ASPECTOS DA AQUISIÇÃO DE VERBOS (SEMI

Propaganda
1078
ASPECTOS DA AQUISIÇÃO DE VERBOS (SEMI-) AUXILIARES
NO PORTUGUÊS EUROPEU
Ediene Pena Ferreira - UFPA
Introdução
O alvo de investigação, neste trabalho, é a aquisição de verbos (semi-)auxiliares no Português
Europeu (doravante PE). O estudo sobre aquisição desses verbos tem se mostrado bastante profícuo em
línguas como o inglês e o espanhol, merecendo também um olhar investigativo no português.
O uso de verbos auxiliares demonstra maturidade sintática, dada a sua presença em grupo verbal
complexo V-V, por isso objetivamos, neste estudo, saber a partir de que idade surgem os primeiros verbos
(semi-)auxiliares na linguagem infantil, que categoria gramatical esses verbos expressam (tempo, aspecto,
modo), qual a ordem de aquisição desses verbos, qual é o verbo mais recorrente e o porquê dessa
freqüência.
Levantamos as seguintes hipóteses:
i)
considerando estudos realizados em outras línguas, como o inglês (Guasti, 2002) e o
espanhol (Montrul, 2004), acreditamos que os primeiros verbos (semi-) auxiliares
devem emergir na fala infantil por volta dos 2 anos de idade;
ii)
os primeiros verbos (semi-)auxiliares a serem adquiridos são os que expressam
categorias temporais, visto ser o tempo menos abstrato que o aspecto e o modo;
iii)
os verbos (semi-)auxiliares mais recorrentes serão aqueles cujo homônimo lexical
funciona não como núcleo da predicação verbal, mas como predicativo, ou copulativo,
devido a suas características sintático-semânticas serem aproximadas, nomeadamente
no que diz respeito à não-seleção do sujeito.
1. Os dados da aquisição do PE
1.1 Descrição dos dados
Os dados aqui descritos fazem parte do corpus longitudinal composto de produções espontâneas
de duas crianças monolíngües – Joana e Inês – que têm como língua materna o PE. Objetivando investigar
a emergência dos verbos (semi-)auxiliares na gramática infantil destas duas crianças, observamos,
inicialmente, o comportamento verbal nas produções em causa, considerando o uso de verbos finitos e
infinitivos, o modo, tempo e pessoa verbais, o tipo de verbos lexicais mais encontrados e, principalmente,
os verbos (semi-)auxiliares.
Em relação à flexão verbal, muitos estudos (cf. Radford) apontam que crianças, em fase de
aquisição, utilizam, com mais freqüência, formas infinitas em contextos onde deveriam figurar formas
finitas. Nossos dados, entretanto, não corroboram com essa afirmação e acusam a superioridade no uso de
verbos finitos, conforme Quadro 01.
QUADRO 01: Freqüência de construções com verbos finitos e infinitivos
JOANA
INÊS
382
390
Verbos finitos (%)
370 (97%)
370 (95%)
Verbos infinitivos (%)
12 (3%)
20 (5%)
Total de sentenças
As sentenças abaixo ilustram o uso finito e infinitivo dos verbos:
1079
(60) mamã buscar fotografia
(Inês, 1;10.0)
(61) dá aqui, deita aqui as bonecas
(Inês, 1;11.15)
Em relação à emergência dos modos verbais, o indicativo é o primeiro a emergir na gramática de
Joana e de Inês. Confira os quadros abaixo:
QUADRO 02: Ordem de aquisição do modo verbal - Joana
Modo verbal
Indicativo
Imperativo
Subjuntivo
Idade
Ocorrência
1;10.22 A mãe não pode
2;4.1
grite; chore
4;10.7 Queres que eu pinte... este...este que eu estava a
pintar?
