1903 DA DIACRONIA PARA A SINCRONIA ATRAVÉS DA TEORIA DA GRAMÁTICA Isabella Lopes Pederneira - UFRJ Miriam Lemle - UFRJ De acordo com a teoria da gramática gerativa, a capacidade de linguagem é tomada como um módulo da mente, e a mente, por sua vez, é considerada como um conjunto de módulos cognitivos que são tarefa-específicos e possuem interfaces uns com os outros. Esta visão da mente guia a pesquisa empírica, permite e exige a formalização e cria pautas para o experimentalismo, uma vez que propõe um modelo para a arquitetura da gramática. Do modelo decorrem hipóteses restritas sobre os conteúdos dos módulos, suas interfaces e interações, e uma metodologia para descrever de modo explanatório o nosso conhecimento de língua e os processos de acesso ao saber armazenado, bem como os caminhos pelos quais esse conhecimento pode ser mudado pelos falantes de uma mesma geração e de gerações sucessivas. As perguntas a serem exploradas neste artigo são: qual é a relação entre a etimologia de uma palavra e a análise dessa palavra no estágio atual da língua? O que está preservado e o que foi reanalisado no transcorrer das gerações que nos separam dos antepassados que falavam latim? De que modo a nossa teoria da gramática guiará a descrição da mudança diacrônica na segmentação e no significado das palavras desde sua etapa do latim clássico até a etapa de língua portuguesa contemporânea? 1. Fundamentação Teórica A teoria que nos pauta neste trabalho, conhecida como Morfologia Distribuída, considera que a sintaxe concatena ‘Morfemas’, e não palavras. O termo ‘Morfema’, aqui, se aplica a unidades que têm significado e função gramatical, mas não têm traços fonológicos. Por exemplo, Tempo, Relacionador, Evento, Estado, Entidade, Propriedade, Plural, 1ª pessoa, 3ª pessoa, são algumas das unidades com que a sintaxe lida. A lista em que se armazenam as entidades abstratas introduzidas e concatenadas na derivação sintática é chamada de Lista Um. Essa lista contém Morfemas Funcionais e também Raízes, que são peças com informação conceitual, mas sem categorização gramatical. Na Lista Um a informação fonológica das Raízes serve apenas como um identificador formal. A operação da sintaxe consiste basicamente em Concatenar Morfemas. A implementação fonológica dos Morfemas Funcionais e das Raízes provém da operação de inserir Peças de Vocabulário nos Morfemas da Lista Um. As Peças de Vocabulário, por sua vez, pertencem ao módulo Morfologia, e são providas de informação fonológica. Elas implementam, ou realizam, os Morfemas e as Raízes. O conjunto das Peças de Vocabulário constitui uma segunda Lista, denominada Lista Dois. A inserção das Peças Vocabulares acontece depois da sintaxe, por fases. Uma Peça Vocabular só pode ser inserida em posição prevista por um Morfema com o qual seus traços correspondam, ou totalmente ou em parte. Se a Peça Vocabular difere do Morfema em algum traço, a inserção lexical não pode ser efetuada. A primeira concatenação entre uma Raiz e um Morfema Categorizador é um estágio especialmente importante na derivação sintática do ponto de vista semântico, porque é nesta etapa da derivação que o significado da palavra é fixado, por negociação, tal como compreendeu o linguista Ferdinand de Saussure quando ressaltou a arbitrariedade do signo. Os Morfemas Categorizadores se concatenam às Raízes, que por si sós são desprovidas de categoria. Quando se concatena a uma Raiz uma Peça Vocabular verbalizadora se forma um Verbo, se a Peça for nominalizadora dá um nome, se for adjetivadora, um adjetivo. O conjunto de pareamentos arbitrários entre forma e significado que resultam da primeira concatenação de uma peça categorizadora a uma Raiz compõe uma terceira Lista, a Lista Três, que corresponde ao conceito tradicional de Enciclopédia: um elenco das relações arbitrárias entre formas e significados. 