considerações iniciais sobre o objeto de estudo e as diversas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica
2008 – UFU 30 anos
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O OBJETO DE ESTUDO E AS
DIVERSAS INTERFACES DA GEOGRAFIA DOS TRANSPORTES
Thiago Gervásio Figueira Arantes1
Faculdade de Gestão e Negócios (FAGEN)
Univerisidade Federal de Uberlândia (UFU)
Campus Santa Mônica – Bloco 1F
Avenida João Naves de Ávila, 2121
38400-902 Uberlãndia/MG
E-mail: [email protected]
William Rodrigues Ferreira2
Insituto de Geografia (IG)
Universidade Federal de Uerlândia (UFU)
Campus Santa Mônica – Bloco 1H
Avenida João Naves de Ávila, 2121
38400-902 Uberlãndia/MG
E-mail: [email protected]
Resumo: Este trabalho destina-se a uma releitura de obras que tratam do fenômeno “transporte”
nos vários períodos da ciência geográfica, a fim de sistematizar uma visão sobre a existência e
autonomia científica da “Geografia dos Transportes”. Ainda são analisadas as diversas interfaces
com outras áreas da Geografia e de outras ciências na formulação de um corpo téorico-conceitual
próprio desta área de estudo e a relevância de seu objeto de estudo como importante elemento na
construção e des-construção dos territórios.
Palavras-chave: Geografia dos Transportes – aspectos metodológicos, Geografia dos Transportes
– objeto de estudo, Geografia dos Transportes – evolução conceitual
1. INTRODUÇÃO
A Geografia dos Transportes é uma ramificação da ciência geográfica que cuida do estudo
do fenômeno “transporte” inserido em um contexto territorial. Apesar de simplista, a definição
acima não deixa ser um indício para começarmos nossa análise.
A Geografia, desde sua sistematização como ciência, procedia na análise dos fenômenos e
como estes estavam dispersos pelo espaço, lido então, como “geográfico”3. Vários objetos e
temáticas emergiram, conforma a historicidade que permeava o corpo científico da época, e nas
diferentes formas em que eram abordadas. Neste sentido, a Geografia dos Transportes nasceu no
âmbito do pós-guerra (década de 1950) sendo uma área de estudo que interessava particularmente a
escola anglo-saxônica do pensamento geográfico. Sendo assim, as interfaces e bem como o objeto
de estudo estavam permeadas pela realidade geográfica da época, o qual foi se renovando ao longo
da história recente da ciência geográfica.
1
Geógrafo. Bacharel em Geografia pelo IG/UFU (2008) e atualmente é acadêmico do curso de graduação em
Administração pela Faculdade de Gestão e Negócios (FAGEN) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
2
Professor Doutor do Instituto de Geografia (IG) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Orientador da
Pesquisa.
3
Leitura da Geografia Tradicional segundo Bey & Pons, 1991, p.28
A partir destes pressupostos, este trabalho destina-se a uma releitura de obras que tratam do
fenômeno “transporte”, nos vários períodos da Geografia, a fim de sistematizar uma visão sobre a
existência e autonomia científica da “Geografia dos Transportes”. Ainda é analisado as diversas
interfaces com outras áreas da Geografia e de outras ciências na formulação de um corpo téoricoconceitual próprio e dotado de relevância na investigação deste fenômeno tão importante na
construção e des-construção dos territórios.
2. OS TRANSPORTES COMO UMA TEMÁTICA GEOGRÁFICA
“Transporte é parte do ritmo diário da vida”4. Sendo assim, seria impensável a vida sem o
transporte, principalmente a vida moderna. Mas o que realmente é o fenômeno transporte? Por
tratar-se de um tema complexo e multidisciplinar, com várias abordagens e interpretações, é natural
a dificuldade em definir, em termos gerais, um fenômeno tão amplo.