QUADRO 03: Ordem de aquisição do modo verbal – Inês
Modo verbal
Indicativo
Imperativo
Subjuntivo
Idade
1;10.0
1;11.29
Ocorrência
É, não é, esta é minha
Olha, papá, olha, olha a Inês
-
-
Além de primeiro na ordem de emergência, o indicativo também é o modo mais freqüente, tanto
nos dados de Joana quanto nos de Inês. Das 370 sentenças com verbos finitos, Joana utilizou 271 no modo
indicativo, 73%, 98 no imperativo, 27%. Sem representação percentual, o modo subjuntivo foi utilizado
apenas uma vez, conforme quadro 1.
Os dados de Inês também indicam que o modo indicativo é o mais recorrente na gramática
infantil. Foram 273 sentenças no modo indicativo, ou seja, 70%, e 97 no modo imperativo, ou seja, 30%.
Nos dados analisados, não registramos ocorrência no modo subjuntivo.
Em relação ao tempo verbal, notamos que o presente do indicativo e o pretérito perfeito emergem
simultaneamente nas gramáticas de Joana e de Inês, antes dos 2 anos de idade. Confira os quadros 04 e 05:
QUADRO 04: Ordem de aquisição do tempo verbal – Joana
Tempo verbal
Presente do indicativo
Pretérito perfeito
Pretérito imperfeito
Futuro do presente
Idade
1;10.22
1;10.22
2;6.24
2;8.5
Ocorrência
A mãe não pode
caiu
Estava... na casa do Francisco
Vou limpar a cabeça
QUADRO 05: Ordem de aquisição do tempo verbal – Inês
Tempo verbal
Presente do indicativo
Pretérito perfeito
Futuro do presente
Pretérito imperfeito
Idade
Ocorrência
1;10.0
1;10.0
1.11.28
2;11.10
É, não é, esta é minha
Agora partiu
A boneca vai papar
A mamãe não encontrou, sabes, não estava
ali.
Na gramática das duas crianças analisadas, presente do indicativo é o tempo mais freqüente. Das
370 ocorrências com verbos finitos, produzidas por Joana, 218, ou seja, 59% apresentam-se no presente do
1080
indicativo; 73, ou seja, 20% flexionam-se no pretérito perfeito; 57, ou seja,15% no pretérito imperfeito, e
22, ou seja, 6% do total, encontram-se no futuro do presente, tempo composto.
Os dados de Inês revelam que das 370 ocorrências com verbos finitos, 214 encontram-se no
presente do indicativo, ou 57% do total, seguido do pretérito perfeito, com 124, ou 34%.
Considerando a emergência da pessoa verbal, os dados de Joana revelaram que a 1ª, 2ª e 3ª
pessoas do singular emergem simultaneamente, já nos dados de Inês apenas as duas últimas são
simultâneas. Nos dados analisados, não encontramos ocorrências da 2ª pessoa do plural.
QUADRO 06: Ordem de aquisição da pessoa verbal – Joana
Pessoa verbal
1ª do singular
2ª do singular
3ª do singular
3ª do plural
1ª do plural
2ª do plural
Idade
1;10.22
1;10.22
1.10.22
2;0.9
2.2.19
-
Ocorrência
(eu) estou? Mmm. Tchau.
Grite. Chore.
Caiu
Mandam
Vamos brincar
-
QUADRO 07: Ordem de aquisição da pessoa verbal – Inês
Pessoa verbal
3ª do singular
2ª do singular
1ª do singular
3ª do plural
1ª do plural
2ª do plural
Idade
1;10.0
1;10.0
1.11.29
2;1.10
2.2.1
-
Ocorrência
É, não é, esta é minha
Deita aqui as bonecas
(eu) vou pôr ali
Índios estão aqui
Estamos
-
Em relação à freqüência da pessoa verbal, a mais freqüente é a 3ª pessoa do singular, tanto nas
construções de Joana (170 ocorrências, 46% do total) quanto nas de Inês (240 ocorrências, 64% do total).