1904 Depois da concatenação do primeiro Categorizador, outros Categorizadores podem ser concatenados. Estas novas concatenações operam alterações no significado convencionado na Enciclopédia, alterações regulares, determinadas por uma composição de significados que é um cálculo, e não uma nova convenção. Como exemplo, considerem as camadas sucessivas na formação das palavras globalização, ou amolecer, ou inexplicável, e das outras formalmente semelhantes: globo (((((glob)Ø)al)iza)ção) _________________ nação (((((nac)ion)al)iza)ção) __________________ espécie ((((especiØ)al)iza)ção) mole ((a(molØ)) ecer) _____________ grande ((en(grandØ))ecer) ______________ louco ((en(louquØ))ecer) explicar ((in)(((explic)á)vel))) ________________ pagar (((pag )á) vel) _________________ admirar (((admir) á) vel) Tabela 1 Nos exemplos da primeira coluna da tabela 1, globo, nação, espécie são os nomes cujo significado está convencionado, e a partir dos quais se compõem os adjetivos, verbos e nomes derivados mostrados em (1) a (3), cujos significados são calculados composicionalmente: (1) global, nacional, especial (2) globalizar, nacionalizar, especializar (3) globalização, nacionalização, especialização Considerações semelhantes se aplicam aos adjetivos mole, grande e louco e os verbos deles derivados, bem como aos verbos explicar, pagar e admirar e os adjetivos deles derivados. A idéia básica é que as palavras derivadas são interpretadas de maneira sistemática, com seus significados sucessivamente computados à medida que novos morfemas Categorizadores vão sendo concatenados à palavra-base, aquela na qual o primeiro Categorizador gramatical foi juntado à Raiz, e cujo significado convencionalizado está armazenado na Enciclopédia. Figura 1 1905 2. Reanálises de Particípios Passados e Prefixos É de se esperar que diferentes falantes interpretem de maneira diversa o recorte interno das palavras. Com a convergência de usos particulares entre subgrupos da população, por faixa etária, ocupação, interesses ou modismos, acabam resultando, a longo prazo, divergências bastante grandes que acabam se acumulando entre comunidades de pessoas que interagem pouco e entre comunidades que viveram em diferentes períodos históricos. O foco deste trabalho estará em dois tipos de reanálises envolvidas na mudança diacrônica: a interpretação das formas de Particípios Passados como Raízes de novos verbos derivados dos originais e a incorporação de Prefixos às Raízes criando novos verbos. 2.1. Particípios Passados tomados como Raízes Numerosos verbos em português foram formados pela leitura da marca de Particípio Passado como se fosse parte meramente fonológica de uma Raiz. (i) O verbo recipio resultou no verbo receber, e a forma participial receptum resultou nos verbos receptar e receitar. Cabe notar que já em latim o próprio verbo recipio era formado pela adição do Prefixo re- ao verbo capio. Esta composição não está de todo perdida na nossa língua, se considerarmos o conjunto dos verbos receber, conceber, perceber e o de seus nominais derivados recepção, concepção, percepção. O supino deste verbo tinha a forma receptum, ou seja: ((re+cap)+ t um). A partir desta forma, compunha-se o Particípio Passado, uma forma que tinha valor adjetivo, como continua tendo até nossos dias para verbos de estado, conforme exemplificado em (4): (4) jogador cansado, caneca quebrada, festa animada, palavra composta, roupa lavada, dia ensolarado, entrevista comentada. Adjetivos, por sua vez, servem de ponto de partida para a formação de verbos, como podemos observar, por exemplo, nos pares no quadro abaixo, cujas estruturas sintáticas estão desenhadas nas figuras 2 e 3. [[Raiz + a] vØ] [[[Raiz + a]vsuf]] [[pr[Raiz]]vØ] [[pr[Raiz + a]]vsuf] sujo – sujar úmido – umedecer quente – esquentar duro – endurecer seco – secar útil – utilizar manso –amansar mole – amolecer limpo – limpar ameno – amenizar morno – amornar pobre – empobrecer amarelo – amarelar ágil – agilizar pronto – aprontar rico – enriquecer solto – soltar suave – suavizar calmo – acalmar louco - enlouquecer Tabela 2 1906 Figura 2 Figura 3 Não é surpreendente, mas sim é o que se poderia esperar que os Particípios Passados, que são adjetivos deverbais, fossem incluídos neste mecanismo de formação de palavras. O Particípio receptum, por ter uso adjetival, pôde entrar no esquema acima das figuras 3 e 4 novamente descrita na figura 4. Figura 4 Outros exemplos da mesma derivação em que Particípios Passados - adjetiváveis - se tornaram bases de novos verbos temos nos passos verbo, Particípio, novo verbo mostrados nos exemplos (6) a (9): (6) expello, expulsus, expulsar (7) ardere, arsus, arsare (assar) (8) concipio, conceptum, conceituar (9) insero, insertum, enxertar Nestes exemplos os verbos antigos sobrevivem em português (Cf. figura 5). No entanto, em pulsar, rasurar, cultivar, misturar, consultar, cantar e suturar, a raiz pello (impelir), rado (raspar), colo (cultivar), misceo, (misturar), consulo (consultar), cano (cantar) e suo (costurar) saíram de uso, restando, no português de nossos dias, somente as respectivas raízes já incorporadas às marcas do particípio passado (Cf. figura 6). Os dados mostrados acima são evidências de que, para uma geração mais antiga, o significado das formas participiais era computado, e a parte arbitrária estava no verbo. E, para uma nova geração, a marca do Particípio já tinha deixado de ser reconhecida como tal, e a forma foi interpretada como uma raiz, que se prestou a uma nova negociação arbitrária criando-se assim um novo verbo. 1907 V T Receitar v Receber V pp R2 v Pr R1 re ce p t Ø ar Figura 5 Sai de uso no português T V V v n pp Raiz v Raiz v misc ere misc Ø Raiz tum mist v n ura ar Figura 6 O que acabamos de ver é que existem dois casos na língua portuguesa para este tipo de derivação de verbos a partir de Particípios Passados. Num caso, coexistem dois verbos na língua, e, no outro, o primeiro verbo pode cair em completo desuso ou ficar com a sua freqüência de uso proporcionalmente muito menor do que a do verbo original. Seja lá como for, o Particípio Passado adjetivo fica com alta probabilidade de ser tomado como primeira camada por muitos falantes em formação, os quais poderão facilmente tomar estes adjetivos como base para a formação de verbos. 2.2. Incorporação de Prefixos Outro exemplo interessante de reanálise em palavras é a transformação de um Prefixo em um mero pedaço fonológico de uma raiz. Ainda hoje, todos conseguem perceber os Prefixos a-, de- e em- nas palavras amolecer, depurar e engaiolar (Cf. figura 7), porém poucas pessoas diriam que existe um Prefixo de- em decidir (Cf. figura 8). O fato de o verbo caedo não existir mais, sincronicamente, no português, não pode ser a única causa para o não-reconhecimento da estrutura, uma vez que existem exemplos semelhantes ao de socorrer, em que o verbo original correr está preservado, mas apesar disso poucos são os falantes que percebem a presença de um Prefixo sub- em socorrer. 1908 Figura 7 Figura 8 Podemos notar que há uma gradação na visibilidade dos Prefixos na formação de verbos. No grupo dos que têm o Prefixo facilmente perceptível, como engaiolar, temos enformar, encadernar, ensombrecer, enlouquecer, empobrecer, enriquecer, enveredar, encaminhar, enrolar, aprisionar, alisar, anotar, arredondar afundar, apedrejar, aperfeiçoar alistar, acobertar, assustar, aterrorizar, amansar, acalmar, atenuar, amaciar, amolecer, ajoelhar, expatriar, desmembrar. No outro extremo, temos verbos em que deixou de ser reconhecida a composição com um Prefixo: decidir, delatar, atolar, emancipar, inclinar, arrebentar, abastecer, assaltar, instalar, instaurar, construir, abdicar, sustentar, excluir, explicar, observar, obturar, discutir, demolir. E, no meio, há verbos em que provavelmente a variação entre falantes é bem grande, havendo quem perceba e quem não mais perceba o Prefixo: atarrachar, avistar, arrombar, assaltar, adiar, abordar, afiliar, enaltecer, encostar, encharcar, empenhar, enfezar, entalar, enviar, depreciar, depender, decifrar, definir, debater, deliberar, denegrir, denotar, degenerar, erradicar. Aqui, neste caso, estamos vendo um fenômeno que tem algo de semelhante à mudança de Particípio em Raiz. Alí, notamos que quando a Raiz cai em desuso, o Particípio adjetival forma uma palavra de uma camada só, candidata perfeita, portanto a se tornar a base adjetival de um verbo que a gramática já prevê. No caso dos Prefixos, a queda na freqüência de uso da Raiz pode fazer com que muitas crianças não reconheçam nos dados a estrutura morfológica [Prefixo + Raiz]. Porém esta perda de estrutura não traz como conseqüência a perda da significação da palavra no seu contexto de uso, mas sim uma nova realocação da relação entre forma e significado. Os novos verbos destituídos da estrutura [Prefixo] [Raiz + Verbo] caem na estrutura [Raiz + Verbo], uma estrutura para a qual a sintaxe já tem previsão. Nesta nova