Para dar conta de tema tão complexo, vários campos do conhecimento se lançam no estudo e
na pesquisa a fim de sistematizar e proceder com a investigação científica a respeito deste objeto de
fundamental importância para a concretização das relações, bem como das associações da vida na
contemporaneidade. Sendo assim, geógrafos, sociólogos, historiadores, economistas e engenheiros
se apresentam na discussão e na análise deste objeto pela perspectiva de seus campos de atuação,
tornado o tema, por excelência, multidisciplinar. Porém, há poucos registros de uma tentativa
interdisciplinar de estudo. Isso ocorre, muitas vezes, pela forma em que os transportes são vistos
(bem como definidos) pelos diferentes campos de atuação. Ao passo que a Geografia tende a
focalizar os aspectos de espacialização e contexto territorial dos transportes, a Economia tende a
enxergá-lo pelo prisma do desenvolvimento econômico (entrave e facilitador), já as Engenharias se
lançam na melhor forma de concretizar e possibilitar a sua infra-estrutura (base tecnológica de
apoio) e, assim por diante.
Neste sentido, Soria apud Bey & Pons (1991), pela perspectiva geográfica, procuram
definição, por meio da etimologia da palavra “trans-porte”, e, assim definem que o ato de
transportar seria o processo de transpor uma fronteira (barreira), seja esta natural ou artificial, e por
onde preexiste um caminho. Ainda de acordo com Bey & Pons (1991) estas fronteiras (barreiras)
estão inseridas em um contexto de diferenciação territorial e, por conseguinte, associadas à noção
de espaço e, mais precisamente ao espaço territorial.
A Geografia, tal como percebemos hoje, é fruto de um embate epistemológico que perdura
desde sua sistematização como ciência (séc. XIX), até os dias atuais, onde este processo ainda é
contínuo.
O estudo da Geografia focaliza nas inter-relações entre fenômenos humanos e ambientais, e
para tal ela faz uso constantemente de um objeto conceitualmente construído: o território. O
território é tido como o conceito norteador da ciência geográfica e está intimamente ligado à
capacidade humana de apropriação do meio, modificando-o e reproduzindo-o num processo
constante de embate de forças socioambientais. Neste sentido, os transportes assumem um papel
fundamental por sua característica de ser a medida de interação entre as áreas e, portanto atua como
mediador das escalas e amplitudes das relações socioambientais.
Por um lado, nota-se que o assunto de transportes esteve presente em vários momentos entre
as discussões teórico-conceituais da ciência geográfica. Porém é notório que nem todo estudo que
aborda este tema seja necessariamente um trabalho de Geografia dos Transportes. Vários trabalhos
de diversas áreas da Geografia (econômica, urbana, regional e até médica) utilizam de dados e
informações a respeito dos transportes como componentes explicativos ou mesmo evidenciais, no
intuito de analisarem fenômenos específicos ao seu campo de atuação. Sendo assim, estas diversas
áreas da Geografia não consideram o fenômeno dos transportes um objeto particular de estudo.
Por outro lado, uma “Geografia dos Transportes” pressupõe a exploração do tema a fim de
formulação de um corpo teórico e conceitual próprio, bem como métodos de investigação científica
4
Hoyle & Knowles (1998, p.1).
2
que caracterizem um campo próprio dentro da Geografia. Sobre a escassez de trabalhos de cunho
teórico-metodológico em Geografia dos Transportes, segue-se abaixo:
Sin embargo, mucho de los estudios que se llevan a cabo en la linea de los transportes y
las comunicaciones, no sólo en España sino también fuera de ella, pecan demasiado
localistas y prestan poca atención a los aspectos de caráter teórico y metodológico.
