Para que Serve a Metapsicologia Hoje

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DUNKER, C.I.L. – Para que serve a metapsicologia Hoje? Centenário do
nascimento de Freud, Unicamp, 2007.
Para que Serve a Metapsicologia Hoje ?
Christian Ingo Lenz Dunker
Freud tinha uma atitude de respeito e temor com relação à metapsicologia. Sua
vizinhança com a filosofia, esta forma de mitigada de delírio, explicam as razões
superficiais deste temor. Mas além disso há também uma espécie de fascínio, de atração
irresistível, que o fazem progredir, do início ao fim da obra, sua relação com a feiticeira.
“Minha feiticeira”, era assim que Freud se referia à metapsicologia. A alcunha sugere
exatamente esta imagem de algo a quem atribuímos estranhos poderes e que, ao mesmo
tempo, podem se voltar contra nós.
O termo metapsicologia é um neologismo, cunhado pelo próprio Freud, à partir
da noção de metafísica. Mas ao contrário da metafísica convencional, que se apresenta
como um sistema fechado, redundando em um tipo de saber teórico contemplativo e
cujo vocabulário deve ser o mais estável e sistemático possível, a metapsicologia é
apresentada, nos primeiros parágrafos de Pulsão e suas Vicissitudes (Freud, 1917),
como um trabalho de saber mais próximo do da ciência, ou seja, necessariamente aberto
e precário de modo a ser modificado e contrariado pelo progresso da experiência.
Este caráter inconcluído da metapsicologia em Freud é mais literal do que se
pode pensar. Sabe-se que dos doze artigos especificamente dedicados ao tema ele
concluiu apenas cinco. Os sete restantes, ou seja, a maioria foram perdidos ou jamais
escritos. Esta incerteza no coração teórico da psicanálise foi alimentada pela descoberta
tardia do artigo sobre as Neuroses de Transferência. Restam, portanto seis cujo
paradeiro é desconhecido, sabendo-se que eles versariam sobre temas como a
consciência, a angústia, a sublimação e a projeção. O argumento paliativo de que tudo o
que havia para ser escrito sobre estes temas se encontraria disperso em textos
posteriores, como por exemplo, Além do Princípio do Prazer (1920), é uma argumento
falso. Nada há sobre a consciência e sobre a sublimação apenas indicações esparsas e
por vezes contraditórias. Em março de 1919, Lou Andréas Salomé, cansada de esperar,
escreve à Freud: “onde estão os artigos restantes que já estavam terminados ?” A
resposta de Freud é irônica:
“Sem embargo, se eu viver mais dez anos, se puder trabalhar durante este tempo,
se não morrer de fome, se não for assassinado, se não ficar demasiadamente
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nascimento de Freud, Unicamp, 2007.
submerso pela desgraça de minha família nem daqueles que me rodeiam,
prometo fazer contribuições posteriores à minha metapsicologia.” 1
Apesar da promessa parcialmente cumprida podemos ter uma razoável idéia do
método que se deveria levar a cabo na construção da metapsicologia: descrição de
fenômenos, agrupamento e organização destes, aplicação ao material de certas idéias
abstratas, o que comporta certa indeterminação. Obtém-se assim certas convenções que
se relacionam com o material empírico:
“Só depois de haver explorado mais a fundo o campo de fenômenos em questão
é possível apreender com maior exatidão é possível apreender com maior
exatidão também seus conceitos científicos básicos. (...) Então talvez tenha
chegado a hora de cunhar algumas definições. Mas o progresso do conhecimento
científico não tolera rigidez alguma, tão pouco as definições.”2
O tom é surpreendentemente banal, poderíamos encontrar uma passagem como
esta em qualquer manual de metodologia. Desta matriz relativamente simples, na qual
Freud instalava a epistemologia da psicanálise, desdobram-se inúmeras conseqüências
problemáticas, a saber: um certo entendimento do que vem a ser um conceito em
psicanálise; uma certa dissociação entre conceitos práticos, que pertencem à teoria da
técnica, conceitos metodológicos; e conceitos fundamentais (Grundbegriffe). Um
regime de soberania da experiência clínica sobre as transformações técnicas e portanto
um regime coextensivo de aplicação controlada destes conceitos para além de seu solo
originário: a cultura, a sociedade, a arte e a religião.
Muitos autores já assinalaram a proximidade entre esta maneira de entender o
progresso e estatuto da teoria psicanalítica com a epistemologia kantiana, tal como fora
absorvida por Mach, Helmholz, Herbart 3 . Foi exatamente por partilhar desta afinidade
que colocou-se o problema da cientificidade da psicanálise. Foi, também, no terreno da
tradição epistemológica legada por Kant que a psicanálise se viu criteriosamente
destroçada. Primeiro Witgenstein, depois Carnap, Popper, Ayers e até o recente
consenso neuro-cognitivista mostraram que, de fato, um entendimento estritamente
kantiano da psicanálise como uma forma de conhecimento mostrava-se problemático.