É alta a utilização verbal, como vimos são 382 produções verbais nos dados de Joana e 390 nos
dados de Inês. Nessas produções, Joana utilizou 71 verbos diferentes e Inês utilizou 77 verbos. A lista dos
verbos mais freqüentes encontra-se abaixo, no quadro 08:
QUADRO 08: Freqüência das formas verbais mais utilizadas no corpus
JOANA
INÊS
TIPOS
estar
ser
ir
ter
querer
ver
TOTAL
68
65
33
30
30
21
TIPOS
ser
estar
querer
pôr
olhar
ter
TOTAL
165
104
49
44
40
34
6
247
6
436
A seguir, apresentaremos um quadro ilustrativo da ordem de aquisição dos verbos (semi-)
auxiliares, do PE – juntamente com a data da primeira ocorrência – encontrada nas produções infantis
presentes na base de dados Phon.
1081
QUADRO 09: Ordem da aquisição de verbos auxiliares no Português Europeu
INFORMANTE
S
VERBOS
AUXILIA
RES
VERBOS SEMI-AUXILIARES
Ser/Ter
Ir
Estar a
-
1;11.0
1;10.29
2;4.1
2;1.10
Joana
Inês
Ter
que/de
2;10.8
2;5.24
Poder
Ficar a
Dever
2;10.8
2;6.16
4;6.0
-
4;6.0
2;11.22
Andar
a
4;7.7
2;11.22
O quadro 10 apresenta a ordem de aquisição dos verbos semi-auxiliares, considerando as
categorias funcionais que esses verbos expressam.
QUADRO 10: Ordem da aquisição dos verbos semi-auxiliares no PE, considerando as categorias
funcionais que expressam.
VERBOS SEMI-AUXILIARES
TEMPO
ASPECTO
MODO
Ir
Estar a
Ficar a
Andar a
Ter que
Poder
Dever
JOANA
INÊS
1;11.0
1;10.29
2;4.1
4;6.0
4;7.7
2;10.8
2;10.8
4;6.0
2;1.10
2;11.22
2;5.24
2;6.16
2;11.22
Dos verbos semi-auxiliares, o mais freqüente é o verbo aspectual estar a, o segundo no quadro de
aquisição. Nos dados de Joana, estar a aparece com 53% das ocorrências, seguido do temporal ir, com
30%, conforme gráfico 9, abaixo:
Gráfico 01: Freqüência dos verbos semi-auxiliares – Joana
Nos dados de Inês, estar a aparece com42%, também seguido pelo semi-auxiliar temporal ir, com 32%.
Ver gráfico abaixo:
Gráfico 02: Freqüência dos verbos semi-auxiliares – Inês
1082
No gráfico 03, apresentamos a freqüência total dos verbos semi-auxiliares. O mais freqüente,
como já anunciamos, é o semi-auxiliar aspectual estar a, com 47% do total, seguido pelo temporal ir, com
31%; o menos freqüente é o aspectual andar a, com apenas 1% das ocorrências.
Gráfico 03: Freqüência total dos verbos semi-auxiliares – Joana e
Inês.
Os quadros 11 e 12, abaixo, mostram a freqüência apenas dos verbos semi-auxilaires aspectuais
nos dados de Joana e Inês, respectivamente. No quadro 12, apresentamos a freqüência total dos verbos
semi-auxiliares aspectuais. Das 132 ocorrências com noção aspectuais, 125, ou seja, 95%, foram marcadas
com o verbo estar a.
QUADRO 11: Freqüência dos verbos semi-auxiliares aspectuais – Joana.
Verbo
Número de ocorrência
%
Estar a
Ficar
Andar a
64
4
1
93
6
1
69
100
Total
3
QUADRO 12: Freqüência dos verbos semi-auxiliares aspectuais – Inês.
Verbo
Estar a
Ficar
Andar a
Total
3
Número de ocorrência
61
2
%
97
3
63
100
1083
QUADRO 13: Freqüência total dos verbos semi-auxiliares aspectuais – Joana e Inês.