Echemos una ojeado rápida a dos congresos de relevancia celebrados en los últimos años,
en 1986, la Reunión Internacional del grupo de trabajo Geografía del Transporte de la
Unión Geográfica Internacional, celebrada en León, y el XI Congreso Nacional de
Geografía celebrado en Madrid en 1989. Tanto en uno como en otro, la mayor parte de los
artículos sobre transportes son de carácter puntual, siendo mínimos los de carácter
teórico-metodológico. (BEY & PONS, 1991, p.11)
Os trabalhos de Geografia dos Transportes que discutem os aspectos teórico-metodológicos
são fundamentais para a consolidação e reconhecimento desta ramificação da Geografia, bem como
a autonomia de seu objeto particular de estudo, que a nosso ver, trata-se da ocorrência do fenômeno
do transporte como condicionante/condicionada no/pelo espaço geográfico, e em linhas menores,
componente delineador e ordenador do próprio território.
Esta autonomia deve ser entendida não como a independência do objeto em relação às outras
áreas da Geografia, mas sim como um recorte temático que focaliza neste objeto específico (como
guia de estudo) em detrimento dos outros. Obviamente a focalização de um objeto de estudo não
pode perder de vista as suas inter-relações e as interdependências com os demais fenômenos, sejam
eles de qualquer escala e natureza científica (econômicos, ambientais, sociais, etc.).
As principais obras de referência na área e utilizadas neste trabalho como guia pra
aprofundamento em outras referências são Bey & Pons (1991) e Hoyle & Knowless (1998). Ambas
as obras são uma avaliação e uma releitura da “Geografia dos Transportes” e seus principais
trabalhos e autores, que dentre eles incluem Ullman (1957:1959), Taaffe & Gauthier (1973)
Potrykowski & Taylor (1984), dentre outros.
Bey e Pons (1991) e outros5 apontam Ullman (1957;1959) como o precursor teórico da
“Geografia dos Transportes”. Seu trabalho estava permeado pela constante preocupação com a
determinação das áreas industriais e das áreas de consumo, bem como a conectividade e o papel
preponderante que os transportes desempenham na estruturação e na consolidação destas áreas.
Sendo assim, seu trabalho dá aos transportes, estruturados em forma de sistema, fator condicionante
para efetivação da especialização territorial.
Segundo Pacheco (2004) Edward Ullman, em seus trabalhos, talvez tenha dado aos sistemas
de transportes um papel supervalorizado no desenvolvimento das regiões e na especialização
territorial, visto que este reduzia praticamente todos os processos de interação espacial à existência
ou não dos sistemas de transporte e telecomunicações. Mas talvez seu maior feito na ciência
geográfica tenha sido a focalização no fenômeno de transportes em detrimento da “circulação”,
termo amplamente usado na escola francesa de Geografia para designação de um campo de estudos
mais preocupado em identificar agentes e objetos do contexto social que praticavam a mobilidade
espacial, do que propriamente os condicionantes e as conseqüências da interação espacial.
Ullman (1957) sobressai nos estudos da época com “Geography of Transportation”, não só
pelo título escolhido (“transportes” e não “circulação”), como pelos ensaios desenvolvidos
no sentido de encontrar um método que permitisse explicar e prever a dinâmica dos fluxos.
(PACHECO, 2004, p.24)
Para nós, a Geografia da Circulação atuou/atua como um entrave ao desenvolvimento dos
estudos dos transportes pela Geografia, pois se tratava (e ainda se trata) de um campo de estudo
imensamente vasto e complexo que tem a pretensão de dar conta de todos os fenômenos onde se
identificam fluxos contextualizados pelo pano de fundo territorial, bem como entender todos os
processos que moldam e ordenam o território. Para tal, ela incorpora aspectos da Geografia Urbana,
5
Pacheco (2004)
3
Econômica e da População, para estudar de forma pontual, casos de fluxos de pessoas, mercadorias,
informação, dentre outros. Seu produto final é um quadro geral sobre a circulação em uma
determinada localidade ou região e sem grandes avanços de cunho teórico-metodológico. Além
disso, a “Geografia da Circulação” constantemente considera o assunto específico de transportes
(infra-estrutura, sistemas de transportes, desenvolvimento da rede de transportes) de forma
superficial em seus estudos. A redução funcional dos meios de transportes no processo de interação
espacial pela Geografia da Circulação é evidenciada pela leitura da visão de um geógrafo francês
sobre o os transportes no contexto da Geografia da circulação..