No fundo este juízo final nos coloca diante de uma alternativa: ou Freud era um mau
1
Strachey, J. – Introdução, in Sigmund Freud Obras Completas V. XIV, Amorrortu, Buenos Aires,
1988:103-104.
2
Freud, S. – Pulsão e suas vicissitudes (1915) in Sigmund Freud Obras Completas V. XIV, Amorrortu,
Buenos Aires, 1988:113.
3
Assoun, P.L. – Introdução à Epistemologia Freudiana, Imago, Rio de Janeiro, 1983.
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epistemólogo e neste caso a psicanálise seria ainda uma ciência, mas não de corte
kantiano, ou simplesmente devemos assumir que a metapsicologia não é de fato uma
teoria comparável à teoria científica e assumir de vez que somos praticantes de uma
espécie de metafísica mitigada, um gênero da literatura ou uma forma filosofia moral
mal feita. Temos uma primeira resposta: a metapsicologia não serve para nada e
ademais atrapalha aqueles que pretendem conhecer alguma coisa.
Aqui começa o que podemos chamar de deriva epistemológica da psicanálise, ou
seja, a tentativa de anexar as raízes de seus conceitos não apenas na experiência clínica
direta mas em homologia e analogia com outras formas públicas e universais de saber.
Quero salientar brevemente três movimentos desta deriva epistemológica:
(a) a deriva antropológica e o problema da universalidade do Complexo de
Édipo.
(b) a deriva psicológica e o problema da universalidade da ontogênese humana.
(c) a deriva lingüística e o problema da universalidade da razão.
Ocorre que todas estas derivas, que afinal renderam frutos interessantes
partilham de um mesmo equívoco no entendimento da metapsicologia e de seu estatuto
teórico. Ou seja, reduziram de uma forma ou de outra a metapsicologia a uma teoria que
deveria ser avaliada e legitimada no quadro do que Kant chamava de Razão Pura. Ora,
a razão pura nos orienta para o conhecimento dos fenômenos, as condições de sua
formação, os seus limites no quadro da sensibilidade e do entendimento. Ou seja, no
fundo injeta-se na psicanálise a atividade crítica de seus próprios fundamentos bem
como as condições para seus juízos teóricos. O resultado é uma contínua infiltração de
de modelos, esquemas de pensamento e ação no que diz respeito à teorização da
psicanálise que não escapam ao problema da tradução da experiência em conceito e a
reversão dos conceitos à experiência.
Quero chamar a atenção de vocês para um equívoco de base assumido por esta
maneira de entender a metapsicologia. Ao cunhar o termo metapsicologia Freud tinha
em mente a idéia de metafísica. A metapsicologia está para a psicologia assim como a
metafísica está para a física, ou melhor, para as ciências em sua acepção corrente de
Aristóteles à Kant. Portanto a metapsicologia não é ela mesma uma forma de psicologia.
Voltando a Kant, sabemos que uma de suas principais preocupações era
justamente estabelecer as condições para uma metafísica possível, uma metafísica nos
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limites da razão, não meramente nos limites do entendimento. A razão, ou seja, a razão
pura, mas também a razão prática. Faz parte desta metafísica a tese de que há idéias
que não são propriamente objeto de conhecimento, mas que tem uma função reguladora,
por exemplo, o mundo, a alma e Deus. Uma atualização possível destas idéias
reguladoras tende a deslocar estes temas teológicos e antropológicos para noções como
negatividade, liberdade e universalidade. Portanto, basta voltarmos a Kant de modo a
salientar como é a sua acepção de metafísica que está sendo pressuposta por Freud, para
verificar que a metapsicologia não deveria ser entendida como mera extensão
modificada da razão pura e suas aplicações, mas como um tipo de teorização que
condiciona tanto o conhecimento empírico tradicional quanto seu emprego no âmbito da
razão prática, isto é, da ética e da política, ou ainda do que Kant chamava de costumes.
Aqui se poderia construir uma outra linhagem de pensadores que perceberam ser este
exatamente o valor estratégico da teoria psicanalítica em nosso tempo, ou seja, ela
preserva o kantismo naquilo que ele tem de melhor, ou seja, a junção iluminista e
universalista, entre razão pura e razão prática. Basta citar aqui Bachelard e sua
reabsorção da noção de inconsciente ao campo da epistemologia; Politzer e a promessa
da psicanálise como psicologia crítica e concreta; Adorno, Marcuse e Habermas sem
falar em Althusser e de Foucault em As Palavras e as Coisas. Aqui temos uma segunda
resposta: a metapsicologia, além de facultar o aprimoramento do exercício prático da
cura serve como uma espécie de guardiã privilegiada de um tipo de teorização em
extinção na nossa época.