Verbo
Estar a
Ficar
Andar a
Total
3
Número de ocorrência
125
4
3
%
95
3
2
132
100
A seguir, analisaremos os dados acima descritos, à luz das discussões teóricas apresentadas nesse
artigo.
1.2 Análise dos dados
Lançando um olhar sobre os dados descritos, podemos dizer, de forma geral, que os dados
apresentados corroboram com as conclusões a que chegam os estudos sobre aquisição da sintaxe, como: a
partir de 1;10 as crianças produzem enunciados de mais do que uma palavra; inicialmente, usam termos
lexicais; o uso da 3ª pessoa do singular é muito recorrente quando a criança refere-se a si; os verbos
irregulares seguem as regras do paradigma regular, etc.
Contrariando a hipótese de Radford (1990) de que crianças, na fase inicial da aquisição da língua,
não possuiriam a categoria funcional da flexão, por isso as suas sentenças trariam verbos no infinitivo em
contextos onde deveriam aparecer verbos flexionados, os dados do PE representados pelas produções de
Joana e Inês, revelam que a grande maioria das sentenças apresenta verbos flexionados (cf. gráficos 1 e 2),
o que indicia que a gramática infantil já possui a morfologia flexional. Esse resultado nos leva a
concordar com Wexler (1994), segundo o qual as crianças desde muito cedo já têm domínio das categorias
funcionais, por isso optariam pelo uso finito ou infinitivo do verbo, e tais usos ocorreriam
concomitantemente. É o chamado Estágio Infinitivo Opcional (OIS).
Os dados consultados revelaram-nos que as primeiras sessões (0;11 a 1;6) foram marcadas por
palavras soltas. A partir de 1;10, as crianças observadas já produzem construções completas:
(63) Dá aqui, deita aqui as bonecas
(Inês, 1;10)
Registramos a ocorrência de períodos complexos a partir de 1;11
(64) A Inês quer ir para a casa.
(Inês, 1;10)
Quanto ao uso do modo verbal, nossos dados corroboraram com outros estudos já realizados no
PE (Soares 1998; Gonçalves 2004). O primeiro modo a emergir, e o mais freqüente, é o indicativo (cf.
quadros 1 e 2 e gráficos 3 e 4). Esse resultado pode ser explicado devido ao verbo, no modo indicativo,
enunciar a certeza e a realidade de um fato, além disso, sintaticamente, o verbo flexionado nesse modo é
núcleo de uma oração simples, não representando, portanto, graus de dificuldade na aquisição.
O modo imperativo é adquirido quase que simultaneamente ao modo indicativo e tem freqüência
de 27% a 30% do total. Seu uso está relacionado a manifestações de vontade ou desejo acompanhadas da
esperança do seu cumprimento da parte do indivíduo a quem nos dirigimos, muito próprio da linguagem
infantil. Sintaticamente, a exemplo do indicativo, o modo imperativo também aparece como núcleo de
oração simples.
(65) Mamã, fica aqui.
(68) Põe aqui, põe aqui a boneca.
(Inês, 1;10)
Ao contrário, o modo subjuntivo aparece em períodos complexos, núcleo da oração encaixada,
sintaticamente, portanto, mais complexo que os usos do indicativo e do imperativo. Essa característica
explica a ausência desse modo nas primeiras produções infantis. Encontramos, nos dados analisados,
apenas uma ocorrência do subjuntivo, depois dos 4 anos de idade.
(69) Queres que eu pinte...este...este...que eu estava a pintar? (Joana, 4;10.7)
A partir de idade de 1 e 10 meses, as crianças já fazem distinções temporais, pois já há ocorrências
de verbos no pretérito perfeito, embora a maioria dos verbos encontre-se no presente (cf. quadro 3 e 4 e
1084
gráficos 5 e 6). A própria situação de recolha dos dados contribui para a freqüência maior do presente do
indicativo, pois as crianças encontram-se em interação com os adultos descrevendo situações presentes.