Na leitura de Mérenne (1995:183) a utilização da palavra “circulação” pode atribuir-se ao
facto [...] de considerarem a totalidade dos modos de transportes nas suas relações com os
quadros naturais e humanos, sendo que as infra-estruturas e os meios de transportes
servem para efectuar deslocamento. (PACHECO, 2004, p.25, grifo nosso.)
Segundo Pacheco (2004), a colocação de Mérenne em relação aos meios de transportes é um
bom exemplo de como a leitura da Geografia da Circulação foca nos pontos de O-D (origemdestino) do fenômeno em detrimento de um estudo mais apurado dos processos que possibilitam a
conexão dos referidos pontos.
3. AS DIVERSAS INTERFACES DA GEOGRAFIA DOS TRANSPORTES
A análise dos fenômenos, localização e sua distribuição pela superfície terrestre, constituem
uma das preocupações básicas da Geografia. Não seria diferente com o fenômeno dos transportes. A
sua participação como componente de diferenciação das áreas pode assumir diversos ângulos
dependendo da forma como é abordado, mas a sua relevância não pode ser subestimada.
[…] geography is concerned with interrelationships between phenomenal in a spatial
setting and with the explanation of spatial patterns; and transport is frequently one of the
most potent explanatory factors. (HOYLE & KNOWLES, 1998, p.2)
A abordagem dos sistemas de transportes pela Geografia certamente passará por outras áreas
da ciência geográfica como a Urbana (principalmente no tocante às redes urbanas), a Geografia
Econômica, a Geografia Regional (os fundamentos da regionalização), dentre outros, bem como
pela incorporação de teorias e técnicas de outras ciências, como a Economia, as Engenharias e a
Matemática.
3.1 As diferentes formas de conceber e expressar as “distâncias” inseridas no contexto da
relação espaço-temporal
O ato de “transportar” está comumente associado, no senso comum, com o ato de
“deslocar”. Porém, não é um deslocamento qualquer, ele é orientado e realizado sobre um espaço
determinado e estrito, com o intuito de unir o ponto de origem (por onde parte-se o deslocamento)
até um ponto de destinação (o cessar do deslocamento). O que é percorrido, ou seja, o hiato entre
estes pontos (origem-destino) pode ser mensurado em termos de distância.
No entanto, um termo que comumente encontra definição fácil em meio ao senso comum,
apresenta-se como um conceito complexo e difuso em uma análise mais aprofundada. Isso ocorre
pela pluralidade de significação e concepção em que o conceito de distância está inserido e
principalmente pela dificuldade de expressá-la.
A relação de “distância” com “espaço” é tão íntima que, muitas vezes, a primeira era
totalizada em função da segunda. Porém, espaço e distância diferem em natureza, visto que a
distância é uma das formas de expressar o espaço, mas não somente ele. Este impasse, que inclusive
4
já levou a chamarem a Geografia de “disciplina da distância”6, tem origem nos modelos
matemáticos de mensuração do espaço físico.
A Geografia tradicional concebia o espaço de forma resoluta, baseando-se no método
cartesiano como guia e na racionalidade e totalidade que o mesmo proporcionava. A Geografia
desta época (séc. XIX e início do séc. XX), também absorveu (assim como outras ciências), à
distância concebida na forma da física newtoniana, que por sua vez era fundamentada na geometria
euclidiana, advinda do famoso matemático Euclides de Alexandria (360a.C – 295a.C.), cujo modelo
“se manteve incólume no pensamento matemático medieval e renascentista”7 . Sobre o impacto da
física newtoniana na concepção espacial da Geografia, segue-se abaixo:
(…) la ciencia geográfica es esencialmente descriptiva y se ocupa de localizar los hechos
que le conciernen, determinar exactamente la posición que ocupan y la extensión del área
que abarcan. Esta concepción del espacio, que la geografía viene defendiendo desde
Humboldt y ha mantenido a través de autores prestigiados en siglo XIX como Hettner,
Hartshorne y la escuela vidaliana francesa, nace en siglo XVII con la física newtoniana.