estrutura, as condições externas de uso podem estar inalteradas, porém as peças componentes do significado estão mudadas. Entre a formação composicional dos significados e a formação por convenção, as mudanças nos recortes morfológicos criam uma nova língua regida pelos mesmos princípios da língua mãe. 1909 2.3. Um Exercício Experimental A análise dos dados que acabamos de apresentar provocou o desejo de montar um experimento psicolingüístico para verificar experimentalmente a diferença em termos de tempo de resposta entre (i) a relação entre Infinitivos e Particípios Regulares, (ii) entre Infinitivos e Particípios Irregulares (iii) entre Infinitivos e outros Infinitivos diacronicamente derivados de Particípios Passados, hoje não mais reconhecidos em termos de uma derivação composicional. Para este objetivo, foram testados 30 alunos dos cursos de graduação em Letras ou Fonoaudiologia da UFRJ. Todos eram falantes nativos de português distribuídos nos dois sexos e com idades em torno de 20 anos. Os sujeitos foram expostos a trinta e seis pares de palavras, doze em cada uma das séries distribuídos randomicamente entre 36 distratores do tipo palavra-não palavra. Doze pares eram compostos de um prime Particípio Regular e o verbo correspondente no Infinitivo como alvo, como por exemplo em jogado – jogar (Infinitivo Primado - IP). Doze outros pares eram formados por nomes derivados de Particípios Passados Irregulares e um verbo correspondente como alvo, como em admissão – admitir (Morfologia Primada – MP). Em outros doze pares, apresentamos pares de verbos no Infinitivo, cuja relação etimológica foi aquela que descrevemos em 2.1 em que um verbo se origina de uma Raiz derivada do Particípio Passado de um outro verbo, como em conceituar – conceber (Etimologia Primada). Para cada uma destas três séries, foi criada uma outra série que consistia em um Particípio e um verbo sem qualquer relação com ele (IN, MN, EN, respectivamente). Os participantes ouviam a palavra prime e deveriam julgar se o item que aparecia em seguida na tela do monitor era palavra ou não-palavra. O resultado deste experimento confirmou que as pessoas estão fazendo distinção entre Morfologia Regular, Morfologia Irregular e Etimologia. Como se pode ver na Tabela 3, os tempos de resposta diferiram significativamente nas duas primeiras séries referentes aos pares dos Particípios Passados/ Infinitivos, enquanto que para a série referente aos pares relacionados pela Etimologia, os tempos de resposta não diferiram estatisticamente dos pares em que não havia relacionamento de espécie alguma entre dois verbos escolhidos aleatoriamente (Etimologia não-Primada – EN). IP IN MP MN EP EN 863,7 1090 1102 1325 1401 1471 Tabela 3 1910 Outro comentário relevante é o maior tempo de leitura na Série Dois que corresponde ao de Morfologia Irregular (admissão – admitir), que, embora tenha obtido tempo de resposta significante para o priming, ao ser comparada com a série Um, teve tempo de resposta maior. Isto é compatível com a maior complexidade sintática das palavras do grupo 2, uma vez que no par admissão – admitir o prime tem mais camadas, pois o nome admissão contém o verbo admitir dentro do particípio: [[[[admit]r]v s]pp ao]n. O resultado deste teste foi compatível com a análise lingüística que apresentamos segundo a qual a relação entre os verbos no Infinitivo e as formas participiais correspondentes é um tipo de relação gramatical, mas a relação entre os dois verbos aparentados pela Etimologia perdeu a conexão gramatical na representação mental dos falantes. Referências CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994 FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino-Português. Rio de Janeiro: MEC, 1996. LEMLE, M. Mudança Sintática e Sufixos Latinos. Lingüística. Rio de Janeiro, v. 1, n.1, 2005. MARANTZ, A. No Escape from Syntax: Don´t try morphological analysis in the privacy of Your Own Lexicon. In: Dimitriadis, A. Siegel, L.; Surek-Clark, C.; Williams, A. (Eds.) Proceedings of the 21 st Annual Penn Linguistics Colloquium. Philadelphia: Penn Linguistics Club, 1997. VASCONCELLOS, Alysson Serra.Trabalho apresentado na XXX Jornada Giulio Massarani de Iniciação Científica. Orientado por: Miriam Lemle e Marcus Maia. UFRJ. 2008.