Quanto à pessoa verbal, observamos, nos dados descritos acima (cf. gráficos 7 e 8), a alta
freqüência da 3ª pessoa do singular, resultado que corrobora com estudos sobre a aquisição da pessoa
verbal (ver Guasti 2000, Montrul 2004). O tipo de recolha dos dados, talvez, explique a preferência pela 3ª
pessoa do singular, pois, durante a interação entre o adulto e a criança, elege-se um tópico para o
desenvolvimento da interação – mesmo que esse tópico não tenha sido planejado, pode ser uma boneca,
um lugar, um colega de escola, o pai, algo do universo da criança.
O vocabulário verbal das crianças é bastante enriquecido, encontramos mais de 70 verbos nos
dados analisados. Os mais freqüentes, e os que aparecem em suas primeiras produções (cf. quadro 7), são
os verbos ser (65 ocorrências nos dados de Joana e 165 nos de Inês) e estar (68 ocorrências nos dados de
Joana e 104 nos de Inês). O fato de as crianças, na maioria de suas produções, descreverem brinquedos,
colegas, lugares favorece a recorrência desses verbos.
Antes dos 2 anos de idade, observamos a emergência de verbos semi-auxiliares. As perífrases
verbais passam a ser freqüentes na fala das crianças. As primeiras perífrases a emergirem são as que
marcam a noção temporal, com verbo ir seguido de infinitivo, expressando o futuro do presente, com uma
freqüência de 30% nos dados de Joana, 32% nos de Inês, e 31% do total (cf. Gráficos 9, 10 e 11,
respectivamente). Nos dados analisados, o futuro foi expresso apenas pela forma perifrástica, não
aparecendo o futuro simples, que, parece, está a perder-se mesmo nas produções do adulto.
(70) Vou limpar a cabeça
(Joana, 1;11.0)
(72) A boneca vai papar
(Inês, 1;11.29)
É interessante, porém, observarmos que dependendo do significado do verbo principal ou do
tempo em que está flexionado o verbo ir, temos não um marca de futuridade, mas sim um indicativo de
locomoção para um lugar onde se realiza o indicado pelo verbo no infinitivo (Travaglia 1994:207).
Encontramos, nos dados analisados, várias ocorrências em que o verbo ir + infinitivo expressa essa noção.
(74) Já vou lá buscá-lo
(Joana, 3;6.20)
(75) Mamã, vai buscar o meu leão!
(Inês, 2;3.0)
Esperávamos que, devido ao traço [+ movimento] do verbo ir e à sua significação quando ocorre
como verbo principal, as construções com o verbo auxiliar ir indicando locomoção emergissem primeiro
que aquelas que indicam futuridade, mesmo porque a noção de espaço é mais concreta que a de tempo1.
Os dados, entretanto, revelaram-nos o oposto, as 2 crianças observadas, antes dos 2 anos, já utilizavam o
auxiliar ir na indicação de futuro, e somente após os 2 anos surgem ocorrências, como (74) e (75) acima.
Analisando sintaticamente a construção, entendemos sua emergência tardia. As construções (74) e (75)
são frases complexas. Estamos diante de um período composto por subordinação em que buscá-lo e
buscar o meu leão são orações adverbiais finais, sendo complexa, sua aquisição tende a ser tardia.
Os quadros 8 e 9 revelam que a primeira ocorrência de verbo auxiliar aspectual foi registrada na
sessão de Inês, aos 2;1.10 e na de Joana, aos 2;4.1. Nos dois casos, as crianças usaram estar a seguido de
infinitivo.
(76) Está a tocar, mamãe, fala
(Inês, 2;1.10)
(77) Estás a ver?
(Joana, 2;4.1)
Interessante registrar que, nas 31 sessões de Inês e nas 33 sessões de Joana, as perífrases
aspectuais que apareceram na fala das crianças, foram representadas, em 95% dos casos, pelo semiauxiliar estar a + infinitivo (cf. quadro 12), maioria, portanto. E todas as perífrases com semi-auxiliares,
estar a + infinitivo representa 47% do total. Esse percentual nos instiga a olhar mais cuidadosamente para
essa perífrase aspectual.