Ésta, a su vez, se sostiene sobre la base de la pervivencia de la geometría euclidiana, que
data del 300 a.C. y que se mantuvo sin grandes variaciones hasta el siglo XIX de nuestra
era. (BEY & PONS, 1991, p.28)
No desenvolvimento da ciência geográfica, a concepção da física newtoniana, bem como da
aceitação de seus pressupostos de espaço absolutos (advindos da geometria euclidiana), trouxeram
diversos problemas de ordem teórica e prática, visto que essa mensuração do espaço não
necessariamente expressava sua totalidade. Foi notado que fatores como a declividade, e o relevo
acidentado, a progressão do terreno e a sua impenetrabilidade influenciavam definitivamente nesta
mensuração.
A partir destes problemas de representação e mensuração do espaço é que se desenvolveram
as geometrias não-euclidianas, as quais significaram uma nova percepção do espaço8. Sobre estas
geometrias não-euclidianas, segue-se mais detalhadamente abaixo:
Con la aparición de las geometrías no-euclidianas (Lobachevsky, geometría hiperbólica;
Riemann, geometría elíptica), el desarrollo de la teoría da relatividad de Einstein y la
teoría cuántica se demostró que el espacio euclidiano no sólo no era el único espacio
posible sino que la noción teórica de espacio absoluto que se definía a partir de él no
estaba en consonancia con los avances que las ciencias, tanto físicas como humanas,
estaban realizando en el terreno práctico. (BEY & PONS, 1991, p.29)
O surgimento da concepção de espaço relativo trouxe consigo uma nova forma de expressar
o espaço e conseqüentemente as distâncias. O espaço relativo introduz nas formas de analisar,
descrever e mensurar as distâncias, variáveis diversas, tanto de ordem quantitativa como qualitativa,
que possibilitam uma melhor aproximação da realidade.
Com o desenvolvimento e a proliferação dos sistemas de transportes, bem como o aumento
de sua diversidade e a generalização do seu acesso, aumentaram consideravelmente a conectividade
das diversas áreas que antes eram impossibilitadas de interagirem. Sendo assim, mensuração da
distância entre dois pontos na superfície terrestre, com finalidade de transpô-la, levaria em conta
não somente o espaço (hiato entre origem e destino), mas também tempo para realização do transporte, que era tão diverso como os modos de realizar o deslocamento.
O conceito de distância temporal articula-se em função não somente da distância espacial,
mas também de diversas variáveis, que podem ser de ordem social, cultural, econômica, infraestrutural etc.
Perante isto, alguns estudos de percepção realizados com as pessoas que utilizam os
sistemas de transportes constataram que elas tendem a perceber o espaço-tempo de forma
diferenciada ao realizar a sua mobilidade espacial. A principal explicação seria que as pessoas por
6
Bey & Pons, 1991, p.30
Wikipedia.org (disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Euclides)
8
Bey & Pons, 1991, p.29
7
5
meio de sua formação psicossocial diferenciada e por vários fatores culturais, socioeconômicos,
dentre outros, perceberiam o deslocamento de forma diferente (em termos espaciais e temporais), e
isto estaria diretamente relacionado com o percurso, o centro e a origem do deslocamento, bem
como o motivo de sua mobilidade. Este tipo de pesquisa tem encontrado vasta aplicação no campo
do transporte de pessoas e de estudos sobre os roteiros escolhidos para mobilidade espacial
motivada por diferentes fatores como ócio, turismo, etc.9
Já ao analisarmos o transporte de mercadorias, a distância temporal relaciona-se diretamente
com a base tecnológica na qual o sistema de aporte do fluxo (sistema de transporte) se desenvolveu.
