para publicação em15/6/00
Aceito em27/9/00
gem de broncograma aéreo em terço médio de hemitórax direito, iniciando-se tratamento clínico para broncopneumonia. O ecodopplercardiograma com mapeamento de fluxo em
cores evidenciou situs solitus, levocardia, comunicação interatrial tipo ostium secundum, atresia tricúspide e ventrículo direito severamente hipoplásico (fig. 1). Ambas as artérias estavam relacionadas com o ventrículo esquerdo. A artéria pulmonar localizava-se posterior e à esquerda e a aorta
anterior à direita, lembrando a disposição das grandes artérias na D-transposição. Uma comunicação interventricular
subaórtica foi identificada juntamente com uma continuação fibrosa pulmonar-mitral (fig. 2). O estudo com Doppler
pulsado e contínuo demonstrou um hiperfluxo pulmonar
importante, com velocidade de fluxo de 2,12m/s. Refluxo mitral e pulmonar mínimos foram demonstrados pelo mapeamento de fluxo em cores.
Foi indicada, cerclagem de artéria pulmonar havendo
evolução satisfatória no pós-operatório, sendo orientado
acompanhamento no centro médico de origem e um futuro
retorno para provável cirurgia de Fontan.
Discussão
A dupla via de saída de ventrículo esquerdo é uma
cardiopatia rara, na qual as duas grandes artérias emergem e
se relacionam inteiramente ou de forma predominante com
um ventrículo que é morfologicamente esquerdo. De acordo
com esta definição, a dupla via de saída de ventrículo esquerdo é uma entidade bastante heterogênea, apresentando grande número de tipos anatomicamente diferentes.
Assim, Van Praagh e Weinberg 1 descreveram 14 tipos diferentes e Bharati e cols. 4 relatam que não se trata de uma entidade precisa, dada a heterogeneidade dos achados anatômicos. Otero Coto e cols. 5 enfatizaram a necessidade da
descrição precisa da anatomia intra-cardíaca para guiar a
conduta terapêutica.
Gouton e cols. 6, em uma revisão de 126 casos, relataram a maior incidência de levocardia (96%); situs solitus
atrial (92,8%); comunicação interventricular subaórtica
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Fig. 1 - Superior: posição de quatro câmaras, onde se observa a atresia da valva
tricúspide (seta) e o ventrículo direito hipoplásico (VD).
Inferior: aorta (Ao) e artéria pulmonar (TP) relacionadas com o ventrículo esquerdo na
posição longitudinal. AD- átrio direito; AE- átrio esquerdo; VE- ventrículo esquerdo.
(70%) e D-transposição (65%). As anormalidades das valvas atrioventriculares foram observadas em 30% dos casos,
sendo a valva tricúspide a mais freqüentemente acometida
(atresia 16 casos, hipoplasia três casos, estenose sete casos, displasia oito casos, Ebstein três casos). Nessa eventualidade a hipoplasia de ventrículo direito também está associada, como em nosso caso.
Khanolkar e cols. 7 relataram pela primeira vez a associação de dupla via de saída de ventrículo esquerdo, atresia
tricúspide e cor triatriatum dextro, associação bastante
rara devida à persistência embrionária da valva direita do
seio venoso.
Devido à grande variabilidade de malformações associadas, cada caso adquire uma abordagem cirúrgica específica, através de várias técnicas que podem ser organizadas
de acordo com a presença ou não de hipoplasia de ventrículo direito, estenose pulmonar e relação da comunicação interventricular com as grandes artérias 8,9. Em presença de
ventrículo direito normal, a melhor conduta seria a correção
biventricular e, em presença de hipoplasia de ventrículo direito, as derivações cavo-pulmonares tipo Fontan seriam as
preferidas. É freqüente a utilização de tubos para se efetuar
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Fig. 2 - Superior: artéria pulmonar (TP) totalmente relacionada com o ventrículo esquerdo (VE) e continuação pulmonar-mitral, em posição apical anteriorizada.
Inferior: Nota-se a aorta (Ao) relacionada ao ventrículo esquerdo (VE) e cavalgando
uma comunicação interventricular (CIV). AE- átrio esquerdo.
a translocação da artéria pulmonar para o ventrículo direito
nas correções biventriculares, uma vez que a estenose valvar pulmonar é uma associação comum.
Antes da era da ecocardiografia bidimensional, o diagnóstico da dupla via de saída de ventrículo esquerdo era
possível apenas pelo cateterismo cardíaco, necropsia ou
mesmo como achado intra-operatório. Atualmente, a ecocardiografia bidimensional associada ao mapeamento de fluxo
em cores permite rápido diagnóstico, apresentando os dois
vasos originando-se do ventrículo de morfologia esquerda.
Sem maiores dificuldades, identificam-se as relações entre as
valvas sigmóides com as valvas atrioventriculares; presença
ou não de infundíbulo; anomalias associadas que estejam em
primeiro plano clínico, como a coarctação de aorta, estenose
aórtica, estenose pulmonar, atresia tricúspide, hipoplasia de
ventrículo direito e comunicação interventricular.
Sabendo-se que 83% dos casos descritos por Van Praagh 10 de dupla via de saída de ventrículo esquerdo associado à comunicação interventricular subaórtica e aorta anterior e à direita eram associados à estenose pulmonar, res-
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salta-se a raridade do caso aqui descrito que não apresentava estenose pulmonar (17% dos casos). Este caso vai de encontro a dados de literatura 11 onde a melhoria da ecocardiografia permitiu o diagnóstico precoce da dupla via de
saída de ventrículo esquerdo e sua conduta terapêutica,
sendo o responsável por demonstrar e identificar estruturas de uma doença que antigamente era considerada embriologicamente impossível.
Referências
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4.
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J Cardiol 1991; 33: 447-9.
Dra. Floriana Bertini
Editor da Seção de Fotografias Artísticas: Cícero Piva de Albuquerque
Correspondência: InCor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP - E-mail: delcicero@incor. usp.br
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