O tipo de inquérito talvez tenha influenciado a alta freqüência de estar a (cf. Gráficos 11), pois a
presença desse semi-auxiliar, em muitos casos, aparece em respostas a perguntas do tipo “o que está a
1
Sobre o assunto, conferir Heine et al. (1991).
1085
fazer?”. Por essa razão, podemos dizer que, de certa forma, esse resultado pode ter sido estimulado pela
fala do interlocutor.
Quando estar a aparecia em perguntas, geralmente ocorria a omissão do auxiliar.
(78) E agora o que estás a fazer?
(79) A varrer a casa
(Joana, 2;6)
(82) Está a fazer o quê?
(83) A comer o mau
(Inês, 2;1)
Como um dos objetivos dessa pesquisa é observar a ordem de aquisição dos verbos (semi-)
auxiliares, verificamos que o primeiro semi-auxiliar a emergir é o verbo ir, na indicação temporal de
futuro. Sabemos que os semi-auxiliares se especializam na indicação de categorias gramaticais, como
tempo, aspecto e modo. Parece que a categoria tempo emerge, na linguagem infantil, antes das outras,
talvez porque dessas categorias a noção do tempo seja menos abstrata que as de aspecto e modo,
confirmando, dessa forma, uma das nossas hipóteses. Além disso, o tempo, em português, é uma categoria
dêitica e é expressa por morfemas gramaticais próprios, ao contrário do aspecto. Por ser uma categoria
marcada, o tempo torna-se mais perceptível e isso, talvez, contribua para sua emersão antes das demais
categorias. Os dados não confirmam, assim, a Hipótese do Aspecto antes do Tempo.
Em relação aos semi-auxiliares aspectuais, listamos alguns verbos, como, estar a, continuar a,
começar a, chegar a, andar a, ficar a, voltar a, costumar a, passar a, acabar de, etc., para observar se, e
quando, ocorriam na fala nas crianças analisadas. Como já adiantamos, o semi-auxiliar estar a foi o mais
freqüente, e da listagem acima, somente encontramos andar a (três ocorrências) e ficar a (três
ocorrências), mas a freqüência foi tão baixa que suas ocorrências não chegam a ser relevantes para análise
dos dados. E em comparação a estar a, a ocorrência de andar a e ficar a, pode ser considerada tardia, pois
enquanto o primeiro ocorre no início dos 2 anos, os últimos ocorrem apenas quase aos 3 anos de idade ou
mais.
(84) Andou a subir para os ramos e para as cadeiras (Inês, 2;11.22)
(86) Ficou a chorar, a chorar
(Joana, 4;6.0)
A alta produtividade de estar a pode ser explicada considerando uma de nossas hipóteses, a de que
as crianças evitam utilizar como (semi-)auxiliares aqueles verbos que, em outros contextos, funcionam
como verbos plenos, conceituais, preferindo aqueles que funcionam como predicativos. Dessa forma,
podemos imaginar que as crianças distinguem verbos auxiliares de seus homônimos lexicais, como
sugeriu Stromswold (1995, apud Peters 2001), em estudo sobre auxiliares e modais no Inglês. Stromswold
questionou como as crianças distinguem verbos auxiliares de suas formas lexicais homônimas, e propôs
que para lidar com esta ambigüidade, as crianças devem estar predispostas para distinguir entre dois tipos
de categorias lingüísticas: as categorias lexicais e as categorias funcionais.
Interessante notar que os verbos andar, estar e ficar só têm homônimos predicativos:
(87) O Pedro anda triste.
(88) O Pedro está furioso.
(89) O Pedro ficou revoltado.
Ao contrário, os verbos começar, continuar, chegar, acabar têm como homônimos verbos
principais:
(90) A Maria começou a reunião.
(91) A Maria continuou a leitura.
(92) A Maria chegou a Portugal.
(93) A Maria acabou o exercício.