Sendo assim, as distâncias (em termos de espaço-tempo) não são resultadas só da totalidade
percorrida, mas também se relaciona inevitavelmente com a tecnologia utilizada para se percorrer o
percurso, pois é notório que o próprio avanço da tecnologia do sistema cria alternativas espaçostemporais do percurso. Portanto, conclui-se que o nível tecnológico dos sistemas de transporte age
como um importante fator de “relativização” das distâncias espaços-temporais e que isso possui um
impacto considerável no comércio e na circulação de mercadorias. (BEY & PONS, 1991, p.163)
Um exemplo do uso da variável “distância relativa” é a sua incorporação no modelo
gravitacional, utilizado pelas ciências econômicas para explicar os ciclos espaciais de comércio a
nível internacional (Kume e Piani, 2000) e nacional - fluxos interestaduais - (Castro et al, 1999), o
que exemplifica também o peso que os sistemas de transportes assumem no avanço das técnicas
quantitativas aplicadas a estudos de espacialização do comércio e os fluxos de mercadorias, já que
este possui grande representatividade na formulação da variável “distância relativa”.
O fator “distância relativa” tem conquistado cada vez mais espaço e importância sobre a
“distância total”, sendo esta última concebida geralmente em Km (e outras medidas totalizadoras) e
a primeira relativizada a partir da inserção de diversas variáveis, que dependem geralmente do uso
que se faz desta “distância relativa”.
3.2 A discussão regional e econômica em Geografia dos Transportes
A região é certamente um conceito complexo e amplamente debatido pela ciência
geográfica. Em termos gerais, ela está ligada à “noção fundamental de diferenciação de áreas, quer
dizer, à aceitação da idéia de que a superfície da terra é constituída por áreas diferentes entre si”.
(CÔRREA, 1997, p.22, grifo nosso)
Porém, este conceito-instrumento da ciência geográfica não encontra consenso em sua
definição, variando na história do pensamento geográfico de acordo com a escola epistemológica
em que era discutida e seus diferentes usos e aplicabilidades.
A preocupação da Geografia com a localização e distribuição das atividades econômicas foi
incorporada na discussão regional e o fruto desta incorporação foi o conceito de região econômica.
A análise da região econômica em Geografia na perspectiva de Bey & Pons (1991), pode,
fundamentalmente, seguir “duas linhas contrapostas: a tradicional em toda escola regionalista
francesa, a linha excepcionalista; e a desenvolvida a partir do impacto do neopositivismo nas
ciências sociais, a linha sistêmica”. (BEY & PONS, 1991, p.14, grifo e tradução nossa)
Haesbaert (2001) afirma que a concepção de região vidaliana do possibilismo francês entra
em decadência em meados das décadas de 1950-60. Neste sentido, o artigo de Schaeffer em 1953 e
o texto de Lacoste em 1976 criticam a representação regional desta “linha excepcionalista”, o
primeiro em função da linha sistêmica da Geografia Quantitativa e o segundo em função da
Geografia Crítica de fundamentação marxista. A respeito destes trabalhos segue-se abaixo:
[...] o artigo de Schaeffer (1953) foi um marco. Acusando a Geografia clássica de valorizar
o “excepcional”, o único, o singular, especialmente através do conceito de região, ele
mostra as limitações para se construir um lugar verdadeiramente científico para a
Geografia. (HAESBAERT, 2001, p.2)
9
Cf. Bey & Pons, 1991, p.101
6
[...] é bem conhecido o texto de Yves Lacoste (1976), “A colocação de um poderoso
conceito-obstáculo: a „região‟” – termo que, em versão posterior (LACOSTE, 1985,
traduzida para o português em 1988), virou “região personagem”, subentendendo que não
tratava de qualquer conceito de região. [...] Lacoste – baseado apenas na abordagem do
“Tableau de la Geographie de la France” (LA BLACHE, 1905) -, acusa unilateralmente a
região lablacheana de ter se tornado um “poderoso conceito-obstáculo que impediu a
consideração de outras representações espaciais e o exame de suas relações” (LACOSTE,
1988:64). (HAESBAERT, 2001, p.3)