Examinemos o caso da sua utilidade prática com relação à cura. Observe-se
como esta diferença, antes discutida entre um kantismo parcial e um kantismo radical,
tem implicações diretas para o próprio entendimento do que vem a ser o método
psicanalítico:
(a) Ele é um método na simples acepção tradicional de método de conhecimento
ou investigação, ou
(b) ele preserva a afinidade ética da idéia de método, ou seja, uma método que é
irredutível à um conjunto de técnicas regradamente aplicadas por um agente
anônimo.
Uma digressão. Essa afinidade ética da noção de método já aparece em
Descartes e sua apropriação e reversão das antigas práticas de cuidado de si. Ou seja,
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segundo esta hipótese, sobre a qual venho trabalhando, o método psicanalítico deriva
não só do conhece-te a ti mesmo mas também do cuida de ti mesmo (epimeléa hautou).
Implicação direta desta hipótese é que a relação entre ética e psicanálise não é uma
relação extrínceca mas intrínceca. A ética não é um domínio adicional de saber, ao qual
nos remetemos para regular exteriormente nossa prática, mas é uma parte constitutiva
da própria metapsicologia. É por isso que Lacan afirma que textos altamente
metapsicológicos como o Projeto de Psicologia Científica (1895) e Além do Princípio
do Prazer (1920), são textos sobre ética e também que seu projeto é transformar a
economia biologista de Freud em uma economia política.
Isso implica ainda em considerar uma parte específica da metapsicologia, ou
seja, sua ontologia, ou em termos psicanalíticos, a teoria das pulsões em Freud, a teoria
do gozo em Lacan, como uma ontologia que não é puramente descritivista, mas segundo
a hipótese que apresento a vocês, como uma ontologia simultaneamente política e
negativa, ou seja, uma teoria que presume que o conflito é fundante e que ele pode ser
regulado pelos meios atuais de sua prática, a saber, a transferência. Ou seja, se
procuramos nas diversas formas do saber aquela que melhor responde à esta
propriedade de pensar a contradição com os meios e no domínio em que esta se produz
o resultado será uma afinidade imediata com o campo da política.
Finalmente, se examinarmos mais de perto os meios de representação desta
prática encontraremos, no cenário atual, uma estratificação um pouco diferente daquela
sugerida por Freud no parágrafo, antes aludido, de Pulsão e suas Vicissitudes. Em vez
de um par biunívoco e reversível entre fenômenos e conceitos seria mais justo dizer que
o desenvolvimento da metapsicologia caminha em quatro movimentos distintos:
(a) A formação gradual de uma semiologia narrativa.
(b) A escritura nocional desta narrativa.
(c) A epistemologização destas noções em conceitos.
(d) A formalização dos conceitos.
Aqui a hipótese dominante, pelo menos na tradição lacaniana, presume que o
grau máximo desta formalização pela lógica e pela topologia. Mas, ao contrário da
formulação freudiana, a metapsicologia lacaniana não apenas formaliza e reduz o dado
da experiência, mas injeta conjecturas, cria transformações clínicas sobre esta. Isso é
altamente problemático, mas serve para situar este projeto lacaniano de revisão da
estética transcendental kantiana.
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Concluindo: uma economia de extração ética, uma dinâmica de extração política
e uma tópica de extração não euclidiana (leia-se kantiana). Economia, dinâmica e
tópica: são estas os três modos de descrição de conceitos propostos por Freud (deixando
de lado a não menos importante vertente genética).
Não gostaria de me alongar nestas hipóteses de trabalho. Estou apenas indicando
o que poderia ser um entendimento da metapsicologia que não fosse apenas uma
variação de temas epistemológicos. O ponto central é que precisamos hoje de uma
metapsicologia que se situe entre a ética e a epistemologia, uma mistura herética entre a
ciência e a política como vocação.
Entendo que esta seria uma alternativa ao movimento de hipertrofia da
metapsicologia que tem sido criticado, com justa razão, como pretendi demonstrar, por
inúmeros autores da psicanálise. A alternativa imediata sugerida por estes críticos
aponta para uma certa inutilidade da metapsicologia, presa a uma regime de teorização
passadiço, que não auxilia muito em termos de transmissão da clínica nem em termos de
formalização de seus conceitos. A metapsicologia não se resume à hagiografia dos
conceitos canônicos e à reconstrução de sua evolução histórica ou intra opera.
Portanto a terceira resposta possível à pergunta: para que serve a metapsicologia
hoje ? poderia se resumir a manter a clínica como uma atividade simultaneamente ética
e epistêmica, ou seja, a psicanálise como um método de cura e de investigação.
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