Assim, os (semi-)auxiliares, devido a suas características sintáticas e semânticas, estariam mais
próximos dos verbos predicativos. Ambos são considerados vazios semanticamente, funcionam como
suporte de marcas gramaticais (tempo, modo, número, pessoa, voz) e não selecionam o sujeito da oração.
É interessante registrar, entretanto, que enquanto os auxiliares não são núcleos do predicado, os
copulativos formam predicado complexo com o núcleo do predicativo.
1086
Essas características que aproximam os auxiliares dos predicativos e os distanciam dos lexicais
podem justificar (i) a emergência em fases mais iniciais do aspectual estar a; (ii) a ocorrência ainda que
baixa de andar a e ficar; (iii) a ausência dos outros semi-auxiliares que têm como homônimos um verbo
principal.
Os auxiliares modais, por sua vez, parecem emergir depois dos auxiliares temporais e aspectuais,
com exceção dos aspectuais ficar a e andar a cujas ocorrências são mais tardias. Das categorias
gramaticais, a modalidade é a mais abstrata, pois está relacionada à atitude subjetiva do falante. Segundo
Traugott (1989), os modais, originalmente verbos plenos, com sentidos concretos, seguindo tendências
universais de mudança semântica, tornam-se progressivamente mais abstratos e orientados pela atitude do
falante em relação à proposição. Um dos exemplos é dado por Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) ao
afirmarem que itens lingüísticos que se referem à capacidade física, uma modalidade orientada para o
agente, podem vir a expressar noções como a possibilidade epistêmica, uma modalidade mais abstrata e
orientada para o falante, é o caso do verbo poder.
Os verbos semi-auxiliares modais encontrados no corpus, em ordem de aquisição, foram ter
que(de), poder e dever2.
(94) Ai, espera, tenho que tirar
(Joana, 2;10.8)
(98) Não, posso beber... café da avó
(Joana, 2;10.8)
(102) Deve ser a ou... outra irmã
(Joana, 4;6.0)
Para expressar obrigatoriedade, o semi-auxiliar ter que foi mais freqüente que o dever (cf.gráfico
11). Esse resultado pode ser explicado pelo fato de o verbo ter, como modal, só veicular valor semântico
da área da obrigatoriedade, ao passo que o verbo dever veicula valores semânticos da área da
probabilidade e da obrigatoriedade, sendo, portanto, ambíguas construções do tipo (105), cujas
interpretações podem ser expressas por (106) e (107).
(105) O João deve lavar as mãos.
(106) É provável que o João lave as mãos. (probabilidade)
(107) É uma obrigação do João que ele lave as mãos. (obrigatoriedade).
A exemplo do que acontece no caso dos auxiliares que têm como homônimos verbos predicativos,
notamos mais uma vez a tendência do falante a evitar ambigüidade.
Pela análise dos dados, notamos a ausência do verbo ter + particípio passado e do verbo ser
passivo. Essa ausência revela que os verbos considerados auxiliares puros têm uma aquisição tardia, dada
à complexidade do sintagma verbal em que aparecem.
A seguir, concluiremos este artigo, com a síntese dos principais tópicos tratados.
À guisa da conclusão
Com o propósito de observar a aquisição de verbos (semi-) auxiliares no PE, investigamos um
corpus longitudinal correspondente a uma recolha da produção lingüística de duas crianças portuguesas,
Joana e Inês, durante um período compreendido dos entre 0.11 e 4;10 meses de idade.
Os dados analisados revelaram que os primeiros verbos semi-auxiliares emergem entre 1;10 e 1;11
meses, em conformidade com a nossa primeira hipótese, que considerou estudos já realizados em outras
línguas, segundo os quais os primeiros verbos (semi-) auxiliares são adquiridos por volta dos 2 anos de
idade.
O primeiro semi-auxiliar a emergir é o ir seguido de infinitivo, veiculando a noção de tempo, mais
precisamente do futuro do presente, o que confirma nossa segunda hipótese de que os primeiros verbos
(semi-) auxiliares a serem adquiridos expressariam categorias temporais, visto ser o tempo menos abstrato
que o aspecto e o modo.