Sendo assim, com a decadência da “linha excepcionalista”, houve no estudo dos transportes
pela Geografia, uma adoção generalizada pelo entendimento da região econômica proporcionado
pela “linha sistêmica”. Neste sentido, Bey e Pons (1991) afirmam que a “linha sistêmica” abre para
uma análise teórica, que aplicada ao estudo regional, focaliza nas funções que o espaço adquire,
bem como nos fluxos alimentadores destas, sendo assim, responsáveis pelo seu nível de coesão e
pelo ordenamento territorial. Surge, portanto, um conceito mais amplo: o de “região funcional”
Neste contexto, o conceito de “região funcional” passou a ser estudado e utilizado (não só
cientificamente, mas também como modelos de aplicabilidade) 10, por meio da introdução do
positivismo lógico na ciência geográfica e pela utilização massiva de técnicas quantitativas,
característicos da escola epistemológica geográfica conhecida como New Geography (Nova
Geografia – 1950-60). Na análise da região-funcional foi incorporada uma boa parte dos preceitos
da Geografia Econômica, que pretendia, nesta época, analisar os fluxos comerciais e de capitais em
um contexto de coesão ou entrave das relações econômicas intra-regionais ou inter-regionais. A
abordagem sistêmica proliferou nos modelos apresentados e a sua forma mais complexa, a “rede”,
tornou-se um imperativo nas obras de Geografia Regional, Urbana e Econômica da época.
As regiões funcionais (...) são definidas de acordo com o movimento de pessoas,
mercadorias, informações, decisões e idéias sobre a superfície da Terra. Identificam-se,
assim, regiões de tráfego rodoviário, fluxos telefônicos ou matérias-primas industriais,
migrações diárias para o trabalho, influência comercial das cidades etc. (CÔRREA, 1997,
p.35, grifo nosso)
Logo, o transporte não passou despercebido por esta concepção regional. Sua função de
conectividade destas redes e mesmo de condicionador de sua existência, proporcionou um avanço
nos estudos específicos do componente transporte na estruturação e gênese de redes urbanas e nos
circuitos comerciais de interação entre as regiões.
El estudio de la región económica y funcional centrada en la búsqueda de implicaciones
locacionales, encuentra un fructífero campo en la geografía del transporte. (BEY & PONS,
1991, p.14)
A qualificação da variável transporte no ordenamento territorial, tendo como pano de fundo
a região econômica (e funcional), a Geografia urbana (principalmente no tocante às redes urbanas),
e a Geografia regional, foi alvo de uma árdua, porém frutífera discussão. Na visão de Pacheco
(2004), autores diversos, como Ullman (1957), Grinsburg (1961) se lançaram, nas décadas de 196070, a analisar as sobreposições das redes urbanas ( e principalmente a especialização das cidades)
com a rede de transportes.
Ainda segundo Pacheco (2004), neste primeiro momento (décadas de 1950 e 1960), os
métodos quantitativos proliferam nos trabalhos acadêmicos, e houve uma completa reavaliação dos
trabalhos de Geografia urbana (principalmente redes urbanas), onde trabalhos de Christaller e
Lösch, baseados nos modelos gravitacionais, foram revistos sob a luz da Teoria dos Grafos. A
principal preocupação era a criação de teorias e modelos aplicáveis no planejamento da rede de
transportes baseados na sua potencialidade de induzir a especialização do território (região
funcional e hierarquizada).
10
Cf. CÔRREA, 1997, p.35
7
Já em um segundo momento (década de 1970), os trabalhos de Geografia dos transportes
evoluíram e se diversificaram nas problemáticas, a exemplo dos estudos behavoristas,
(comportamentalistas), preocupados na análise dos transportes de pessoas e nas escolhas dos modos
e dos sistemas que dariam aporte ideal à mobilidade espacial baseados nas escolhas e nos
comportamentos dos grupos sociais. No entanto, os estudos a respeito dos impactos que a rede de
transportes ocasiona no desenvolvimento econômico-regional continuavam centralizando o debate
teórico e o uso das técnicas quantitativas aperfeiçoou, sendo fruto do impacto dos trabalhos de
Haggett (1969; 1976)11.