Na ordem de aquisição dos verbos semi-auxiliares aparece o aspectual estar a (Inês, 2;1.10; Joana,
2;4.1), os modais ter que/de (Inês, 2;5.24; Joana, 2;10.8), poder (Inês, 2;6.16; Joana, 2;10.8), o aspecutal
ficar a (Joana, 4;6.0), o modal dever (Inês, 2;11.22; Joana, 4;6.0), e o aspectual andar a (Inês, 2;11.22;
Joana, 4;7.7).
2
É necessário registrar que o verbo dever, nos dados da informante Inês, ocorreu antes do verbo deixar.
1087
O verbo semi-auxiliar estar a é o mais recorrente entre os aspectuais, com 95% de ocorrência, e
também é o mais freqüente entre todos os verbos semi-auxiliares encontrados no corpus (entre aspectuais,
temporais e modais) com 43% do total.
A última categoria funcional a ser lexicalizada é a modal. Encontramos nos dados a expressão de
probabilidade, possibilidade e obrigatoriedade. Entre os verbos modais presentes no corpus (ter que/de,
poder e dever), o verbo ter foi o mais recorrente, talvez porque seu uso não cause ambigüidade como o
dever que, como observamos, pode veicular valores semânticos da área da probabilidade e da
obrigatoriedade.
Notamos a ausência dos verbos considerados auxiliares puros, como ter + particípio e ser passiva.
Essa ausência indicia que os auxiliares puros são adquiridos tardiamente.
No geral, os dados das produções infantis espontâneas que constituem o corpus em análise,
confirmam as conclusões a que chegam os estudos sobre a aquisição da sintaxe, como a de a morfologia
verbal é feita de forma muito sistemática, que as crianças usam opcionalmente verbos finitos e infinitivos,
e que as categorias funcionais existem desde muito cedo nas gramáticas infantis, mesmo que não sejam
logo lexicalizadas.
Referências
BYBEE, J; PERKINS, R; PAGLIUCA, W. 1994. The evolution of grammar. Chicago: The University of
Chicago Press
GONÇALVES, F.M.R. 2004. Riqueza morfológica e aquisição da sintaxe em português europeu e
brasileiro. Tese de Doutoramento. Évora
GUASTI, M.T. 2002. Language acquisition – the growth of grammar. Massachusetts Institute of
Technology
MONTRUL, S.A. 2004. The acquisition of Spanish: morph syntactic development in monolingual and
bilingual L1 acquisition and adult L2 acquisition. John Benjamin
PETERS, A. M. 2001. From prosody to grammar in English – the differentiation of catenatives, modals,
and auxiliaries from a single protomorpheme. In: Weissenborn & Hohle. Approaches to bootstrapping
phonological lexical, syntatictic and neurophysiological aspects of early language acquisition. John
Benjamin’s Publishing Company. Amsterdam/Philadelphia
RADFORD, A. 1986. “Small Children’s Small Clauses”. In: Bangor Research Papers in Linguistics, nº 1,
1-38.
RADFORD, A. 1990. Syntactic theory and the acquisition of English syntax. Blackwell, Oxford
RICHARDS, B.J. 1990. Language development and individual differences – a study of auxiliary verb
learning. Cambridge University Press
SOARES, C.M.B. 1998. As categorias funcionais no processo de aquisição do português europeu (estudo
longitudinal da produção espontânea de uma criança de 1;2.0 aos 2;2.17 anos). Dissertação de Mestrado.
Lisboa
TRAUGOTT, E. C. 1989. On the rise of epistemic meaning: an example of subjectification in semantic
change. Language, 65 (1): 33-55
WEXLER, K. 1994. “Optional infinitives, head movement and economy of derivation. In: HORNSTEIN,
N.; LIGHTFOOD, D. (eds). Verb movement. C.U.P., Cambridge,
Download