Porém, no final do século XX (décadas de 1980 e 1990) a idéia do transporte como vetor de
desenvolvimento ficava cada vez mais relativizada em relação a diversos fatores e a casos
específicos (isso em Geografia). O papel das decisões políticas e administrativas, bem como o
movimento de interação entre grupos sociais dominantes e subordinados, teve seu papel ampliado
em relação à disponibilidade das redes de transporte, como componente de desenvolvimento
regional-econômico.
De fato, os transportes foram em muitos estudos considerados de forma supervalorizada ou
determinista na estruturação e no ordenamento territorial, porém focalizar apenas na sua função de
“efectuar deslocamentos”12, seria uma imprudência e uma negligência com a capacidade que o
mesmo tem de efetuar não só a interação, como também a mutação dos territórios. Neste sentido, os
sistemas de transportes têm uma grande potencialidade de (des)agregar atributos no/do território, o
que não só ocorre nos pontos de O-D (origem-destino), mas também nos entrelaces da rede (pontos
nodais), onde há um constante processo de (des-re)territorialização orientado pela inserção de
elementos de suporte e apoio a continuidade do fluxo.
4. CONSIDERAÇLÕES FINAIS
Certamente o fenômeno “transporte”, abordado seja pela perspectiva econômica, social,
cultural, histórica, etc. não pode e nem deve ser desassociado de um contexto territorial. A
importância que os sistemas de transportes assumem na contemporaneidade, ao possibilitar a
conexão e a mobilidade de vários atributos territorialmente dispersos, torna a temática emergente
nas discussões geográfica.
Neste sentido, é observado que uma ramificação da ciência geográfica para tratar o
fenômeno em destaque, apesar de não possuir consenso na nomeação (circulação ou transportes) e
na autonomia de objeto (inserção dentro das temáticas urbanas, regionais, econômicas, etc.) foi
tendência pós década de 1950. Amparado por diversas concepções e uma gama consideravelmente
de metodologias de estudo, a Geografia dos Transportes mostrou, desde sua origem, uma tendência
de alinhamento com uma Geografia mais pragmática. Sendo assim, a sua produção científica esteve
voltada para o entendimento da relação dos transportes com o território com fins de planejamento e
gestão de sistemas melhores e mais eficientes, encontrando um alinhamento maior em escolas que
primem por esta “Geografia pragmática”, a exemplos das escolas americanas e britânicas de
Geografia. Porém, é observado que em meados da década de 1980 e 1990, a Geografia dos
Transportes ampliou seu horizonte de estudos consideravelmente, abarcando temáticas sociais,
ambientais e culturais como fundamentos importantes para o entendimento mais amplo deste
fenômeno.
É fato que o reconhecimento deste fenômeno pela ciência geográfica deve ser primado, já
que sem o seu enfoque como componente territorial, os transportes se desprenderiam de uma
referência na qual a sua “razão de ser” jamais se revelaria.
11
12
Cf. Pacheco (2004)
Cf. Mérenne apud Pacheco (2004)
8
5. REFERÊNCIAS
BEY, J. M. P.; PONS, J. M. S. Geografía de Redes y Sistemas de Transporte. Madrid: Editorial
Sintesis, 1991.
CORRÊA, R. L. Trajetórias Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
CHRISTALLER, W. Central Places in Southern Germany. Prentice-Hall/Englewood Cliffs, 1966
GARRISON, W. L. Connectivity of the Interstate Highway System. Papers, Regional Science
Association 6, p.121-137.
HAESBAERT, Morte e Vida da Região: antigos paradigmas e novas perspectivas da Geografia
Regional. In: Encontro Estadual de Geografia, XXII, 2003, Porto Alegre. Anais...Porto Alegre:
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